Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e11903
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e11903
10.20873/uft.rbec.e11903
2021
ISSN: 2525-4863
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Trajerias de mulheres campesinas: a luta pela
educão
Elizabeth Moreira Gomes
1
1
Instituto Federal do Norte de Minas Gerais - IFNMG. Campus Diamantina. Rua da Glória, 187, Centro. Diamantina - MG.
Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: emg_bethgomes@yahoo.com.br
RESUMO. Este artigo é uma releitura da pesquisa realizada no
processo de doutoramento em que se trabalhou com as
representações sociais de escrita dos estudantes da licenciatura
em educação do campo Curso Linguagens e Códigos da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM). Na tese, foram feitas entrevistas narrativas com 15
graduandos com o objetivo de entender suas
relações/concepções de escrita. Naquela pesquisa, ficou evidente
a importância da figura feminina na luta por uma educação do
campo pública, gratuita e de qualidade. Foi voz ‘corrente’ entre
todos/as os/as entrevistados/as a decisiva contribuição de mães,
esposas, enfim da figura feminina para a entrada/permanência
desses estudantes no curso de graduação. Foi a partir das
entrevistas narrativas que uma questão vem se colocando para a
pesquisadora, tendo neste artigo, oportunidade para reflexão. Se
as mulheres são as principais incentivadoras de seus
companheiros, filhos, irmãos, para o acesso e continuidade dos
estudos, como elas se organizam para a própria participação?
Quais são os suportes necessários para a ‘saída de casa’ dessas
mulheres? Do ponto de vista metodológico, foram selecionados
depoimentos de duas mulheres jovens, representativas de
percursos diferentes.
Palavras-chave: mulheres e educação do campo, educação
como direito, narrativas femininas.
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Trajectories of peasant women: the struggle for education
ABSTRACT. This article is a reinterpretation of the research
implemented in the doctoral process in which the social
representations of ‘writing’ of undergraduate students in the
rural education was studied. Curso Linguagens e Códigos da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM). In the thesis, narrative interviews were conducted
with a group of 15 undergraduates in order to understand their
relationships/conceptions of writing. Then, it was possible to
notice the importance of the female figure in the fight for a free,
high quality rural education. Mothers, wives, girlfriends, were
widely mentioned as having decisive roles in students entering
as well as their remaining in the undergraduate course. Thus, it
was from the narrative interviews that a question has been
posed, and has, in the space of this article, an opportunity for
reflection. If women are the ones encouraging their partners,
children, brothers, to further their studies, how do such women
organize themselves so that they too can study? What is the
necessary support so that such women can ‘leave home’? From
a methodological point of view, two testimonies from young
women coming from different backgrounds were selected.
Keywords: women and rural education, education as a right,
female narratives.
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Trayectorias de la mujer campesina: la lucha por la
educación
RESUMEN. Este artículo es una reinterpretación de la
investigación realizada en el proceso de doctorado en la que se
trabajaron las representaciones sociales de la escritura de
estudiantes de pregrado en educación de campo - Curso de
Idiomas y Códigos de la Universidad Federal de los Valles de
Jequitinhonha y Mucuri. En la tesis, se realizaron entrevistas
narrativas con 15 estudiantes universitarios con el fin de
comprender sus relaciones/concepciones de la escritura. En esa
investigación se evidenció la importancia de la figura femenina
en la lucha por una educación pública, gratuita y de calidad. La
voz 'actual' entre todos los entrevistados fue el aporte decisivo
de la figura femenina para el ingreso/permanencia de estos
estudiantes en la carrera de grado. Fue a partir de las entrevistas
narrativas que se le planteó una pregunta al investigador,
teniendo en este artículo una oportunidad de reflexión. Si las
mujeres son el principal incentivo de sus parejas, para el acceso
y la continuidad de los estudios, ¿cómo se organizan para su
propia participación? ¿Cuáles son los apoyos necesarios para
"salir de casa"? Desde el punto de vista metodológico, se
seleccionaron los testimonios de dos mujeres jóvenes, que
representan caminos diferentes.
Palabras clave: mujeres y educación rural, educación como
derecho, narrativas femeninas.
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Introdução
Ao iniciar as discussões contidas
neste artigo, é fundamental sumarizar os
processos que desencadearam esta escrita.
Em primeiro lugar, cumpre colocar este
artigo como um desdobramento da escrita
da tese, apresentada em 2018. Naquela
oportunidade, um discurso que ficou
subjacente, embora não se constituísse
como objeto de estudo, foi a importância
da figura feminina para o acesso e
continuidade dos estudos, inicialmente dos
filhos, depois de namorados e/ou esposos.
Tal fato mereceu destaque em 14 das
15 entrevistas realizadas com estudantes,
participantes da Licenciatura em Educação
do Campo - Curso Linguagens e Códigos,
ofertado pela UFVJM. Nesses
depoimentos, verificou-se que a
participação das
mães/esposas/companheiras foi de
fundamental importância para a decisão
‘do outro’ em iniciar e/ou dar continuidade
ao curso. Foram as mulheres, que, no
cotidiano de suas vidas familiares,
indicaram para os filhos a necessidade de
estudar, desde o início da vida escolar
(Ensino Fundamental), até a vida adulta,
quando da entrada para a Universidade.
Dentre as entrevistas realizadas (em
número de 15) quatorze entrevistados(as)
consideraram as mães, esposas, namoradas,
as principais responsáveis por passarem
informações sobre o processo seletivo,
e/ou incentivarem e até mesmo fazerem as
inscrições daqueles que iriam fazer a
seleção. Em síntese, foram as mulheres que
iniciaram o processo de continuidade dos
estudos.
Foi a partir da constância desse
relato, que surge a questão ora apresentada,
qual seja, se as mulheres são as principais
incentivadoras de seus companheiros,
filhos, irmãos, para o acesso e
continuidade dos estudos, como elas se
organizam para a própria participação?
Quais são os suportes necessários para a
‘saída de casa’ dessas mulheres? Do ponto
de vista metodológico, foram selecionados
depoimentos de duas mulheres jovens,
representativas de percursos diferentes. Se,
uma delas sempre foi incentivada à
continuidade dos estudos, a outra, teve que
‘reinventar seu lugar no interior da família
para ter acesso à escola. Mas, o que elas
têm em comum, além de serem mulheres?
Ambas, descobrem suas potências,
enquanto estudam e traçam ‘estratégias’
para a continuidade dessa ‘caminhada’
escolar.
As entrevistas narrativas,
metodologia utilizada para a recolha de
dados, caracterizou-se, quando da
realização da tese, pelo reconto individual,
pelos entrevistados, de suas trajetórias de
vida, incluindo as trajetórias escolares.
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Nesses depoimentos, evidenciou-se a
figura materna como a principal
responsável pelo início dos estudos de seus
filhos, mas também se tornou evidente a
participação feminina no acesso e
continuidade dos estudos de filhos(as) de
famílias campesinas.
Esse trabalho objetiva refletir acerca
do papel das mulheres no interior das
famílias, mas principalmente quer refletir
acerca das percepções e das trajetórias de
mulheres estudantes no que tange ao
acesso, participação e permanência dessas
no interior do curso Licenciatura em
educação do campo Linguagens e
Códigos, ofertado pela UFVJM desde o
ano de 2010.
A afirmativa anterior implica a
organização deste texto no sentido de que
se lhe evidencia o formato de construção.
Em um primeiro momento, apresentam-se
reflexões acerca das lutas de campesinos
pela posse de terra e os papéis que as
mulheres desempenham nesse sentido. Em
um segundo momento, passa-se a refletir
acerca do depoimento de duas estudantes
mulheres, que ‘re-constroem’, no momento
das entrevistas narrativas, suas trajetórias,
evidenciando as idiossincrasias em relação
ao fato de serem mulheres estudantes.
Conforme se afirmou anteriormente,
o que se busca é entender de que maneiras
e/ou de quais estratégias essas mulheres se
valem para garantirem, no interior de suas
famílias e da sociedade, o direito à
participação em processos de formação
escolar; em resumo, o direito de
participarem das escolas, que elas tanto
valorizam para os seus filhos,
companheiros e maridos.
Existiriam especificidades em
relação à participação feminina na escola?
Ou as trajetórias apresentariam igualdade
de condições em relação aos gêneros?
Quais seriam as semelhanças, mas
principalmente, quais seriam as
especificidades em relação à participação
das mulheres em processos de formação
(escolares) ao se referir a um grupo
específico, que são os campesinos? As
campesinas enfrentam ‘problemas’ para
uma participação efetiva em cursos de
graduação que implicam a ‘saída de casa’?
Como pais, maridos, filhos e até mesmo
suas mães reagem diante do fato da filha
‘sair para estudar’?
São essas as questões que movem
este trabalho, aventado a partir da
realização das entrevistas narrativas com
os sujeitos da pesquisa da tese de
doutoramento. Para as reflexões que se
pretende realizar, escolheram-se duas
entrevistas narrativas de mulheres que
demonstraram significativo vigor e que
trazem as questões imanentes ao mundo
feminino.
