Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12479
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12479
10.20873/uft.rbec.e12479
2021
ISSN: 2525-4863
1
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Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação
entre música, pertencimento e demandas sociais em dois
países
Elisama da Silva Gonçalves Santos
1
, Anderson Brasil
2
1
North Dakota State University. 1340 Administration Ave, Fargo, ND 58105, USA. Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Avenida Adhemar de Barros, s/nº - Ondina, Salvador - BA, Brasil.
2
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB.
Autor para correspondência/Author for correspondence: elisamamus@yahoo.com.br
RESUMO. Os projetos sociais em música são uma temática
sobremodo hodierna no campo da Educação Musical. Devido a
pujança do tema aqui discutido, é indicada a dilatação do objeto
aprender e ensinar música para além das feições do contexto
social em que esses projetos sociomusicais estão inseridos.
Desta maneira, busca-se alcançar um olhar ampliado para as
vivências em música oferecidas em projetos sociais não no
Brasil, mas também em contextos com refugiados oriundos de
países em situações de guerra. Aqui são protagonizadas
vivências em projetos sociomusicais no estado de Dakota do
Norte, nos Estados Unidos. Por meio de diálogos com teóricos
da Educação Musical busca-se trazer à reflexão a temática dos
refugiados de países em guerra, o sentimento de pertencimento e
o papel da educação musical em comunidades frente as
demandas que perpassam os aspectos musicais.
Palavras-chave: educação musical, projetos sociais, sentimento
de pertencimento, transformação social.
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Music education and social projects: discussing the
relationship between music, belonging, and social demands
in two countries
ABSTRACT. The social projects in music are a modern topic in
the field of music education. Due to the importance of the point
provided here, it is indicated the expansion of the object learning
and teaching music beyond the aspects of social context in
which these music social projects are inserted. Therefore, we
seek to achieve an expanded look at the musical experiences
offered in social projects not only in Brazil, but also in contexts
with refugees originally from countries at war. In this article, we
also illustrate experiences in social projects located in North
Dakota, in the United States. Through dialogues with
researchers of music education, we seek to reflect on the
situation of refugees from countries at war, the sense of
belonging, and the role of music education in communities in
relation to the demands that permeate the musical aspects.
Keywords: music education, social projects, sense of belonging,
social transformation.
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Educación musical y proyectos sociales: discutiendo la
relación entre música, pertenencia y demandas sociales en
dos países
RESUMEN. Los proyectos sociales en la música son un tema
muy hodierna en el campo de la Educación Musical. Debido a la
fuerza de tema que aquí se aporta, se indica la ampliación del
objeto de aprendizaje y enseñanza de la música más allá de las
características del contexto social en el que se insertan estos
proyectos socio-musicales. Así, se busca lograr una mirada más
amplia sobre las experiencias en música ofrecidas en proyectos
sociales no sólo en Brasil, sino también en contextos con
refugiados de países en situación de guerra. Aquí nos centramos
en las experiencias de proyectos socio musicales en el estado de
Dakota del Norte, en Estados Unidos. A través de diálogos con
teóricos de la educación musical, pretendemos hacer reflexionar
sobre el tema de los refugiados de países en guerra, el
sentimiento de pertenencia y el papel de la educación musical en
comunidades frente a las demandas que impregnan los aspectos
musicales.
Palabras clave: educación musical, proyectos sociales,
sentimiento de pertenencia, transformación social.
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Introdução
Os projetos sociais são espaços
emergentes, decorrentes da luta e
organização de movimentos sociais, grupos
da sociedade civil, instituições diversas e
da iniciativa de uma ou mais pessoas.
Desde os anos de 1980, os projetos sociais
vêm se expandindo ligeiramente no Brasil
e no mundo, promovendo uma nova
configuração ao tecido social existente.
Para Gohn (2003), isso se explica devido
às transformações ocorridas na sociedade
nas últimas décadas do século XX,
marcada por uma série de lutas contra a
desigualdade social, pobreza, fome,
condições de trabalho e o consumismo
capitalista reinando como valor essencial
na sociedade. Além disso, a escassez de
políticas públicas e os altos índices da
violência também suscitaram novas
demandas principalmente para a esfera
educacional no Brasil.
Ao analisarmos o contexto político e
econômico brasileiro, percebemos um país
rico em recursos naturais, com altos
indicadores agropecuários, porém com
uma indústria que enfrenta recessões, alto
desemprego e com elevados índices de
desigualdade na distribuição de renda
(IBGE, 2021)
i
. Essa realidade é alimentada
por um sistema capitalista acidentado,
gerando impactos na esfera econômica e,
principalmente, educacional no que diz
respeito ao direito de cidadãos a uma
educação de qualidade. Segundo a
Constituição Federal de 1988, no Art. 6º,
“São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição” (Brasil, 1988). Pode-se
constatar que é competência do Estado
proporcionar aos cidadãos educação
pública, gratuita e de qualidade, assim
como, saúde, segurança e assistência
social. No entanto, isso não acontece em
todos os espaços urbanos de forma
igualitária e em muitas periferias e
comunidades, moradores vivem sob a
escassez de serviços essenciais à vida
cotidiana. É com o intuito de diminuir o
impacto da negligência do Estado que
temos a ação de projetos sociais, fundações
e ONGs que buscam proporcionar para as
comunidades o acesso a bens como saúde,
segurança, arte, esporte e lazer. Neste
cenário, os projetos sociais constituem-se
como mais um espaço de ação para
promover a emancipação, participação e
acesso aos direitos de todo cidadão. Assim,
tratando-se do ensino de música nesses
espaços, “pensar a Educação Musical no
seio dos projetos é também pensar a
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música de forma politizada.” (Santos,
2014, p. 5).
