Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12368
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12368
10.20873/uft.rbec.e12368
2021
ISSN: 2525-4863
1
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Práticas artísticas no campo: A luta como categoria
pedagógica para a transformação social
Cristiene Adriana da Silva Carvalho
1
, Maria Isabel Antunes-Rocha
2
1, 2
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Faculdade de Educação- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do
Campo- NEPCampo e Grupo de Estudos e Pesquisas em Representações Sociais - GERES. Avenida Antônio Carlos, 6627,
Campus Pampulha. Belo Horizonte - MG. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: cristienecarvalho@gmail.com
RESUMO. Este texto analisa as práticas artísticas na escola do
campo, considerando a presença da luta e transformação social
como categoria na prática pedagógica. Tomou-se como base
uma pesquisa que analisou os movimentos de reelaboração das
Representações Sociais dos professores do campo, egressos do
curso de Licenciatura em Educação do Campo da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Para tal,
consideramos que as práticas artísticas podem ser entendidas
como formas de criação, fruição e reflexão da Arte, elementos
que agregam os processos educativos, a historicidade e a
resistência presentes no movimento de luta pela Educação do
Campo. Tivemos como abordagens metodológicas entrevistas
narrativas e observação de práticas pedagógicas, fatores que nos
permitiram compreender a presença de elementos pedagógicos
de luta em práticas docentes que carregavam a intencionalidade
da educação transformadora.
Palavras-chave: práticas artísticas, Educação do Campo,
práticas pedagógicas.
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Artistic Practices in the countryside: Struggle as
Pedagogical Category for Social Transformation
ABSTRACT. This text analyzes the artistic practices in the
rural school, considering the presence of struggle and social
transformation as a category in the pedagogical approach. We
took as a basis a work that analyzed the movements of re-
elaboration of the Social Representations of rural teachers,
graduated of the Degree course in Rural Education of the
Faculty of Education of the Federal University of Minas Gerais.
To this end, we consider that artistic practices can be understood
as forms of creation, fruition, and reflection of Art, elements that
add the educational processes to the historicity and resistance
present of the Movement of the struggle for Rural Education.
We had a methodological approach to narrative interviews and
observation of pedagogical practices. These elements allowed us
to understand the pedagogical aspects of the struggle in teaching
practices that carried the intentionality of transformative
education.
Keywords: artistic practices, rural education, pedagogical
practices.
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Prácticas artísticas en el campo: la lucha como categoría
pedagógica para la transformación social
RESUMEN. Este texto analiza las prácticas artísticas en la
escuela del campo considerando la presencia de la lucha y la
transformación social como una categoría en la práctica
pedagógica. Tomamos como base una investigación que analizó
los movimientos de reelaboración de las Representaciones
Sociales de los profesores en el campo, graduados del Curso de
Grado en Educación de Campo de la Facultad de Educación de
la Universidad Federal de Minas Gerais. Consideramos que las
prácticas artísticas pueden ser entendidas como formas de
creación, fructificación y reflexión del Arte, elementos que
suman los procesos educativos a la historicidad y resistencia
presentes del Movimiento de lucha por la Educación de Campo.
El enfoque metodológico utilizó entrevistas narrativas y
observación de prácticas pedagógicas, elementos que nos
permitieron comprender la presencia de elementos pedagógicos
de lucha en las prácticas de enseñanza que llevaron la
intencionalidad de la educación transformadora.
Palabras clave: prácticas artísticas, educación de campo,
prácticas pedagógicas.
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Introdução
O entendimento das práticas
artísticas na sociedade nos desafia a
ampliarmos o olhar para as formas de
concepção, compreensão e fruição da arte,
a fim de que seja representada a
complexidade cultural e social de cada
tempo. Essa concepção, definida por
Barbosa (2008), é um convite para
pensarmos nas manifestações artísticas a
partir dos valores, crenças e
tensionamentos presentes em seu
significado social. Para a autora, os estudos
que propõem compreender as práticas
artísticas nesta dimensão mais ampla
abarcam as mudanças na concepção e
fruição da arte, podendo construir
sustentações epistemológicas para a
compreensão histórica, cultural e social da
arte.
Ao realizarmos uma
contextualização histórica a respeito da
presença da arte nas práticas sociais, Bosi
(1986) nos auxilia a perceber as mudanças
presentes nas obras de arte e as relações
destas com as produções sociais de cada
época. Pode-se perceber, assim, a
emergência de tensionamentos, entendidos
como elementos-chave da análise dos
diversos sentidos presentes nas
manifestações artísticas. Ao notarmos a
complementaridade presente em
representações que articulavam cnica,
estilização, conhecimento e expressão da
identidade do artista, colocamo-nos diante
do tensionamento das manifestações
engajadas politicamente com aquelas que
buscavam a neutralidade, entendendo que
tais características caminhavam em uma
dimensão dicotômica oposta à
complementaridade técnica/conhecimento
e expressão.
As reflexões elaboradas neste artigo
fazem parte de um leque analítico
construído por Carvalho (2017,2018), em
uma pesquisa que buscou analisar as
Representações Sociais das práticas
artísticas de professores do Campo
egressos do curso de Licenciatura em
Educação do Campo (LECampo) da
Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Nesta
referida pesquisa, pudemos perceber que
os egressos da LECampo se viam diante do
desafio de se apropriar de práticas
artísticas e convertê-las em mecanismos de
luta pela transformação da escola do
campo. Nesse contexto de tensões,
analisamos o processo de construção das
Representações Sociais dos professores do
campo sobre as práticas artísticas e
pedagógicas desenvolvidas por eles
enquanto docentes, verificando a presença
de elementos identitários e de Luta pela
transformação do Campo em diálogo com
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os conteúdos apreendidos durante a
formação na LECampo.
Para o desenvolvimento de nosso
estudo, interessou-nos analisar as práticas
artísticas em uso, tendo como recorte
aprofundado uma professora do campo
apresentada aqui sob o pseudônimo de
Camila , a fim de percebermos as
principais manifestações de transformação
social e sentido de luta em suas práticas.
Ao pensarmos nas práticas artísticas
construídas pelos sujeitos do campo,
buscamos em Bogo (2010) a sua
compreensão delas como elementos que
carregam as características de identidade
com o território campesino, a militância
pela busca de direitos e a resistência diante
dos tensionamentos da constante ameaça
de silenciamento dos sujeitos do Campo e
do apagamento de sua cultura.
Partimos da hipótese de que as
práticas artísticas dos professores do
campo são marcadas pela tentativa de
estabelecer diálogo entre o conteúdo
acadêmico de sua formação e a afirmação
de sua identidade campesina, incorporando
ainda os elementos de reflexão, fruição e
construção artística. Dessa forma, a arte
construída junto aos alunos nas salas de
aulas (e parte das suas interações sociais)
eram o texto e o subtexto em meio às suas
intencionalidades de luta pelos direitos à
escola do campo e a terra. Tal luta
revelava-se como um conteúdo
esperançoso de transformação da
sociedade.