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Homens e mulheres do campo
desenvolvem as mesmas lutas?
No contexto da luta pela terra,
encontram-se homens, mulheres e crianças
lado a lado, desfrutando os mesmos ideais
e objetivos. É fato notório que a
participação das mulheres em conflitos tem
se mostrado decisiva, no sentido de que
muitas vezes, essas ocupam a linha de
frente, com vistas a minimizar a violência
exercida por jagunços, fazendeiros e o
próprio estado ante atos de ocupação de
terras.
Autores como Melo (2001),
Valenciano e Thomaz Júnior (2002),
Gonçalves (2009), dentre outros vêm
evidenciando em seus textos a preocupação
dos movimentos sociais, especialmente o
MST, com a construção de coletivos no
interior dos movimentos que passem a
discutir questões de gênero, de modo a
possibilitar outras construções sociais, que
coloquem em xeque as desigualdades,
construídas socialmente. Nesse sentido,
ganham destaque as ões do MST que
constituiu os Coletivos regionais/nacionais
de mulheres/gênero que trazem como pauta
de discussão a questão de gênero no
interior desses movimentos.
É em Gonçalves (2009) que se
evidencia o posicionamento do MST e, por
extensão dos movimentos sociais com as
questões de nero e as lutas internas (ao
movimento) desenvolvidas no sentido de
trazer à tona discussões que permeiam o
mundo feminino e sua participação como
militante, como responsável pelos cuidados
domésticos, como trabalhadora/agricultora.
Veja-se o que afirma a autora:
Atualmente as mulheres que
compõem o quadro do coletivo são
chamadas de polivalentes, pois
contribuem com ações
desempenhadas dentro do Coletivo
de Gênero e de outros setores como
educação, saúde, frente de massa, etc.
Essas mulheres estão inseridas em
várias instâncias de organização. A
mudança para setor implica uma
maior atenção e desprendimento mais
concentrado para os trabalhos de
gênero, com uma dedicação mais
canalizada. A pauta de reivindicações
para o ano de 2002 é muito extensa,
passando por uma série de ações nas
quais se trabalha inicialmente
assuntos como pagamento da dívida
externa, ALCA, dentre outros. As
jornadas de luta do MST e do Setor
de Gênero perpassam o
questionamento dessas e outras
questões. A estruturação do setor é
outro grande objetivo das mulheres,
além de recuperar e ampliar os cursos
de formação e organização das
mulheres da base, ou seja, dos
assentamentos e acampamentos, esse
é um momento de rever as linhas de
atuação e promover uma nova
estrutura de trabalho para o coletivo e
o movimento sem terra de forma
geral. (Cf. Gonçalves, 2009, p. 199)
Como se vê, a denominação
‘polivalente’ escancara uma relação de
gênero, no sentido dos papéis atribuídos a
mulheres no interior do próprio
movimento. As mulheres são responsáveis
por cerca de 50% do trabalho da
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agricultura, além de serem as responsáveis
quase que exclusivas pelo cuidado do lar,
dos filhos e do próprio marido. Entretanto,
não são reconhecidas como ‘provedoras’
(muitas vezes) e somente em 1986
conquistaram, no interior dos movimentos,
o direito legal à posse de terra. Valenciano
e Thomaz Júnior (2002) citando Fernandes
(2000:38), afirmam que a primeira
manifestação de organização das mulheres,
surgiu no 1º Congresso do MST no qual:
...as mulheres compuseram a
organização e iniciaram os trabalhos
para a formação da Comissão Nacional
das Mulheres do MST. Em março de
1986, conquistaram o direito de
receberem lotes na implantação dos
assentamentos, sem a condição de
serem dependentes de pais ou irmãos.
Nesse período, nos Estados, as
mulheres sem-terra organizaram
encontros para reflexão e avaliação das
formas de participação na luta.
(Fernandes, 2000, p. 38, citado por
Valenciano & Thomaz Júnior, 2002, p.
201).
Esse conjunto de considerações
sumarizadas brevemente neste artigo tem
como objetivo tão somente realçar a
presença e preocupação de ‘localizar’ lutas
internas aos movimentos sociais,
destituindo-os de uma suposta
homogeneização entre homens e mulheres.
Situados que estão (esses grupos sociais)
no interior de sociedades mais amplas,
que perceber que, muitas vezes os
preconceitos, nesse caso, relações de
discriminação entre os gêneros reverberam
de contextos ‘macro’ para as sociedades
‘micro’; o que não significa que ocorre
uma simples transposição do patriarcado
estruturado na sociedade brasileira em sua
totalidade para as sociedades campesinas.
Assim, pode-se afirmar, de acordo
com os autores citados e com as próprias
observações da pesquisadora a partir dos
depoimentos das entrevistadas, a
permanência de ‘pechas’ machistas no
interior de movimentos sociais que lutam
de forma veemente pela construção de
outras sociedades, destacando-se os
movimentos em relação a questões da
igualdade de direitos; portanto, não se trata
de estigmatização do homem do campo,
atribuindo-lhe e ao ‘seu’ grupo social a
‘simples’ denominação de conservador,
que envolveria igualmente a todos(as),
mas quer se destacar aspectos que são ‘re-
produzidos’ nas sociedades
mundiais/nacionais e suas reverberações
em grupos sociais que guardam
especificidades.
São exatamente essas especificidades
que se passa a discutir a seguir, tomando
como ponto de partida o depoimento de
duas graduandas do Curso Linguagens e
Códigos da UFVJM, obtido a partir da
realização das entrevistas narrativas.
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Localizando os sujeitos de fala: sobre a
LEC
Antes de se iniciar as discussões
sobre as trajetórias dos dois sujeitos, cujos
discursos proporcionam as reflexões em
tela, é importante contextualizar um pouco
a política pública que oportuniza a
realização do curso, bem como o curso em
si, a fim de situar o leitor em relação às
análises a serem feitas.
A licenciatura em educação do
campo é resultado do projeto de expansão
universitária proposta pelo governo federal
no ano de 2013/2014, época em que foi
implantada a Licenciatura como curso
regular, dessa universidade.
A metodologia utilizada para a
implementação do curso é a pedagogia da
alternância que conjuga diferentes
experiências formativas distribuídas ao
longo de tempos e espaços distintos, tendo
como finalidade uma formação
profissional”
i
. Tal opção organiza-se a
partir da alternância dos tempos e espaços
escolares, denominados como Tempo
Universidade (TU) e Tempo Comunidade
(TC).
O TU acontece normalmente nos
meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto
de cada ano. Nesse período, o estudante se
desloca de sua comunidade e vai para a
sede da UFVJM em Diamantina, onde
desenvolve parte de seu processo de
formação. Caracteriza-se como o tempo de
formação acadêmica, política, cultural de
forma presencial. Por isso mesmo, é o
tempo de aulas presenciais, atividades
práticas como ‘oficinas’ cursos especiais
(minicursos), seminários, reuniões
colegiadas, enfim, um conjunto de
processos formativos presenciais com
vistas ao desenvolvimento
pessoal/profissional e sua preparação para
a atuação pedagógica.
Nos meses restantes (março a junho e
setembro a dezembro) ocorre o tempo
comunidade. O TC representa uma
intercambiação entre as aprendizagens do
TU e formas de aplicação dessas
aprendizagens junto às comunidades de
origem dos estudantes. Mas também
implica a ampliação e desenvolvimento de
relações entre a universidade, como espaço
formador e a(s) comunidade(s) de origem
dos graduandos, que também se transforma
em um espaço de formação.
Essas ações implicam a retomada dos
princípios/diretrizes da educação do
campo, qual seja, a reafirmação de uma
identidade campesina e a intercambiação
entre conhecimentos acadêmicos e saberes
coletivos, oportunizando uma real
articulação entre teoria e prática, que
coloca em um mesmo nível hierárquico
universidade/comunidade:
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A identidade da escola do campo é
definida pela sua vinculação às
questões inerentes à sua realidade,
ancorando-se na temporalidade e
saberes próprios dos estudantes, na
memória coletiva, na rede de ciência
e tecnologia disponível, no debate
sobre os modelos de
desenvolvimento para o Brasil,
incluindo o diálogo com os atores
sociais nos movimentos sociais em
defesa de projetos que associem as
soluções exigidas por essas questões
à qualidade social da vida coletiva do
país. (Brasil, 2002, apud
PPP/UFVJM, 2013, pp. 7-8).
Essa forma de organização
(alternância) proporciona uma constituição
de sujeitos coletivos em que a educação é
vista, sentida e implementada como sendo
um direito/dever de todos. Nesses
momentos de intercambiação entre
universidade e comunidade, ambos saem
enriquecidos e tal reforça o sentimento de
pertença da comunidade, desenvolvendo
entre os mais jovens o desejo de
continuidade de estudos e evidenciando
para os não tão jovens a conquista de uma
escola de direitos, cuja formação valoriza
seus saberes e culturas.