O surgimento de movimentos sociais
engajados na luta por políticas públicas e
garantias de direitos fundamentais tem sido
registrado muitos séculos no Brasil. As
lutas e movimentos sociais do período
colonial, do império e do Brasil República,
foram protagonizadas por grupos
minoritários contra a dominação e
exploração econômica que geraram
historicamente altos índices de
desigualdades sociais. No final do século
XIX e início do século XX, com a
substituição da mão de obra escravizada
pela assalariada e o processo de
industrialização, vemos a formação de um
proletariado urbano que agora se organiza
em sindicatos, uniões e associações (Gohn,
2000).
Nos Estados Unidos, a história de
luta dos movimentos engajados na
mudança social também percorreu um
longo caminho. Em seu “Livro Mulheres,
Classe e Raça”, Angela Davis descreve a
história do movimento negro naquele país
e a criação de sindicatos e associações pela
luta antiescravagista, contra o racismo,
pelos direitos das mulheres negras
trabalhadoras, o direito ao voto, o direito
ao corpo e pelo acesso à educação (Davis,
2016). As lutas sociais ao longo do culo
XX culminaram nos eventos das décadas
1960 e 1970 com o Movimento dos
Direitos Civis dos Negros nos Estados
Unidos lutando por políticas públicas que
abolissem a discriminação e a segregação
racial no país e o Movimento pela
Libertação das Mulheres. Este reivindicava
o direito ao voto, ao divórcio, à instrução,
ao corpo e pela igualdade jurídica, política
e econômica (Davis, 2016).
Os movimentos sociais no cenário
norte-americano também impulsionaram
grupos minoritários em outros países. Os
movimentos sociais ressurgem com força
no Brasil a partir da década de 1980 e
protagonizam a mobilização e
reivindicação por mudanças estruturais na
sociedade (Gohn, 2011). Nesses
movimentos grupos diversos que lutam
por acesso a bens sociais baseados no
interesse coletivo. Seja um grupo de
pessoas que lutam pela criação e
manutenção de uma creche no bairro,
grupos que lutam pela reforma agrária e
uso da terra, seja um grupo de jovens que
promovem atendimento pré-natal para
adolescentes grávidas, ou um grupo de
moradores que lutam pelo planejamento de
moradia no bairro. Não é comum a criação
de projetos sociais dentro dos movimentos
sociais, no entanto, Gohn afirma que a
ideia de emancipação, também imbricada
nos projetos, é dominante no âmago dos
movimentos. Manifestações dessa ideia de
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emancipação têm levado à mobilização
social resultando na criação de colegiados,
conselhos, ONGs e até mesmo na
implantação de políticas públicas. Gohn
(2010) abaliza a ideia de emancipação e
participação como um processo formativo
de cidadãos éticos, conscientes, ativos e
solícitos com o coletivo, engajados na
comunidade que os rodeia. Esse processo
deve considerar:
Projetos emancipatórios, que
coloquem como prioridade a
mudança social, qualifiquem seu
sentido e significado, pensem
alternativas para um outro modelo
econômico, não excludente, que
contemple valores de uma sociedade
em que o ser humano é o centro das
atenções e não o lucro, o mercado, o
status quo político e social, o poder
em suma. (Gohn, 2010, p. 73).
Se mobilizados em contextos de
ensino e aprendizagem, os princípios de
emancipação e participação trazidos por
Gohn podem ser basilares para cultivar a
autonomia dos educandos, proporcionar as
trocas de saberes em sala de aula
respeitando às subjetividades do aluno,
sensibilizar os sujeitos sociais envolvidos e
resgatar o sentimento de pertença dentro de
uma comunidade.
Educação Musical, projetos sociais
comunitários e o sentimento de
pertença: compartilhando experiências
em dois países
Esse texto brota de diálogos de vida
e de docência entre dois
pesquisadores/professores negros que
abalizaram suas temáticas a partir dos
projetos sociais. Aqui julgamos sobremodo
importante protagonizar a fala na primeira
pessoa, trazendo a experiências da primeira
autora, enquanto mulher, musicista, negra
e brasileira, imersa em experiências em
dois contextos socioculturais, a saber,
Brasil e Estados Unidos, em momentos
distintos da sua vida.
Como sujeito social oriunda de uma
comunidade na Bahia, ao longo da minha
infância, fui testemunha da negligência do
Estado, com a falta de segurança, saúde e
educação de qualidade em nosso bairro.