Referencial metodológico
Para operacionalizar a pesquisa
descrita neste artigo, coletamos nossos
dados a partir dos seguintes
procedimentos: entrevista narrativa e
observação da prática pedagógica. É válido
destacar aqui o nosso entendimento de que
tais procedimentos são complementares,
uma vez que o ato de narrar a experiência
docente com as práticas artísticas permitiu-
nos a percepção das dimensões do pensar e
sentir. a observação de uma prática
docente entendida como instrumento de
pesquisa permite a construção de dados
que contemplem saberes, atitudes e
sentimentos referentes à dimensão do agir.
Ademais, ressaltamos nossa opção
por utilizar a entrevista narrativa enquanto
procedimento de coleta de dados tomando
como referência teórica Jovchelovitch e
Bauer (2013), que a consideram um
método de pesquisa qualitativa que permite
a compreensão aprofundada das
informações: Ela é considerada uma
forma de entrevista o estruturada, de
profundidade, com características
específicas. Conceitualmente, a ideia da
entrevista narrativa é motivada por uma
crítica do esquema de pergunta-resposta da
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maioria das entrevistas” (Jovchelovitch &
Bauer, 2013, p. 95). Essa compreensão
torna-se possível, pois a narração permite a
compreensão das ações, a partir dos
contextos temporais, espaciais e
motivacionais do ponto de vista dos
sujeitos que a vivenciaram.
-se, desse modo, que a entrevista
narrativa possibilita uma variedade
temática que foge da estruturação mantida
e construída pelo entrevistador, podendo
ser uma fonte mais autêntica de dados. Na
referida pesquisa, a narrativa central foi
construída em torno do seguinte tópico
inicial: “Conte-me sobre as suas práticas
artístico-pedagógicas desde os primeiros
contatos até os dias de hoje. Fique à
vontade para detalhar e narrar os
acontecimentos que detalham sua
experiência, seja enquanto artista, fruidor
ou professor, enfatizando também a
trajetória após sua formação no curso de
Licenciatura em Educação do Campo”. Tal
questionamento permitiu a informação
sobre a formação dos sujeitos e a inserção
um ano na carreira docente, bem como
os significados atribuídos às práticas
artísticas nas práticas pedagógicas da
Escola do Campo.
No que se refere ao formato
metodológico da observação da realidade,
recorremos a Lakatos e Marconi (2010)
para desenharmos o contorno de nossa
coleta de dados. Para os autores, a
profundidade das informações coletadas
define a validade da observação enquanto
procedimento científico. Sendo assim, foi
preciso reunir fontes de informação de
característica múltipla, para nos
desvelarmos de preconceitos e
organizarmos os registros em diários e
fotografias, a fim de resgatar e sistematizar
a realidade observada. Tal organização
exigiu o acompanhamento das atividades
docentes, bem como as atividades sociais,
culturais e familiares, elementos que nos
ajudaram a contextualizar a realidade da
Educação do Campo.
Também nos apoiamos em Lakatos e
Marconi (2010) para construirmos o
formato da observação a ser realizada.
Sendo assim, nossa observação foi
denominada como assistemática, uma vez
que, embora possuíssemos clareza das
variáveis a serem observadas, a definição
do controle e da estrutura do tipo da aula e
das interações sociais desenvolvidas era
construída pelos sujeitos observados.
Além disso, o processo de tratamento
de dados referenciou-se na análise de
trajetória, buscando um diálogo com os
trabalhos de Amorim-Silva (2016), Ribeiro
(2016) e Benfica (2017), construídos no
âmbito do GERES Grupo de Estudos e
Pesquisas em Representações Sociais. Tais
trabalhos nos dão pistas para a forma de
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organização do histórico do sujeito e dos
desafios enfrentados em sua formação e
seu trabalho, permitindo-nos compreender
o perfil dos sujeitos, bem como a
contextualização de seu lugar social,
econômico, político e cultural.
Durante a análise de trajetória,
buscamos considerar fatores como
histórico familiar e relação com o campo,
experiências e informações sobre práticas
artísticas na infância e juventude, ingresso
no curso de Licenciatura em Educação do
Campo e inserção na docência, a partir da
caracterização das experiências artísticas e
pedagógicas.
Tal análise de trajetória fez emergir
sete categorias de conteúdo presentes nas
Representações Sociais em Movimento: (I)
práticas pedagógicas; (II) práticas
artísticas; (III) formação; (IV) Educação do
Campo; (V) mística; (VI) Educação
transformadora; (VII) Materialismo
histórico dialético. Para fins de recorte,
neste artigo trouxemos como ênfase as
categorias práticas pedagógicas, práticas
artísticas, educação do Campo e educação
transformadora.
Por uma educação transformadora
Para ancorarmos nossas reflexões
sobre a concepção de transformação na
educação, utilizamos a obra de Freire
(1992, 1996, 2000), destacando a
possibilidade de construir um projeto
socioeducativo e crítico em prol da
superação das condições de opressão. Para
isso, a utilização dos conceitos indignação
e esperança nos possibilitou sensibilizar
para a presença de um diálogo entre a
epistemologia teórica e a humanização do
sujeito.
A indignação é um sentimento
recorrente em diversos escritos de Freire,
que propõe a não acomodação diante de
situações de opressão. Sua presença é
trazida nas obras como um sentimento
necessário para a construção de reflexões
sobre a educação, em uma perspectiva
diretamente vinculada à sociedade: “A
leitura crítica do mundo é um que-fazer
pedagógico-político indicotomizável do
que-fazer-político-pedagógico, isto é, da
ação política que envolve a organização
dos grupos e das classes populares para
intervir na reinvenção da sociedade”
(Freire, 2000, p. 21). Assim, ao
analisarmos as práticas artísticas dos
professores do campo, consideramos a
educação como um processo de
transformação da sociedade.
Percebemos que a indignação, nos
estudos de Freire, é dotada de uma postura
de engajamento na luta pelo
reconhecimento da historicidade como
forma de combate às formas de opressão
presentes nos discursos imobilizadores. Ao
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pensarmos no contexto de luta pela
Educação do Campo, tal perspectiva
indignante é um convite para pensarmos no
professor do Campo como um educador
progressista, que busca estimular o aluno a
se indignar e criticar o contexto no qual
está envolvido: “O educador, visto nessa
perspectiva, deve se envolver, para que sua
prática pedagógica tenha “capacidade de
intervenção no mundo, jamais seu
contrário” (Freire, 2000, p. 28).
A indignação nos apresenta a
possibilidade de mudança diante das
situações em que o Inédito Viável se
apresenta, conceito que aparece na obra de
Freire como uma palavra-ação de ordem
afetiva, cognitiva e política, presente em
situações-limite da vida pessoal e social
em que se é possível perceber os
obstáculos e opressões; e a partir dessa
consciência, criam-se possibilidades de
romper e superar estas circunstâncias. Para
ativar a consciência da necessidade de
transpor tais situações, a indignação é o
motor de ação: “A raiva necessária,
profunda e intensa para perceber, constatar
e lutar por inéditos viáveis como dar voz
ao povo, conscientizá-los de que todos e
todas são sujeitos da história e não apenas
objetos dela” (Freire, 2010, p. 223). Tal
palavra nos remete ao processo de luta dos
Movimentos Sociais pelo acesso a terra:
diante da situação de exclusão e não acesso
à terra, em contraposição aos grandes
latifúndios improdutivos, a ocupação de
terras e a construção de um espaço de
sobrevivência, trabalho, educação e
direitos é o Inédito Viável, encontrado para
se lutar pelos direitos de viver e produzir
no Campo.