A pedagogia da alternância contribui
para a consolidação dos princípios da
educação do campo, reconhecendo o
protagonismo, a luta e a participação
(dentre outros) como aspectos instintuintes
do processo ensino-aprendizagem, além de
reconhecer a importância de outros espaços
(para além da escola) como espaços
formadores do sujeito do campo.
A UFVJM oferece os seguintes
cursos de formação no interior da LEC:
Ciências da Natureza e Linguagens e
Códigos. O curso Linguagens e Códigos
contava com cerca de 60 (sessenta)
estudantes, distribuídos entre os 3º, e
módulos (julho de 2017- data de realização
da pesquisa).
O público do curso é
predominantemente jovem, cujas idades
variam majoritariamente entre 21 a 30
anos, com predominância da presença de
mulheres, conforme se pode ver nos
gráficos abaixo, retirados de Gomes
(2018):
Gráfico 1- Idade estudantes 3º, 5º e 7º módulos - LECLC/UFVJM.
Fonte: Gomes (2018, p. 142).
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Gráfico 2 - Sexo- estudantes 3º, 5º e 7º módulos- LECLC/UFVJM.
Fonte: Gomes (2018, p. 142).
Essas são as informações mais gerais
do curso que, minimamente, permitem-nos
entender a sua dinâmica, sua importância
para garantir o acesso de populações
campesinas ao ensino superior e as
propostas que são implementadas a partir
de tal. Essa visão mesmo que breve,
importa ainda para a compreensão de quem
são os sujeitos dessa política pública
colocada pelo Estado, exigindo, porém,
que se debruce sobre os sujeitos de modo a
entender os seus percursos na luta pelo
acesso e permanência à escola.
Assim, trata-se de entender como
esses sujeitos, duas mulheres campesinas,
foram construindo estratégias que lhes
permitissem acesso/permanência à escola
ao longo de suas trajetórias de vida.
Os sujeitos da pesquisa
Para as análises aqui propostas
foram escolhidos os depoimentos de duas
mulheres, estudantes, os quais evidenciam
trajetórias que tipificam de certa forma o
feminino, ou seja, alguns enfrentamentos,
feitos por elas, deveram-se ao fato de
serem mulheres; obviamente, que devem
ser considerados os contextos em que
vivem, questões financeiras de suas
famílias, possibilidades de acesso à escola,
enfim, um conjunto de elementos que
compõem as trajetórias escolares dessas
mulheres.
As entrevistas realizadas
caracterizam-se como entrevistas
narrativas que incluem as fases de
preparação (perguntas exmanentes), para
depois se passar à introdução do ‘tópico’
inicial de conversação. Cada uma das
entrevistas apresentou duração de cerca de
120 minutos, sendo que a pesquisadora, na
oportunidade, procurou não interromper,
nem intervir no momento da narrativa. A
questão básica que se relaciona ao presente
trabalho está contida no tópico de
conversação “como foi a sua trajetória
escolar?”.
Para proceder às análises, foi
atribuído a cada uma um pseudônimo
aleatório, e suas localidades/cidades de
origem serão nomeadas respectivamente
pelas letras ‘X’ e ‘Y’ de modo a guardar o
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sigilo necessário sobre as identidades das
entrevistadas. Ressalte-se, por fim, que à
época da realização das entrevistas os
sujeitos assinaram o TCLE, que autoriza a
pesquisadora a fazer uso de seus
depoimentos em análises/pesquisas.
De antemão, afirma-se que as
entrevistadas tiveram a habilidade de
construir e lançar mão de estratégias, de
modo a participarem de processos de
formação. Chama-se a atenção para o
termo ‘estratégia’, que originalmente pode
ser considerado como um signo bélico. É
exatamente essa perspectiva que se quer
aqui realçar, tomando-o, porém, como a
‘arte de distanciar, de recuar, para avançar:
Estratégia: de origem grega-
strategia: de stratos (exército) e ago
(liderança). Ciência que ensina a
conceber e organizar o plano das
operações de guerra. Astúcia.
Habilidade. (Dicionário Prático da
Língua Nacional. Carvalho, J.
Mesquita. BH: 1945) O significado
original caracterizava a “arte do
general”, que deixou de estar ao lado
do exército para estar a distância, no
alto das colinas. (Dicionário
Etimológico).
Tais estratégias podem ser pensadas
à luz da categoria de ‘mãe preta’ proposta
por Lélia Gonzalez (1988) que implica
uma ‘tática’ de resistência pela aparente
submissão. A autora, ao analisar e discutir
sobre a questão do racismo e sexismo no
Brasil, constrói algumas categorias para se
pensar sobre essas questões. Aproprio-me,
neste trabalho de uma delas, que é a
categoria da ‘mãe preta’. De acordo com
Gonzalez (Idem) a ‘mãe preta’ constitui-se
como a e por excelência, pois é ela
quem cuida das crianças brancas. E, ao
cuidar, estabelece uma relação amorosa,
que, dentre outras ‘coisas’ também ensina:
a falar, a cantar, a contar histórias...
construindo/introduzindo/perpetuando
elementos da cultura negra.
A figura da mãe preta, na perspectiva
que Gonzalez a apresenta, pode ser
associada à ‘amorosidade’ freireana
(Freire, 1992) o que implica dizer que, sob
uma aparente submissão, há uma luta árdua
e forte, no sentido de constituir espaços de
resistência que ‘amorosamente’
‘rearranjam’ lugares tidos como até então
inacessíveis. A mudança se faz de forma
lenta, porém gradual e firme. Nesse
sentido, não ocorre necessariamente a
ruptura, um corte abrupto nas relações,
mas esses se colocam a partir da
amorosidade freireana.
Ressalte-se, entretanto, que não se
quer aqui tomar essas ações como
resultantes de uma ‘evolução’ nas relações
sociais/culturais, mas como uma estratégia
de resistência que, mesmo rejeitando o
confronto direto, ou se ‘dobrando’
(aparentemente) às imposições do ‘outro’,
persiste; incidindo de forma constante, nas
formas de sentir, pensar e agir do ‘outro’
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que resultam em transformações, que,
embora, pequenas, são significativas para
as conquistas de outros espaços e outras
subjetividades, neste caso, da mulher
campesina.
O que a gente quer dizer é que ela
não é esse exemplo extraordinário de
amor e dedicação totais como querem
os brancos e nem tampouco essa
entreguista, essa traidora da raça
como querem alguns negros muito
apressados em seu julgamento. Ela,
simplesmente, é a mãe. É isso
mesmo, é a mãe. Porque a branca, na
verdade, é a outra. Se assim não é, a
gente pergunta: quem é que
amamenta, que banho, que limpa
cocô, que põe pra dormir, que acorda
de noite pra cuidar, que ensina a
falar, que conta história e por
afora? É a mãe, não é? Pois então.
Ela é a mãe nesse barato doido da
cultura brasileira. Enquanto mucama,
é a mulher; enquanto “bá”, é a mãe.
A branca, a chamada legítima esposa,
é justamente a outra que, por
impossível que pareça, serve pra
parir os filhos do senhor. Não exerce
a função materna. Esta é efetuada
pela negra. Por isso a "mãe preta" é a
mãe ... (Gonzalez, 1988, p. 235).
No contexto deste trabalho, toma-se,
pois, esta categoria que se pode denominar
como a categoria da ‘mãe preta’ que
associada à amorosidade freireana, alia a
constância da luta, a relações de respeito,
de amor mesmo, como quer Freire, mas
nem por isso de submissão. Ao contrário,
uma significativa resistência, por baixo
de uma aparente submissão. Entretanto, a
submissão, ressalte-se, se faz na
aparência, como simulacro, para a
resistência, de forma a não acirrar
conflitos, mas que se coloca como uma
estratégia para alcançar objetivos em longo
prazo.
São esses ‘elementos’ de resistência
que se procura evidenciar no presente
trabalho, ao se analisar as trajetórias
escolares dos sujeitos desta pesquisa. Há
uma resistência que se coloca de forma
silenciosa, porém persistente, de forma
calma, mas constante. Pelos silêncios, e/ou
pelos simulacros de que se valem as
resistências aqui presentes, entendemos
que tais precisam ser evidenciadas, uma
vez que se nos revelam outras formas de
‘luta’. Essa luta intermitente de mulheres
campesinas que, recuam para avançar mais
decididamente; que pedem permissão,
somente quando ‘sabem’ da concordância
do ‘outro’.
Conceição:
Conceição tem 23 anos, é a única
mulher de uma família de quatro filhos,
tem um irmão gêmeo, cursa o módulo
da LEC- Linguagens e Códigos na
UFVJM. É quilombola, da Comunidade
Quilombola X (MG). É participante de
movimentos sociais, de movimentos de
Igreja e é associada ao Sindicato de
Trabalhadores Rurais.
Foi a partir do Sindicato de
Trabalhadores Rurais que Conceição
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tomou conhecimento do curso e resolveu
fazer o vestibular juntamente com os três
irmãos, e duas primas. Os três irmãos
também participam da LEC Curso
Ciências da Natureza e as primas cursam,
assim como ela, Linguagens e Códigos
(LEC-LC).
