Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12349
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
1
Este conteúdo utiliza a Licença Creative Commons Attribution 4.0 International License
Open Access. This content is licensed under a Creative Commons attribution-type BY
Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir
das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset
Rogério de Almeida
1
, Caio Chung Micca
2
1
Universidade de São Paulo - USP. Laboratório Experimental de Arte, Educação e Cultura (Lab_Arte) - Faculdade de
Educação. Avenida da Universidade, 308, Cidade Universitária. São Paulo - SP. Brasil.
2
Universidade Estadual de Campinas -
UNICAMP.
Autor para correspondência/Author for correspondence: rogerioa@usp.br
RESUMO. A partir da leitura hermenêutica do conto "O
segredo do Bonzo", de Machado de Assis, o presente artigo
buscará refletir sobre o negacionismo ambiental na atualidade,
trazendo conceitos de imaginário, real e ilusão presentes na obra
de Clément Rosset e Gilbert Durand. Com base nas leituras é
introduzida a reflexão das possibilidades de atuação da educação
ambiental para fazer frente ao movimento de negação da
emergência das questões ambientais. A metodologia empregada
é bibliográfica, exploratória e pautada pela perspectiva filosófica
e hermenêutica. Como resultados, a pesquisa apontou que o
negacionismo climático constrói-se do mesmo modo que a
ilusão no conto machadiano, por meio da substituição de um
dado concreto e desagradável por uma opinião que condiz com o
desejo. Uma educação ambiental que se quer transformadora
terá de enfrentar o desafio de desfazer ilusões e propor um
imaginário que ajude a compreender efetivamente a realidade.
Palavras-chave: negacionismo, Machado de Assis, Clément
Rosset, imaginário, real, ilusão.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
2
Climate Change Denial at O segredo do Bonzo based on the
reading of Imaginary, real and illusion in Clément Rosset
ABSTRACT. From the hermeneutics reading of the short story
“O segredo do Bonzo”, of Machado de Assis, this article will
pursue the reflection about climate change denial nowadays,
bringing concepts of imaginary, real and illusion found in the
work of Clément Rosset and Gilbert Durand. Based on the
readings, a reflection on the possibilities of action of
environmental education is introduced facing the movement to
deny the emergence of environmental issues. The methodology
used is bibliographical, exploratory and guided by a
philosophical and hermeneutic perspective. As a result, the
research pointed out that climate denialism is built in the same
way as the illusion in Machado's tale, by replacing a concrete
and unpleasant fact with an opinion that matches the desire. An
environmental education that wants to transform the
environment will have to face the challenge of dispelling
illusions and proposing an imaginary that helps to effectively
understand reality.
Keywords: negationism, Machado de Assis, Clément Rosset,
imaginary, real, illusion.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
3
Negación del cambio climático en O Segredo do Bonzo a
partir de la lectura de imaginario, real y ilusión en
Clément Rosset
RESUMEN. A partir de la lectura hermenéutica del cuento “O
segredo do Bonzo”, de Machado de Assis, este artículo hace una
reflexión sobre la negación del cambio climático en la
actualidad, aportando conceptos de imaginario, real e ilusión
que se encuentran en la obra de Clément Rosset y Gilbert
Durand. A partir de las lecturas, se introduce una reflexión sobre
las posibilidades de acción de la educación ambiental para
combatir al movimiento que niega el surgimiento de la
problemática ambiental. La metodología es bibliográfica,
exploratoria y guiada por una perspectiva filosófica y
hermenéutica. Como resultado, la investigación señaló que la
negación del clima se construye de la misma manera que la
ilusión del cuento machadiano, reemplazando un hecho concreto
y desagradable por una opinión acorde con el deseo. Una
educación ambiental que quiera transformar el medio ambiente
tendrá que afrontar el reto de disipar ilusiones y proponer un
imaginario que ayude a comprender eficazmente la realidad.
Palabras clave: negacionismo, Machado de Assis, Clément
Rosset, imaginario, real, ilusión.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
4
Introdução
Nada mais frágil do que a faculdade
humana de admitir a realidade, de
aceitar sem reservas a imperiosa
prerrogativa do real.
Clément Rosset (O real e seu duplo).
Os impactos ambientais da presença
humana no planeta são incalculáveis, com
devastação de áreas cada vez maiores,
maior nível de poluição no ar e nos
oceanos, aquecimento global, extinção de
numerosas espécies e diminuição da
diversidade da vida. O antropoceno,
momento em que a atividade humana passa
a alterar os ecossistemas e as condições
climáticas do planeta, assinala também que
os modos de vida e exploração dos
recursos naturais, principalmente pelos
países mais desenvolvidos, ocasionam
riscos reais à manutenção da própria
espécie humana. Tal cenário exige
políticas públicas mais eficazes,
transformações econômicas mais
profundas, desenvolvimento de tecnologias
menos agressivas e mais sustentáveis, além
da inserção da educação ambiental como
tema fundamental da formação escolar.
No entanto, apesar da gravidade da
situação, fartamente documentada por
pesquisas científicas e divulgada por
diversas mídias, persistem atitudes de
negação, que ignoram não os impactos
como também suas causas. Qual a origem
da negação às problemáticas ambientais?
Por que negar a urgência dessas questões?
Ou até mesmo, por que acreditar em
teorias sem nenhum respaldo científico?
O negacionismo ambiental, termo
que descreve os discursos que negam a
existência dos impactos humanos no meio
ambiente e seus riscos, não é, no entanto,
um evento isolado, que deriva de uma
atitude mais geral de denegação do real.
Essa atitude, também chamada de ilusão,
parece estar incrustada na condição
humana e se manifesta como uma resposta
psicológica a uma realidade desagradável.
O que de novo, nos tempos que correm,
é que a subjetividade dessa estratégia
psicológica de negação transformou-se em
política, em discurso e em ideologia,
disseminando-se nas redes sociais, em
grupos pseudocientíficos, em teorias
conspiracionistas e mesmo em programa
ideológico, como o do governo Bolsonaro.