Em complementaridade, a esperança
é, para Freire, uma forma de considerar as
possibilidades de modificação da
sociedade e da educação, a partir de um
cenário que abandona a ingenuidade da
neutralidade e assume o posicionamento de
qual sonho está sendo gestado para os
sujeitos. É válido ressaltar aqui que embora
o conceito de esperança esteja presente em
toda a obra de Paulo Freire, é no livro
Pedagogia da Esperança: Um reencontro
com a Pedagogia do Oprimido que essa
temática é abordada com maior
profundidade.
Freire (2000) nos permite, entre
outras reflexões, a apreensão da esperança
enquanto um conceito dentro e fora da
escola, associando-o às lutas dos
camponeses, de estudantes universitários e
das práticas pedagógicas. Ao falar da ação
docente, é destacada a necessidade de
construção de práticas esperançosas em
uma perspectiva libertadora, que provoque
a construção de conhecimento sobre as
emoções, limites e atitudes do sujeito.
Nessa perspectiva, a prática educativa
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esperançosa se pauta na “importância da
consciência na história, o sentido ético da
presença humana no mundo, a
compreensão da história como
possibilidade jamais como determinação, é
substantivamente esperançosa e, por isso
mesmo, provocadora da esperança”
(Freire, 2000, p. 26). A esperança compõe,
para Freire (2000), uma trama em que são
trançadas a experiência individual dos
sujeitos, a história e a prática educativa.
Notamos, assim, que a esperança
deve se fundamentar na prática, pois
assim ela deixará de ser uma esperança
ingênua e possibilitará mudanças nas
situações de opressão: “Prescindir da
esperança que se funda também na verdade
como na qualidade ética da luta é negar a
ela um dos seus suportes fundamentais. O
essencial é que ela, enquanto
necessidade ontológica, precisa ancorar-se
na prática” (Freire, 1992, p. 5).
A ausência de neutralidade na obra
de Freire marca os conceitos de indignação
e esperança e perpassa a função da escola
e a ação de posicionamento do educador. A
necessidade de pensarmos nesse
posicionamento a partir de uma postura
progressista reforça a impossibilidade de
desenvolvimento de uma prática educativa
neutra. Para Freire, “sentir e ter tido
compaixão pelos oprimidos e oprimidas
determinou sua luta destemida contra as
relações e as condições de opressão gerada
dentro dele pelo sentir profundo da
indignação-amor-esperança” (Freire, 2010,
p. 223). Tal colocação nos permite
perceber que tal referencial epistemológico
dialoga diretamente com a perspectiva de
Luta da Educação do Campo.
Práticas pedagógicas na Educação do
Campo
Nosso olhar sobre as práticas
artísticas advém da observação da prática
pedagógica construída nas escolas do
Campo. Ao pensarmos na prática
pedagógica do professor, devemos
considerar que esta supera a simples
adaptação de conteúdo ao território
campesino e passa a dialogar com o
contexto político, social e cultural do
Campo. Trata-se de uma prática que
“acumula saberes que vão além dos
conhecimentos formais. Esses saberes que
ele traz da vida camponesa, re-significados
na luta social, constituem o ingrediente
fundamental de produção do conhecimento
escolar” (Beltrame, 2008, p. 1).
Dessa forma, compreendendo que a
prática pedagógica na Escola do Campo
deve dialogar e acumular os saberes da
vida camponesa, partimos do entendimento
que o trabalho com as práticas artísticas
também incorpora conteúdos e
metodologias que se relacionam com a
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vida cultural, social e política rural. Nesse
sentido, o reconhecimento do modo de
pensar a vida no Campo sairá da simples
adaptação de conteúdos para se organizar
dentro da estrutura pedagógica formal,
favorecendo a construção de experiências
artísticas que permitam o diálogo com o
território. Cunha e Machado (2009) nos
dizem que essa prática deve acontecer
“tanto em espaços e tempos escolares
como nos espaços de socialização.
Florescem experiências e trocas que
ocorrem além dos muros desta escola, com
intencionalidades de aprendizagem”
(Cunha & Machado, 2009, p. 9628). Para
as autoras, possibilitar práticas
pedagógicas com tal característica é uma
ação possível para pensarmos em uma
educação emancipatória e relacionada aos
direitos e à materialidade do Campo.
Para analisarmos a construção de
uma escola campesina ancorada na
materialidade de direitos, Cunha e
Machado (2009) destacam a necessidade
de se construir as práticas pedagógicas a
partir de características relacionadas a um
projeto de Campo que supere os interesses
individuais e se organize em meio à
consciência coletiva, considerando em seu
cerne:
Coletividade, intencionalidade,
cooperação, pertencimento e
liberdade, indícios de uma prática
educativa construída a partir da
prática social maior, ou ainda, uma
prática educativa construída no
coletivo, trabalho este que evidencia
a necessidade constante da
construção teórica. Trata-se de um
processo que é prático teórico −
prático, que já tem frutos e indícios
de que o movimento práxico continua
(Cunha & Machado, 2009, pp. 9637-
9638).
Pensar no coletivo, na organização
da Escola do Campo, é um convite para
entendermos que as práticas pedagógicas
desenvolvidas por estes professores são
isentas de neutralidade política. Para
Beltrame (2008), tais práticas incluem na
escola a presença do projeto político em
construção e luta pelos Movimentos
Sociais.
A experiência pedagógica se
alimenta na prática política, num
processo coletivo de busca de
melhoria de vida no campo. As
relações que o Movimento constrói
com os docentes proporciona a estes
últimos um sentimento positivo em
relação a seu fazer, resgatando seu
papel social. Nas relações com o
mundo rural os professores
desenvolvem uma prática que se
em várias dimensões: produtiva,
política e educativa (Beltrame, 2008,
p. 3).
A construção sob a perspectiva do
movimento propõe a formação de práticas
que tenham como referência
epistemológica a pedagogia dos
Movimentos Sociais. É justamente com
essa compreensão que surge o termo
Pedagogia do Movimento, apresentado
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também na obra de Caldart (2003), como
referência ao movimento presente, no
processo de luta pela Educação do Campo:
Fomos aos poucos descobrindo que
não existe um modelo ou um tipo de
escola que seja próprio para um
grupo ou outro, ou que seja
revolucionário em si mesmo. Trata-se
é de alterar a postura dos educadores
e o jeito de ser da escola como um
todo; trata-se de cultivar uma
disposição e uma sensibilidade
pedagógica de entrar em movimento,
abrir-se ao movimento social e ao
movimento da história. Um mexe
com o outro, num movimento
pedagógico que mistura identidades,
sonhos, pedagogias... E isto pode
fazer muito bem a todos, inclusive
aos educadores e às educadoras que
assumem esta postura. E também à
escola, que ao se fechar e
burocratizar em uma estrutura e em
um jeito de ser, costuma levar os
educadores a esquecer, ou a ignorar,
que seu trabalho é, afinal, com seres
humanos, que merecem respeito,
cuidado, todos eles (Caldart, 2003,
pp. 63-64).