Para realizar o curso, ela tem que se
deslocar de sua casa durante cerca de dois
a três meses, quando ocorrem as aulas
presenciais. A ausência da família e da
‘casa’ a incomoda um pouco; mas não
pensa mais em desistir porque considera
que investiu muito tempo e energia no
curso.
Trajetórias de Conceição
Conceição nasceu em uma família
com mais três irmãos e foi uma menina
como outra qualquer de sua idade e
condição social. Iniciou seus estudos em
escolas públicas e até quase o final do
ensino fundamental (antiga série),
conseguiu estudar sem maiores problemas,
como uma menina/adolescente qualquer.
Nesse período, embora Conceição
tivesse algumas responsabilidades para
com o trabalho doméstico, os estudos
fluíam ‘normalmente’, considerados os
contextos vivenciados por ela. Ela
estudava durante o dia, e, ao chegar da
escola tinha algumas obrigações como
ajudar a mãe a arrumar a casa, a cozinha,
etc., porém, nada que a prejudicasse mais
efetivamente em seus estudos. Conceição
‘tinha tempo’ para estudar, para fazer as
tarefas escolares. Nesse período, ela
estava sendo formada em seu papel de
‘filha’ entre os outros três irmãos.
Ao final do Ensino Fundamental
(antiga série), Conceição se depara com
algumas ‘provações’ (cf. Martuccelli,
2007). Sua mãe apresenta problemas de
saúde, o que terá implicações não apenas
do ponto de vista emocional, mas,
sobretudo, provocará alterações do ponto
de vista da organização familiar e dos
papéis que cada um de seus membros
ocupava e deverá passar a ocupar daquele
momento em diante.
A mãe está ‘impedida’ de cuidar da
casa, do marido e da família. Conceição,
como filha ‘única’ passa a ser a ‘mulher’
da casa. Recai sobre ela todo o trabalho:
fazer almoço, limpar, lavar, passar... enfim,
cuidar de todo o trabalho doméstico. Nessa
perspectiva, pode-se afirmar que a vida de
Conceição se modifica profundamente,
devido principalmente a uma questão de
gênero: ela é a única mulher da casa (além
da mãe), portanto, passa a ter todas as
obrigações relativas aos ‘cuidados’ do lar’.
É importante ainda enfatizar que esse
‘lugar’ que as mulheres ocupam, ajuda a
entender o percurso de Conceição e as
‘provações’ a que foi submetida
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principalmente pelo fato de ela ser mulher.
O mundo feminino e suas formas de
organização e atribuição de papéis ajudam
a entender mais profundamente o conjunto
de provações pelas quais Conceição
passou, de modo a determinar as trajetórias
dessa adolescente/mulher estudante.
Além disso, o gênero, nesse
contexto, também ajuda a estabelecer as
relações de trabalho e do próprio acesso a
processos de escolarização revelados na
vida de Conceição, mas que
tranquilamente podem ser associados às
histórias de várias mulheres, quer estejam
em espaços rurais ou urbanos. Porém, em
áreas rurais essas representações, esses
‘lugares’ e papéis de mulheres talvez sejam
mais duradouros e mais difíceis de serem
modificados, dadas a distância e as
dificuldades de acesso a essas áreas,
portanto ‘outras’ ideias demoram a ser
difundidas e mais ainda a serem
assimiladas de modo a impactarem as
representações já constituídas.
Assim, é importante enfatizar como
essas questões são representadas no
discurso de Conceição e em suas
trajetórias. Ela não consegue mais estudar,
não tem tempo para fazer a tarefas e já
chega à escola cansada, do exaustivo
trabalho doméstico:
Não tinha muito tempo. E desde
muito nova eu sempre peguei... é...
(pausa) uma... (pausa) uma... como é
que eu posso dizer? eu tinha que lidar
com todos os serviços de casa, tive
que pegar um compromisso muito
cedo, de lavar, cozinhar... minha mãe
bebia muito, aí eu tinha que dar conta
do serviço... então, assim, eu...
tinha dia que eu tinha que levantar
cedo, arrumar casa, fazer almoço,
tudo antes de 11 horas, e ir pra
escola. Aí à tarde chegava já cansada,
tinha que fazer janta, tinha que
estudar, depois eu ia dormir. No
outro dia, aquela mesma rotina.
Decidi estudar à noite por isso;
porque não estava dando conta,
estava me cansando demais.
(Entrevista Conceição).
Entretanto, embora alegue não ter
tempo, Conceição não demonstra nenhum
estranhamento em relação aos fatos
narrados. Em momento algum um
questionamento acerca da divisão de
tarefas domésticas. Não se cogita (nem ela,
nem a família) acerca da divisão de tarefas
do lar, como cuidar da casa, lavar, passar,
cozinhar... então, ela busca estratégias de
continuidade dos estudos, na tentativa de
conciliar a vida escolar e as tarefas
domésticas sob sua responsabilidade.
... minhas nota caíram bastante na
época... (pausa) E eu deixava me
levar pelos problemas de casa,
decidi passar pro turno da noite, que
foi onde que eu consegui alcançar
minhas metas; minhas notas subiram,
eu melhorei no meu conhecimento,
aprendi mais coisa, tinha mais
facilidade de entender a disciplina...
(Entrevista Conceição. Grifos meus).
Se a decisão de estudar à noite
resulta de uma estratégia de resistência,
para a continuidade dos estudos, também
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essa estratégia necessitaria de outros
suportes. Ela não poderia estudar se o pai e
a mãe não permitissem. Assim, vivencia
outra ‘provação’: a necessidade de pedir
permissão à família para poder continuar
os estudos; e, nesse momento, ela
demonstra uma autonomia e determinação
pouco típicas para adolescentes dessa
idade: ‘eu decidi passar pro turno da noite,
que foi onde que eu consegui alcançar
minhas metas .... Uma ‘moral’ atribuída
ao feminino, que considera o lar como o
‘lugar’ da mulher, realça a provação de
Conceição, e, para dar continuidade aos
estudos ela tem que buscar estratégias que
lhe permitam solucionar esse impasse.
Eu era... eu sou a única menina
em casa, né? E, pra mim, estudar à
noite teve, assim, pai tinha que
deixar, mãe tinha que deixar... A
sorte é que o meus irmãos estudavam
à noite, meu dois irmãos mais... o que
é gêmeo comigo... e o mais velho.
Eles já estudavam à noite, então eu
tive essa liberdade. Mas (pausa) foi
um... um ensino médio tranquilo... eu
sempre tive notas boas, não tomei
nenhuma recuperação, eu era... eu
sou ótima em Física, eu passava no
terceiro trimestre, ‘tava’,
passava... (Entrevista Conceição.
Grifos meus).
Dentre as estratégias encontradas o
fato de os irmãos já estudarem no turno
noturno, facilita a entrada dela em uma
escola noturna, obviamente, após a
permissão dos pais. Os irmãos são sua
companhia para ir e voltar para a escola,
que ela e eles têm que se deslocarem 9 km
para ter acesso à escola. Entende-se que
para uma ‘menina’ se deslocar sozinha 9
Km para ir à escola, principalmente em
estradas vicinais, logo solitárias e escuras,
pode ser perigoso; novamente entraria em
cena uma questão de gênero, pois as
violências que ela poderia sofrer, são
evidentes.
Porém, esse acesso ainda
apresentaria outra provação: o transporte
escolar em tempos chuvosos:
A dificuldade que eu posso dizer foi,
assim, morar a 9 quilômetros fora da
cidade; no período de chuva, a gente
não ia, porque como é que ia à noite
pra rua de
ii
? O transporte não
buscava, e no período de chuva, era...
como é que saía de baixo de chuva da
sala... da... da... cidade pra ir pra...
pra... casa da gente? Então faltava
muitos dia de aula, perdia algumas
disciplinas... Esse foi o fator mais, é...,
que prejudicou, né? E, sabemos que a
gente mora no campo, assim... no
período de chuva, esse é o que
prejudica mais... é a... o acesso ao
transporte. (pausa) E foi um... um...
dos últimos anos que eu gostei muito,
porque, assim, a gente faz uma
observação da diferença de estudar à
tarde do que estudar à noite... assim...
os professores são outros, a escola em
si é outra, porque há menos estudantes,
sabe? há pessoas mais adultas, assim, a
gente carrega uma responsabilidade,
sabe? mas mudar de turno...
(Entrevista Conceição).
O acesso dos campesinos à escola,
historicamente foi difícil, quer fosse por
questões de tempo, quer por questões de
trabalho, ou porque a escola era um mundo
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distante das realidades desses
trabalhadores. Depara-se, pois, com mais
um empecilho, bastante contemporâneo: o
transporte escolar. Vivendo em locais cujas
estradas são mal pavimentadas, em tempos
de chuva o acesso fica praticamente
impossível, pois essas se tornam um
verdadeiro lamaçal, sendo frequentes os
carros ficarem ‘atolados’, sem
possibilidade de ir ou voltar. Se no período
da seca, a poeira castiga, no período de
chuvas a lama impede a entrada e saída das
pessoas, negando-lhes o direito de ir e vir,
por falta de segurança e de infraestrutura
nas estradas.