Tendo em vista esse cenário, o
objetivo deste artigo é compreender esse
mecanismo da ilusão que está na base do
negacionismo e, mais especificamente, do
negacionismo ambiental. Para tanto,
recorreremos à literatura, buscando no
conto O Segredo do Bonzo, de Machado de
Assis, os elementos que permitam
compreender, numa perspectiva filosófica
e hermenêutica, a relação entre real, ilusão
e imaginário. Essa relação será estudada a
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
5
partir da contribuição teórica de Clément
Rosset (2008) e Gilbert Durand (1997).
Para o debate sobre o negacionismo,
sobretudo climático, recorremos a estudos
de autores como Cunha (2013), Danowski
(2012, 2018) e Miguel (2019). E, por fim,
para a discussão do conto O Segredo do
Bonzo, servem de referência Losso (2008),
Teixeira (2008) e Almeida (2019, 2020).
Metodologicamente, partiremos das
análises dos diferentes negacionismos
presentes na bibliografia, sobretudo no
Brasil, e que fornecem as bases do que
entendemos por negacionismo ambiental.
Em seguida, realizaremos uma leitura do
conto O Segredo do Bonzo conjuntamente
às análises de autores citados, para, no fim,
utilizarmos os conceitos de imaginário,
real e ilusão na filosofia trágica de Clément
Rosset em uma análise mais aprofundada
do negacionismo ambiental e do conto de
Machado de Assis, bem como as possíveis
relações que podem ser estabelecidas entre
ambos.
Negacionismos
As teorias negacionistas têm ganhado
cada vez mais relevância nos dias atuais,
especialmente com a internet e com as
redes sociais. No contexto da pandemia da
COVID-19, vimos desde cidadãos comuns
até autoridades de diferentes países
negarem o vírus, a seriedade da pandemia,
os riscos de colapso, a necessidade de
vacina e insistindo em medicações sem
comprovações científicas. Entretanto, o
movimento de negação de consensos
científicos, ou de acontecimentos
históricos, não é um fenômeno recente.
Geralmente ligados a grupos de
extrema direita (Danowski, 2012;
Danowski, 2018; Miguel, 2019), os
movimentos negacionistas atuam em
diferentes campos. teorias de negação
de acontecimentos históricos que alguns
chamam de revisionismo histórico , como
o Holocausto na Alemanha nazista ou a
ditadura militar brasileira, e também a
negação de consensos construídos pela
sociedade científica global, como o
terraplanismo e o negacionismo ambiental
(ou climático).
Nos trabalhos de Déborah Danowski
(2012, 2018) é possível observar diferentes
negacionismos presentes na história:
... primeiro com a do negacionismo
de nazistas, ex-nazistas, neonazistas e
outros políticos de extrema direita
quanto ao Holocausto perpetrado
pela Alemanha durante a Segunda
Guerra Mundial; e segundo, com o
negacionismo que caracteriza, em
graus e formas variados, nossa
atitude diante das práticas de criação,
confinamento e extermínio em massa
de animais nas fazendas-fábricas da
agroindústria mundial. (Danowski,
2018, p. 4).
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
6
É possível percorrer historicamente
diferentes frentes negacionistas,
começando pelo passado, com o
revisionismo histórico do Holocausto,
passando pelo presente, com o debate
sobre as condições dos animais de abate
para o consumo de carne, e chegando ao
futuro, com o negacionismo climático.
É interessante refletirmos sobre esses
diferentes negacionismos relacionados à
história e ao tempo. O revisionismo
histórico do Holocausto pode ser
questionado com provas mais concretas,
como depoimentos de sobreviventes,
evidências materiais dos campos de
extermínio e das câmaras de gás,
documentos da Alemanha nazista etc., o
que é facilitado por conta do
distanciamento histórico.
Sobre as condições insalubres às
quais os animais criados para alimentação
humana estão submetidos nas ditas
fazendas-fábricas também encontramos,
atualmente, evidências por meio de fotos,
vídeos e relatos das condições de
confinamento e abate desses animais.
com relação às mudanças
climáticas por mais que haja um
consenso científico para 97% dos
pesquisadores dessa área
i
as evidências
para o público em geral são menos
concretas e mais difíceis de serem
compreendidas. Danowski se utiliza do
conceito de hiperobjetos para classificar as
mudanças climáticas e demonstrar a
dificuldade de percepção das pessoas
frente a essas questões.
As mudanças climáticas se incluem
na classe desses objetos especiais que
Timothy Morton chamou
recentemente de ‘hiperobjetos’ (em
The Ecological Thought. Cambridge,
Massachusetts: Harvard University
Press, 2010). Hiperobjetos são um
tipo relativamente novo de objetos
que, segundo Morton, desafiam a
percepção que temos (ou que o senso
comum tem) do tempo e do espaço,
porque estão distribuídos de tal
maneira pelo globo terrestre que não
podem ser apreendidos diretamente
por nós, ou então que duram ou
produzem efeitos cuja duração
extravasa enormemente a escala da
vida humana conhecida. (Danowski,
2012, p. 1).
Essa dificuldade de percepção das
mudanças climáticas facilita, e muito, a
criação de teorias que negam a sua
existência. Do mesmo modo, uma
facilidade em não querer enxergá-las,
que não há o que ser visto concretamente, a
não ser acontecimentos relativamente
distantes ou difíceis de estabelecer uma
relação direta. Como exemplo podemos
mencionar o derretimento das calotas
polares, a extinção em massa de diversas
espécies, a maior frequência de eventos
extremos (secas prolongadas, tempestades,
ciclones etc.), entre outras consequências
das mudanças antropogênicas do clima.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
7
No mesmo texto, Danowski
exemplifica vários tipos de negacionismos
e negacionistas quanto à questão do clima.
Privilegiaremos, neste artigo, os ditos
independentes, ou seja, aqueles que não
recebem dinheiro de forma oculta de
companhias petrolíferas, de gás ou carvão.
Isso porque aqueles, sejam lobistas,
cientistas ou apenas “especialistas”, que
são figuras públicas financiadas por
grandes companhias de combustíveis
fósseis ou extremamente poluentes
para questionar consensos científicos que
sejam prejudiciais a estas mesmas
empresas
ii
.