Com isso, percebemos que a
construção de práticas pedagógicas na
perspectiva do Movimento é um convite
para pensarmos no processo educativo e
nas possibilidades de sua transformação, a
partir das condições objetivas de cada
lugar, situação e momento histórico. Tais
elementos estiveram presentes na luta dos
Movimentos Sociais e, ao virem para a
escola, incorporam as práticas
construídas.
Uma trajetória de luta e transformação
Para nosso estudo, tomamos como
análise as práticas da Educadora Camila.
Mulher, trabalhadora, 35 anos, mãe de 2
filhos, Camila é residente no município de
Rubim em Minas Gerais, sendo a caçula do
total de três filhos de um casal de
trabalhadores rurais. A análise de sua
trajetória de vida nos base para entender
o contexto de escolarização e socialização
no território campesino. Sua mãe
trabalhava como dona de casa, tomando
conta dos filhos, da casa dos patrões e
auxiliando o marido na função de vaqueiro
de uma grande propriedade. O pai de
Camila começou a trabalhar nessa
propriedade ainda rapaz e continuou
por 40 anos, assumindo o trabalho de
vaqueiro em tempo integral, função que
também demandava o trabalho da esposa e
dos filhos no auxílio de serviços aos
patrões.
Ao falar sobre sua infância na casa
dos patrões dos pais, Camila destaca a
compreensão de que, embora morasse sob
o mesmo teto que eles, a marcação entre a
sua classe social e a dos seus empregadores
deixava claro o contexto de exploração
capitalista ao qual ela e sua família
estavam sujeitas.
Com seis anos de idade, Camila viu
na escola uma forma de ressignificar a sua
história e entregou-se a esta experiência
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com intensidade. Caminhava todos os dias
cerca de 12 km para chegar até a escola,
uma vez que não havia transporte escolar
que atendesse a fazenda onde seus pais
trabalhavam. Esse caminho era feito com
cuidado, para que seu uniforme de tergal
não sujasse e, em sua chegada à escola, ela
estivesse com asseio apresentável.
Aos dez anos de idade, Camila
mudou-se para a cidade para dar
continuidade aos estudos e enfrentou a
distância dos pais e irmãos com vistas a
seguir seu sonho de continuar estudando,
sendo necessário articular trabalho, estudo
e administração dos contratempos de estar
sozinha construindo seu destino.
Em visitas aos pais, nas férias
escolares, havia a mistura de sentimentos
em estar no lugar de sua infância. A
mudança de Camila para a cidade foi uma
opção feita por ela e pela família o que é
distante da realidade de diversas outras
famílias do Campo, que, diante da falta de
escolas próximas de casa, veem a
necessidade de abandono dos estudos. Tal
mudança, ocorrida nos anos 90, ocorreu no
momento em que os Movimentos Sociais
do Campo lutavam pelo direito à Escola no
Campo. A trajetória de Camila e sua
mudança para longe da família para
continuar os estudos no segundo ciclo do
Ensino Fundamental é a ilustração da
necessidade de luta pela abertura de
Escolas no Campo, tal como a garantia de
condições para que as crianças tenham
condições de permanecer, e não evadir.
Nesse período de escolarização,
Camila conta que seu contato com as
práticas artísticas foi o reduzido que o
considera quase como inexistente. Para ela,
embora a escola tenha a proporcionado o
contato com brincadeiras com os colegas e
o acesso a elementos da cultura popular,
faltaram-lhe práticas relacionadas à
música, dança, teatro e artes visuais que a
permitissem ter acesso a um conhecimento
artístico.
O período de formação no Ensino
Médio e Técnico foi marcado pelo início
de um relacionamento amoroso com uma
pessoa de outra classe social e a chegada
de um filho, que marcou para Camila a
importância do estudo, associado a um
trabalho e a um projeto de vida,
despertando o sonho de cursar uma
faculdade: “Sonhava em ter um curso
superior. Era um sonho bem distante, que
eu não tinha a condição de fazer. Foi aí que
eu comecei a trabalhar, surgiu a
informática em minha vida”. Segundo ela,
nessa época a cidade vizinha, Almenara, já
contava com instituições de Ensino
Superior, mas estas tinham mensalidades
caras, tornando o acesso quase impossível.
Neste momento, Camila concentrou-se em
seus conhecimentos de informática, que a
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abriram portas para trabalhar como auxiliar
administrativo/secretária escolar, na
Secretaria Municipal de Educação do
Município de Rubim.
O contato com o curso do LECampo
veio no ano de 2009, através de uma amiga
que trabalhava na Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural do Estado de
Minas Gerais (EMATER), que havia
recebido um e-mail da Federação dos
Trabalhadores da Agricultura do Estado de
Minas Gerais (FETAEMG), divulgando o
edital do LECampo. O interesse no curso
veio, principalmente, pelo fato de ele ser
desenvolvido em uma instituição pública e
ser, portanto, gratuito, além de possibilitar
a formação em alternância, que garantiria a
continuidade em seu trabalho e o
acompanhamento de seus filhos. Camila,
então, mobilizou-se para estudar para o
vestibular e fez a prova no município de
Araçuaí. Foi aprovada e iniciou, no ano de
2010, a formação no LECampo, na
habilitação em Língua Arte e Literatura.
E eu fui no LECampo. Não sabia
nem onde que eu estava indo…quer
dizer, eu sabia que estava indo para a
faculdade, mas eu não sabia mais
nada…eu nunca tinha ouvido falar
em movimento social, mística…eu
nem sabia para onde ia…eu nunca
tinha ouvido falar nada daquilo.
(Camila sobre sua inserção no
LECampo)
A formação de Camila no LECampo
foi marcada pela inserção no contexto de
luta pela Educação do Campo e seu
decorrente reconhecimento identitário
enquanto sujeito do Campo. Tal formação
também possibilitou o contato com as
práticas artísticas, uma vez que, no
momento da sua entrada no curso,
destacava que o estudo da área de Língua,
Arte e Literatura seria importante, posto
que, em sua escolarização, os
conhecimentos relacionados
principalmente à área de arte não faziam
parte de sua experiência escolar e social.
Portanto, a formação universitária foi
vista para Camila como uma forma de
acesso às informações que constroem o
conhecimento presente nas linguagens
artísticas. Este acesso se constituiu como a
oportunidade de ela conhecer os múltiplos
discursos artísticos e as formas de
expressão que nascem deles. Esse contato,
a partir do primeiro período, permitiu a
abertura para reflexões sobre a
subjetividade das práticas artísticas no
processo de produção, fruição e reflexão.
Tal reconhecimento a inspirou a
construir um projeto de estágio de artes a
partir da temática relacionada à
manifestação cultural Boi de Janeiro, no
município de Rubim. Tal tema, vinculado
diretamente à linguagem popular, vinha
com o objetivo de trazer para os alunos o
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reconhecimento de uma prática presente no
município, como uma ação de valor
artístico, cultural e histórico. Ela destacava
que cresceu alheia à compreensão de que
tais manifestações poderiam ser
consideradas como forma de cultura e
queria fazer um movimento diferente com
os alunos da escola onde estagiava, ao
tentar promover o reconhecimento e a
apropriação da cultura local.