Mesmo com todas essas provações,
Conceição frequenta a escola noturna, nos
dois últimos anos do Ensino Médio, tira
boas notas e, finalmente, consegue
terminar o curso. Amadurece mais cedo
que outros adolescentes de sua idade,
permanece na escola e chega a dizer que
gostava desse ambiente mais adulto, mais
próximo daquilo que a vida lhe forçara a se
tornar, migrando abruptamente da infância
para a vida adulta ... foi um... um... dos
últimos anos que eu gostei muito, porque,
assim, a gente faz uma observação da
diferença de estudar à tarde do que
estudar à noite...”. Dessa maneira, o
percurso escolar de Conceição mostra-se
diferenciado, pelos rumos que a vida vai
lhe impondo: problemas de saúde na
família, curso noturno, trabalho em casa.
Depois de terminar o Ensino Médio,
encerra-se um ciclo em sua vida. Passa a
ser uma trabalhadora (embora o fosse)
assalariada. Torna-se babá e passa a ganhar
o próprio sustento, passando a morar na
casa da patroa. A continuidade dos estudos
é comprometida pela necessidade de
trabalho e de sustento. Conceição reafirma
durante o seu depoimento, que é a única
menina da casa’, entretanto, ao assumir tal
‘lugar’ ela continua buscando estratégias
para a continuidade dos estudos.
Depois de trabalhar como babá
durante algum tempo, ela deixa o emprego
e volta para a casa dos pais. Em sua
comunidade, passa a fazer parte do
sindicato de trabalhadores rurais e obtém
informações acerca da Licenciatura em
educação do campo. Ela decide que quer
fazer o processo seletivo. Mas sabe que
precisa construir estratégias para isso.
Ela certamente sabia que seria difícil
obter a permissão do pai e de toda a família
para a ‘saída’ de casa, mesmo que para
estudar. Então, busca estratégias de
continuidade: convence os irmãos a virem
também. Assim, ela teria novamente a
companhia deles e não seria impedida de
realizar o curso.
O que se evidencia no depoimento de
Conceição é o seu interesse na
continuidade dos estudos. Possuidora de
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uma trajetória singular, mas ao mesmo
tempo comum a jovens campesinas, ela vai
construindo estratégias que lhe garantam o
acesso e a continuidade de seus estudos. E
nesse percurso, não há a explicitação de
confronto; embora haja conflitos e sua
trajetória escolar/escolarizada possa ser
‘ameaçada’ de não continuidade, ela
consegue ‘dar um jeito’ para continuar
estudando.
Jarid
Jarid tem 23 anos, mora na
Comunidade Quilombola - Comunidade
Quilombo ‘Y-MG, aluna do 5º Módulo,
demonstra ser uma jovem bastante
participativa em sua comunidade, participa
de Movimentos Sociais, dentre eles o
Projeto Comunidade Viva, do Grupo de
Jovens (ligado à Igreja), é vice-tesoureira
da Associação, membro do Sindicato de
Trabalhadores Rurais. É a filha do ‘meio’,
de uma família de mais dois irmãos. Vive
com a família composta de e, pai e
irmãos.
O pai foi/é garimpeiro tem baixa
escolaridade- 4 séries iniciais do ensino
fundamental- e acha (achava) a escola algo
que contribuía pouco para a
instrução/formação dos filhos, então não
dava muita importância a essa instituição.
A mãe, ao contrário, sempre sonhou em
ver a filha estudar: “... minha mãe sempre
incentivou demais, eu num sei se é porque
eu sou a única filha mulher que ela tem... e
sempre falou assim "ó, não, pelo menos
Jarid tem que estudar". Por morar em uma
pequena comunidade- Quilombo- ela
teve/tem oportunidade de conviver com
toda a família: pais, tias, avós e até mesmo
os bisavós (‘pai-véi’/‘mãe-veia’), que
morreram recentemente, mas viveram até
cerca de 104, 105 anos.
Jarid teve uma vida escolar anterior à
Universidade relativamente tranquila, não
vivenciando tantas ‘provações’ como
muitos de seus colegas de curso. Por cursar
o ensino médio na EFA ‘Bontempo’
aprendeu, desde então, a participar de um
coletivo, e esse fato contribuiu
significativamente para a sua formação não
apenas intelectual, mas, sobretudo, para a
sua formação como liderança política no
interior de sua comunidade. Também fica
evidente a influência de sua mãe nesse
processo de liderança.
A mãe foi secretária da Associação
Quilombola e como a sua comunidade
recebeu o título no ano de 2007, a mãe
participou dessa luta, o que intensificou a
formação política da filha, contribuindo
para que ela se tornasse também uma
liderança. Embora haja uma convivência
com os homens, a família se caracteriza
por ser uma família de mulheres’; a mãe e
as tias antes, e, hoje, Jarid são
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determinantes no modo de convivência e
da forma de estruturação da mesma. Se, em
um primeiro momento, Jarid foi
influenciada e teve suporte na mãe e nas
tias, hoje, ela passa a influenciar também,
no sentido de que contribuiu enormemente
para a continuidade dos estudos da mãe,
que fez o ensino médio por influência dela,
e para a continuidade dos estudos das tias
(uma das tias foi recentemente aprovada no
processo seletivo da UFVJM-LEC).
O irmão mais novo voltou a estudar,
mudando inclusive de escola por
‘determinação’ de Jarid, pois ela
influenciou a mãe a trocá-lo de escola,
passando para a EFA Bontempo, por ser
uma escola mais exigente: “... Eu e mais
dois irmãos. (pausa) E os... é... um também
estudou em EFA, é... todos estudaram lá...
o mais novo agora, a gente pondo ele
pra poder estudando na EFA Bontempo
também”. Como se vê, a influência das
mulheres nesta família é determinante e
começou com a avó:
...eu converso muito com minha avó
e ela... uma prima minha mora com
ela (pausa), e ela fica assim, sempre
quando a gente falando uma
palavra errada ela corrige,
XXXXX (prima) diz: "Mas, é... ô,
Vó, mas errado. É Jarid que devia
corrigir a gente. (Entrevista Jarid).
Evidencia-se no trecho o orgulho em
ter alguém da família cursando o ensino
superior, em ter uma ‘Professora de
Português’ na família, e esse orgulho não é
de Jarid, mas também de toda a família.
A linguagem, sempre tão marcadamente
excludente para esse grupo social, tem, na
figura de Jarid, a sua apropriação, no
sentido de que Jarid é ‘uma igual’ que
conquistou o direito à universidade; e, com
ela (universidade) conquista uma outra
‘língua’. Por isso, cursar Linguagens e
Códigos representa não apenas a
mobilidade social, mas a conquista e o
domínio de uma língua, que se mostrara
até então inacessível para todos e todas
daquele grupo populacional.
A conquista se torna assim, mais que
individual, torna-se familiar, coletiva, é
alguém da comunidade, que participa da
Universidade e se forma (formará) como
Professora de Português, daí que as iniciais
maiúsculas tentam dar conta de uma
conquista, de uma vitória coletiva, que
pode ser minimamente representada pela
frase: ‘chegamos lá’, em que o sujeito
plural representa uma ascensão social.
A fim de explicitar e detalhar
claramente o percurso de Jarid organizou-
se, a partir da entrevista, tendo em vista em
dois grandes blocos de análise: (i) o mundo
masculino e o mundo feminino; e (ii) a ‘re-
descoberta’ da negritude. O esquema se
análise pode ser assim representado, para
que sejam detalhados posteriormente.
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O Mundo Feminino e o Mundo
Masculino de Jarid:
Conforme se afirmou anteriormente,
Jarid foi influenciada pela mãe e tias na
construção de seu desejo de estudar.
Proveniente de uma comunidade
quilombola, ainda na infância, o brincar se
constituía como um aprendizado: quer
fosse de formas de se portar, de ser, de
saber, de conhecer. A convivência e as
brincadeiras com as tias e primas se faziam
presentes e o ‘brincar de aulinhas’ uma
constante. Foram esses momentos que
propiciaram a Jarid a descoberta de si
como menina e de suas tias e mãe como as
‘forças’ da família. O desejo da mãe se
revela nas palavras repetidas: “... e
sempre falou assim "ó, não, pelo menos
‘Jarid’ tem que estudar”. (Entrevista de
Jarid); essa ‘repetição’ alcança o mundo de
Jarid e nasce nela o desejo de estudar.
Entretanto, nem sempre esse desejo
foi fácil de ser realizado. Ainda na
infância, Jarid inicia também as suas
provações’. A entrada na Escola
Municipal ‘YY’ significaria a descoberta
de várias coisas, mas também a descoberta
de uma doença que a impedia de
memorizar mais facilmente as ‘coisas’:
... eu comecei nos... nos anos iniciais
na escola de minha comunidade,
Escola Municipal ‘YY’. (pausa) E...
