Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e10741
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
1
Este conteúdo utiliza a Licença Creative Commons Attribution 4.0 International License
Open Access. This content is licensed under a Creative Commons attribution-type BY
Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma
educação eminentemente camponesa
Naura Sthocco Silva
1
,
Helder de Moraes Pinto
2
1
Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Centro de Ciências Humanas - Departamentos de Métodos e
Técnicas Educacionais. Campus Universitário Prof. Darcy Ribeiro. Avenida Prof. Rui Braga, s./n., Vila Mauriceia. Montes Claros
- MG. Brasil.
2
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM.
Autor para correspondência/Author for correspondence: nsthocco@gmail.com
RESUMO. A partir de uma perspectiva teórica e interpretativa, o
presente artigo tem como intuito discutir o contexto sociopolítico da
proposta de formação de professores para Educação do Campo a partir
das pressões dos movimentos do campo e do envolvimento das
parcerias institucionais. Dessa forma, elegemos como problema
norteador do estudo: como se deu o processo sociopolítico para o
envolvimento do estado e das instituições para promover a formação
de professores do campo? Para isso, são apresentas as diferenças entre
as realidades educacionais oferecidas no campo e na cidade no Brasil;
discutido o surgimento da exigência por uma educação específica
camponesa como processo de resistência aos interesses do
agronegócio no século XX; e cotejada a inserção das demandas sociais
do campo nas pautas do estado por meio do Pronera e adesão das
Universidades Públicas na formação de professores do campo. Esta
pesquisa faz uso do método bibliográfico e explicativo tendo como
base teórica a Educação do Campo como espaço de luta social. Como
resultado, evidenciou-se que as ações políticas e institucionais
destinadas à formação de professores do campo se deram como
produto das pressões dos movimentos sociais, com o devido destaque
ao MST, junto ao Estado e às instituições públicas, que atenderam às
demandas por meio da articulação entre Pronera e as Universidades
Públicas. Deste cenário, a partir da década dos anos 1990, os cursos de
Licenciatura do Campo surgiram como resposta às demandas por
docentes de formação específica nas escolas do campo, representando
a elevação da representatividade dos anseios camponeses em meio aos
debates sobre as políticas educacionais no Brasil. Avanços esses que,
devido às ações criadas durante o primeiro mandato do governo Lula
(2003 a 2006) firmaram-se, dando continuísmo a novas ofertas de
vagas nos cursos de LeDocs pelo Brasil na última década.
Palavras-chave: educação do campo, formação de professores,
pronera.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
2
Between the countryside and the city: struggles for the
right to an eminently peasant education
ABSTRACT. From a theoretical and interpretive perspective, the
present article aims to discuss the socio-political context of the
proposal for training teachers for Rural Education from the pressures
of rural movements and the involvement of institutional partnerships.
So, how did the socio-political process for the involvement of the state
and institutions to promote the training of rural teachers? For this, we
seek to present the differences between the educational realities
offered in the rural areas and in the city in Brazil; to discuss the
emergence of the demand for a specific peasant education as a process
of resistance to agribusiness interests in the 20th century; and to
present the insertion of the social demands of the rural areas in the
guidelines of the state through Pronera and adhesion of the public
Universities in the formation of rural teachers. The study is
qualitative, explanatory and bibliographic having as the theoretical
basis the Rural Education as a space for social struggle. As a result, it
became evident that the political and institutional actions aimed at
training teachers in the field took place as a product of the pressures of
social movements, with due emphasis on the MST, along with the
state and public institutions, which met the demands through
articulation between Pronera and public universities. From this
scenario, from the decade of the 1990s, Licenciatura do Campo
courses emerged in response to the demands for teachers of specific
training in rural schools, representing the increase in the
representativeness of peasant wishes in the midst of debates on
educational policies in Brazil. Advances that, due to the actions
created during the first term of the Lula government, were established,
giving continuity to new offers of vacancies in LeDocs courses in
Brazil in the last decade.
Keywords: rural education, teacher training, pronera.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
3
Entre el campo y la ciudad: las luchas por el derecho a una
educación eminentemente campesina
RESUMEN. Desde una perspectiva teórica e interpretativa, este
artículo tiene como objetivo discutir el contexto sociopolítico de la
propuesta de formación de profesores para la Educación del Campo a
partir de las presiones de los movimientos del campo y la
participación de las asociaciones institucionales. Así, ¿cómo fue el
proceso sociopolítico para la participación del Estado y las
instituciones para promover la formación de los profesores en el
campo? De este modo, busca presentar las diferencias entre las
realidades educativas que se ofrecen en el campo y en la ciudad de
Brasil; discutir el surgimiento de la demanda de una educación
campesina específica como un proceso de resistencia a los intereses
agroindustriales en el siglo XX; y presentar la inserción de las
demandas sociales del campo en las directrices estatales a través de la
Pronera y la adopción de universidades públicas en la formación de
profesores en el campo. El estudio es cualitativo, explicativo y
bibliográfico basado en la educación del país como espacio para la
lucha social. Como resultado, se evidenció que las acciones políticas e
institucionales encaminadas a la formación de docentes en el campo se
dieron como resultado de las presiones de los movimientos sociales,
con el debido énfasis en el MST, junto con el Estado y las
instituciones públicas, que cumplieron con las exigencias de los
movimientos sociales demandas a través de la articulación entre
Pronera y las universidades públicas. A partir de este escenario, desde
la década de 1990 hasta la década de 1990, los Cursos del Campo
surgieron como respuesta a las demandas de maestros de capacitación
específica en las escuelas del campo, lo que representa el aumento de
la representatividad de las expectativas campesinas en medio de
debates sobre políticas educativas en Brasil. Avances que, debido a las
acciones creadas durante el primer mandato del gobierno de Lula, se
han firmado, continuando ofreciendo nuevas vacantes en cursos de
LeDocs en todo Brasil en la última década.
Palabras clave: educación del campo, formación del profesorado,
pronera.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
4
Introdução
O direito à educação de qualidade, ao
longo do processo histórico, foi retirado de
grande parcela da população brasileira do
campo. Às classes abastadas fora reservado
o acesso ao ensino formal, fazendo-a útil
para a retroalimentação de suas
hegemonias na sociedade. A falta de
professores qualificados para atuar no
campo se tornou um dos mecanismos para
a negação da escolarização ao camponês.
Em meio às agruras vividas pelo
povo do campo e dos profissionais da
escola rural, mecanismo criado pelas elites
políticas para conter a mão de obra do
campo no fluxo de êxodo rural, a partir das
primeiras décadas do século XX, as lutas
pela reforma agrária avançaram por meio
dos movimentos sociais, como o
Movimento dos Trabalhadores sem Terra
MST.
As lutas no campo passaram a
requisitar não apenas o direito à terra, mais
o acesso aos direitos sociais básicos, como
de uma educação adequada aos seus modos
de vida nos assentamentos de reforma
agrária. As vozes dos camponeses, por
séculos emudecidas, ecoaram no campo
político nacional ao ponto de gerar a
formação de políticas públicas capazes de
atender a essas antigas demandas sociais.
Como resultado, surgiu a proposta de uma
Educação do Campo, adequada à realidade
do camponês, que deveria ter na sua
base curricular a articulação entre conteúdo
e atividades cotidianas, nos anos de 1980.
A partir dos anos 2000, as demandas
educacionais camponesas ganharam espaço
nas universidades públicas brasileiras, por
meio do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), com a criação
do Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (Pronera). Os
professores leigos
i
, que atuavam nas
comunidades rurais e nos assentamentos de
reforma agrária, passaram a ser público-
alvo de cursos e ações para a
profissionalização e formação de
professores para atuar nas escolas do
campo.
Para Brandão (1986, p. 14) “Em boa
medida, o professor leigo é, entre nós, o
professor rural. Tal como ocorre em outros
setores profissionais, a zona rural é
obrigada a aceitar por mais tempo agentes
desqualificados cuja prática não é mais
aceita na cidade, em seu estado”. Nesse
caso, esse docente serve como limiar
determinado no Brasil, existindo em várias
regiões, sem formação oficial, atuando sob
as condições de carência. Considerados
leigos de carreira, por nunca ter chegado
ao mesmo nível de ser um professor
formado, esses se mantiveram em sala de
aula por boa parte da vida, mesmo que em
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
5
condições eventuais nunca chegaram a
atuar nas suas próprias localidades.