Além de falar sobre o tema e
promover visitas ao ponto de cultura do
município, onde foi possível ver fotos e
ouvir integrantes dos grupos culturais,
Camila buscou recolher, junto aos alunos,
textos com reflexões sobre o que este
trabalho os possibilitou de aprendizado em
uma perspectiva artística: “Os meninos
fizeram um texto sobre como que eles
viam aquilo e se entendiam como arte, e
assim a ideia dos meninos...eles nunca
tinham parado para pensar naquilo, se
aquilo era arte” (Camila sobre trabalho
de avaliação do aprendizado dos alunos no
estágio). Tal trabalho foi importante para
que ela pudesse perceber as possibilidades
de mudanças de opinião, em relação a uma
temática que havia sido parte de seu
aprendizado na Licenciatura em Educação
do Campo.
Camila escolheu escrever seu
trabalho de Conclusão de Curso com uma
temática diferente de seu estágio. Ela veio
a trabalhar, então, com a temática “Práticas
de leitura literária no ano em escola da
cidade que recebe alunos do campo”,
entendendo a importância deste tema com
base em seu aprendizado na universidade e
também em sua experiência própria em seu
percurso escolar, que a mostrou que o
acesso à literatura na escola do Campo
precisava ser estudado e debatido.
No momento de realização da coleta
de dados, Camila era aluna regular do
programa de Mestrado em Educação do
Campo na Universidade Federal da Bahia
(UFBA): “O mestrado vem muito me
ajudar nisso, daí essa discussão, assim,
mais convicta. Eu dou conta de falar isso
em qualquer lugar, no sentido de ser uma
fala qualquer, eu consigo trazer teorias, eu
não estou falando isso do nada”. Cursar um
mestrado oferecido em alternância era,
para ela, uma forma de conciliar o trabalho
como professora de Artes, Literatura e
Língua Portuguesa em uma escola da rede
estadual de Minas Gerais. Além disso, a
formação continuada era uma oportunidade
de ela transformar sua práxis.
Luta como categoria pedagógica
A análise das práticas artísticas e
pedagógicas de Camila nos coloca diante
de intencionalidades educativas dotadas de
resistência e historicidade. Percebemos, em
suas mediações junto aos alunos do nono
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ano do ensino fundamental, a presença de
conteúdos, métodos e elaborações que
demarcam suas intencionalidades
educativas de resistência social, pelo ato
pedagógico que traz consigo a
historicidade de suas experiências
enquanto sujeito do Campo.
A minha prática é uma prática crítica
e transformadora. Para ser bem
franca, eu fico consternada e
indignada. Eu não consigo separar e
não consigo pensar de um outro lugar
que não seja de uma perspectiva de
prática crítica e transformadora.
Quando eu chego na sala de aula, eu
não consigo começar a trabalhar
qualquer atividade sem que eu
lembre todos os dias os meus alunos
qual é o lugar social que nós
ocupamos, que leitura de mundo que
nós temos que fazer e qual a
importância da educação e do
conhecimento para nos ajudar.
(Camila sobre sua
intencionalidade)
Camila demonstra em sua ação
docente a articulação com o lugar social de
seus alunos, entendendo-o como uma
possibilidade de transformação a partir de
uma perspectiva dialética e de resistência,
a fim de superar as dificuldades estruturais.
A historicidade aparece na prática
pedagógica de Camila como uma forma de
revisitar sua própria história, a história dos
sujeitos do Campo e possibilitar a
reconstrução das histórias de seus alunos.
Por exemplo, ao trabalhar elementos de
interpretação de textos com os alunos e
perceber que estes achavam os grandes
latifundiários pessoas mais qualificadas
que os trabalhadores do Campo, ela busca
construir reflexões ancoradas na
historicidade das distribuições e
concentrações de terra e da necessidade de
reforma agrária.
Ao contrário do que você acha, não
foi presente. As histórias da grande
concentração de terras do Brasil,
você sabe o que é o termo
“Grilagem”? Documentação de terra
forjada. muitos anos atrás, não é
da nossa época, é coisa de História,
gerou isso aqui, ó. E vocês sabem o
que o índice de analfabetismo, o
IDEB, a pobreza, o IDH é tão baixo
por causa desse tipo de coisa aqui, ó?
Que faz nós acharmos que normal
que um homem seja dono de tudo
aqui na região! Você anda
quilômetros para dentro das terras
dele. (Camila sobre historicidade e
concentração de terras)
Ao falar sobre a temática da reforma
agrária em uma aula de Literatura e Língua
Portuguesa, Camila se posiciona, trazendo
para sua ação docente a reflexão do
processo de construção de conhecimento
como prática social. A busca por práticas
pedagógicas dotadas de historicidade se faz
presente nos conteúdos trabalhados por ela,
com narrativas culturais e artísticas que
fazem parte do contexto do município,
criando, dessa forma, um diálogo entre
textos escritos em jornais da região,
poemas de autores do município e também
de autores consagrados, o que pode ser
percebido a partir dos trechos abaixo:
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Eu acho esse poema junino muito
interessante, porque traz as marcas da
nossa tradição. Ele fala, esse aqui,
Tuca de D. Cia. Quem aqui não
conhece? D. Maria de Seu Joaquim?
Joaquim de D. Maria. Isso é pico de
nossa cultura aqui do interior. Tratar,
referendar alguém pelo companheiro,
ou alguma referência desse tipo, um
pai ou um avô. (Camila sobre o
poema junino)
Esse texto é de um professor de
Jequitinhonha que escreve na coluna
de um jornal aqui do Vale. Ele fez
um texto falando que as festas
juninas do vale perderam a sua aura,
ou seja, aura é brilho, não é? As
festas juninas historicamente fazem
parte do calendário de manifestações
culturais do Vale do Jequitinhonha.
(Camila interpretando texto)
A chamada valorização da cultura
local como forma de fortalecimento da
historicidade do município é presente na
prática pedagógica e artística de Camila:
“São tradições importantes que a gente tem
que trazer viva para poder guardar as
características do nosso povo, a gente não
pode perder isso!”. Reconhecemos, no
entanto, que, para ela, essa ação não visa
apenas à conservação de um passado, mas
o reconhecimento deste na dinâmica das
transformações presentes.
Além de revisitar a historicidade
cultural do município, Camila, durante sua
prática pedagógica, relembra junto aos
seus alunos sua história de vida como
filha de vaqueiro, para fazer com que eles
reflitam sobre as contradições presentes no
latifúndio. Para além de um exemplo
meritocrático a ser copiado, ela apresenta
sua vivência como forma de trazê-los
exemplos concretos da superação de
situações de opressão, vivenciadas pelos
sujeitos do Campo: “Eu não tinha a escola,
eu era a filha do vaqueiro. E esse lugar do
latifúndio existe aqui em Rubim”.
Ao realizar uma atividade de
interpretação de texto, Camila verificou a
importância de contextualizar o latifúndio,
realidade presente no território de Rubim.
Assim, com o objetivo de despertar a
emancipação crítica dos seus alunos, ela
compartilha sua experiência pessoal,
propondo aos alunos que eles pensem nos
donos das grandes fazendas para além da
imagem de grandes heróis em oposição aos
trabalhadores, vistos como preguiçosos
e/ou com pouco potencial.