A autora ainda continua o seu
raciocínio sobre os que negam as
mudanças climáticas antropogênicas ditas
independentes: também indivíduos que
não negam completamente, mas que de
certa forma questionam, consideram um
exagero ou, como bem coloca Danowski,
um “catastrofismo”.
Mas ainda um outro tipo de gente
que, por motivos diferentes, ou “não
aceita” a realidade das mudanças
climáticas, ou aceita, mas “não tanto
assim”. São pessoas até bem
esclarecidas, que dizem frases como
“ah, nisso eu não posso acreditar”,
“isso também não, é demais”,
“isso é catastrofismo” ...
“Catastrofismo não”. (Danowski,
2012, p. 6).
A filósofa levanta a hipótese de que
muitos dos questionamentos que são feitos
acerca das comprovações científicas
relacionadas à situação climática se devem
a uma recusa às mudanças de hábitos
necessários a fim de mitigar o aquecimento
global e suas consequências. Não são
mudanças simples, que fomos educados
a consumir da forma como o fazemos
atualmente, conjuntamente a não nos
responsabilizarmos tanto pelos nossos
dejetos quanto pelas nossas escolhas.
Uma razão porque se nega o inegável
... é que isso que é inegável é também
intolerável. Se fôssemos encarar
diretamente o que temos pela frente,
isso exigiria de nós, aqui e agora,
muito mais do que estamos realmente
dispostos a fazer. (Danowski, 2012,
p. 6).
O que, em um primeiro momento, se
poderia relacionar ao espectro ideológico
de um pensamento mais à direita, também
foi aparecendo em discursos ligados à
esquerda. Desde teses de doutorado que se
utilizam da teoria crítica para refutar as
mudanças climáticas
iii
(Cunha, 2013) até
políticos de partidos de esquerda no
Brasil
iv
(Miguel, 2019) que se utilizaram
de argumentos como o suposto não
consenso na comunidade acadêmica ou,
então, argumentando que haveria interesses
ideológicos reacionários por trás do
“alarmismo ambiental”.
Na mesma linha, políticos e
influenciadores do espectro ideológico à
direita se utilizam dos mesmos argumentos
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
8
para refutar as mudanças climáticas.
Miguel faz uma análise da presença do
negacionismo climático no Brasil,
principalmente, no atual governo federal.
O autor busca a raiz das teorias
negacionistas brasileiras, sobretudo dos
discursos de ministros, do presidente e do
ideólogo de referência do governo, Olavo
de Carvalho.
Miguel relaciona os argumentos
utilizados por esses atores supracitados a
associação entre “aquecimento global e
conspiração marxista” (Miguel, 2019)
com a construção de uma narrativa por
think tanks ligados ao Partido Republicano
e a grupos da mídia estadunidense em
oposição ao discurso de preocupação com
as mudanças climáticas durante a década
de 1990. Tal narrativa defendia valores
considerados conservadores e,
supostamente, verdadeiramente
americanos: a defesa do livre mercado, o
combate ao comunismo e o direito de
opinião em assuntos públicos.
Uma das formas utilizadas por
negacionistas para validar o seu
posicionamento, ou deslegitimar o outro
ponto de vista, é colocar a discussão como
uma mera diferença de opinião. Como o
presidente Bolsonaro disse: “Nosso
governo dará prosseguimento ao diálogo
com diferentes interlocutores para desfazer
opiniões distorcidas sobre o Brasil e expor
as ações que temos tomado em favor da
floresta amazônica e do bem-estar das
populações indígenas” (Coletta, 2020).
Não é preciso agir para acabar com o
desmatamento, mas sim reverter as
“opiniões distorcidas” e apresentar o
cenário “verdadeiro”. Tal raciocínio nos
remete ao conto O segredo do Bonzo de
Machado de Assis. No conto é apresentada
a teoria do Bonzo Pomada:
se uma coisa pode existir na opinião,
sem existir na realidade, e existir na
realidade, sem existir na opinião, a
conclusão é que das duas existências
paralelas a única necessária é a da
opinião, não a da realidade, que é
apenas conveniente. (Assis, 1994, p.
3).
O Segredo do Bonzo
O conto O Segredo do Bonzo, de
Machado de Assis, embora publicado
originalmente em 1882, continua atual e
pode muito bem dialogar com os
negacionismos presentes na atualidade.
Isso ocorre tanto no próprio subtítulo do
conto, Capítulo inédito de Fernão Mendes
Pinto, quanto dentro da própria narrativa,
com a doutrina pomadista e seus
seguidores.
A referência do subtítulo a Fernão
Mendes Pinto e sua obra Peregrinação
v
demonstra que o conto tem um caráter
irônico, que o autor e sua obra
representam uma descrição fantástica e
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
9
inventada, mas que foram reconhecidas
durante muito tempo como verdadeiras.
Além dessa referência, outras que
indicam o caráter falso tanto do relato em
si quanto do que é relatado, como é o caso
da “teoria pomadista”, em que Pomada
(nome do Bonzo) pode significar, além do
preparado farmacêutico, fraude. Bonzo,
que faz referência ao monge budista,
também tem acepção pejorativa de
enganador (Almeida, 2020, p. 160;
Teixeira, 2007, p. 18; Losso, 2008, p. 6-
12).
O conto narrado por um ficcional
Fernão Mendes Pinto se passa na cidade de
Fuchéu, no reino de Bongo, localizado na
China. Em um passeio com o amigo
português Diogo Meireles, ambos avistam
um grupo de pessoas em torno de um
homem chamado Patimau. Este explicava
aos outros de forma contundente sua mais
nova descoberta, a origem dos grilos. Estes
animais “procediam do ar e das folhas de
coqueiro, na conjunção da lua nova”
(Assis, 1994, p. 1), segundo o orador.
Depois de encerrar seu discurso inflamado,
os ouvintes o saúdam e o carregam nos
ombros até um alpendre de um mercador.