Neste período, tive a oportunidade de ter
aulas de música num conservatório da
minha cidade ligado à extensão de uma
universidade estadual. Nesta instituição, fiz
o curso básico de piano contando, também,
com aulas de musicalização, flauta doce,
canto coral e história da música. Durante
oito anos, frequentei o conservatório
graças aos esforços de meus pais, que
pagavam uma taxa semestral, extraindo do
pouco que conseguiam trabalhando dia e
noite para sustentar a nossa família. Essa
experiência transformou a minha vida.
Através do conservatório, pude não
desenvolver o estudo musical no piano,
mas também, trocar experiências com
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outras crianças e adolescentes, conhecer
outros contextos culturais e sociais e a
seguir carreira como musicista
profissional. Paralelo ao curso de piano, eu
vivenciava música na igreja e em casa,
apreciando música gospel brasileira e
americana, ouvindo meus pais cantarem
hinos, assistindo concertos na TV com
minha mãe e vendo-a tocar teclado. Mas,
não dúvidas que frequentar um
conservatório de música mudou o meu
futuro, dando-me oportunidade de ampliar
significativamente o meu universo cultural
e humano.
Ao longo da minha infância e
adolescência, testemunhei os problemas
sociais que cercavam a minha comunidade,
e questionava, se não poderíamos ter uma
escola ou um projeto social no bairro
oferecendo aulas de música, teatro, dança e
outros cursos. Quem sabe meus amigos
preencheriam o tempo ocioso que
dispendiam nas ruas sendo “presas fáceis”
para a violência e drogas? Esse é um
cenário que está evidente não na minha
comunidade como também em diversos
contextos no Brasil. É uma vulnerabilidade
social, fruto também da desigualdade, do
aumento da violência e da falta de políticas
públicas educacionais (Kleber, 2006).
Lembro claramente que éramos jovens e
crianças repletos de energia, ávidos por
conhecimento e enriquecidos por uma
bagagem musical proveniente das
brincadeiras da infância, das tradições da
família, dos corredores da escola e da
igreja e das canções ouvidas nas rádios.
Infelizmente nem todos tiveram a chance,
como eu, de frequentar uma escola de
música, tocar um instrumento musical,
tornar-se musicista profissional ou até
mesmo seguir carreira em outra área.
Minha primeira visita a um projeto
social ocorreu em 2010 quando eu era
aluna do curso de Licenciatura em Música
da Universidade Federal da Bahia. Como
atividade da disciplina Iniciação Musical
II, todos os licenciandos deveriam realizar
observações em diversos contextos de
Educação Musical. Ao chegar ao projeto
social, Espaço Cultural Pierre Verger, na
cidade de Salvador, observei aulas de
percussão. Desde a primeira aula fui
envolvida pelos sons, ritmos e interações
entre o professor e aqueles 20 jovens.
Naquela ocasião, lembrei da minha
trajetória e da minha comunidade, o que
despertou em mim um encanto por aquele
espaço e pensei nas mais variadas
oportunidades que um projeto social pode
propiciar aos seus participantes. Assim, o
tema “projetos sociais” tornou-se o centro
da minha pesquisa de mestrado realizada
entre os anos de 2012 e 2014, onde
investiguei os saberes docentes e a
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formação de professores de música
atuantes nesses espaços (Santos, 2014).
A pesquisa foi realizada em três
projetos sociais da cidade de Salvador e,
durante 9 meses, estive imersa nesse
universo observando, entrevistando e
conversando com professores, alunos e
pessoas da comunidade. O olhar de
pesquisadora ora se cruzava com o olhar da
educadora musical que um dia pertenceu a
uma comunidade e pensava na importância
daqueles espaços culturais dentro das
periferias. Os dados mostraram que o
trabalho com música na comunidade está
fortemente conectado à formação integral
do ser humano. “Não é música por música.
A aula de música também é arte, educação,
resgate do sentimento de pertença,
socialização e espaço de trocas de
experiências de vida” (Santos, 2014, p.
123). A interação comunidade-projeto
também se configura como um fator
primordial para a conexão música e vida
cotidiana, uma vez que o projeto social
acabava sendo uma extensão familiar ou
uma segunda casa dos alunos. “O
conhecimento da comunidade e de suas
demandas influencia diretamente nos
objetivos do professor no projeto, podendo
ele atuar nos marcos de uma proposta de
trocas culturais e ampliação do
conhecimento dos alunos” (Santos, 2014,
p. 123), o que por sua vez, pode contribuir
para a restauração da nossa trama social,
muito fragmentada na sociedade
contemporânea.
Em 2017, ingressei no Doutorado em
Artes Musicais na Universidade Estadual
da Dakota do Norte, na cidade de Fargo,
no estado de Dakota do Norte nos Estados
Unidos. Além das experiências vividas
dentro da Universidade, pude testemunhar
vivências em Educação Musical oferecida
em projetos sociais comunitários que muito
se assemelhavam com as minhas
experiências vividas durante o mestrado,
claro que com algumas peculiaridades. Ao
chegar naquela cidade em agosto de 2017,
percebi o grande número de imigrantes
refugiados habitando aquela região. Depois
de alguns dias de conversas com a
comunidade local e pesquisas, percebi que
havia naquela cidade escolas de educação
básica com educação para jovens e adultos
direcionadas especificamente para
refugiados que foram acolhidos nos
Estados Unidos e tentavam se inserir no
mercado de trabalho daquele país.