Em análise do movimento de diálogo
entre as práticas artísticas e pedagógicas
com o conhecimento da área de Língua
Portuguesa, percebemos que, para Camila,
esta é uma forma de promover a
construção do conhecimento em uma
perspectiva dialética o que para Bosi
(1986) permite que o sujeito compreenda a
forma e a força dos processos artísticos que
demarcam a identidade dos artistas e dos
fruidores de arte, considerando a totalidade
dos elementos que fazem parte da
construção deste processo artístico.
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Eu fico pensando se não fosse por
esse viés da arte e da literatura na
minha formação que atrelou a língua
no caso, eu não sei qual seria o outro
recorte que eu faria para trabalhar
dessa forma. Porque eu acho que
eu consigo trabalhar com esse viés,
com essa entrada. Porque eu faço
entrada pela arte ou pela literatura,
porque senão eu faria por onde?
Quando eu fui abordar os gêneros,
que eu tentei trazer as festas
populares, você vê que os meninos
são daqui e não conhecem a cultura
daqui, e eles estão no nono ano e
ninguém falou antes, ou falou de uma
forma que eles não entenderam.
Então, assim, se não fosse por esse
viés, se não fosse pela arte, ou pela
literatura, que estava atrelada à
linguagem, por onde que eu ia
conseguir essa entrada. (Camila
falando sobre trabalho com arte e
cultura)
A ação interdisciplinar de Camila
também nos propicia a inserção das
práticas artísticas como forma de
possibilitar que os alunos construam um
conhecimento histórico, indo ao encontro
da perspectiva de prática artística proposta
por Bosi (1986), na qual a prática artística
herda e dialoga com referências históricas
e culturais, que o criador artístico não
está “imune das interpretações que os
demais homens fazem sobre o universo e
sobre si mesmos” (Bosi, 1986, p. 42). Por
compreender a necessidade de criação e
reflexão de práticas artísticas que
conheçam as referências históricas do
município de Rubim, notamos que Camila
busca articular em suas aulas um
conhecimento histórico e cultural como
forma de trazer para a arte elementos da
memória cultural.
Nos trechos abaixo, destacamos
atividades observadas em várias aulas, nas
quais se pode notar que a temática das
festas populares da região foi abordada
com base na metodologia de trabalhos em
grupo, em que os alunos fizeram pesquisas,
entrevistas com os artistas e posteriormente
apresentaram o material para a turma:
Ela é uma festa que está no
calendário, tanto que nos centros
urbanos ela não tem a relevância que
tem para nós em Rubim, porque ela
está em nós. As comidas típicas, a
tradição da fogueira, os padres que
têm aquela tradição de pular a
fogueira e virar compadre, o jeito de
se vestir, as músicas. Assim, desde
que a gente compreende isso aqui,
que não tem aula no 23 e 24, que é
considerado o período junino, não é?
(Camila contando sobre as festas
juninas)
O que é que o grupo faz? Tem reza,
tem cantoria e tem toda uma
encenação e alegoria. A entrevistada
contou para vocês a tradição de ir ao
cemitério? Todo primeiro de janeiro,
eles iam até o cemitério e era do
cemitério que eles deveriam sair para
fazer as andanças pela cidade. É uma
festa por 6 dias consecutivos.
Antigamente eles andavam pela
fazenda, pela área rural, eles
passavam pelas escolas do campo.
Eles iam nas casas, eles passavam e
falavam que era o reisado com as
bandeiras. Aqui em Rubim, temos o
grupo Teto das Estrelas e o grupo
Coquis, eles têm como base as duas
famílias. (Camila sobre Folia de
Reis)
Ele é apaixonado com arte e com
cultura, não é? Ele tem músicas da
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autoria dele, tem poemas, peças de
teatro, livros... Ele é um educador,
mas, antes de tudo, ele é um músico
apaixonado com a arte. E fazer o que
ele se propõe que é organizar esse
evento FestPomar....que fala do
artesanato, da cultura, da música, de
Rubim, do Vale Jequitinhonha, mas
bem especial de Rubim...é muito
orgulho aqui para a gente. Se a gente
quiser, ele viria conversar com essa e
a outra turma...depois nós podemos
marcar para fazer no pátio, a gente
pode fazer a biografia da vida dele,
apresentar e ter ele como convidado
para a gente debater. Quem conhece
a luta dele para falar de cultura em
Rubim, numa cidade pequena com
tanta dificuldade! Teve uma época
que ele fazia isso com recurso
próprio. (Camila sobre o
idealizador da FestPomar)
Ao falar das festas populares, Camila
aborda o contexto social, político, artístico
e cultural do município de Rubim. Nesse
momento, o importante para ela era fazer
com que a pesquisa trouxesse reflexões aos
alunos sobre a força da organização
popular, baseando-se nos eventos artísticos
da região.
Ao observarmos este movimento de
contextualização histórica das práticas
artísticas na ação docente de Camila,
notamos a presença de um diálogo da Arte
com as demais áreas do conhecimento,
como a História. Isso nos permite
compreender a prática artística de Camila
em uma dimensão da totalidade do
conhecimento. Notamos que ela incorpora
em sua prática pedagógica ações de
construção artística fazendo uso de uma
pluralidade de metodologias e linguagens
artísticas. Nessas produções, ela destaca a
importância de estimular a autoria dos
alunos no processo de concepção artística:
Eu valorizo a produção dos meninos
a partir daquele tema que a gente está
trabalhando e se for arte ou pintura
ou trabalhos com leitura literária,
desenvolver saraus,
recitar...recentemente estou
trabalhando o romantismo e eu
peguei o movimento romantismo, fiz
todo um trabalho com eles de que
movimento foi esse e ligado a que
época, e por fim eles fizeram
produções de poemas ligados à
época, com características da época,
mas a partir de temas de agora. E a
gente fez uma discussão na escola.
Depois a gente expôs os trabalhos na
escola para a comunidade escolar.
(Camila sobre suas práticas de
ensino de arte)
As práticas artísticas e pedagógicas
de Camila são fortemente marcadas pela
resistência como elemento fundamental
para a compreensão da arte e das
transformações que esse campo do
conhecimento pode trazer à formação dos
alunos. Percebemos que é essa resistência
que permite que ela construa um
pensamento artístico em sua prática
docente baseada na expressão de sua
indignação diante das injustiças sociais:
Eu confesso com você que eu venho
me formando cada dia buscando me
inteirar e resistindo. Eu hoje vejo a
arte como forma de expressão de
resistir à escola. Porque nada na
escola é feito para valorizar e ter a
arte como direito, a literatura como
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direito e a forma de expressão. Então
hoje trabalhar é uma forma de
resistir. Minha relação da arte como
forma de expressão foi a forma que
eu passei a ver a arte, o que é
produzir a arte e ter a arte para a
pessoa se expressar. Arte é se livrar
dessas amarras que ficam. É isso que
eu venho tentando fazer. Tanto na
sala de aula quanto na postura do dia
a dia de tentar ensinar um pouco do
que é arte. (Camila arte como
forma de expressão)
Observamos, assim, que a expressão
artística é, para Camila, uma relação
subjetiva de se livrar de amarras
simbólicas de seu cotidiano e também de
externalizar intencionalidades docentes de
uma forma mais livre. Bosi (1986) diz que
a expressão dialoga com a relação
existente entre uma fonte de energia e o
seu veículo: A ideia de expressão está
intimamente ligada a um nexo que se
pressupõe existir entre uma fonte de
energia e um signo que a veicula ou a
encerra. Uma força que se exprime e uma
forma que a exprime” (Bosi, 1986, p. 50).