A partir desse percurso, surgiu como
problema basilar deste estudo: como se deu
o processo sociopolítico para o
envolvimento do estado e das instituições
para promover a formação de professores
para atuarem na educação do campo? Para
responder este questionamento, o presente
artigo realiza uma digressão histórica a fim
de trazer à superfície da análise os
precedentes históricos das ações
institucionais com finalidade de formação
do docente do campo no Brasil.
Para discutir acerca do contexto
educacional brasileiro, que enseja a
formação de professores do campo, bem
como discrepância existente entre a
educação urbana e a rural, utilizou-se dos
ensinamentos de autores como Arroyo
(2007, 2008, 2012), Saviani (2009, 2016);
para tratar das políticas educacionais
vinculadas às demandas dos movimentos
sociais
ii
pela terra, fez-se o uso dos
apontamentos de Caldart (2012); Molina
(2005, 2012); Fernandes (2000); e Molina
e Sá (2012) para discutir a respeito dos
programas de magistério para a formação
continuada de professores do campo.
A estrutura do estudo está disposta
em quatro sessões, além da introdução e
das considerações finais. Na primeira
sessão, são apresentadas as discussões
sobre a realidade educacional brasileira sob
a lógica paradoxal entre aquela ofertada
nas escolas do campo e na cidade ao longo
do processo histórico. Na segunda são,
apresentam-se as influências do
agronegócio no contexto econômico e
político brasileiro para a formação da base
do que viria a ser a proposta de Educação
do Campo. Na terceira são, são
discutidas as articulações realizadas pelo
Movimento dos Sem Terra a partir do
reconhecimento da luta social no campo
educacional. Por fim, na quarta são,
aponta-se o surgimento das ações
institucionais para a promoção da educação
do campo no Brasil através do Incra, como
foi o caso do Pronera com articulações
feitas pelas universidades públicas a partir
dos anos 2000.
A realidade educacional brasileira e o
abismo de oportunidades
No caso deste estudo, a relação entre
campo e cidade, retomando à realidade
agrária brasileira, como afirmou Octavio
Ianni (2004), faz evocar um problema do
campo: a diferença entre a educação rural
iii
ofertada ao camponês e aquela da cidade,
ou ainda, o tipo de escola que se formou
nesses dois espaços ao longo da formação
da sociedade brasileira. Apesar de a
reivindicação elementar dos camponeses
ser a posse e o uso da terra, objeto maior e
básico de trabalho e vida, reagindo à
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
6
expulsão do lugar onde erguem suas vidas
e resistindo a proletarização.
Arroyo (2007) considera que apontar
por si o direito sob o aspecto generalista,
como direito coletivo válido a todos os
grupos sem distinção, é uma tradição
brasileira. Isso, por outro lado, apesar de
significar um avanço social, não eleva o
reconhecimento das especificidades de
políticas voltadas às diversidades de
coletivos que fazem parte de nossa
formação social e cultural. Portanto,
instaura-se uma tensão sobre a própria
definição dos sujeitos abarcados e seus
próprios ganhos. Poder-se-ia tomar a
educação como direito universal, desde
que reconhecidas às políticas voltadas para
a formação de professores do campo de
modo concreto, que a formulação de
princípios e normas não garantem ações
específicas que de fato levem em
consideração as características culturais
essenciais para a formulação de um
currículo para a educação do camponês.
Desse modo, diante o paradoxo
existente entre a realidade rural e urbana
no Brasil, sob o ponto de vista do acesso à
educação, Arroyo (2007) aponta para a
falta de políticas educacionais para o
campo com relação a outros serviços
públicos oferecidos à população da cidade.
Isso se evidencia pela própria adaptação do
modelo educacional urbano oferecido aos
camponeses, desconsiderando suas
especificidades.
Para corroborar com tal assertiva
acerca do descaso em relação ao direito à
escolarização do homem e mulher do
campo, direito a um ensino regular
específico para sua realidade, basta que se
recorra aos textos constitucionais
brasileiros. Apesar da primeira legislação
de 1824 ter positivado o direito à educação
por parte de homens livres, excluindo
obviamente negros escravizados, não criou
condições reais para a organização de um
ensino escolar para o morador do campo.
Somente com a primeira Constituição
republicana, de 1891, citou-se, pela
primeira vez, o direito dos camponeses
terem acesso à escola rural, porém sem
levar em consideração qualquer noção de
direito específico à população do Campo.
A escola rural, de acordo com
Ribeiro (2012, p. 296), é aquela destinada
aos homens e mulheres do Campo,
trabalhadores que vivem da agricultura,
abarcando conhecimentos meramente
elementares de escrita, leitura, operações
matemáticas básicas. Seria uma escola
“onde se estuda, e este estudo nada tem a
ver com o trabalho que o camponês
desenvolve com a terra”.
Souza (2017) deixa evidente, entre
outras coisas, a diferença das práticas
educacionais entre os grupos que exploram
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
7
e os que são explorados a partir da relação
entre pais e filhos. Nas classes populares,
que inclui os camponeses, diferentemente
das classes sociais dominantes que se
organizam para a obtenção de outros tipos
de capital, como o cultural, por meio dos
estímulos dos pais aos filhos à leitura à
imaginação, as crianças pobres crescem
sem tais estímulos, causando, ao longo do
período escolar, dificuldades de
concentração, falta de habilidade e
disposição para aprender os conteúdos.
Em contrapartida, apesar da pressão
das elites para manter o status quo e de
seus privilégios advindos desde o sistema
escravista, Arroyo (2007) considera existir
uma exclusão dos povos do campo diante
da estrutura social imposta. E, apesar de
todas as amarras simbólicas que perpetuam
a miséria entre os excluídos ao longo da
história da própria constituição da
sociedade brasileira, os movimentos
sociais do campo insurgiram em defesa de
interesses específicos, como uma educação
pública que valorizasse a terra, a escola e o
lugar como símbolos de identidade e de
cultura.
Essa perspectiva de educação
“adaptada” à escola rural foi fundada sem
compromisso com as práticas cotidianas
rurais, incapaz de subsidiar os camponeses
na defesa de escolas adequadas à sua
cultura. O produto disso foi o continuísmo
da desvantagem da educação rural em
comparação à educação urbana, restando-a,
entre outras coisas, o abandono a
defasagem idade-série, os menores níveis
de escolarização e índices elevados de
reprovação, que a preocupação era
formar trabalhadores para a nova ordem de
trabalho no campo (Arroyo, 2007).
O que ocorria na transição do século
XIX para o XX no Brasil era o mesmo que
havia acontecido na Europa num período
anterior. Uma realidade marcada pela
inclusão de tecnologias no campo através
da mecanização da produção agrícola, que
acabou alterando a realidade social
camponesa. A mecanização dos meios de
produção no campo causou alteração
quantitativa e qualitativamente no processo
produtivo, exigindo a expansão das áreas
produtivas, do sistema de transportes e de
comunicação (Sevcenko, 1998).
Observando o contexto histórico do
século XX, de forma mais ampla, após o
fim da escravidão no Brasil em 1888 e
início do processo de urbanização,
Vendramini (2015) defende que o direito
dos camponeses e das camponesas à escola
rural surgiu por intermédio de uma
estratégia criada pelas classes dominantes.
Assim, por trás do projeto da escola para
os camponeses, estava a contenção do
fluxo migratório para as cidades.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
8
Nesse caso, além de tentar conter a
inserção da cidade com retirantes do
campo, intensificada, principalmente, a
partir dos anos de 1930, a política
educacional destinada aos camponeses
passou a ter atenção por causa dos
interesses das grandes empresas norte-
americanas na expansão das fronteiras
agrícolas no Brasil. Esses projetos tinham
forte necessidade de adequação
tecnológica por parte dos trabalhadores do
campo, fazendo com que a educação se
tornasse instrumento importante para a
formação de uma mão de obra assalariada
permanente no meio rural (Ribeiro, 2012).