(pausa) eu repeti de ano, (pausa), se
eu não me engano, foi no primeiro,
logo no início, (pausa), na terceira, eu
acho... e na quinta série; eu acho que
foi isso... (pausa) E eu sempre fui um
pouquinho meia atrapalhada, assim,
pra escrita. (pausa) E até ent... até a
sexta série, (pausa), eu sempre fui um
pouquinho lenta. (pausa) E depois
a minha mãe descobriu que (pausa)...
que eu tinha um, um ‘problema’
assim de memória. (pausa) Daí eu
comecei a fazer o tratamento e tal,
então (pausa), foi tranquilo estudar,
pra mim. A escrita sempre (pausa)...
sempre foi muito presente na minha
vida, porque eu sempre fui... eu fui
criada no meio dum monte de tias, e
como elas chegavam da escola, e
assim, a gente criança, a gente tinha
tanta curiosidade de ver assim, que
elas estavam estudando, o que
estavam lendo... (pausa) E assim, e
aí... e também elas tinham aquelas
brincadeirinhas de... de professor, de
ser professor, e a gente, aluno.
(pausa) Mas eu num... num... não
aprendi a escrever meu nome, nem
nada, antes de entrar na escola; isso
tudo aconteceu depois que eu entrei
na escola... (Entrevista Jarid).
No início do processo de
escolarização, Jarid encontra uma barreira,
pois, a não aprendizagem leva à
reprovação e à descoberta de uma doença,
que ela não detalha. Ao mesmo tempo em
que ressalta a importância e o significado
do processo de escolarização, pois tudo
que aprendeu foi na escola, também revela
a importância das brincadeiras para a sua
formação.
A mãe teve papel decisivo, pois a
leva para fazer o tratamento e ela se cura.
Mais que isso, a mãe a incentiva, apesar da
reprovação, a continuar os estudos e
projeta nela o próprio desejo de estudar.
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Ela assume esse lugar de realização dos
sonhos da mãe.
A infância e o ensino fundamental
passariam de forma quase despercebida,
pode-se dizer de forma tranquila, marcada
pela convivência em uma família
numerosa. O ensino médio, entretanto,
marcaria a vida de Jarid, impondo outro
ritmo em sua trajetória escolar. A EFA
contribuiria para as descobertas que faria
ainda em seu percurso escolar, como
adolescente:
Logo depois, foi passando, do ensino
fundamental, quando eu fui pro
médio que comecei a estudar na EFA
Bontempo. (pausa) Daí eu... eu
(pausa), eu... na EFA que eu
descobri que eu gostava de escrever.
(pausa) Devido a muitos relatórios
que a gente tinha que fazer, (pausa),
de... de... de comunidade, que a gente
voltava pra casa, tinha pesquisa pra
poder fazer... é... tinha estágio, tinha
que fazer relatório de estágio; tudo
era... tudo relatório. Foi que... me
despertou a minha vontade de... de...
de gostar de escrever. (pausa) E...
(pausa) Não, não... (pausa) e... a
princípio assim, eu num... antes
disso... não gostava muito de
escrever, até falava assim, "ah, gente,
eu num vou fazer nem ensino médio.
Eu num vou estudar mais não.
(Entrevista Jarid).
De adolescente tímida e quase
invisível (fora da família) ela inicia um
processo de construção de si e do outro de
forma completamente diferenciada daquele
que ocorria até então. Do pouco gosto
pelos estudos, da vontade de parar de
estudar, ela descobre a ‘escrita’ passa a
gostar dela e seus relatórios deixam de ser
o mero cumprimento de uma tarefa escolar,
passando a significar uma atitude diante do
mundo: ela descobre que ‘tem o que dizer’,
ao mesmo tempo em que descobre também
que alguém quer escutá-la. Por isso, os
relatórios ganham significação especial e
passam a ser escritos com prazer. A leitura
vem junto, primeiro com as revistas,
depois livros de ficção, românticos, no
dizer de Jarid. Hoje, a Universidade lhe
permite o entendimento de ‘livros técnicos,
de palavras difíceis’ e o mistério que
cercava a escrita/leitura vai se dissipando,
sendo decifrado pouco a pouco.
Eu sei lá, eu acho que eu tenho essa
sensação que tem muitas palavras
técnicas, (pausa), é... (pausa) eu acho
que é isso... (pausa) Palavras
difíceis... palavras, assim, que eu não
habituada a... a... ver, sabe?, eu
considero um texto difícil de ler.
(pausa) Mas aqui na universidade,
também, eu despertando essa
vonta... essa coisa de... de... de...
(pausa) de ler mais, de livros, por
exemplo, livros fáceis,
deixando um pouquinho de lado, já...
eu tô encarando novos livros... é... é...
(pausa) Eu acho que... que... a leitura
e escrita, depois que entrei na
universidade, se tornou a coisa,
assim, que eu mais observo. Que
desde que eu entrei pra universidade,
que eu voltei pra comunidade, eu
observava, assim, no modo que as
pessoas falavam, no comportamento,
na questão de... na relação de pai
com filho com relação a... a... como
que os pais se comportam com
relação à aprendizagem dos filhos... e
sempre, em casa, eu chamo muita
atenção de minha mãe, assim "Mãe,
(pausa), pega mais no de César...
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E, sabe, eu... eu (pausa)... depois que
eu vim pra universidade eu passei a
observar mais essas questões
(pausa)... de... (pausa) E, também,
valorizar mais a questão de... de... de
falas, de... de... palavras que são
específicas de minha comunidade,
(pausa), de... conversar mais com os
mais velhos, principalmente com os
meus avós... Eu passei a valorizar
mais essas pessoas e esses
momentos; isso depois que eu entrei
na universidade. (Entrevista Jarid).
A EFA marca o início dessa
mudança de atitude, de referências. Jarid
vai se aproximando da escola, à medida
que as atividades da EFA lhe exigem mais
dedicação. A liderança viria também. As
atividades desenvolvidas na/pela EFA
exigiriam o uso de falas em situações que,
eram escolarizadas e públicas. As
constantes apresentações de relatórios, as
discussões com colegas e professores
deixam-na menos tímida e as linguagens
começam a fluir.
A Universidade também começa a se
configurar em seu horizonte. E também
se configuram outras descobertas. A
negritude é uma delas. Importante dizer,
porém, que não existe uma distância entre
essas descobertas ensino médio,
negritude, maior visibilidade, liderança-,
elas ocorrem dialeticamente; o interesse
pela escola, a descoberta do ‘gostar de
escrever e ler’, a construção da liderança,
tudo enfim, são ‘acontecimentos’ que vão
alterando a vida de Jarid e a própria Jarid.
Se o ensino médio foi um marco em
sua história, a chegada à Universidade
significou uma grande conquista, e,
juntamente com ela o reconhecimento de
uma memória coletiva e individual. Nesse
sentido, ser parte de um Quilombo
apresenta contornos essenciais para a
construção de uma liderança pautada pelas
ações de uma coletividade. Quando ainda
cursava o ensino médio na EFA inicia um
processo de descobrimento de si mesma, a
mãe teve grande influência, visto que
participava de Associação Comunitária que
desenvolvia uma luta pelo reconhecimento
do espaço de vida como espaço
quilombola. A questão da memória
coletiva e da luta por sua preservação se
colocaria de forma decisiva não apenas
para a comunidade (que receberia o título
em 2007), mas, sobretudo faria Jarid
refletir sobre si mesma, passando a se
perceber de outra maneira. E a percepção
de si, começa com o reconhecimento como
negra, pertencente a uma comunidade
quilombola. No dizer de Silva, citado por
Candau (2010, p. 1) argumenta sobre a
memória:
... não pode haver identidade sem
memória (assim como lembrança e
esquecimento) porque somente esta
permite a autoconsciência da duração
... Por outro lado, não pode haver
memória sem identidade, pois o
estabelecimento de relações entre
estados sucessivos do sujeito é
impossível se este não tem a
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priori um conhecimento de que esta
cadeia de sequências temporais pode
ter significado para ele.
Ao presenciar e conviver com uma
mãe que participa de uma luta comunitária,
como Presidente da Associação para o
reconhecimento de sua comunidade como
Quilombola, Jarid inicia um processo de
recuperação de memórias coletivas que se
encontravam latentes nela; assim, quando a
comunidade conquista o título de
quilombola, isso a faz revisitar sua história.
Reconhece a si mesma como mulher e
como negra, ‘re-descobrindo’ preconceitos
e lutas, mas acima de tudo, discernindo
entre o ser negra ou não, entre ser mulher
ou não. Mas também atina para a força de
uma etnia que, mesmo tendo sido aviltada,
conseguira não apenas sobreviver, mas
vinha conquistando direitos.
Jarid inicia alterações em seu aspecto
físico: o cabelo deixaria de ser alisado’ e
voltaria a ser cacheado de maneira natural.