Os amigos que observaram tudo
aquilo seguem seu caminho e se deparam
com mais um amontoado de pessoas a
escutar outro orador. Este outro chamado
Languru dizia ter descoberto o princípio da
vida futura, que estaria contido em uma
certa gota de sangue de vaca. Para o
espanto dos amigos portugueses, a situação
se assemelhava muito com a vista
anteriormente em tão pouco tempo e
espaço.
Ficamos sem saber nada daquilo,
porque nem nos parecia casual a
semelhança exata dos dois encontros,
nem racional ou crível a origem dos
grilos, dada por Patimau, ou o
princípio da vida futura, descoberto
por Languru. (Assis, 1994, p. 2).
Até que ambos encontram um
alparqueiro chamado Titané que lhes
explicou tais feitios, dizendo que podia ser
que ambos estavam cumprindo uma nova
doutrina que teria sido inventada por um
“Bonzo de muito saber” (Assis, 1994, p.
2). Com a curiosidade dos portugueses,
Titané acabou por ajudá-los a conhecer tal
Bonzo. Ao serem recebidos pelo sábio, o
mesmo foi logo explicando:
Haveis de entender, começou ele,
que a virtude e o saber têm duas
existências paralelas, uma no sujeito
que as possui, outra no espírito dos
que ouvem ou contemplam. Se
puserdes as mais sublimes virtudes e
os mais profundos conhecimentos em
um sujeito solitário, remoto de todo
contacto com outros homens, é como
se eles não existissem. (Assis, 1994,
p. 3).
O Bonzo explana um pouco como
chegou a tal doutrina salvadora que
Patimau e Languru estavam seguindo e sua
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
10
grande descoberta já anteriormente citada.
Neste momento o sábio revela que algo
“pode existir na opinião, sem existir na
realidade, e existir na realidade, sem existir
na opinião” (Assis, 1994, p. 3), e conclui
que a existência necessária é a da opinião,
já que a da realidade é apenas conveniente.
A seguir, depois de se despedirem do
sábio, os três visitantes combinaram de
praticar tal doutrina que julgavam ser “tão
judiciosa quão lucrativa” (Assis, 1994, p.
3). A experiência de Titané se deu a partir
da distribuição de um texto explicando
porque suas alparcas (tipo de calçado)
eram as melhores do mundo, fazendo com
que as vendas aumentassem
consideravelmente. Fernão não concorda
que Titané tenha cumprido de fato a
doutrina, que acreditava que o
alparqueiro estava inculcando uma opinião
que ele não tinha, e não a opinião de uma
qualidade que não possuía.
Fernão não se alonga em descrever
sua experiência, adiantando que a de
maior êxito fora a de Diogo Meireles.
Segundo o narrador, sua experiência
consistia em tocar charamela (instrumento
musical), mesmo sendo ele um tocador
mediano de tal instrumento, mas que com
um ar de desdém e alguns movimentos
diferentes de seus braços, conseguiu
exclamações de entusiasmo.
A exitosa experiência de Diogo
Meireles se deu a partir de uma doença
peculiar que ocorria na cidade e que
deixava os pacientes com um nariz tão
inchado que tomava mais da metade de
seus rostos. O tratamento para o incômodo
dos doentes era a retirada de seus narizes.
Diogo comunicou-lhes, então, que não era
preciso haver preocupação, pois
simplesmente ele poderia substituir o nariz
disforme por um nariz metafísico,
“inacessível aos sentidos humanos, e,
contudo, tão verdadeiro ou ainda mais do
que o cortado; cura esta praticada por ele
em várias partes, e muito aceita aos físicos
de Malabar” (Assis, 1994, p. 5).
O espanto da assembleia foi tanto
que até os filósofos que ali estavam,
sentindo-se envergonhados, acabaram por
dar razão a Diogo, declarando que havia
fundamento no que foi dito. Ao fim, os
enfermos “desnarigados” de Fuchéu, de tão
crédulos que estavam, acreditavam que
havia um nariz metafísico no lugar do
verdadeiro retirado e, como prova última
do sucesso da doutrina, continuavam a
carregar seus lenços de assoar.
É interessante pensarmos no
negacionismo ao lermos tal conto de
Machado de Assis, sobretudo sobre a
doutrina pomadista e de seus sectários.
Como é bem colocado pelo narrador se
contrapondo a Titané:
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
11
Não me parece, atalhei, que tenhais
cumprido a doutrina em seu rigor e
substância, pois não nos cabe
inculcar aos outros uma opinião que
não temos, e sim a opinião de uma
qualidade que não possuímos; este é,
ao certo, o essencial dela. (Assis,
1994, p. 4).
Os chamados negacionistas
independentes, cuja negação não é
acompanhada de ganhos pecuniários, não
estão interessados, aparentemente, em
emitir uma opinião que eles mesmos não
têm, mas em inculcar aos outros uma
opinião para que acreditem, como eles, em
algo que não existe na realidade. Trata-se,
portanto, não de uma opinião racional,
meditada, verificada ou lastreada pela
realidade, mas tão somente calcada na
crença:
E não percamos de vista o sentido
etimológico de crer, que tem sua
origem no grego dóxa e que pode ser
traduzido por opinião. Não se trata da
profundidade do sentimento religioso
de um crente, a qual é construída em
torno de um referencial divino, com a
ideia de sagrado, isto é, de uma
dimensão da realidade que foi
segregada e que pode ser, mediante a
crença, atingida. Trata-se desse
movimento mais geral e corriqueiro
de se ter opinião. (Almeida, 2020, p.
161).
Isso significa que a atitude mais
comum é a de crer no que se quer, no que
confirma as próprias opiniões de quem crê,
num circuito em que a crença retroalimenta
a opinião e esta àquela. É uma estratégia
também, consciente ou não, de se
desvencilhar do negativo, do que é
desagradável na realidade, apesar de ser
real.
Cabe ainda ponderar que, embora
não estejam sendo pagos para dizer algo
que não existe na realidade, os
negacionistas independentes podem ganhar
notoriedade e, consequentemente, gerar
receitas. Com a política de monetização do
YouTube, plataforma de divulgação e
compartilhamento de vídeos, é possível
aferir rendimentos se for computada uma
quantidade alta de visualizações de um
determinado vídeo
vi
. Ou seja, a
remuneração está vinculada ao número de
acessos de um vídeo. Quanto mais atrativo
for o vídeo, quanto mais veicular o que os
seus espectadores querem ouvir, maior sua
notoriedade, maior sua rentabilidade.