Com o avanço do processo industrial
no Brasil, a realidade campesina seguiu
com a pressão dos interesses do capital. A
prática da agricultura foi sendo modificada
com os avanços do agronegócio e setor
financeiro no meio rural, desencadeando
um processo de compras e arrendamentos
das terras, o que aumentou o seu valor e
dos recursos naturais por meio da
especulação. Ao Estado coube a função de
viabilizar o uso da terra pelo capital
nacional e estrangeiro, promovendo a
ocupação com a agricultura, assim como
desenvolvendo a indústria, a extração de
recursos e a infraestrutura (Vendramini,
2015).
Para Ianni (1984), o capitalista
envolvido nesse contexto se manteve
beneficiário da subjugação do campo à
cidade de várias maneiras, tanto pelo apoio
do Estado na regulagem de preços sobre
alguns insumos, créditos, garantia dos
suprimentos de matérias-primas; pelo
favorecimento às exportações desses
produtos. Por último, a oferta da grande
reserva de mão de obra para o trabalho no
campo, essencial para a expansão da
indústria.
Desse modo, tanto o trabalhador
pobre da cidade quanto os camponeses e as
camponesas, de certa maneira, ampliaram
o direito à educação regular mediante a
pressão social. Contudo, mesmo garantida,
destaca Vendramini (2015), por longo
período, o direito à educação do povo do
campo se manteve marcado pelo
analfabetismo e o baixo nível de
escolarização. E, mesmo depois de ter
alcançado esse direito, passaram a
vivenciar a precariedade e baixa qualidade
da educação que lhes foi oferecida.
Educação do Campo e as aspirações do
agronegócio no Brasil
Os camponeses que resistiram as
tentações da cidade e se submeteram à
nova ordem do capital no campo, acabaram
se transformando. Surgiu desse processo
de intensificação da exploração e da
concentração de terras e de renda um novo
tipo de camponês, um produto da
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
9
destruição e, ao mesmo tempo, uma
recriação das formas de organização do
trabalho, articulado com a produção do
mercado (Ianni, 1984).
Essa adaptação de parte dos povos
campesinos que persistiram em viver no
campo pode ser explicada mediante a
dependência que passou a ter ao crédito
bancário. As famílias de camponeses
foram envolvidas pelo capital com a
circulação da mercadoria de origem
agrícola. Isso causou, presume-se, a
dependência dos trabalhadores do campo
aos bancos, que passaram a penhorar cada
vez mais suas propriedades a fim de
garantir os financiamentos (Martins, 1986).
Martins (1986) destaca que os
camponeses acabaram inseridos em uma
relação social na qual a terra passou a ser
mediada pelos interesses do mercado.
Como resultado, a realidade rural brasileira
passou a configurar a concentração de
renda e a pobreza dos produtores.
No entanto, esse cenário social
instável criou circunstâncias capazes de
aumentar as tensões sociais, o que,
consequentemente, fez surgir e perdurar os
governos oligárquicos e autoritários. Na
visão de Ianni (1984), foi exatamente essa
exploração do trabalho no campo que deu
fôlego para o surgimento do Estado
autoritário no Brasil durante parte do
século XX.
O aumento populacional no Brasil,
tanto no campo quanto na cidade,
favoreceu a flexibilização da
movimentação interna das massas
populacionais, criando áreas de tensão
social. Amparados pela ideia da ordem
social, o autoritarismo passa a servir contra
a formação das áreas-problema. Dentre
essas possíveis áreas nas quais as massas
poderiam ultrapassar as fronteiras, estavam
as fazendas e os latifúndios (Ianni, 1984, p.
144).
Segundo Delgado (2001), nos anos
de 1930, grupos de intelectuais tomaram
como ponto de estudo a questão agrária no
Brasil. Permeados pelo pensamento liberal
em economia, os debates focaram na
economia rural a partir do cenário político
hegemônico que se inaugurou por
intermédio da revolução que ascendeu
Getúlio Vargas ao poder federal.
Após a Segunda Guerra Mundial, os
grupos políticos e intelectuais liberais, sob
o ponto de vista da industrialização e dos
resultados alcançados pela adoção da
política de substituição de importação,
passaram a discutir a importância do setor
rural na economia e na sociedade brasileira
(Delgado, 2001).
Na virada da década de 1920 para
1930, surgiu como centro dos debates nas
camadas mais populares a questão da
alfabetização e a manutenção do povo
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
10
camponês no campo. Nesse intuito, foi
apresentado como resposta o chamado
ruralismo pedagógico, idealizado por meio
da articulação de grupos de intelectuais,
pedagogos que prestaram a formular uma
proposta pedagógica capaz de manter ou
dificultar a saída do campo. Essa proposta
buscou atender as populações camponesas
distantes dos centros urbanos sem
condições de acesso a escola, porém, sem
professores oriundos do campo, a
preocupação era de que esses vindos da
cidade fizessem propaganda urbanista no
processo de ensino-aprendizagem nessas
localidades (Santos & Bezerra Neto, 2015).
Nessa perspectiva, caberia aos
professores incluídos na proposta
pedagógica rural a missão de criar uma
ideologia que possibilitasse ao camponês
permanecer no campo, reconhecendo seu
modo de vida por meio de uma educação
que compreendesse um currículo amparado
por conhecimentos úteis na agricultura, na
pecuária e outras atividades cotidianas. A
defesa dessa proposta não ficou reclusa
apenas aos pedagogos, e logo integrou a
agenda de governos estaduais que
passaram a estabelecer escolas rurais e,
atender algumas reivindicações iniciais,
principalmente em relação à falta de
professores interessados em atuar no
campo (Santos & Bezerra Neto, 2015).
No entanto, como pano de fundo da
intenção de criar uma pedagogia útil ao
povo do campo, existia o fator mais
preponderante que poderia potencializar as
tentativas de conter o êxodo rural, o fator
econômico. Faltava, no Brasil, uma
política fundiária e agrícola a fim de
conceder benefícios ao pequeno
proprietário rural. Além de não haver
discussões sobre melhorias objetivas para a
permanência dos camponeses na terra,
como as políticas para regularizar a posse
da terra, não foram criados, pode se dizer,
mecanismos para organizar o processo de
modernização do campo, o que refletia na
expulsão do trabalhador rural (Santos &
Bezerra Neto, 2015).
No entanto, na seara jurídica
avançava, mesmo que a passos lentos, mas
com alguns ganhos para a população do
campo, conquistas em relação ao direito à
educação. No ano de 1934, a promulgação
da Constituição trouxe em seus artigos 5º,
148 a 158 a ideia da educação como direito
subjetivo público. Foi universalizado o
direito ao ensino a todos, de forma ampla e
irrestrita, englobando tanto os brasileiros
natos quanto os estrangeiros domiciliados
no país e, se acreditava que a escolarização
possibilitaria o desenvolvimento eficiente
de valores morais e de cidadania (Azevedo,
2010).
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
11
Sob a influência norte-americana, o
governo brasileiro, no ano de 1956, tornou-
se signatário de um acordo para instituir o
Programa de Assistência Brasileiro-
Americana ao Ensino Elementar (Pabaee).
Segundo Azevedo (2010), essa política
ensejou o tecnicismo nas escolas
brasileiras, assim como teria emplacado
nas escolas americanas, no intuito de criar
as bases para o continuísmo do
crescimento industrial. Por outro lado, em
relação à escola rural, não se percebe o que
foi feito neste conjunto de ações.
Nesse contexto, o povo espoliado do
campo foi visto com cuidado, que
poderia agregar ao pensamento vindo do
leste europeu e iniciar um processo
revolucionário. O iminente risco deu lastro
para realizar pactos e convênios entre
governo americano e brasileiro a partir dos
anos de 1950, formando programas no
campo da educação como a Campanha
Nacional de Educação Rural, assim como
havia realizado em países da América
central, como México, Guatemala, e na
Venezuela (Delgado, 2001).
Nos anos de 1960, no que tange ao
debate político, com a urgência em realizar
a Reforma Agrária no Brasil foi que a
questão agrária de fato integrou a agenda
intelectual e política de partidos de
esquerda. Os primeiros grupos envolvidos
nessa adesão foram a Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL), tendo
como um de seus componentes Florestan
Fernandes; o Partido Comunista Brasileiro
(PCB), e alas progressistas ligadas à Igreja
católica (Delgado, 2001).