Embora possa parecer simples vaidade,
para Jarid, não o é, visto que tal permitiria
a ela a retomada e construção de uma
identidade como mulher negra, e, ao se ‘re-
descobrir’ assim, outros aspectos de uma
identidade coletiva e individual que
permaneciam adormecidos, afloraram.
A liderança na escola e na
comunidade, a participação em
movimentos de jovens, o reconhecimento
de outros saberes, que não apenas os
saberes acadêmicos fariam a partir d
grandes diferenças em sua vida.
Ainda quando eu estudava na EFA,
quando eu estava finalizando, em
2013, que eu estava fazendo meu
último estágio, eu estava fazendo na
AMAI, que é a Associação dos
Moradores Amigos de Itinga. E lá
tinha... é... na minha comunidade
tinha um grupo de jovens, e tinha
acabado... e aí, eu falei assim "Ah,
gente, por que não reabrir (pausa)...
é... essa... (pausa) fazer um novo
grupo de jovens?", que na minha
comunidade, tinha muitos jovens, e
com esse negócio de... de...
migração, (pausa), jovens
desinteressados com a questão de...
de escola. (pausa) Eu falei, vou...
vou... vou tentar, lá na AMAI,
(pausa), tinha uma coordenadora do
MJPOP, que é Monitoramento Jovem
de Políticas Públicas, falou "Jarid,
vou te ajudar". Tava eu e XXXX, e
ela falou assim (pausa)... é... é...
"Organiza a galera lá, que a gente vai
lá". (pausa) E aí, a gente organizou e,
graças a Deus, deu tão certo, que o
grupo fez... no mês de novembro, fez
quatro anos de existência. Eu sou a
facilitadora do grupo, (pausa), e...
(pausa) a gente tem... alguns projetos
a gente monitora as políticas públicas
da comunidade... e onde quer que...
onde eu vou, eu penso muita essa
questão de... de comunidade.
(Entrevista Jarid).
Todas essas mudanças foram
intensificadas com a entrada na
Universidade no curso LEC-LC/UFVJM.
A partir de então, as memórias coletivas de
seus antepassados não são apenas
valorizadas do ponto de vista pela
conquista de um título (quilombola), mas,
sobretudo, essas memórias e esse ‘lugar’
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passariam a nortear comportamentos,
intensificando ações, percepções e saberes.
A Universidade reforça esse ‘lugar’
de reconhecimento de outros saberes,
ativando-o a partir de uma busca de
integração entre estudante e comunidade
realizada principalmente no tempo
comunidade. Os trabalhos a serem
realizados (seminários, palestras, resgate
das histórias das pessoas e dos lugares
onde vivem os graduandos) constituem
elos entre a universidade e comunidade.
O curso ao retomar questões
identitárias dos estudantes: ‘quem eu sou
e ‘de onde venho’ oportuniza o
fortalecimento de vínculos sociais,
oportunizando repensar tais questões, em
uma perspectiva memorialística, qual seja,
as lutas desencadeadas na/pela comunidade
permitiram não somente o reencontro com
a memória, mas a manutenção de
memórias fortes, que criaram marcas
sólidas que reforçaram sentimentos de
origem, historicidade e pertencimento”
(cf. Silva, obra citada).
E, ao reforçar esse pertencimento,
Jarid vai se reconhecendo como uma
‘igual’, dotada de capacidade de luta,
torna-se, no dizer de Caldart (2003), uma
‘lutadora do povo’, pois assume como sua,
uma luta que é também coletiva,
reconhecendo a necessidade não apenas de
humanização das relações construídas no
campo, mas, sobretudo, lutando e
participando para que o apenas ela tenha
acesso a processos formais de
escolarização, mas reconhecendo a
necessidade de participações coletivas nos
vários movimentos de luta e
reconhecimento desenvolvidos
coletivamente:
Lutadores do povo são pessoas que
estão em permanente movimento
pela transformação do atual estado
de coisas. São movidos pelo
sentimento de dignidade, de
indignação contra as injustiças, e de
solidariedade com as causas do povo.
Não estão preocupados apenas em
resolver os seus problemas,
conquistar os seus direitos, mas sim
em ajudar a construir uma sociedade
mais justa, mais humana, onde os
direitos de todos sejam respeitados e
onde se cultive o princípio de que
nada é impossível de mudar. Por isso
se engajam em lutas sociais coletivas
e se tornam sujeitos da história.
Nossa sociedade está carente de
lutadores do povo. Ajudar a formá-
los também é um desafio das escolas
do campo. Lutadores do povo se
formam nas lutas sociais que têm raiz
e projeto, e que enraízam as pessoas,
devolvendo-lhes perspectivas de
futuro. (Caldart, 2003, p. 70).
Assim, quando Jarid inicia seu
processo de ‘re-conhecimento’, suas
memórias reafirmam sentimentos de
origem, historicidade e pertencimento’, ao
mesmo tempo em que se constitui como
sujeito de sua história o que reforça seu
pertencimento, devolvendo-lhe
perspectivas de futuro, mas, sobretudo,
alterando o seu presente, o seu ‘aqui e
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agora’. Daí que a participação e a
reconstrução de movimentos, de grupos de
jovens, o reconhecimento de outros
saberes, que não apenas o acadêmico,
começam a apresentar outros sentidos para
ela e sua participação cada vez mais se
intensifica, adquirindo outras dimensões:
Também depois que eu entrei na
universidade, eu... eu valorizei mais
essa questão de chegar em um lugar
e... também porque a gente é uma
comunidade quilombola, (pausa), e...
eu passei a... e... eu passei a... a...
(pausa) além de valorizar mais a
minha comunidade, levar mais a...
essa identidade que a gente tem e que
é específica. Porque ser quilombola,
então, assim, até hoje a gente
encontra uma comunidade de pessoas
em que, um pouco fica retraída sem
dizer que é quilombola, e (pausa), a
gente como grupo de jovem, a gente
trabalhando essa questão; em
novembro a gente trabalhou com CV,
que CV é a Comunidade Viva é um
projeto que o grupo de jovens criou
dentro da comunidade, e que cada dia
que a gente realiza esse movimento,
tem mais pessoas da comunidade
participando. (Entrevista Jarid).
Jarid constrói ponderações em
relação às políticas públicas; toma
consciência de seus direitos e intervém em
sua comunidade e na escola de sua
comunidade, pois tendo observado que um
aluno riu do outro por ele ser quilombola,
ela desenvolveu um conjunto de ações para
possibilitar a discussão do ocorrido no
interior da própria instituição escolar, bem
como possibilitou uma ‘reorganização’
escolar em torno do tema, etnia,
começando pelo questionamento em
relação à alimentação (merenda escolar) e
alcançando o universo da sala de aula:
E aí, agora, é... é... no ano... no mês
de outubro, a gente teve uma segunda
reunião, e quando foi em dezembro a
gente teve um seminário com
capacitação dos professores. E ‘Jô’
sempre fala assim comigo "Jarid,
tem que ficar sempre... nunca deixa
de... não esqueça que você sempre
impulsionou essa luta pra dentro da
escola". E, hoje, aí... quando eu levei
essa questão, a nutricionista da escola
falou assim "Uai, mas como é que a
gente vai levar uma alimentação
específica?", aí ela me perguntou "
Jarid, como é que eu vou fazer?", eu
assim "Gente, eu num sei!".
(pausa) "Eu não sei", então é para
isso que existe... (pausa) mil e um
órgãos aí... mil e uma pessoas pra
trabalhando nessas áreas. Eu sei...
eu tô levando a ideia, agora quem
tem que trabalhar ela são vocês.
(pausa) Porque, é... é... eu assim
"Eu tenho obrigação de cobrar, e
vocês têm obrigação... vocês como
funcionários públicos, você têm
obrigação de trabalhar", e... graças a
Deus, eles tiveram a capacitação na...
(pausa) na cidade de Berilo, porque
em Berilo tem a referência da... de
uma escola quilombola, de... com
muitas comunidades quilombolas,
muito organizada, (pausa) ... No mês
de dezembro, a gente fez um
seminário em Itinga, (pausa), com os
professores da minha comunidade,
pra capacitar eles pra saber como
trabalhar essa questão da etnia dentro
da comunidade. (pausa) Estava todo
mundo muito... muito... (pausa) é...
animados com o projeto, que eles vão
executar como projeto, e que já ia
começar a desenvolver agora,
(pausa), é... quando iniciar a aula,
que eles já vão trabalhar com os
alunos (pausa). (Entrevista Jarid).
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A cena enunciativa exposta acima
assevera o protagonismo dos sujeitos do
campo, personificados na informante.
Destarte, recorre-se novamente a Caldart
(Idem) quando essa autora reflete acerca
das escolas do campo, as quais requerem o
protagonismo dos seus sujeitos, no sentido
de que eles devem assumir
posicionamentos claros em relação à
implementação de currículos que se façam
inovadores, de modo a atender as
necessidades e expectativas desses sujeitos,
reconhecendo-os e valorizando suas
culturas e identidades.