Assim, tanto a teoria pomadista
quanto o negacionismo não se reduzem a
uma questão de opinião e crença, mas
também de lucro: “verificaremos que a
opinião nunca aparece sozinha, mas vem
acompanhada de um lucro qualquer, que
pode ser financeiro ou pago com
‘consideração ou louvor’.” (Almeida,
2020, p. 161). A diferença é que nos dias
atuais a monetização da plataforma de
vídeos vinculou o lucro financeiro ao lucro
de “consideração e louvor”.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
12
Portanto, quem porta um
conhecimento, também porta uma
verdade e o poder sobre os que
partilham sua opinião e o reconhecem
como seu anunciador, pagando-lhe
tributos, seja em moeda ou em louvor.
É esse o mecanismo do espetáculo, o
uso da aparência, o poder da opinião.
Vale para o reconhecimento artístico,
filosófico, religioso, político…
(Almeida, 2020, p. 161).
Para melhor entendermos as relações
entre a doutrina pregada pelo Bonzo
Pomada e o discurso de negacionistas,
utilizaremos a ótica trazida pelo filósofo
Clément Rosset, a partir dos conceitos de
imaginário, real e ilusão. Assim, faremos
uma análise mais aprofundada do conto e
do negacionismo climático.
Imaginário, Real e Ilusão
A formulação acerca de real e
imaginário foi apresentada por diversos
teóricos e pensadores nas mais diversas
áreas do conhecimento, seja na filosofia,
na antropologia ou na psicanálise. No
entanto, não entraremos nesse debate entre
as diferentes concepções. Nos ateremos ao
olhar do filósofo Clément Rosset para
podermos analisar o conto de Machado de
Assis relacionando-o com o negacionismo
ambiental.
Sua teoria está ligada à perspectiva
trágica, portanto, não há a recusa do que
de negativo, de estranho, de problemático
na vida, uma vez que esses aspectos, por
mais indesejáveis que possam ser, fazem
parte da realidade. Ou seja, estamos
falando da aprovação incondicional da
vida, ato único “disponível ao homem,
que em relação à existência como um todo
(o real) nenhuma ação humana é capaz de
alterar suas condições existenciais.”
(Almeida, 2019, p. 16).
Entretanto, o que é o real? Como
entendê-lo ou defini-lo? O real pode ser
compreendido como o que é singular e
único, portanto, idiota: Idiôtès, idiota,
significa simples, particular, único,
existência desprovida de razão, o
incognoscível (Rosset, 2004, p. 42).
O real fala, mas não emite mais um
único som (mono thonos) e não
entrega mais que um único sentido ...
Um único sentido monótono: ter
sempre, necessariamente, um sentido
qualquer. O sentido não escapa nunca
à monotonia de ser qualquer,
necessariamente não necessário. As
mensagens procedentes do real,
portanto, são finalmente indiferentes
porque têm um mesmo conteúdo,
monótono e insignificante (Rosset,
2004, p. 29).
vii
O real, portanto, é sempre
insignificante (porque não é signo de
nada), inapreciável (sem valor intrínseco,
além do bem e do mal) e,
consequentemente, não interpretável, pois
não representação que possa apreendê-
lo. Desse modo, embora o real esteja
sempre presente, não nos é acessível
diretamente, necessitando de mediações
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
13
simbólicas para figurar em nosso
entendimento. Esses duplos do real,
justamente por serem duplos e não o real,
evidenciam a condição que define o real: o
real é sem duplo. Estamos, assim,
dependentes do imaginário para figurar o
real (o que existe), mas sabemos também,
como exposto pelo conto O Segredo do
Bonzo, que o imaginário inventa narizes
metafísicos, irrealidades que, ao sabor da
opinião, obnubilam a realidade.
A relação entre o real e o
imaginário é intrínseca e está em constante
diálogo, que um influencia o outro,
como postulado por Gilbert Durand na
definição de trajeto antropológico: “a
incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e
assimiladoras e as intimações objetivas que
emanam do meio cósmico e social”
(Durand, 1997, p. 41).
Deste modo, as imagens não são
impressas no sujeito de fora para dentro,
bem como também não se formam
internamente, sem contato com o mundo
objetivo, mas num circuito recursivo em
que as imagens do mundo objetivo
alimentam e são alimentadas pela
subjetividade e pelas intersubjetividades, o
que resulta em imaginários que tanto
reportam uma realidade concretamente
existente como projetam irrealidades,
ilusões, denegações da realidade, que é
substituída por um duplo, como o nariz
metafísico que substitui o extirpado.
O trajeto antropológico contribui,
portanto, para a compreensão de como o
imaginário opera a mediação do humano
com o real: “a apreensão imaginária do
mundo e sua consequente organização do
real ocorre por meio do trajeto
antropológico” (Ferreira-Santos &
Almeida, 2020, p. 81). Isso se , pois não
oposição entre objeto e sujeito, mas sim
uma troca incessante entre o objetivo e o
subjetivo, levando o sujeito a estar
carregado de experiências objetivas, assim
como a objetividade está tomada de
olhares subjetivos.
Para conseguirmos ter acesso ao real
e dar sentido a ele, recorremos ao
imaginário. Para tanto, acabamos por criar
duplos da realidade para auxiliar em sua
compreensão, como ocorre com as
formulações artísticas (pintura, fotografia,
cinema, literatura etc.) Ao mesmo tempo,
criarmos duplos para o real quando este
nos incomoda, nos é desagradável ou não
nos serve. Nesse sentido, o duplo criado
está no âmbito da ilusão. Desse modo,
criamos, ou entramos, em outro sistema
imaginário.