Nesse sentido, podemos perceber
que, para Camila, a expressão artística
adquire o caráter de resistência como força
de energia e veicula em sua ação docente e
também como fruidora. Dada à construção
deste significado, analisamos que a
formulação da arte a partir da perspectiva
de direito permite a materialização dessa
expressividade:
Eu penso a arte a partir do direito. Eu
penso a literatura como direito. E
eu vejo a importância da literatura,
das práticas artísticas para a
formação da pessoa e a formação
enquanto cidadão. A formação
participativa. Eu sinto, eu sou uma
pessoa que eu não consigo me sentir
livre, livre no ponto de vista da arte.
Então eu me sinto meio engessada
ainda com a timidez no dançar, com
a timidez no bater palmas. Com a
timidez no passo, com a timidez em
me aceitar, com a timidez em me ver,
com a timidez ainda em muitas
coisas, e isso a arte ajuda muito a
gente. Depois da arte, do pensar, a
arte aqui eu estou me referindo a
práticas artísticas, à cultura, e isso
torna a gente mais leve, menos
imbuído de pré-conceitos. E ao falar
sobre o pensar, sentir, agir a arte a
partir da formação, eu acrescento:
pensar, sentir, agir a arte. A formação
me permitiu ir além porque eu passei
a ver a arte. (Camila sobre a arte
enquanto direito)
Podemos notar, por conseguinte, que
as práticas artísticas de Camila são
construídas com uma perspectiva
interdisciplinar, de resistência e de
expressividade que materializa o sentido de
sua luta pelo direito à educação, incluindo-
se aí o direito à arte na educação como
entendimento de formação participativa do
sujeito.
Ao abordar as relações entre campo,
trabalho, latifúndio e agronegócio, Camila
busca refletir com os alunos sobre o
paradigma da Educação do Campo, tal
como definido por Fernandes e Molina
(2004): um projeto em disputa e em
processo de construção pelos seus sujeitos
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que busca valorizar a agricultura
camponesa e familiar como a chave para
superação do modelo de agronegócio. Isto
posto, observamos que as práticas
pedagógicas construídas por Camila
tendem a construir reflexões que objetivam
superar o paradigma rural, marcado pela
exploração dos trabalhadores e pelo
latifúndio. Ela provoca os alunos a
modificarem suas opiniões sobre o
trabalhador vaqueiro, apontado por eles
como pobre e preguiçoso, e sobre o dono
das grandes fazendas, tidos pelos
estudantes como um homem poderoso e
inteligente. Camila busca, então, mostrar
aos alunos a perspectiva de exploração do
trabalho pertencente à acumulação de
terras latifundiárias:
Isso aqui que eu estou fazendo é
provocação. Eu quero que vocês
pensem, porque eu sempre morei
aqui, nesse lugar que vocês estão me
pintando, eu que eu era a filha do
vaqueiro. O trabalho de fato era
braçal: varria o quintal com aquelas
vassouras de cabo de madeira bem
grande, tirava leite, dava comida os
animais domésticos, porcos e o
cuidado dos animais, prendia
vaca…Só que vocês me trouxeram
um outro elemento que é esse
camarada aqui, o vaqueiro. Porque
que as condições que esse patrão
oferece são ruins que a gente
naturaliza, como se fosse natural,
como se a pessoa nasceu para ser
aquele ali da roça, o filho do
vaqueiro. Eu estou preocupada
querendo que vocês enxerguem o
outro lado. Não problema em ser
vaqueiro. Porque esse rapaz que
mora em Rubim é diferente desse que
mora na comunidade? Enquanto
direito, nenhuma diferença. O direito
que vocês têm de ter acesso a essa
escola com carteira, com uma
professora, habilitada em língua, arte,
literatura, com a escola iluminada,
escola com ventilador, escola com
material, o direito seus e o direito de
Joaquim que mora na comunidade
é o mesmo. Nós somos todos seres
humanos constituídos do mesmo
direito. Esse direito é negado.
(Camila sobre sua trajetória como
filha de vaqueiro)
Um elemento-chave que nos chama a
atenção é o fato de Camila, em suas
práticas docentes, elaborar o conhecimento
como uma forma de fortalecimento da luta
contra o latifúndio na região. Assim,
percebemos que ela agrega em sua prática
de Educadora do Campo a perspectiva do
paradigma da Educação do Campo,
colocado por Fernandes e Molina (2004)
como uma forma de renovação de valores a
partir das atitudes dos sujeitos
protagonistas do processo educativo:
O paradigma da Educação do Campo
é fruto e semente desse processo
porque é espaço de renovação dos
valores e atitudes, do conhecimento e
das práticas. Instiga a recriação de
sujeitos do campo, como produtores
de alimentos e de culturas que se
constitui em território de criação e
não meramente de produção
econômica (Fernandes & Molina,
2004, p. 50).
Um exemplo da perspectiva de
renovação de atitudes provocada por
Camila deu-se no momento de
contextualização junto aos alunos do
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significado da palavra “latifúndio”, em
meio à análise de uma reportagem
jornalística. Ela construiu no quadro uma
tempestade de ideias com sugestões dos
alunos. Depois fez uma retomada dos
significados possíveis, destacando para
eles que, além do latifúndio, existem outras
formas de se pensar o Campo, para além da
grande propriedade e do vaqueiro que
trabalha para o dono da fazenda. Ao falar
do vaqueiro, Camila ainda questionou os
alunos sobre os adjetivos atribuídos a ele e
ao fazendeiro o primeiro visto pelos
alunos como alguém que não quis estudar e
não é inteligente; e o segundo tido como
um grande empreendedor, inteligente e
digno de sua riqueza. Tal elemento foi
questionado por Camila, que fez uma longa
análise sobre a concentração de terras e o
capital.
A análise das práticas pedagógicas
de Camila nos permite perceber que a
concepção de Educação Transformadora
se destaca como uma categoria que
movimenta seu trabalho docente. Notamos
que o primeiro elemento a se destacar é a
necessidade que ela demonstra de construir
um conhecimento que permita ao aluno a
leitura de mundo:
Eu não sei se minha prática docente é
crítica e transformadora, eu sei que
ela está caminhando e eu sei que eu
estou me esforçando. E eu não quero
que a minha prática em outra
dimensão não. A minha prática é uma
prática crítica e transformadora. Eu,
para ser bem franca, eu fico
consternada e indignada. Eu não
consigo separar e não consigo pensar
de um outro lugar que não seja de
uma perspectiva de prática crítica e
transformadora. Quando eu chego na
sala de aula eu não consigo começar
a trabalhar qualquer atividade sem
que eu lembre todos os dias os meus
alunos qual é o lugar social que nós
ocupamos. Que leitura de mundo que
nós temos que fazer e qual a
importância da educação e do
conhecimento para nos ajudar nessa
prática. (Camila sobre sua prática
crítica e transformadora)
Ao relatar sua prática docente,
Camila aproxima-se do que Freire (1996)
traz a respeito do processo de construção
do conhecimento, que deve ser precedido
pela apreensão da realidade do sujeito: “O
menino, a menina, a criança e o estudante,
ele não consegue conceber aquelas
atividades como importantes se ele não
entender qual o lugar social que eles
ocupam.” Para ela, a inserção do sujeito
em seu contexto dentro do processo
educativo permitirá que a construção de
um conhecimento propicie a
conscientização para a transformação da
realidade.