Nesse contexto de agitação da
esquerda no cenário político brasileiro, foi
instituída, em 1961, a Lei 4.024/1961
Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Fruto da exacerbação do debate
acerca da educação pública e privada,
buscou regular todos os níveis de ensino no
país, bem como organizando o currículo
nacional (Azevedo, 2010).
No arrazoado de Saviani (1996),
muito pouco contribuiu a Lei de Diretrizes
e Bases Lei 9394/1996 para a educação
do homem camponês. O que pouco se tem
está positivado em seus artigos 31 e 32,
referentes à mudança da responsabilidade
da garantia do ensino primário rural para o
poder privado. Na ocasião, entendeu o
legislador que restaria às empresas
agrícolas e aos proprietários rurais a
obrigatoriedade de propiciar aos filhos dos
funcionários e aos próprios trabalhadores a
formação primária.
Desse conjunto de exploração do
trabalho e da pobreza gerada no campo,
Martins (1986) considera que as lutas
sociais organizadas em favor da terra
surgiram de forma complicada. Isso porque
com o golpe Militar de 1964 os partidos
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
12
políticos contrários ao regime entram na
clandestinidade, e os que se mantiveram
em condições a favor do governo passaram
a não integrar nas agendas as causas
agrárias relacionadas à luta camponesa
pela terra.
No período da Ditadura Militar um
dos grupos que se manteve engajado à
causa camponesa foi Comissão Pastoral da
Terra (CPT), que por ser de caráter
ecumênico, esteve diretamente relacionada
à Igreja Católica e a outros segmentos
cristãos, como as igrejas protestantes no
Brasil (Canuto, 2012).
No ano de 1971, novas diretrizes da
educação foram criadas por meio da Lei
5.692, dando peso as ações para
organização do primeiro e segundo graus.
Todavia, devido à escassez de recursos
para mudar de forma profunda o campo
educacional, o governo acabou cedendo
condições para que o ensino superior
privado expandisse, o que acabou
aumentando a procura por esta modalidade
de ensino. (Canuto, 2012).
No que se refere especificamente à
educação rural, as novas diretrizes
trouxeram, pela primeira vez, a ideia de
adaptação do calendário das escolas rurais
dos e graus às atividades do homem
do campo. Em seu artigo 11, no parágrafo
, determina que “Na zona rural, o
estabelecimento poderá organizar os
períodos letivos, com prescrição de férias
nas épocas do plantio e colheita de safras,
conforme plano aprovado pela competente
autoridade de ensino” (Brasil, 1971).
Nessa mesma década de 1970,
iniciaram no Brasil conflitos violentos
contra os movimentos organizados em prol
da terra. Por causa disso, em 1975, a
Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB) convocou os bispos das
dioceses da Amazônia e logo de todas as
demais regiões do Brasil para apoio aos
agricultores familiares, grupos
quilombolas, ribeirinhos, extrativistas,
pequenos proprietários, agricultores sem-
terra, bem como trabalhadores rurais
assalariados na causa pela terra (Canuto,
2012).
Porém, a partir do fim da ditadura
militar no Brasil, que vigorou entre os anos
de 1964 a 1985, houve retorno dos
sindicatos e movimentos sociais. Nas
cidades reapareceram com o fim da
ilegalidade aqueles que possuíam ações
articuladas com os grupos de trabalhadores
metalúrgicos, que deram origem a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) e ao
Partido dos Trabalhadores (PT). No
campo, da mesma forma, movimentos
organizados na luta pela reforma agrária
ganham robustez com a grande leva de
migrantes camponeses desapropriados de
suas terras pelas empresas agrícolas
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
13
adeptas às monoculturas extensivas
(Vendramini, 2015).
Segundo Delgado (2001), na virada
da década de 1980 para 1990, estabeleceu-
se a transição do modelo modernizante-
conservador adotado, até então, para um de
caráter mais liberalista em relação à causa
agrária. Houve um retorno à questão no
debate político e econômico dentro de um
novo cenário político-social de cunho
econômico-liberal ensejado pela
Constituição da República Federativa de
1988.
Foi nesse período transitório que os
movimentos de camponeses pobres e sem-
terra questionaram acerca da necessidade
de construir políticas voltadas para uma
educação adequada à nova realidade dos
camponeses pobres e sem suas terras.
Neste contexto, ocorreram mudanças
socioeconômicas com o aprofundamento
da queda das taxas industriais e a demanda
externa, o que causou o aumento do
desemprego (Delgado, 2001).
A partir disso, o estado passou a ser
pressionado pelos movimentos sociais para
a formulação de projetos de educação que
não aqueles ofertados à escola rural,
assinalado pelos aspectos temporário e
experimental. Meras ações paliativas que
em nada representavam políticas sociais de
fato (Arroyo, 2007).
As transformações ocorridas no
campo por causa da expansão do capital
estabeleceram consequências severas nas
relações sociais brasileiras. Instituiu a
mobilização de famílias camponesas para
as cidades e outras fronteiras nacionais
seguindo o movimento do capital. Isso
resultou em mudanças na concepção da
escolarização camponesa (Vendramini,
2015).
A luta camponesa combateu para o
não fechamento da escola que até então
havia sido a eles reservada por meio de
diversas estratégias: agrupamento de
escolas, compartilhamento de programas
e recursos, redução de despesas, abertura
para programas instrumentais de
profissionalização e escolarização em
curto prazo, entre outros (Vendramini,
2015).
A situação da questão agrária
brasileira decorreu, sobretudo, da
organização dos movimentos sociais de
luta pela terra. Fernandes e Santos (2015)
entendem que a escolha do Estado
brasileiro em fazer modificar as políticas
sociais para o campo surgiu de um
conjunto de instrumentos de arrecadação
que fez com que homens e mulheres
passassem a se tornar sujeitos ativos nas
propostas de políticas, inclusive aquelas
destinadas à educação mais adequada ao
povo do campo.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
14
A proposta da Educação do Campo
como política pública, portanto, surgiu em
1990, por meio da atuação de movimentos
sociais na busca pelo reconhecimento da
cultura, dos saberes e dos trabalhos
relacionados aos homens e mulheres do
campo, sendo esse não apenas próprios da
produção agrícola, mas da produção de
conhecimento próprio (Fernandes, 2011).
Assim, como resultado desse avanço,
surgiu o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (Pronera), em 1997,
política pública de Educação do Campo
desenvolvida nas áreas de assentamento da
Reforma Agrária. Seu marco inicial foi o I
Encontro Nacional das Educadoras e
Educadores da Reforma Agrária ENERA
no ano de 1997. De acordo com o Manual
de Operações do Pronera (2011, p. 13), o
programa buscou como objetivo fortalecer
o meio rural como território de vida em
todas as suas dimensões: econômicas,
sociais, políticas, culturais e éticas.
Da Escola Rural para a Educação do
Campo: a luta por direito a uma
aprendizagem contextualizada
O Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), segundo Caldart
(2001), surgiu como fruto de questões
agrárias que são estruturais e históricas no
Brasil, reunindo as categorias de
organizações como posseiros, meeiros,
trabalhadores rurais assalariados chamados
sem-terra, dentre várias outras categorias e
organizações sociais que passaram a lutar
pela Reforma Agrária e também por
mudanças na agricultura brasileira. O
movimento surgiu como peça atuante na
luta pela terra. De acordo com Fernandes
(2012, p. 496) “em cada estado que iniciou
a sua organização, o fato que registrou seu
princípio foi a ocupação”.
Como destaca Saviani (2016),
inicialmente, a questão da educação não
fazia parte da pauta de luta no MST.
Porém, com a concretização dos
assentamentos e a presença das crianças
assentadas, passou-se a discutir sobre a
necessidade de escolas para atender as
demandas locais, o que também ocorreu
em outros movimentos, como na União
Nacional das Escolas Famílias Agrícolas
do Brasil. Fernandes (2012, p. 496)
descreve que a “luta é dimensionada em
vários setores de atuação do movimento,
como a produção, a educação, a cultura, a
saúde, as políticas agrícolas e a
infraestrutura social”. Essas lutas
contribuíram para o surgimento dos
assentamentos do MST com estratégias
comuns bem definidas, assim como as
políticas para o desenvolvimento.