Na ilusão, quer dizer, na forma mais
corrente de afastamento do real, não
se observa uma recusa de percepção
propriamente dita. Nela, a coisa não é
negada: mas apenas deslocada,
colocada em outro lugar. Mas no que
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
14
concerne à aptidão para ver, o iludido
vê, à sua maneira, tão claro quanto
qualquer outro. (Rosset, 2008, p. 17).
Para Rosset, o que se opõe ao real
não é o imaginário, mas sim a ilusão, que
tem como característica a imprecisão. Não
somos capazes de definir de maneira exata
um objeto de desejo qualquer justamente
porque reside no desejo e não na realidade
tangível , mas, diferentemente da ilusão, a
imaginação é precisa e detalhista na
construção do imaginário, o que de certa
forma se confunde com o real. Nesse
sentido, a ilusão turva o real, torna-o
impreciso, portanto, se torna um
subterfúgio para quando o real não nos
agrada, para quando não queremos encará-
lo.
Da mesma forma, o real é
admitido sob certas condições e
apenas até certo ponto: se ele abusa e
mostra-se desagradável, a tolerância
é suspensa. Uma interrupção de
percepção coloca então a consciência
a salvo de qualquer espetáculo
indesejável. Quanto ao real, se ele
insiste e teima em ser percebido,
sempre poderá se mostrar em outro
lugar. (Rosset, 2008, p. 14).
O que temos presente é que o
pensamento de Rosset sob a ótica da
filosofia trágica discute e teoriza sobre
como nos portamos diante da
inevitabilidade imperiosa do real. Para que
possamos dar sentido a ele, que o
mesmo é idiota, insignificante e
desprovido de razão e sentido, recorremos
à imaginação.
No entanto, quando o real não está
dentro de nossas expectativas ou
necessidades, muitas vezes acabamos por
criar ilusões como forma de escaparmos ou
evitarmos a crueldade do real: “Essa
crueldade do real assenta-se não somente
na condição dolorosa e trágica da
realidade, mas também por seu caráter
único, irremediável e inapelável”
(Almeida, 2019, p. 26). Assim, o real se
torna embaçado e impreciso, e a indigesta
realidade deixa de estar aparente para nós.
Porém, mais cedo ou mais tarde, o
real sempre retorna, e assim, teremos de
encará-lo, pois ele nunca deixou de existir,
ele nunca deixou de estar presente, por
mais que não estivéssemos enxergando-o.
E com o seu retorno, o real requer novas e
mais adequadas elaborações imaginárias.
Retomando a questão inicial sobre
o negacionismo climático e relacionando-a
com a educação ambiental, o que se
evidencia é que não bastam estratégias que
informem sobre a gravidade da situação,
como se tratasse tão somente de falta de
informação, mas, sobretudo que se
desenvolvam estratégias que atuem na
elaboração de imaginários que deem conta
da realidade e de nossa implicação nos
processos ecossistêmicos.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
15
Não foi objetivo deste artigo
discutir essa educação ambiental, que
optamos por formular o que está na base
do negacionismo ambiental por meio de
uma abordagem filosófica, mas
acreditamos que essa problematização é
fundamental como pressuposto para a
discussão das estratégias que envolvem a
educação ambiental.
Como aponta Pedro Jacobi (2005,
p. 244), há dois grandes eixos que orientam
os discursos da educação ambiental: um
conservador e outro emancipatório. O
primeiro pauta-se por uma visão reformista
e propõe respostas instrumentais, por meio
de ações pontuais, descontextualizadas e
que não questionam o padrão civilizatório.
O segundo, emancipatório, propõe práticas,
orientações e conteúdos numa vertente
crítica, que requer uma compreensão
complexa e a politização da problemática
ambiental.
O que buscamos apontar, com os
aportes filosóficos desenvolvidos neste
artigo e a contribuição do imaginário do
conto de Machado de Assis, é que parte
desses discursos conservadores, que
tratavam a questão de maneira simplista e
reducionista, migrou para um discurso
mais problemático, de negação da crise
ambiental e climática, negando-a
completamente ou minimizando sua
gravidade, optando pela ilusão de que não
está acontecendo, ou não está acontecendo
ainda. A opção pelo discurso e pela prática
emancipatória da educação ambiental terá
de confrontar essas estratégias
negacionistas para, efetivamente,
contribuir para que a realidade seja não
apenas enxergada, como também admitida.
É a aposta que faz Edgar Morin em
seu livro sobre a pandemia de coronavírus,
no qual relembra que há meio século se
dedica à causa ambiental, cuja crise é
causada, em suas palavras, pela fúria
tecno-econômica global e sua sede
insaciável de lucro. Em sua perspectiva, a
crise da pandemia está mais uma vez
alimentando a consciência ecológica e
mobilizando os jovens. Resta saber se será
suficiente para uma transformação no
nosso modo de vida ou teremos de chegar
efetivamente à beira do abismo, quando
talvez seja tarde demais para mudar
(Morin, 2020, p. 11).
Considerações finais
O conto de Machado de Assis, O
Segredo do Bonzo, nos trouxe elementos
que relacionamos com a perspectiva da
filosofia trágica de Clément Rosset e suas
elucubrações acerca do real e da ilusão. A
máxima colocada pelo Bonzo Pomada de
que há duas existências, uma na realidade e
outra na opinião, e que a que importa é a
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
16
da opinião, nos faz refletir sobre o
imaginário e o real.
O real não é necessário, mas o
imaginário sim. Ou seja, a existência
real não precisa ser compreendida,
não precisa de nós, de nosso saber, de
nossa ciência, de nossa crença. Ela
existe. Mas a existência imaginada,
que existe na opinião mas não na
realidade e que portanto pode
existir na opinião, essa é necessária
para nós, pois nos define, define
nossas convenções e, sobretudo,
nossas crenças. (Almeida, 2020, p.
160).
Assim, o imaginário, ao operar uma
mediação da subjetividade com o real,
torna-se fundamental para sua
compreensão, pois é o imaginário que
simboliza, que significa, que atribui
sentido ao real, inclusive elaborando
possibilidades do real que posteriormente
poderão se tornar realidade. Entretanto,
esse mesmo imaginário pode também
elaborar irrealidades, interpor duplos que
turvam a percepção do que é real.