Um dos programas de educação de
jovens e adultos é oferecido por escolas
integradas ao Sistema de Escolas Públicas
de Fargo através do Centro de
Aprendizagem de Adultos funcionando na
Agassiz School. Os recém-chegados ao
país e, por conseguinte, naquela cidade,
eram encaminhados à escola através do
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Serviço Social Luterano e conduzidos pelo
Órgão do Governo dos Estados Unidos
para Reassentamento de Refugiados.
ii
Os
alunos contavam com aulas de inglês como
segunda língua, preparação para o GED
(exame de conclusão do ensino médio
americano), aulas de culinária, atividades
de integração, informática e atividades
artísticas, como pintura e desenho. Além
disso, as famílias refugiadas têm a
oportunidade de matricularem seus filhos
na escola no mesmo horário em que estão
assistindo às suas aulas. Outras instituições
como igrejas e projetos comunitários da
cidade oferecem atividades de integração
entre as famílias refugiadas e a população
local, distribuição de alimentos e agasalhos
e o engajamento desses indivíduos em
práticas musicais como a atividade coral. A
prática coral nas igrejas luteranas e
metodistas em Fargo é amplamente
cultivada e tem sido um meio encontrado
para integrar imigrantes refugiados à
comunidade, promover comunicação mais
fluente e auxiliar no resgate da autoestima
e sentimento de pertença tão fragilizados
naqueles indivíduos. Tive a oportunidade
de atuar como pianista colaboradora em
um coral em uma das igrejas da cidade e
pude perceber a quantidade de pessoas
oriundas de outros países, que através da
prática coral criaram novos vínculos
sociais, engajaram-se em novas amizades,
e foram acolhidos e abraçados pelo fazer
musical coletivo. De acordo com Wood
(2010), muitos desses refugiados têm
experienciado situações de perdas em seus
países, tendo que deixar para traz até
mesmo familiares. Além disso, “aqueles
que são reassentados nos Estados Unidos
enfrentam uma nova configuração de
desafios dos mais variados níveis indo do
físico ao social, psicológico, espiritual até
necessidades emocionais”
iii
(tradução
nossa) (Wood, 2010, p. 33).
Trago alguns dados para corroborar a
minha experiência. De acordo com o
Conselho Americano de Imigração, em
2018, um em cada vinte habitantes da
Dakota do Norte era um imigrante,
enquanto um em cada 20 residentes era
nascido no estado com no mínimo um
imigrante na família. A pesquisa mostrou
que no mesmo ano, do total de imigrantes
residentes naquele estado, 16.536 eram
mulheres, 16.204 eram homens e 3.084
eram crianças. A maioria desses imigrantes
são oriundos de países como Filipinas,
Butão, Nepal, Libéria, Somália, Sudão,
Congo, Eritréia, Afeganistão, Paquistão e
México. Entre o perfil de imigrantes estão
refugiados que deixaram seus países
devido a situações de guerra, fome,
pobreza e conflitos políticos, pessoas que
buscam melhores condições de trabalho e
estudantes que posteriormente acabaram se
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inserindo no mercado de trabalho e
migrando para o país. A pesquisa ainda
mostrou que os imigrantes compõem 6 por
cento da força de trabalho do estado e que
metade dos imigrantes residentes naquela
região são cidadãos americanos
naturalizados
iv
.
Alguns pesquisadores têm debruçado
os olhares para o tema Educação Musical,
refugiados e o resgate do sentimento de
pertencimento a um grupo. A exemplo de
Katelyn E. Wood (2010) que através de um
estudo etnomusicológico investigou o
papel da música na vida de refugiados
reassentados na comunidade de Prospect
Park em Pittsburgh, Pennsylvania. Em seu
estudo, Wood teve como sujeitos de
pesquisa refugiados participantes das
atividades oferecidas pelo Centro
Comunitário Prospect Park. Wood trata da
ideia de “música como refúgio” para
superar os desafios de migrar de um lugar
para outro, para integrar pessoas e para o
resgate da identidade cultural. Sameerah
Jabrhamdan (2018) em sua pesquisa de
mestrado investiga a didática pedagógica
que educadores musicais têm utilizado para
promover a inclusão de alunos imigrantes e
refugiados dentro da aula de música em
escolas no subúrbio de Nova York. Em seu
estudo, Jabrhamdan alerta para os desafios
enfrentados por crianças refugiadas
inseridas no sistema de educação
americano, tais como, depressão,
dificuldades de concentração, dificuldades
de aprendizado, barreiras com a língua,
perda da autoestima, sentimento de
inadequação, e dificuldades de relacionar-
se. Após a análise dos dados, Jabrhamdan
percebeu que entre a didática pedagógica
dos educadores musicais foram
encontradas algumas posturas importantes.