Passaram a ter como finalidade a produção
destinada à segurança alimentar, com o
objetivo de obter renda e elevar a
organização em cooperativas, integrando-
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
15
se às cadeias produtivas predominantes na
área reformada (Fernandes & Santos,
2008).
No âmbito social e ambiental, os
assentamentos tinham ainda como meta
estabelecer condições seguras e dignas de
moradia, projetos esses baseados na ideia
de sustentabilidade ambiental. A questão
era realizar o desenvolvimento integral das
famílias por meio da criação de espaços de
convivência comunitária e de expressão da
cultura local e universal.
No que se referem ao campo cultural
e educacional, os assentamentos tiveram
como objetivo a formação de sujeitos que
reconhecem seus direitos. Para isso, gerou,
por meio da educação, o reconhecimento
dos camponeses como tributários
engajados na luta pela terra e na produção
econômica, política e cultural, vinculado à
própria realidade camponesa. Assim,
houve a valorização do núcleo familiar até
a escolarização regular (Fernandes &
Santos, 2008).
Leite (2012), porém, chama à
atenção para duas questões centrais no que
se refere à organização dos assentamentos
nas reformas agrárias no Brasil. Uma é que
não se pode dizer que os assentamentos
surgiram de um único “modelo” e que
motivos que deram origem às
reivindicações pela terra são os mesmos.
Nesse caso, teria que ser pensado como
espaço que apreende várias causas, espaços
que compreendem várias atividades e
várias concepções de mundo. A segunda é
a própria diversidade de lutas que têm na
demanda e no acesso a terra, que levam a
construção dos assentamentos, pois são
diferentes lutas em torno da Reforma
Agrária, em um mesmo espaço (Leite,
2012).
Portanto, a questão da educação do
campo passou também a fazer parte da
agenda do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), como uma
dimensão importante de luta. Fernandes
(2000, p. 223) aponta que “na segunda
metade da década de 1980, os Sem Terra
começaram a construir o Setor de
Educação, iniciando a colaboração de uma
pedagogia do Movimento”. A educação
pensada para a infância, como mecanismo
básico para a organização de seu quadro
ideológico, ainda que os conhecimentos,
habilidades e valores estivessem sob
aspectos universais.
Kolling, Vargas e Caldart (2012,
p.501) destacam que o MST, movido pelas
circunstâncias históricas, foi tomando
decisões políticas que compuseram sua
forma de luta e de organização coletiva.
Organizações essas que se propuseram a
articular o trabalho de educação no interior
do movimento.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
16
Nesse sentido, o tipo de educação
pretendida pelos movimentos sociais era
aquela vinculada à realidade do homem e
da mulher do campo, uma educação
contextualizada. Não aquela desconectada
dos anseios e vontades dos camponeses,
nem colonizadora, mas uma educação
escolar redimensionada para o sujeito em
formação a fim de responder as suas
questões (Tavares, 2009).
Partindo desse posicionamento, resta
compreender a importância da organização
educacional atrelada à realidade dos
sujeitos camponeses, que buscam
resistência na educação, para manutenção
do modo de vida e do trabalho do campo.
Fernandes (2000, p. 224) destaca que, a
partir da década de 1990, a questão da
Alfabetização de Jovens e Adultos foi
emergindo com força nos movimentos
sociais:
Em meados dos anos 90, o setor de
educação conseguiu aumentar o
número de cursos de Alfabetização
de jovens e adultos nos
assentamentos e acampamentos.
Também implantou cursos de
formação de professores e realizou
encontros locais e nacionais,
especializando e territorializando a
pedagogia do Movimento. Essas
experiências educacionais foram
reforçadas já no começo dos anos 90
com a criação do Curso de
Magistério e do Curso Técnico em
Administração de Cooperativas
(TAC).
Como característica prioritária do
trabalho de educação do MST, a formação
de educadores e educadoras da Reforma
Agrária passou a ser necessária para uma
educação do e no campo com
características próprias, com uma
pedagogia que atenda os anseios do
Movimento e as necessidades de formação
do povo campesino. Para Kolling, Vargas e
Caldart (2012, p. 503), “no trabalho de
educação do MST tem sido prioridade a
formação de professores da Reforma
Agrária”, a preparação das pessoas da
própria comunidade que atuariam nas
escolas públicas que foram sendo
conquistadas.
Esse processo de formação docente
pensado pelo MST buscou atender os ditos
“professores leigos”, que atuavam no
exercício do magistério sem possuir
habilitação mínima exigida. Por
conseguinte, a falta de habilitação não os
impossibilitou de participarem do processo
coletivo de produção do projeto político
pedagógico que passou a ser defendido
pelo MST (Kolling, Vargas & Caldart,
2012).
Sobre essa situação dos professores
leigos, Brandão (1986, p. 14) considera:
Em boa medida, o professor leigo é,
entre nós, o professor rural. Tal como
ocorre em outros setores
profissionais, a zona rural é obrigada
a aceitar por mais tempo agentes
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
17
desqualificados cuja prática não é
mais aceita na cidade.
A construção de uma proposta
pedagógica específica, com características
bem definidas e a busca pela formação dos
professores leigos, exigiu do MST uma
discussão mais coletiva sobre a
organização da escola. Para Kolling,
Vargas e Caldart (2012, p. 503) algumas
fragilidades devem ser destacadas sobre as
concepções de escola e do próprio
envolvimento, como a formação de
educadores, muitas vezes disputando
informações com órgãos do estado.
Sendo assim, o MST se colocou em
luta por uma educação precisa a seus
valores e seus objetivos sociais. Esse
envolvimento se desdobrou em iniciativas
de escolarização e formação específica
para professores e professoras que atuam
em escolas do campo. Assim, deu-se nesse
processo o desenvolvimento de cursos de
formação de professores no nível médio,
antigo magistério, e, a partir de 1990, em
nível superior como o da Pedagogia da
Terra, entre outras várias licenciaturas em
educação do campo, em universidades
federais, com base na pedagogia da
alternância (Kolling, Vargas & Caldart,
2012).
A educação contextualizada, dessa
maneira, esteve relacionada com a
valorização da realidade local dos sujeitos
inseridos no processo de ensino-
aprendizagem. Conhecer o modo de vida
de sua própria realidade, com vistas a
superar problemas e fragilidades
estruturais tanto materiais como
simbólicos, passou ser uma missão do
currículo no imaginário da Educação do
Campo, segundo o MST.
Dessa maneira, a Educação do
Campo é aquela que torna os sujeitos
camponeses integrantes da construção do
processo educativo que não o destinado
para a formação da massa trabalhadora,
aquela conveniente aos anseios do capital
monocultor e da pecuária extensiva. Seria
uma educação de formação do sujeito
capaz de ter conhecimento de suas lutas e
desenvolver novos quadros de
questionamentos e reivindicações (Caldart,
2012).
A partir dessa perspectiva de
educação que os assentamentos da reforma
agrária passaram a exigir a implantação
das escolas do campo que, segundo Molina
e (2012, p. 146) é aquela que “... se
coloca numa relação de antagonismo às
concepções de escola hegemônicas e ao
projeto de educação proposto para a classe
trabalhadora pelo sistema do capital”.
Para Molina e (2012), a escola do
campo surgiu dentro da concepção de
Escola Unitária
iv
que tomou de base o
desenvolvimento de práticas pedagógicas e
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
18
epistemológicas para a materialização da
formação humanista lastreada na
articulação entre o trabalho, a ciência e a
cultura para a formação do intelecto da
classe trabalhadora.
Essas iniciativas de formação
docente levaram ao reconhecimento do
Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef), no ano de 1995. Segundo
Kolling, Vargas e Caldart (2012, p. 501),
com o impulso desse reconhecimento, foi
realizado o I Encontro Nacional de
educadores e educadoras da Reforma
Agrária (Enera) em junho de 1997, que
serviu como apresentação pública do
trabalho que vinha sendo desenvolvido nas
escolas dos assentamentos, na Educação de
Jovens e adultos, na educação infantil e na
formação de professores.