Com base nessa leitura e do
entendimento que o real é incognoscível e
desprovido de razão, é possível ler de outra
forma o que o Bonzo Pomada propõe. Pois
a existência real é apenas conveniente e a
existência na opinião, a existência
simbólica e imaginada é a necessária para
nós, pois através dela podemos entender a
realidade e atuar sobre ela.
Ao mesmo tempo em que se
relaciona com o imaginário, os dizeres do
Bonzo também podem estar atrelados à
ilusão, até porque o ilusório não deixa de
estar no campo do imaginário. A ilusão é
conveniente para quem quer denegar a
realidade, para quem o real é desagradável
e necessita crer em um duplo. Além disso,
os seguidores do Bonzo acabaram por ir à
direção da ilusão, ao inventarem teorias
para a origem dos grilos, o princípio da
vida futura e de um nariz metafísico.
Se nos atermos na execução da teoria
pomadista mais prodígia, a realizada por
Diogo Meireles, é possível observar a
relação entre o real e o ilusório. A partir do
momento em que seus pacientes saíam
satisfeitos, acreditando que estavam com
um nariz metafísico, o real (a ausência do
nariz) era contornado através de uma
ilusão (o nariz metafísico).
Portanto, a ausência do nariz, o real
se apresentando como desagradável aos
enfermos os fez acreditar ainda mais na
absurda teoria do nariz metafísico, solução
ilusória aparentando ser um duplo da
realidade.
Ao mesmo tempo podemos
relacionar o ilusório com o negacionismo
climático. Esta relação ocorre, pois não
queremos enxergar essa realidade cruel que
nos espera, seja por não querermos (ou não
podermos) abrir mão do nosso padrão de
consumo e cotidiano, seja por não
querermos encarar a inevitabilidade da
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
17
morte (ou a inevitabilidade do fim da
espécie humana
viii
).
A constituição de teorias que
negam as mudanças climáticas
antropogênicas também acaba por passar
pela ideia apresentada pelo Bonzo Pomada,
que a existência da realidade, as
mudanças climáticas provenientes da
atividade humana, é apenas conveniente e
não necessária. Assim, é preciso negar o
real, para que possamos manter o status
quo e não ter que refletir e alterar
efetivamente nosso modo de vida.
Tanto a comprovação quanto a
negação das alterações no clima causadas
pela atividade humana passam pelo
imaginário, que tais mudanças são
consideradas um hiperobjetos pela
dificuldade de se enxergá-las.
O real só é percebido por meio de
seus imaginários, embora possa haver
imaginários que busquem denegar o
real por meio da crença em um
duplo, enquanto outros se valem do
duplo justamente para desfazê-lo,
para desconstruí-lo, para denunciá-lo
como duplo, aprovando o real.
(Almeida, 2019, p. 23).
Assim, o conto de Machado de Assis
abre caminho para discutirmos o
negacionismo ambiental a partir dos
conceitos de imaginário, real e duplo.
Podemos enxergar aspectos das teorias
negacionistas no conto O segredo do
Bonzo e assim melhor compreendê-las,
apoiado na filosofia trágica de Clément
Rosset, sobretudo dos conceitos acima
citados.
Refletindo sobre as questões
anteriormente apresentadas na introdução
deste trabalho, podemos levantar suspeitas
de caminhos a serem seguidos para
respondê-las.
O negacionismo climático pode ter
relação com a denegação da inevitabilidade
da morte (ou do fim da espécie humana),
pensando a partir da criação de ilusões para
negar a crueldade do real. Do mesmo
modo que os “desnarigados” preferiram
acreditar que possuíam um nariz metafísico
para não ter que encarar que não tinham
mais narizes.
Bem como o negacionismo mais
brando colocado por Danowski como
uma negação parcial das problemáticas
ambientais pode estar ligado ao fato de
não querer enxergar as mudanças
necessárias em nosso modo de vida que
serão custosas.
Em ambos os casos nos refugiamos
em uma ilusão que deturpa, que embaça a
visão perante o real, mas em algum
momento este emergirá e nos obrigará a
encará-lo com novas elaborações
simbólicas mais adequadas.
Dessa forma, se a educação
ambiental almejar efetivamente mudar o
pensamento e a atitude das gerações atuais
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
18
e futuras, tendo por objetivo preservar a
espécie humana de situações que possam
vir a gerar sua extinção, terá de equacionar
as estratégias ilusórias dos negacionistas,
as quais não podem ser combatidas com
meras informações. O trabalho a ser feito é
o de desfazer crenças, desconstruir duplos,
investir num imaginário que nos ajude a
compreender a realidade e não a denegar.
Referências
Almeida, R. (2019). O pensamento trágico
de Clément Rosset. Revista Trágica:
Estudos de Filosofia da Imanência, 12(1),
11-37.
https://doi.org/10.11606/9786550130121
Almeida, R. (2020). O imaginário trágico
de Machado de Assis: elementos para uma
pedagogia da escolha. 2 ed. São Paulo:
FEUSP.
Assis, M. (2021). O segredo do Bonzo. In
___. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. v. II. Texto proveniente de
A Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro. Recuperado de:
http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso
em 19 março de 2021.
Coletta, R. D. (2020). Brasil atua para
‘desfazer opiniões distorcidas’ sobre
preservação ambiental, diz Bolsonaro.
Folha de São Paulo. 2 jul. 2020.
Recuperado de:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/202
0/07/brasil-atua-para-desfazer-opinioes-
distorcidas-sobre-preservacao-ambiental-
diz-bolsonaro.shtml. Acesso em: 20 jul.
2020.
Cook, J. et al. (2020). O "Projeto
Consenso" do Skeptical Science em 2013.
Recuperado de:
https://www.skepticalscience.com/translati
on.php?a=17&l=10. Acesso em: 18 jul.
2020.
Cunha, D. (2013). As sutilezas metafísicas
do negacionismo ambiental - como a
esquerda tradicional adere à ideologia
negacionista. Revista Sinal de Menos, 9,
134-154.