A primeira delas é a visão de música como
universal, onde os educadores abraçavam
tradições musicais de diversos povos,
levando em consideração os
conhecimentos prévios da turma. Foi
observado que através da apreciação as
crianças eram capazes de expressarem suas
emoções, independente das origens da
música. Segundo, foi observado entre os
educadores musicais o amplo uso de gestos
e pistas físicas no ensino através da ampla
demonstração no instrumento ou no canto,
bem como a importância do sorriso e do
incentivo para estimular os alunos.
Terceira atitude observada em sala foi o
uso de um repertório culturalmente vasto
para que os estudantes se sentissem
representados na sala de aula e nas
apresentações. A última atitude importante
observada por Jabrhamdan esteve
relacionada à como os educadores musicais
proporcionaram um ambiente de aula
seguro com o respeito mútuo a todas as
culturas ali presentes. Os educadores
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criaram um ambiente positivo no qual o
“erro” era possível, o que deixava a turma
mais confortável para se expressar
musicalmente, uma vez que a língua era
uma barreira significativa para o
aprendizado de muitas crianças.
O paralelo traçado entre os projetos
sociais no Brasil e os projetos sociais
comunitários e educacionais com
refugiados nos Estados Unidos nos mostra
a importância do resgate do sentimento de
pertença através da música. Além do
sentimento de pertença, práticas musicais
nesses contextos têm proporcionado um
reencontro dos indivíduos envolvidos com
suas identidades culturais. A partir dos
dados observados em algumas pesquisas
como Kleber (2006), Santos (2014) e
Brasil (2014), percebe-se a relação que os
projetos sociais estabelecem com a ideia de
“lugar”, com a comunidade e com os
alunos. Tratamos “lugar” aqui como “o
território identitário” com o qual se
estabelecem vínculos sociais e afetivos
(Bossé, 2004). Nesse contexto, a música
revela-se como um ponto de ligação, uma
reativação de memórias, fortalecimento
dos laços identitários com o “lugar”, com o
espaço, com os amigos, com os professores
do projeto que muitas vezes são também
oriundos da própria comunidade (Santos,
2014). Tratando-se das práticas musicais
com refugiados no contexto americano, a
relação indivíduo-música-lugar tem
intersecções com nosso contexto. A
educação musical desvela-se como uma
ponte de resgate de memórias do país de
origem, ao tempo em que, pontes para a
construção de uma identidade com o novo
“lugar” o que por sua vez envolve a
relação afetiva com o novo contexto de
vida. Sobre identidade cultural, lugar e
memória Bossé (2004, p.168) afirma que:
Se a construção de uma identidade
passa pela consideração de uma
herança e pela preservação de um
patrimônio sócio-histórico, e se a
capacidade de recordar, preservar e
perpetuar um passado faz parte de
um sentimento identitário, este
último encontra um local de
expressão privilegiada nos “lugares
de memória”.
Para Bossé, os “lugares de memória”
são considerados o suporte da identidade
cultural, evidenciando a ligação emocional
com aqueles espaços e tudo que o
representa, como a família, os amigos, as
rodas de conversa, as músicas ouvidas e
dançadas em casa e nas ruas, as diversas
manifestações artísticas, a comida, as
brincadeiras, as crenças e as relações de
trabalho tanto nas periferias brasileiras
como em um subúrbio de Nova York ou da
Somália, por exemplo. Práticas musicais
contextualizadas e plurais em projetos
sociais comunitários podem proporcionar o
resgate do sentimento de pertea
fortalecendo a relação do indivíduo com o
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seu contexto sociocultural e
consequentemente consigo mesmo.
A Educação Musical frente algumas
demandas sociais
As comunidades brasileiras e os
projetos sociais têm sido um campo
sobremodo robusto para a pesquisa em
música nas últimas décadas. Contudo,
diante desse aumento no número de
trabalhos acadêmicos é necessário alargar a
compreensão acerca do papel da música no
contexto sociocultural das periferias. Com
o avanço das favelas e das comunidades
nos grandes centros urbanos do Brasil,
oportuniza-se a expansão de estudos que
alcancem as tensões sociais e os outros
desdobramentos políticos/pedagógicos que
estes contextos em baila demandam. O
geógrafo Milton Santos nos esclarece que
o crescimento dos grandes centros urbanos
arrasta consigo uma série de implicações:
Problemas como os do emprego, da
habitação, dos transportes, do lazer,
da água, dos esgotos, da educação e
saúde são genéricos e revelam
enormes carências. Quanto maior a
cidade, mais visível se tornam essas
mazelas. Mas essas chagas estão em
toda parte. (Santos, 2008, p. 105).
Por isso, por vezes os objetos de
diversas pesquisas em música acabam por
alcançar problemas ‘genéricos’, não
abarcando diferentes sobreposições das
práticas musicais ali presentes. Diante
destes problemas contemporâneos, as
comunidades atuam como força motriz não
da transformação social, no que tange
ao acesso a determinados bens
educacionais, como também das
indagações para além dos ares inerentes à
vulnerabilidade social como destaca Brasil
(2019, p. 38):
Com o avanço de comunidades
periféricas, avançam também o
crescimento dos projetos sociais e,
por conseguinte, a demanda por
educadores musicais. Diante desse
pleito de educadores para atuarem
nesses projetos, muitas vezes
incrustados em locais
demasiadamente expostos à
violência, chegamos às seguintes
indagações: qual a formação
necessária ao educador musical que
atua nesses projetos sociais?