A questão da identidade cultural, de
que fazem parte a dimensão
individual e a de classe dos
educandos cujo respeito é
absolutamente fundamental na
prática educativa progressista, é
problema que não pode ser
desprezado. Tem que ver diretamente
com a assunção de nós por nós
mesmos. É isto que o puro
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treinamento do professor não faz,
perdendo-se e perdendo-o na estreita
e pragmática visão do processo
(Freire, 1996, p. 42).
Camila busca refletir sobre sua
prática no sentido de possibilitar que seu
processo docente permita a formação
crítica dos alunos. Para ela, o ensino da
Arte e Linguagens também é uma forma de
instrumentalizar os alunos para que
desenvolvam uma formação crítica:
“Aquele conhecimento acadêmico e
cientificamente produzido ao longo da
humanidade que ele pode ser usado como
ferramenta para libertar”. Percebemos,
assim, que os argumentos utilizados por
Camila se referem à sua postura de
educadora comprometida, o que Freire
(1996) coloca como pensar certo para se
chegar à consciência crítica: “Pensar certo,
do ponto de vista do professor, tanto
implica o respeito ao senso comum no
processo de sua necessária superação
quanto o estímulo à capacidade criadora do
educando” (Freire, 1996, p. 31). Dentro
disso, Camila assume em sua prática a
importância de repassar os conhecimentos
acadêmicos aos seus alunos, busca, com
isso, construir em conjunto com eles a
compreensão destes conhecimentos como
formas de operacionalização da liberdade
das opressões:
E você precisa entender que o
caminho que liberta é o
conhecimento e é a educação. E se
você não fizer uso desse
conhecimento produzido
cientificamente pela humanidade,
você não consegue fazer uma leitura
de mundo, e a gente precisa pensar
o mundo como dividido em classes, o
mundo da classe trabalhadora, o
mundo de quem controla os meios de
produção. E esse lugar, essas horas
de cadeira que você considera uma
chatice, tira a sua intenção, você
precisa superar para ter esse conteúdo
como ferramenta de luta. Esses são
meus exemplos, minha aula está
autorizada a gravar, está aberta para
ver essa prática. Eu não consigo dar a
aula pura e simples conteudista.
Longe de mim. Toda a minha aula é
imbuída de muito discurso e muita
conversa. Se ela está caminhando, eu
não sei, mas é um esforço muito
grande que eu faço. (Camila sobre
o conhecimento como forma de
liberdade)
Analisando a prática pedagógica de
Camila, percebemos que se destaca a
conscientização dos sujeitos sobre os
processos de opressão. Ela reconhece e
analisa, a todo tempo, as condições
concretas da escola e mantém viva a
esperança de modificar tal cenário em sua
prática, alicerçada na mobilização de
alunos e professores e contra as situações
de exploração presente no contexto
campesino do município.
Considerações finais
Ao pensarmos no contexto da área do
conhecimento da Educação do Campo,
observamos que a análise das práticas
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artísticas de Camila nos permitiu a
compreensão de uma experiência docente
na área de conhecimento Língua, Arte e
Literatura. A relevância de tal análise,
discutida neste artigo, deve-se ao fato de
que esta evidenciou o processo de
comprometimento e consciência e o
protagonismo de professores campesinos
durante o processo de construção do
conhecimento junto aos seus alunos. Ao
refletirmos o ensino das Artes, percebemos
que o registro dessa pesquisa nos auxilia a
pensar nas interseções entre a
transformação social e as práticas de
ensino de artes desenvolvidas nas escolas
do campo, considerando ainda os aspectos
de fortalecimento da identidade cultural e
do engajamento crítico dos sujeitos.
Ainda, a prática da observação das
aulas e interações sociais, aliada à
entrevista narrativa, nos permitiu
compreender a inter-relação entre as
práticas pedagógicas e artísticas e o
contexto social, cultural e político.
Observar as categorias que emergiam da
prática e se articulavam ao discurso nos
possibilitou perceber o processo de
construção da Educação do Campo a partir
da prática cotidiana dos professores, para
além dos muros da escola.
A análise da trajetória de Camila nos
permitiu perceber, entre outras coisas, o
lugar e o significado das práticas artísticas
na escolarização e atuação docente. Em tal
perspectiva, foi possível compreender o
impacto da formação no curso de
Graduação em Educação do Campo como
uma forma de acesso ao conhecimento
acadêmico/artístico/científico, bem como a
articulação desta formação com o processo
de construção de consciência de classe e
engajamento na luta pela terra. Essa
transformação de ideias e posicionamentos
passa a ser parte das práticas pedagógicas,
mostrando-nos o potencial transformador e
multiplicador de tais práticas e a sua
articulação com o compromisso pela
coletividade e com os princípios da
Educação do Campo.
Nesse sentido, foi possível observar
que as práticas artísticas de Camila são
marcadas pela busca por: leitura de mundo,
formação crítica, desconstrução da
perspectiva bancária, esperança e
indignação no processo de construção do
conhecimento na realidade do sujeito. Com
isso em mente, buscamos em Freire (1992,
1996, 2000) a análise desta categoria de
transformação, compreendendo que os
conceitos apresentados por ele nos ajudam
a operacionalizar e analisar teoricamente as
práticas pedagógicas, trazendo reflexões
sobre o fazer docente em uma perspectiva
humanizante e crítica.
Com base na análise das práticas
artísticas de Camila, podemos ampliar o
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nosso olhar para compreender a ação
docente realizada por tantos educadores do
Campo, reconhecendo, no entanto, a
diversidade de sujeitos e territórios. Tal
olhar é também um convite para
considerarmos a experiência educativa dos
Movimentos Sociais como uma ferramenta
pedagógica de luta a partir de uma
experiência histórica e transformadora.
Desse modo, a busca pelo
entendimento das práticas artísticas como
uma categoria de luta foi vista por nós
como um caminho possível para
pensarmos no papel das práticas
pedagógicas no movimento de
transformação da sociedade. Com esse
entendimento, a luta por uma escola no
Campo se articula à luta por um projeto de
sociedade construído por e para estes
sujeitos. Assim, olhar para a arte com esta
perspectiva esperançosa e comprometida
com a luta nos coloca diante de uma escola
e dos sujeitos que nela estão atuando
enquanto agentes de transformação do
Campo.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 03/06/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021
Received on June 03th, 2021
Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: As autoras foram as
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Não tem.
Funding
No funding.
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10.20873/uft.rbec.e12368
2021
ISSN: 2525-4863
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Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Carvalho, C. A. S., & Antunes-Rocha, M. I. (2021).
Práticas artísticas no campo: A luta como categoria
pedagógica para a transformação social. Rev. Bras. Educ.
Camp., 6, e12368.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12368
ABNT
CARVALHO, C. A. S.; ANTUNES-ROCHA, M. I. Práticas
artísticas no campo: A luta como categoria pedagógica
para a transformação social. Rev. Bras. Educ. Camp.,
Tocantinópolis, v. 6, e12368, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12368