Fernandes (2000, p. 224) destaca
que na década de 1990, a questão da
Alfabetização de Jovens e Adultos foi
emergindo com força nos movimentos. No
entanto, para Caldart, Frigotto e Pereira
(2012), as experiências obtidas pelo MST
nas discussões sobre educação do campo
foram fundamentais para o engendramento
do Programa Nacional da Educação na
Reforma Agrária. Partindo desse
posicionamento, resta compreender a
importância da organização educacional
atrelada à realidade dos sujeitos
camponeses que buscou resistência pela
via da educação, para manutenção do
modo de vida e do trabalho do campo.
Portanto, apesar da proposta de
escola rural estar prevista desde as
primeiras décadas do século XX, deve-se
entender que a atuação do MST, dentre os
outros movimentos sociais envolvidos no
campo da luta pela terra, reforçou a
necessidade de promover a formação
humana daqueles sem acesso a terra.
Apesar de não ser o único responsável nos
ganhos educacionais pelo povo do campo,
foi o movimento que entoou nos
assentamentos a necessidade de debater as
ações voltadas para a formação da
identidade dos sem-terra, que se
mantiveram ainda dependentes de uma
questão primordial: a formação docente
para atuação na proposta de Educação do
Campo (Caldart, 2012).
PRONERA: uma política para formação
de professores do campo
“A concepção e a política de
formação de professores do campo vão se
construindo na conformação da educação
do campo”, considera Arroyo (2012, p.
364) ao compreender que o novo cenário
que envolve a formação docente no Brasil
é fruto da articulação dos movimentos
sociais. Nesse percurso, seguiram
compreendidas as diversidades dos grupos
envolvidos no campo da luta pela terra,
envolvendo a formação de professores para
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
19
atuarem nas comunidades campesinas,
indígenas e quilombolas.
Nessa esteira, torna-se importante
evidenciar os sujeitos envolvidos na
construção dessa concepção de formação
docente, bem como suas contribuições no
debate político e na construção dos
currículos da formação docente e
pedagógica desses professores do campo.
Segundo Arroyo (2012), podem ser
destacados dois sujeitos fundamentais
nesse processo: o Pronera e os movimentos
sociais do campo.
À época do surgimento do Pronera,
havia no Brasil um quadro educacional
rural de altíssimo índice de analfabetismo,
baixíssimos índices de escolaridade e baixa
oferta de escolaridade nos assentamentos e
mesmo em escolas próximas a eles. Por
conseguinte, no dia 16 de abril de 1998
marca o dia da criação do Pronera pelo
Ministério Extraordinário de Política
Fundiária
v
. Salienta-se ainda a
incorporação desse programa ao Incra no
ano de 2001, priorizando a participação
dos jovens e adultos de assentamentos de
Reforma Agrária. O referido programa
corresponde a uma Política Pública de
Educação que envolve os agricultores e
agricultoras das áreas de Reforma Agrária
e que possui como maior objetivo o
fortalecimento da educação nos
assentamentos, estimulando a formação
para os jovens e adultos além da formação
para os professores das escolas do campo.
O romper com a Educação Rural é
uma das principais prioridades da
educação do campo defendida pelo MST e
pela proposta do Pronera. Fernandes e
Molina (2005) definem o campo como
espaço de particularidades e matrizes
culturais. E, por conseguinte, esse campo
cria possibilidades políticas, identidades,
histórias e produção de existência social. E
nesse contexto de lutas por educação que
atenda a diversidade do povo campesino
que o programa se apresenta, partindo da
necessidade de formação inicial para
educadores e educadoras do campo,
atendendo aos anseios rurais com o
compromisso na construção da consciência
crítica dos camponeses.
Na visão de Arroyo (2007), o que
ocorreu, nesse contexto, foi a ocupação
estratégica de espaços de formação de
professores, como o Ministério da
Educação, Secretarias de Educação
estaduais e municipais, pelos movimentos
sociais, que lançaram suas reivindicações a
fim de que sejam equacionadas as
especificidades da educação dos povos do
campo. Isso pressionou as instituições na
elaboração e aplicação de políticas e
programas de formação, além daqueles
montados sob o molde urbano e
generalista.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
20
Na sequência dos acontecimentos
que determinaram essa política pública
Mello (2017) destaca o envolvimento,
desde o ano de 2004, da União Nacional
das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil,
da Federação dos Trabalhadores da
Agricultura Familiar, da Comissão Pastoral
da Terra, Movimento de Organização
Comunitária e a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil CNBB.
A realização do I e II CNEC
significou como marco histórico da
articulação nacional dentro do processo de
afirmação dos direitos dos povos do campo
a uma formação escolar justa, ao lutar por
uma educação do campo que seja assumida
como uma política pública concreta e
efetiva, dando a oportunidade igualitária a
todos (Mello, 2017).
Como resultado do avanço das
demandas do povo do campo por uma
educação que fizesse sentido para a
realidade campesina, as Universidades se
integraram como parceiras desse processo
de democratização, com seus espaços de
pesquisa e reflexão em torno do
fortalecimento da educação do Campo. As
Universidades se destacaram como
parceiras do Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária,
participando efetivamente na discussão e
elaboração dos projetos propostos pelo
Pronera, sendo um desses importantes
projetos de “Alfabetização e Escolarização
dos Jovens e Adultos no Ensino
Fundamental e Médio; Formação Inicial e
Continuada de professores de Nível Médio,
na Modalidade Normal ou em Nível
Superior por meio de Licenciatura” (Brasil,
2011).
Antunes-Rocha e Martins (2009)
consideram que as universidades
brasileiras passaram exercer a função
educativa para a formação de professores
sob o ponto de vista inclusivo e
democrático, articulando com os grupos
sociais a construção de novos
conhecimentos. Relacionaram as práticas
de formação à vida no campo, partindo da
base do conhecimento adquirido pelos
camponeses no contato com sua própria
realidade. Os modos de organização da
sociedade campesina e das lutas pelo
acesso aos direitos garantidos integraram
aos debates entre dos cursos de formação,
ganhando legitimidade no discurso
acadêmico.
Todavia, Saviani (2009), apesar de
entender que as universidades brasileiras
não buscaram se interessar pela formação
docente do campo, afirma não haver uma
omissão por parte dessas instituições, e que
nem seria o caso debaterem sobre o mérito.
O que se teve, na verdade, foi o embate
entre modelos de formação específica sob
o ponto de vista do preparo didático
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
21
pedagógico. Um voltado para a cultura
geral e nos domínios específicos dos
conteúdos da área de conhecimento e das
disciplinas; outro entendendo que a
formação do professor deve se tornar
efetiva apenas por meio do
desenvolvimento pedagógico-didático.
Apesar disso, instaurou-se uma política de
formação docente dentro das universidades
com ações deliberadas apegadas à
organização curricular.
Sobre a formação de professores para
atuarem nas escolas do campo, Fernandes
(2012) aponta que sua incorporação como
política educacional se deu pelas pressões
do MST por meio do avigoramento das
ocupações e afrontamentos ao Estado,
exigindo respostas aos problemas do povo
campesino brasileiro. As lutas dos
movimentos sociais e dos sindicatos se
acirraram também pela qualidade da
educação no campo, exigindo um modelo
de educação que estivesse em consonância
com a vida real dos camponeses.
Apesar de terem se iniciado no
governo de Fernando Henrique Cardoso, as
primeiras sinalizações dos movimentos
sociais e aportes legais para a promoção da
educação do campo ocorreram no primeiro
triênio do governo Lula (2003-2005), o que
contribuiu para os avanços das elaborações
de instrumentos formais para o impulso ao
Plano Nacional de Educação e do
Alinhamento Estratégico do Ministério da
Educação (MEC). Essa tomada de rumo
subsidiou a criação do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica (FUNDEB) (Fagnani,
2011). Desse processo, por meio da
parceira com as Instituições de Ensino
Superior, surgiram os programas para a
formação docente do campo, como o
Programa de Apoio à Formação Superior
em Licenciatura em Educação do Campo
PROCAMPO, atendendo a resolução
CNE/CEB 1, de 3/4/2002 e o Programa
Nacional de Educação do Campo
PRONACAMPO, por meio do Decreto
7352/2010.
De acordo com Oliveira (2009, p.