Esperariam as pessoas atendidas por
ele apenas o ensino de música? Um
curso de graduação abarcaria uma
formação eficiente para lidar em sala
de aula com tais questões?
As universidades brasileiras têm
aprendido com as favelas e as
comunidades têm espargido ao país jovens
educadores musicais, pesquisadores
negros, engajados, os quais descrevem e
materializam em seus trabalhos uma
ciência que se antepara em um Brasil que é
por vezes “invisível”. A produção destes
jovens educadores musicais que está para
além dos problemas cotidianos perpassa
diferentes dimensões tais como a
invisibilidade, o desenraizamento e a
provisoriedade presente não só nos lares
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que ali persistem, mas nas políticas
públicas geridas nas diferentes regiões do
país, denunciando um modelo que torna a
pobreza um modelo espacial:
A cidade em si, como relação social e
como materialidade, torna-se
criadora de pobreza, tanto pelo
modelo socioeconômico, de que é
suporte, como por sua estrutura
física, que faz dos habitantes das
periferias (e dos cortiços) pessoas
mais pobres. A pobreza não é apenas
o fato do modelo socioeconômico
vigente, mas, também, do modelo
espacial. (Santos, 2008, p. 10).
Estas produções dilatam não a
nossa compreensão sobre a complexidade
interposta a essas periferias, como também
denunciam que as resoluções dos
problemas descritos anteriormente estão
mais à frente das ações policiais nas
comunidades e das ações judiciais que
visam endurecer o tratamento para crimes
violentos e o narcotráfico. As minorias não
hegemônicas, que nestas comunidades
habitam, protagonizam uma outra
construção do conhecimento, outras formas
de fazer e ensinar música. Tais maneiras de
ensinar música estão repletas de saberes
ancestrais que valorizam e primam por
aspectos tais como identidade,
pertencimento e outras musicalidades. Por
vezes, esses aspectos são intangíveis e
inalcançáveis para quem é indiferente à
tessitura social que tinge esse ‘modelo
espacial’ como nos trouxe Santos (2008).
Aqui nos sulearão
v
os projetos
sociais que têm a sua gênese e manutenção
por meio do protagonismo dos sujeitos
sociais que vivem nestas periferias
urbanas, como verificamos:
É necessário destacar que esses
projetos sociais aqui descritos são
geridos e retroalimentados pelos
próprios protagonistas, moradores
das comunidades, que
desencadearam não a criação, mas
a gestão e manu-tenção dos espaços.
Diferem assim de outros projetos
sociais de cunho governamental,
criados de “fora para dentro”, os
quais por muitas vezes possuem
cunho eleitoreiro e são mantidos por
organizações estrangeiras. (Brasil,
2019, p. 129).
Esta composição de outras maneiras
de oportunizar bens educacionais é por
vezes paradoxal. O Brasil que bateu
recorde
vi
na produção de grãos com 253,7
milhões de toneladas em meio à pandemia
no ano de 2020 é o mesmo que não
consegue saciar a fome de muitas de suas
crianças. Milhares de alunos da rede
pública em todo o território nacional,
principalmente nas periferias urbanas,
conseguem se alimentar apenas na escola,
passando fome durante o período de férias.
Um relatório
vii
da Fundação Abrinq, que
retrata o cenário da Infância e
Adolescência no Brasil no ano de 2019,
apontou que 47,8% das crianças brasileiras
vivem na pobreza. Esta realidade que
apresenta diferentes entretons, onde se
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entrelaçam a violência policial e a fome,
revela ainda outros elementos presentes
nesse cotidiano:
A submissão a um transporte público
precário e a ausência de serviços
básicos demonstram um quadro da
violência rotineira. Porém, a primeira
violência a qual os jovens que
habitam nessas áreas são expostos, é
o local em que eles vivem, não pela
falta de segurança ou de recursos
mínimos, mas por viverem em um
lugar onde nem mesmo veículos
automóveis podem transitar, onde
ambulâncias não podem entrar
porque o estreitamento de suas ruas
muitas vezes não permite. (Brasil,
2019, p. 19).
Assim, algumas dessas comunidades
acabam por ter a visita do Estado brasileiro
apenas por meio da força policial. Onde
não escolas, serviços básicos de saúde e
lazer, os moradores se organizam para
proporcionar um pouco de humanidade
contra o abandono e o descaso. Muitas
destas periferias em distintas regiões do
país se organizam e, por iniciativa própria,
gestam espaços escolares, aperfeiçoam
professores, buscam meios de angariar
merenda para as suas crianças, conduzidas
pela crença de que a educação será pedra
angular da transformação social.
Muitas comunidades brasileiras são
conhecidas pela maneira que “se fala”,
pelos seus “sotaques”, mas que não é na
alocução, é no trato com o outro, na
proteção entre os seus residentes, fazendo
daquele lugar um mundo mais humanizado
como é descrito abaixo:
As singularidades encontradas nesse
contexto referentes à privação e
dificuldades permitem visualizar um
pouco dos valores comumente
encontrados ali. Para viverem em
lugares onde serviços básicos são tão
ausentes, alguns vínculos como
amizade, confiança e esperança são
fortalecidos todos os dias. Alguns
pais necessitam deixar seus filhos
com o vizinho, pelo acesso ruim e
distante a mercados e farmácias.