Danowski, D. (2012). O hiper-realismo
das mudanças climáticas e as várias faces
do negacionismo. Revista Sopro 70
(Panfleto Político-Cultural): Cultura e
Barbárie, 2-11.
Danowski, D. (2018). Negacionismos. São
Paulo: n-1 edições.
Danowski, D., & Castro, V. (2014).
mundo por vir? Ensaio sobre os medos e
os fins. Florianópolis: Desterro: Cultura e
Barbárie; Instituto Socioambiental.
Durand, G. (1997). Estruturas
antropológicas do imaginário. São Paulo:
Martins Fontes.
Ferreira-Santos, M., & Almeida, R. (2020).
Aproximações ao imaginário: bússola de
investigação poética. 2 ed. São Paulo:
FEUSP.
https://doi.org/10.11606/9786550130114
Jacobi, P. R. (2005). Educação Ambiental:
o desafio da construção de um pensamento
crítico, complexo e reflexivo. Educação e
Pesquisa, 31(2), 233-250.
https://doi.org/10.1590/S1517-
97022005000200007
Losso, E. G. B. (2008). Nariz metafísico
em O segredo do Bonzo. In Secchin, A. C.,
Assis, J. M., Bastos, D., & Jobim, J. L.
(Orgs.). Machado de Assis: novas
perspectivas sobre a obra e o autor, no
centenário de sua morte (pp. 114-129). Rio
de Janeiro: Editora da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
19
Miguel, J. C. H. (2019). Negacionismo
climático no Brasil. Revista Coletiva,
Fundação Joaquim Nabuco.
Mercado da Dúvida, O. (2014). Direção de
Robert Kennel. Los Angeles: Participant. 1
DVD (96 min.).
Morin, E. (2020). Changeons de voie: les
leçons du coronavirus. Paris: Denoël.
Onça, D. (2020). “Quando o sol brilha,
eles fogem para a sombra…”: a ideologia
do aquecimento global (Tese de
Doutorado). Universidade de São Paulo,
São Paulo. Recuperado de:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/
8/8135/tde-01062011-104754/pt-br.php.
Acesso em: 22 de jul. 2020.
Oreskes, N., & Conway, E. (2010).
Merchants of Doubt: How a Handful of
Scientists Obscured the Truth on Issues
From Tobacco Smoke to Global Warming.
New York: Bloomsbury Publishing.
Pereira, A. P. V., Martins, D. G., Pereira,
L. P., & Sampaio, S. M. V. (2019). Ficções
no Antropoceno: sonhos (de)compostos em
cartas do fim do mundo. ClimaCom -
Povos Ouvir - A coragem da vergonha
[online], 16.
Rebelo, A. (2010). Parecer do relator
deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) ao
Projeto de Lei n° 1876/99 e apensados.
Recuperado de:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWe
b/prop_mostrarintegra;jsessionid=C3DCD
B9F926D1B80BCEB1E217E73FF5E.prop
osicoesWebExterno2?codteor=777725&fil
ename=Tramitacao-PL+1876/1999.
Acesso em: 24 de jul. 2020.
Rosset, C. (2004). Le Réel: traité de
l’idiotie. Paris: Les Éditions de Minuit.
Rosset, C. (2008). O real e seu duplo:
ensaio sobre a ilusão. 2 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio.
Teixeira, M. V. (2008). Uma leitura de
Papéis avulsos de Machado de Assis.
Revista de Literatura, 07-32.
i
Ver em Cook et al em
https://www.skepticalscience.com/translation.php?a
=17&l=10, acessado em 19 de maio de 2021.
ii
Ver em Oreskes, N., & Conway, E. (2010).
Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists
Obscured the Truth on Issues From Tobacco Smoke
to Global Warming. New York: Bloomsbury
Publishing; e em Mercado da Dúvida, O. (2014).
Direção de Robert Kennel. Los Angeles:
Participant. 1 DVD (96 min.).
iii
Ver em Onça, D. (2020). “Quando o sol brilha,
eles fogem para a sombra…”: a ideologia do
aquecimento global (Tese de Doutorado).
Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado
de:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/t
de-01062011-104754/pt-br.php. Acesso em: 22 de
jul. 2020.
iv
Ver em Rebelo, A. (2010). Parecer do relator
deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) ao Projeto de
Lei n° 1876/99 e apensados. Recuperado de:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
mostrarintegra;jsessionid=C3DCDB9F926D1B80B
CEB1E217E73FF5E.proposicoesWebExterno2?cod
teor=777725&filename=Tramitacao-
PL+1876/1999. Acesso em: 24 de jul. 2020.
v
“Na ‘Nota C’, que Machado escreve para Papéis
avulsos, lemos que o início de O segredo do
bonzo’ situa o novo capítulo entre os de número
CCXIII e CCXIV” (Teixeira, 2007).
vi
Cf.
https://support.google.com/youtube/answer/131139
2?hl=pt-BR, acessado em 26 de julho de 2020.
vii
Traduzido do original em francês por nós.
viii
Pereira, A. P. V., Martins, D. G., Pereira, L. P.,
& Sampaio, S. M. V. (2019). Ficções no
Antropoceno: sonhos (de)compostos em cartas do
fim do mundo. ClimaCom - Povos Ouvir - A
coragem da vergonha [online], 16. Ou então em
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário, real e ilusão em Clément Rosset...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12349
10.20873/uft.rbec.e12349
2021
ISSN: 2525-4863
20
Danowski, D., & Castro, V. (2014). mundo por
vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis:
Desterro: Cultura e Barbárie; Instituto
Socioambiental.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 01/06/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021
Received on June 01st, 2021
Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
CNPq.
Funding
CNPq.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Almeida, R., & Micca, C. C. (2021). Negacionismo
ambiental em O segredo do Bonzo a partir das leituras de
imaginário, real e ilusão em Clément Rosset. Rev. Bras.
Educ. Camp., 6, e12349.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12349
ABNT
ALMEIDA, R.; MICCA, C. C. Negacionismo ambiental em
O segredo do Bonzo a partir das leituras de imaginário,
real e ilusão em Clément Rosset. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 6, e12349, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12349