197) “primeiro mandato do presidente Lula
foi marcado, no campo educacional, muito
mais por permanências que rupturas em
relação ao governo anterior.” Seguiu, na
verdade, em meio à proposta de uma
reforma educacional que compreendeu
todos os níveis educacionais, desde o
básico ao superior. Apesar de reconhecer
que ocorreram rupturas nessas políticas,
principalmente no segundo mandato, em
seu conjunto, apontaram para o resgate dos
direitos alcançados e garantidos pela
Constituição Federal de 1988.
No âmbito do Ministério da
Educação, no ano de 2004, criou-se a
Secretaria de Educação Continuada,
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
22
Alfabetização e Diversidade SECADI
alojando a Coordenação Geral da
Educação do Campo. A partir disso, as
parcerias com as universidades públicas
para a oferta de cursos de formação
docente foram firmadas, o que acabou por
oferecer vagas de cursos de licenciaturas
para habilitar docentes adequados aos
currículos multidisciplinares, organizados
em grandes eixos e articulados à proposta
da Alternância pedagógica, entre o tempo
escola e o tempo comunidade.
No arrazoado de Arroyo (2009), esse
quadro político-institucional criado para a
formação de professores do campo serviu
de exemplo para a formação docente para a
educação básica, pois reconheceu as ações
coletivas sociais para legitimar os saberes
como componentes teóricos dos currículos.
Segundo Molina (2014), dos encontros do
grupo de trabalho designado para a
formulação de novas propostas para
garantir a formação docente para o campo,
instituiu-se a versão apresentada ao
Ministério da Educação, dando forma às
Licenciaturas em Educação do Campo. Por
meio de um projeto ainda no formato
piloto, quatro cursos foram criados a partir
de indicações de Instituições de Ensino
Superior pelos próprios movimentos
sociais. Nesse processo, foram envolvidas
a Universidade de Brasília, a Universidade
Federal de Minas Gerais, A Universidade
Federal da Bahia e Universidade Federal
de Sergipe.
Das experiências alcançadas desses
pilotos, o MEC organizou editais, entre os
anos de 2008 e 2009, para que as
instituições brasileiras pudessem ofertar
cursos de Licenciatura para formação de
professores do campo na proposta de
Educação do Campo, após as experiências
alcançadas.
De acordo com Arroyo (2007), a
formação de um corpo profissional estável
e qualificado para atuação nas escolas do
campo não aconteceria se políticas
públicas de Estado não se tornassem
permanentes, viabilizando desde a entrada,
estabilidade, concursos, carreira do corpo
profissional docente, tornando-o estável.
Avanços nessa direção têm ocorrido.
Políticas públicas de Estado, tanto no
âmbito municipal quanto no estadual, têm
se preocupado em formar corpos docentes
para atuação por meio de concurso público.
Por outro lado, para aqueles que atuam no
campo, restou a gica de favorecimentos
políticos e de seu desenvolvimento por
meio de projetos e programas de formação.
Para Arroyo (2007), esse processo
foi marcado pela ocupação estratégica de
espaços institucionais para a formação
docente do campo pelos movimentos
sociais. Articulados, lançaram suas
reivindicações sobre o Ministério da
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
23
Educação, as Secretarias de Educação
estaduais e as municipais, para que fossem
garantidas ações que atendessem as
especificidades da educação dos povos do
campo. Pressionaram para a elaboração e a
aplicação de políticas e programas
educacionais para além daqueles
organizados aos moldes urbanos e
generalistas, oferecidos à população
brasileira.
Por fim, de acordo com Molina
(2015) houve, na última década, uma
ampliação dos cursos de Licenciatura da
Educação do Campo, o que pode ser
entendido como uma vitória dos
movimentos sociais. Para além do aumento
dos números das vagas, esse avanço
carrega consigo outras potencialidades,
como a consolidação da Educação do
Campo como área de produção de
conhecimento, não apenas acadêmica, mas
de experiências coletivas. Isso significa,
assim, a manutenção de um espaço
conquistado para realização de novas
políticas públicas para o campo, com
novos investimentos e cursos na área de
conhecimento, como o Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência PIBID. E, por fim, representa a
possibilidade de ampliação do acesso e uso
das Novas Tecnologias nas Escolas do
Campo, incorporadas, tanto ao longo do
processo de formação quanto nas pesquisas
aplicadas nas escolas do campo.
Considerações finais
Apreende-se, por meio da análise do
processo histórico brasileiro, que o acesso
à educação pelos camponeses esteve
marcado por grandes questões sociais,
políticas e culturais que certamente
alargaram o abismo existente entre sua
formação e aquela promovida na cidade. A
divisão do trabalho no campo, a
expropriação da terra e a falta de
oportunidade de trabalho seguiram sob a
luz da adequação à ordem do capital,
desconsiderando a questão do acesso dos
camponeses a uma educação escolar capaz
de torná-los críticos a toda essa realidade
fundante.
A negação à educação rural, mera
reprodutora da ordem capitalista-
exploradora, surgiu da necessidade de se
criar mecanismos dos grupos engajados
nas lutas pela terra e por direitos sociais. A
precisão de articulação entre os
camponeses, em destaque o MST, a partir
do final dos anos de 1980, desencadeou
políticas públicas para atender os anseios
do povo do campo. Com a necessidade de
enrijecer o ideário de luta, além da própria
proposta de uma educação apropriada para
jovens e crianças nos assentamentos, um
enquadramento curricular específico e
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
24
articulado com os valores do campo, a
questão da formação docente passou a ser
questão-chave.
A luta pelo acesso a terra, assim
como a valorização do modo de vida
camponesa, integrou um movimento de
resistência cada vez mais articulado contra
a concentração fundiária. Da própria
espoliação e expulsão dos trabalhadores da
terra, gestaram as reivindicações por
direitos até então marginalizados. Desse
processo de luta pelo reconhecimento da
causa camponesa mediante a promoção de
uma educação própria do campo, a
profissionalização do professor leigo,
aquele que atuava no campo sem formação
acadêmica, renegado a valorização
profissional, tornou-se, sem sombra de
dúvidas, o ponto central para o ganho real
das lutas camponesas.
Nesse sentindo, compreender que o
reconhecimento acerca da necessidade de
promoção de uma educação do campo
adequada às necessidades dos camponeses
surgiu com o fortalecimento do MST e do
Pronera como promotores históricos. Por
meio das ações desses, a partir dos anos de
1980, as demandas camponesas passam a
compor as agendas dos governos e a
galvanizar a atenção de outros grupos
organizados para promover a educação no
campo.
Desse modo, tendo surgido as
primeiras políticas públicas para a
promoção da Educação do Campo nos
anos de 1990, no governo de FHC, o
primeiro mandato do governo Lula pode
representar seus continuísmos. As
universidades públicas, por meio das
parcerias com o Pronera, continuaram ser
elementares para a formação específica de
professores para atuarem no campo, nos
assentamentos e nas comunidades rurais,
mediante a oferta dos cursos em nível
superior, espaços inimagináveis para os
camponeses até então.
Por fim, no contexto sociopolítico
brasileiro, a política que favoreceu a
formação de professores para o campo
surge não pelo mero reconhecimento do
estado e das instituições públicas pela
antiga demanda camponesa, mas sim pela
pressão social e articulação dos
movimentos socais, em destaque o MST.
Logo, a oferta dos cursos superiores nas
universidades públicas, a partir dos anos
2000, voltados para a formação de
professores do campo, deve ser entendida
como um dos mais importantes resultados
desse processo histórico.
Referências
Arroyo, M. G. (2007). Políticas de
formação de educadores (as) do Campo.
Caderno CEDES, 27(72), 157-176.
https://doi.org/10.1590/S0101-
32622007000200004
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
25
Arroyo, M. G. (2009). Educação popular,
saúde, equidade e justiça social. Cad.
CEDES, 29(79), 45-79.
https://doi.org/10.1590/S0101-
32622009000300009
Arroyo, M. G (2012). Formação de
Educadores do Campo. In Caldart, R. S.,
Brasil, P., Alentejano, & Frigotto, G.
(Orgs.). Dicionário da Educação do
Campo (s./p.). Rio de Janeiro, São Paulo:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, Expressão Popular.
Azevedo, F. (2010). Manifestos dos
Pioneiros da Educação Nova (1932) e dos
Educadores (1959). Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, Editora Massangana.
Santos, F. R., & Bezerra Neto, L. (2015).