Muitas vezes é o vizinho que socorre
quando casos de emergência.
Como mensurar o nível de respeito e
dependência que essas pessoas têm
entre si? (Brasil, 2019, p. 19).
Desta forma, muitos desses
moradores acabam por reproduzir um
modelo altero, não no que tange aos
cuidados emergenciais, como também
replicam outros projetos sociais em suas
comunidades, estimulam e alavancam as
gerações vindouras por meio de um
arquétipo pedagógico “outsider”:
O contexto social encontrado nas
periferias legitima um ambiente de
educação singular, alimentado por
relatos e vivências únicas,
produzindo um ambiente educacional
que gera novas metodologias
educacionais e divulga exemplos de
superação e crescimento. Esses
exemplos constroem um fio condutor
de saberes, que estimulam uns aos
outros e agregam mudanças para
aqueles que se dispõem a uma vida
de crescimento e libertação coletiva.
(Brasil, 2019, p. 19).
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Esse ‘lugar do saber’ que também é
lugar de proteção e encontro é mais do que
tudo um sítio de pertencimento para estes
sujeitos sociais:
Ainda assim, os atores locais buscam
formas de conexão de modo a
continuarem a jogar o jogo da vida
emergencial. Essas variadas formas
cambiantes de colaboração “atuam
tanto de forma reativa como proativa
em relação a decisões de instâncias
de governo, continuadamente
posicionando e reposicionando as
localidades no sistema urbano como
sítios de pertencimento comunitário”.
(Bartholo et al., 2014, p. 34).
Aqui são nossos protagonistas os
educadores musicais, esses que são os
senhores de seus destinos e se
disponibilizam de forma desnuda para
cuidar de maneira irmanada do futuro dos
demais que ali coexistem. Por isso, é
preciso propormos um outro olhar para
estes mundos existenciais, um olhar para
além do noticiário, para além do saber raso
do aspecto geográfico como nos chama
atenção Meirelles e Athayde (2014, p.
135):
Em trânsito pela imensa rede de
favelas nacionais, um observador
atento encontrará mais operários,
comerciantes, guardas noturnos,
office boys, diaristas, motoristas,
cabeleireiras, auxiliares de escritório
e costureiras do que bandidos
profissionais. São estes últimos, no
entanto, que servem como referências
icônicas das comunidades. A
reprodução obsessiva desse
estereótipo se deve, sobretudo, ao
roteiro do noticiário policial
espetacularizado. Na falta de
conhecimento profundo sobre o
assunto, apela-se ao modelo raso de
representação, impresso na
memória coletiva.
Por isso, é premente alargar as
temáticas da pesquisa em música,
buscando perceber algumas práticas
musicais por vezes invisibilizadas e
marginalizadas. Um olhar mais amplo
pode levar a obter diferentes
entrecruzamentos do saber musical
interposto nestas localidades, como
esclarece Meirelles e Athayde (2014, p.
22):
E sempre foi sobretudo o espaço
onde se produziu o que de mais
original se criou culturalmente nesta
cidade: o samba, a escola de samba, o
bloco de carnaval, a capoeira, o
pagode de fundo de quintal, o pagode
de clube. Mas onde se faz outro tipo
de música (como o funk), onde se
escrevem livros, onde se compõem
versos belíssimos ainda não
musicados, onde se montam peças de
teatro, onde se praticam todas as
modalidades esportivas, descobrindo-
se novos significados para a capoeira,
misto de dança, esporte e luta
ritualizada.
Estes lugares que gestam outras
maneiras de aprender e ensinar música
acabam por permitir a manutenção de uma
outridade pedagógica, como descreve
Brasil (2019, p. 41):
Diante dessa preferência dos jovens
pela prática musical, cresce ainda
mais a nossa responsabilidade não
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como professores de música, mas,
sobretudo, como educadores de
pessoas humanas que, como
mostrado anteriormente, precisam de
acolhimento, dedicação e respeito
pelas suas histórias trazidas, gerando
também a demanda de nosso
estímulo pelo exemplo. Muitos de
nós nos tornamos educadores
conquistados por alguém que nos
convenceu com o seu exemplo, nos
impactou com doação própria.
Essa “conquista” reverbera em
muitas comunidades em virtude de muitos
jovens que tiveram seu processo
educacional compelido pelos seus mestres
e retornaram para reproduzir o modelo
pedagógico que lhes doou não só à música,
doou esperança e uma perspectiva para
uma sociedade mais justa. Esse processo
dialógico dos jovens com suas
comunidades, com o cuidado que eles
dispensam aos seus lugares de
re(existência), traz à lume histórias que nos
aproximam do paradigma da dádiva,
conceito este extraído do estudo de Mauss
(1974). Este lugar fundamentado pelo
outro, como temos notado até aqui, denota
uma visão de mundo que está para além da
reverberação de notas musicais, diz mais
acerca de uma outra postura:
Essa doação de tempo, e até abrindo
mão de alguma ajuda de custo,
decorre de uma visão de mundo que
se preocupa com o próximo, de uma
postura altruísta, para além da
música. Talvez isso se deva ao
encontro de si mesmo, pela
oportunidade que teve de vislumbrar
um caminho no qual muitos ficaram
simplesmente para trás. (Brasil, 2019,
p. 127).