Ainda em relação às lutas coletivas, a
informante sente necessidade de ampliá-
las, visto que percebe ainda uma
diferenciação entre níveis de escolaridade
de homens e mulheres do campo. Segundo
ela, as meninas têm alcançado uma maior
escolarização que meninos, pois o acesso
ainda é difícil; algo que ela também vem
tentando mudar em sua realidade:
Porque... e também essa questão de
jovem estudar, lá, é muito, muito,
muito... muito vago; os meninos,
principalmente, a coisa mais difícil
que tem é um homem ir lá, ter um...
ter um (pausa), um ensino superior,
ou ensino médio completo. E... e... e
também mudou muito essa questão
quando eu entrei na universidade,
porque eu sempre falei, assim, no
grupo, na reunião dos grupo de
jovens, eu falo assim "Ó, gente,
vestibular, vestibular do Instituto
aberto, ó. Bora fazer!", é... é... Do
ENEM, por exemplo, eu fiz inscrição
de várias meninas, assim, eu
falava assim... cheguei na reunião do
grupo falei assim "Ó, me seus
documentos", eu faço inscrição pra
todo mundo. (pausa) E... (pausa) Eu
cobro muito, na reunião dos jovens
eu cobro muito isso, (pausa), e,
que meninos é muito difícil a gente
encontrar um rapaz que queira
estudar. (Entrevista Jarid).
Porém, para além da dificuldade de
acesso, ressalte-se outra questão imbricada
na primeira, cuja interferência se faz sentir
de modo significativo, principalmente no
ambiente rural: as diferenças dos mundos
masculino e feminino. Nesse ambiente, as
mulheres ficam em casa, cuidam de seus
maridos e filhos. Aos homens cabe o papel
de provedores; são eles que saem, que
trabalham e mantêm a casa. Daí que a
autoridade e o respeito paterno são
elementos cruciais na constituição desses
universos- masculino e feminino- que,
embora imbricados um no outro, mantêm
uma sociedade mais ligada a valores
tradicionais, patriarcais. Assim, estudar, ir
para a escola, avançar na vida escolar, não
é visto como ‘coisa’ de homem. A este,
cabe o trabalho duro, pesado; o livro talvez
seja uma referenciação ao recolhimento, à
quietude, mais ‘próprios’ à mulher, ao
mundo feminino. E, para demonstrar esse
aspecto, recorre-se à descrição de Jarid
sobre seu pai:
... porque meu pai quando falava de
estudar, ele "Não"; ele "Não".
(pausa) Meu pai mudou muito, e
muito mais depois que eu entrei na
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universidade, e que ele, depois, ele se
tocou o que é uma universidade, e...
e... e... (pausa) o que é uma
universidade e o que isso pode me
beneficiar ... Porque ele num via a
questão, assim, de estudar, como um
objetivo de vida (pausa)... Porque a
realidade dele foi... foi... é... é...
estudou até a quarta rie, pra ele
tava bom... e foi trabalhar com o pai
dele no garimpo... Eu nem tinha
diálogo muito aberto com meu pai...
assim... e sempre quando eu chego
em casa, ele "Ô, Jarid, como é que
foi na universidade?", ou então
quando eu ligo e ele pergunta
"Como é que ela lá? estudando
direitin?", sabe? (pausa) é... é... é
coisa assim que, que mudou muito
depois que eu entrei aqui na
universidade. (Entrevista Jarid).
Essas diferenças entre os universos:
masculino e feminino resultam em um
processo de maior escolarização por parte
das mulheres que, por ocuparem o ‘lugar’
do lar, podem estar mais propensas aos
estudos, que exigem maior concentração,
mais silêncio, mais solidão.
Assim, pode-se pensar, em relação
aos universos masculino e feminino em
localidades rurais, o mundo masculino
seria basicamente externo, fora do lar, e
como as atividades laborais são ‘pesadas’,
ocorre uma associação entre o gênero
masculino e serviços de capina, atividades
ligadas à construção civil, dentre outras
que exigem maior esforço físico. Às
mulheres caberiam os serviços ligados ao
lar, porém menos acesso a espaços
públicos e, atividades ligadas
essencialmente aos ‘cuidados’ do lar, dos
filhos, das famílias. Esses pontos podem
ser observados no ‘reconto’ de falas do pai
de Jarid, descrita acima: "Jarid pra
escola, XXXXX (a mãe) tá, tá...
trabalhando no sindicato, como é que vai
ficar...quem vai cuidar da casa?”.
Por outro lado, conforme Caldart
(2003) as classes populares, ao longo da
história, conviveram com uma escola que
não lhes ‘respondia’ adequadamente aos
anseios e expectativas, dado o
distanciamento entre aquilo que se
ensinava/aprendia e as formas de vida dos
povos do campo, logo a escola ainda é
vista como ensinando um conjunto de
conhecimentos que, por não terem
continuidade não ‘servem’ à praticidade e
urgência da vida campesina, não têm
utilidade. Melhor dizendo, o conhecimento
escolar/escolarizado para a maioria dos
jovens trabalhadores não se torna
conhecimento útil a todos, logo essa
instituição é vista como ‘inútil’, para eles,
guardando (também) uma representação no
imaginário de que é um lugar importante,
porém inacessível, pois a escola não é o
lugar de classe trabalhadora. Esta necessita
de conhecimentos ‘práticos’, de outras
perspectivas de ensino e de aprendizagem
para que encontre nessa instituição o valor
necessário e o desejo de permanecer nela.
O pai de Jarid talvez em sua recusa
em participar desse mundo escolar esteja
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ancorando uma representação de escola
nessa perspectiva. Entretanto, ver a filha
prosseguindo e progredindo nos estudos
oportuniza a ele mudanças de atitude; e o
que era retraimento, desconfiança,
paulatinamente vai se tornando esperança
de mudança e alteração dos lugares sociais
da filha, como representante da família,
mas, sobretudo, representante de uma
classe, de um grupo social e talvez
(principalmente) dele mesmo. De certa
forma, talvez o pai comece acreditar que
exista uma escola possível para gente
como ele”.
Considerações finais
Encaminhando para as considerações
finais deste trabalho, ressalta-se a
importância das lutas desenvolvidas pelas
mulheres em sua busca pelo acesso e
permanência em processos educacionais
formais. Embora ainda sendo vistas como
cuidadoras e/ou ocupantes de espaços
domésticos, muitas delas conseguem criar
estratégias para sua participação em
processos formais de escolarização.
Importante reafirmar que a categoria,
apropriada por nós, neste trabalho, a da
‘mãe preta’ associada à amorosidade
freireana permite-nos entender como as
mulheres campesinas conseguem, sem
maiores confrontos, apesar dos conflitos
vivenciados, alcançar outros espaços para
além dos domésticos.
Para as duas entrevistadas o percurso
escolar é resultado de lutas e de construção
de estratégias que lhes permitem ampliar a
participação em processos escolares
formais. Assim, não a explicitação de
conflito, ao contrário, ele depende
exatamente dessa aparente submissão.
Conceição, para dar continuidade aos
estudos, traz junto os irmãos e as primas;
Jarid vale-se da prerrogativa colocada pela
mãe, de ser a única mulher da casa, logo
ela irá estudar. E ambas, ao darem
continuidade à própria formação,
continuam ‘trazendo’ outras pessoas
consigo, familiares e/ou amigos.
Nesse contexto, evidenciam-se outras
perspectivas de lutas, em que sob uma
aparente submissão (‘mãe-preta’),
evidencia-se a amorosidade freireana,
constituindo uma luta coletiva. Não se trata
de apenas um sujeito alcançar o processo
de formação, mas, como esse sujeito se
coloca para propiciar a formação de si e do
‘outro’. Percebe-se outra perspectiva de
luta que, embora possa ser sentida num
olhar menos refinado como
submissão/passividade, uma forma de
resistência, pode-se dizer, genuinamente
feminina, abrindo perspectivas de análise e
de entendimento de outros significados
para a palavra resistência, qual seja, a
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existência firme, ‘fincada’ no desejo de
sobreviver, mas sobretudo de se colocar no
mundo como um ser que existe, que ‘é
dotado de visibilidades, de desejos e que
busca consolidar uma trajetória
educacional, a partir da construção de
outras estratégias.
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ii
... como é que ia à noite pra rua de pé?’ Ir para
a ‘rua’ na linguagem campesina, significa ir para a
cidade; neste caso, caminhar 9 Km que era a
distância entre a casa/povoado de origem e a escola.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 31/03/2021
Aprovado em: 23/05/2021
Publicado em: 12/07/2021
Received on March 31th, 2021
Accepted on May 23th, 2021
Published on July, 12th, 2021
Contribuições no Artigo: A autora foi a responsável por
todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação
da versão final publicada.
Author Contributions: The author was responsible for the
designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content
and approval of the final version published.
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nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
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campesinas: a luta pela educação. Rev. Bras. Educ.
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pela educação. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis,
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