Políticas públicas para a educação rural no
Brasil: da omissão à regulamentação do
programa nacional de educação na reforma
agrária. Rev.HISTEDBR-online, 15(66),
178-195.
https://doi.org/10.20396/rho.v15i66.86437
09
Brandão, C. R. (1986). Os professores
leigos. Em Aberto. Brasília (5)32.
Caldart, R. S. (2012) Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro, São
Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Expressão Popular.
Canuto, A. (2012). Comissão Pastoral da
Terra (CPT). In Caldart, R. S., Brasil, P.,
Alentejano, & Frigotto, G. (Orgs.).
Dicionário da Educação do Campo (s./p.).
Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
Expressão Popular.
Constituição da República Federativa do
Brasil (1998, 05 de outubro). Recuperado
de: http://www.senado.gov.br/sf/legislacao
/const/
Delgado, G. C. (2001). Expansão e
Modernização do setor agropecuário no
pós-Guerra: um estudo da reflexão agrária:
Estudos Avançados, 15(43), 153-172.
https://doi.org/10.1590/S0103-
40142001000300013
Ferreira J. R., & A. Bittar. M. (2006). A
ditadura militar e a proletarização dos
professores. Educ. Soc., 27(97), 1159-
1179. https://doi.org/10.1590/S0101-
73302006000400005
Fernandes, B. M. (2000) A formação do
MST no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes.
Fernandes, B. M., & Santos, C. A. (2008).
Educação do Campo: campo-políticas
públicas. Brasília: Incra; MDA.
Fernandes, B. M. (2012). Os campos da
pesquisa em educação do campo: espaço e
território como categorias essenciais.
Universidade Estadual Paulista UNESP.
Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
(1996, 23 de dezembro). Estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Diário Oficial da União, seção
1.
Leite, S. P. (2012). Assentamento Rural. In
Caldart, R. S., Brasil, P., Alentejano, &
Frigotto, G. (Orgs.). Dicionário da
Educação do Campo (s./p.). Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, Expressão
Popular.
Martins, J. S. (1986) Os camponeses e a
política no Brasil: as lutas sociais no
campo e o seu lugar no processo político.
Petrópolis: Vozes.
Mello, M. G. (2017). Movimentos sociais
na educação do campo: estudo sobre
gestão participativa no Programa
Nacional de Educação na Reforma
Agrária (PRONERA) (Dissertação de
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
26
Mestrado). Universidade da Amazônia,
Amazonas.
Molina, M. C. (2003). A contribuição do
PRONERA na construção de Políticas
Públicas de Educação do Campo e
desenvolvimento sustentável (Tese de
Doutorado). Universidade Federal de
Brasília, Brasília.
Molina, M. C., & , L. M. (2012)
Licenciatura em Educação do Campo. In
Caldart, R. S., Brasil, P., Alentejano, &
Frigotto, G. (Orgs.). Dicionário da
Educação do Campo (s./p.). Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, Expressão
Popular.
Molina, M. C. (2015). Expansão das
licenciaturas em Educação do Campo:
desafios e potencialidades. Educar em
Revista, 7(55), 145-166.
https://doi.org/10.1590/0104-4060.39849
Oliveira, D. A. (2009). As políticas
educacionais no governo Lula: rupturas e
permanências. RBPAE, 25(2), 197-209.
Ianni, O. (1984). Origens Agrárias do
Estado Brasileiro. São Paulo: Brasiliense.
Ianni, O. (2004). Utopia Camponesa. In
Anais IX Encontro Anual da Anpocs - CT
Estado e Agricultura Aspectos Teóricos
dos Movimentos Sociais no Campo (pp.
52-85). Brasília, DF.
Kolling, E. J., Vargas, M. C., & Caldart, R.
S. (2012). MST e Educação. In Caldart, R.
S., Brasil, P., Alentejano, & Frigotto, G.
(Orgs.). Dicionário da Educação do
Campo (s./p.). Rio de Janeiro, São Paulo:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, Expressão Popular.
Ribeiro, M. (2012). Educação Rural. In
Caldart, R. S., Brasil, P., Alentejano, &
Frigotto, G. (Orgs.). Dicionário da
Educação do Campo (s./p.). Rio de
Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, Expressão
Popular.
Saviani, D. (2009). Formação de
professores: aspectos históricos e teóricos
do problema no contexto brasileiro.
Revista Brasileira de Educação, 14(40),
13-32. https://doi.org/10.1590/S1413-
24782009000100012
Saviani, D. (2016). Pedagogia histórico-
crítica na educação do campo. In Basso, J.
D., Santos Neto, J. L., & Bezerra, M. C. S.
(Orgs.). Pedagogia Histórico-Crítica e
Educação no Campo: História, desafios e
perspectivas atuais (s./p.). São Carlos:
UFSCar.
Sevcenko, N. (1998). História da Vida
privada no Brasil. República: da Belle
Époque à Era do Rádio. São Paulo:
Companhia da Letras.
Souza, J. (2017). Elite do Atraso: da
escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro:
Leya.
Tavares, M. G. M. (2004) O papel social
da universidade na formação do educador.
In Macebo, D., & Albuquerque, M. L.
(Orgs.). Universidade: políticas, avaliação
e trabalho docente (s./p.). São Paulo:
Cortez.
Vendramini, C. R. (2015). Qual o futuro
das escolas no campo? Educação em
Revista, 3(3), 49-69.
https://doi.org/10.1590/0102-4698126111
Manual de Operações do Pronera. (2011).
Aprovado pela Portaria/Incra/P/Nº 238, de
31 de maio.
i
Para Ferreira Jr e Bittar (2006), a figura do
professor “leigo” no Brasil está relacionada,
principalmente, às políticas educacionais para o
Magistério influenciadas pela ideologia tecnocrática
vigorante entre os anos de 1964 e 1985.
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a cidade: as lutas pelo direito a uma educação eminentemente camponesa...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e10741
10.20873/uft.rbec.e10741
2021
ISSN: 2525-4863
27
Componentes das classes populares passaram a
compor cargos antes dominados pela classe média,
e o professor passou a sofrer com um processo de
proletarização de suas funções intelectuais, criando
uma crise de identidade.
ii
Além do Movimento Sem Terras, movimentos
sociais como a União Nacional das Escolas
Famílias Agrícolas do Brasil e Associações dos
Centros Familiares de Formação em Alternância
articularam-se na luta pela terra e pelo acesso aos
direitos sociais.
iii
No caso deste estudo, quando referido a educação
do homem do campo, da forma como foi cerceada e
precarizada, faz-se referência à escolarização, a
educação sob a perspectiva formal, institucional.
iv
A concepção da Escola Unitária surge da negação
gramsciana acerca da divisão racional da educação
em duas vertentes, em clássica, voltada para a
formação da classe intelectual, que mantém os
privilégios da ordem burguesa, e profissional,
formadora de técnicos a serviço das exigências do
capital como mão de obra. Em contraposição, a
escola Unitária promoveria a aprendizagem a partir
da ação espontânea e autônoma do professor, que
possibilitaria às classes trabalhadoras à apropriação
do conhecimento historicamente acumulado a fim
de estabelecer a formação integral dos indivíduos, a
partir das dimensões do fazer e do saber, do técnico
e do político (Zen, 2016).
v
Ministério criado no governo de João Figueiredo,
no ano de 1982, por meio do decreto 87.457, a
fim de tratar sobre o Programa Nacional de Política
Fundiária e atingir as metas de regularização e
implantação dos projetos fundiários. Durou até o
ano de 1990, quando fora incorporado ao Ministério
da Agricultura.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 13/10/2020
Aprovado em: 09/04/2021
Publicado em: 31/08/2021
Received on October 13th, 2020
Accepted on April 09th, 2021
Published on August, 31th, 2021
Contribuições no Artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Não teve financiamento.
Funding
No funding.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Silva, N. S., & Pinto, H. M. (2021). Entre o campo e a
cidade: as lutas pelo direito a uma educação
eminentemente camponesa. Rev. Bras. Educ. Camp., 6,
e10741. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e10741
ABNT
SILVA, N. S.; PINTO, H. M. Entre o campo e a cidade: as
lutas pelo direito a uma educação eminentemente
camponesa. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v.
6, e10741, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e10741