Essa postura de retornar às suas
comunidades e retribuir aquilo que
transformou as suas vidas, nos descreve
um outro modelo educacional, uma
circularidade que transpassa o ensino,
alcançando afeição. O filósofo francês Paul
Ricoeur nos esclarece que no percurso do
reconhecimento de si é necessário
conhecer o outro, e vice-versa (Ricoeur,
2007). Mas, o caminho para o
reconhecimento de si demanda amalgamar
o respeito, a alteridade e, por fim, a
igualdade. São esses valores que celebram
os vínculos em muitas destas comunidades
em distintas regiões do Brasil, em que a
doação gera uma obrigação. Mas
compreender esta “obrigação” exige um
reconhecimento legítimo, o qual não
permite nada em troca, é dialético,
recíproco, convalido e imaculado. Por isso,
Ricoeur (2006, p. 74) nos alerta que o
reconhecimento de si ou do outro apresenta
três baluartes indissociáveis: “o
reconhecimento mútuo, o reconhecimento
como identidade e o reconhecimento de si
mesmo”.
Estas construções sociais que
matizam fraternidades e a vida cotidiana
nos enlaça novamente a Ricoeur em sua
obra Essai sur le don. O teórico, por meio
da sua simbiose com o filósofo Marcel
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Mauss, nos situa neste ensaio sobre as
relações que nos regem, dizendo: “Nós nos
damos ao dar, e se nos damos é porque nos
devemos, nós e nosso bem, aos outros”
(Ricoeur, 2006, p. 255). Essa crença
descrita pelo autor é ilustrada pelo criador
da Central Única das Favelas (Cufa)
viii
em
um relato acerca de si e dos que formaram
a base da organização:
A maioria dos participantes nesse
primeiro momento pertencia ao hip
hop, era em geral formada pela nata
dos rejeitados, o que era grave se
levarmos em consideração que na
época o próprio hip hop era a
imagem da rejeição e os que
formavam a base da CUFA eram os
excluídos do berço da exclusão, mas
era esse o desafio que começava a ser
desenhado, recuperar os
irrecuperáveis. (Athayde, 2011, p.
34).
Por isso, é necessário que se pense
uma educação musical engajada na
conscientização dos sujeitos, na
mobilização da sociedade civil para
compelir o Estado a fomentar políticas
públicas. Esse engajamento pode levar
também a conceber modelos pedagógicos
que perpetrem a cultura e a educação como
uma porta para a mudança da realidade, de
forma que a mídia e os meios de
comunicação tenham oportunidade de
noticiar não mais sobre um menino negro
atingido por uma bala perdida, mas que
possam anunciar a sensibilização do
Estado brasileiro, da sociedade, de nós
educadores musicais por uma educação
que acredita que é possível recuperar o
“irrecuperável”.
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v
A palavra Sulear nasce como contraponto ao nexo
eurocêntrico que historicamente apresenta o norte
como referência universal. O termo foi criado em
1991 pelo físico brasileiro Marcio D’Olne Campos,
sendo publicado no texto “A Arte de sulear-se”. Em
1992, Paulo Freire utiliza a expressão suleá-los”
em oposição ao verbo nortear no livro Pedagogia da
Esperança.
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passam-fome-nas-ferias/. Acesso em: 15 fev. 2021.
viii
A CUFA é uma organização brasileira que tem
mais de 20 anos. Nasceu da união de jovens negros
que buscavam um espaço para cuidar de si e dos
outros, expressando suas dores, a vontade de
permanecer vivos e seus sonhos.
Internacionalmente conhecida tem entre os seus
criadores nomes como o produtor e ativista social
Celso Athayde e o rapper MV Bill.
Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e projetos sociais: discutindo a relação entre música, pertencimento e demandas sociais em dois países...
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ISSN: 2525-4863
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 19/06/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021
Received on June 19th, 2021
Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: A autora Elisama da Silva
Gonçalves Santos propôs o objeto do artigo. Atuou na
escrita, análise dos dados e na revisão do conteúdo. O
autor Anderson Brasil colaborou na escrita, revisão do
conteúdo, e todos os autores aprovaram a versão final
publicada.
Author Contributions: The author Elisama da Silva
Gonçalves Santos proposed the object of the article. She
acted in the writing, data analysis and content review. The
author Anderson Brasil collaborated in the writing, content
review, and all authors approved the final published
version.
Conflitos de Interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
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Santos, E. S. G., & Brasil, A. (2021). Educação musical e
projetos sociais: discutindo a relação entre música,
pertencimento e demandas sociais em dois países. Rev.
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SANTOS, E. S. G.; BRASIL, A. Educação musical e
projetos sociais: discutindo a relação entre música,
pertencimento e demandas sociais em dois países. Rev.
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