Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12480
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12480
10.20873/uft.rbec.e12480
2021
ISSN: 2525-4863
1
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Experiências educacionais africanas na diáspora e
experiências afrodiaspóricas na educação: diálogo de
saberes desde as práticas culturais
Luan Sodré de Souza
1
, Marcos Santos
2
, Valnei Souza Santos
3
1
Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Departamento de Música. Avenida Transnordestina, s./n. Feira de
Santana. Novo Horizonte - BA. Brasil.
2
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN.
3
Universidade Federal da
Bahia - UFBA.
Autor para correspondência/Author for correspondence: contigaras@gmail.com
RESUMO. Neste ensaio buscamos refletir sobre as experiências
educacionais negras no Brasil - em particular no contexto da
Bahia - observando desde um olhar metodológico as formas que
constituem a capoeira, os sambas de roda e os blocos afros
enquanto horizontes civilizatórios africanos, cujo contexto em
diáspora têm engendrado experiências educacionais
emancipatórias a partir de diálogos epistemológicos pluriversais.
Nesse sentido, a reflexão aqui realizada trouxe como acréscimo
a emergência de pensar tais saberes e fazeres pedagógicos-
educacionais oriundos das populações negras no Brasil,
enquanto caminho de ensino e aprendizagem artística de caráter
inclusivo e diverso.
Palavras-chave: experiências educacionais negras, capoeira,
sambas de roda, blocos afro.
Souza, L. S., Santos, M., & Santos, V. S. (2021). Experiências educacionais africanas na diáspora e experiências afrodiaspóricas na educação: diálogo de saberes
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African educational experiences in the diaspora and
afrodiaspora experiences in education: a dialogue of
knowledge from cultural practices
ABSTRACT. In this essay we seek to reflect on black
educational experiences in Brazil - particularly in the context of
Bahia - observing from a methodological perspective the forms
that constitute capoeira, sambas de roda and afro blocks as
African civilizing horizons, whose diaspora context has
engendered emancipatory educational experiences from
pluriversal epistemological dialogues. In this sense, the
reflection carried out here brought, as an addition, the
emergence of thinking about such pedagogical-educational
knowledge and practices deriving from the black populations in
Brazil, as an inclusive and diverse path of artistic teaching and
learning.
Keywords: black educational experiences, capoeira, sambas de
roda, blocos afro.
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Experiencias educativas africanas en la diáspora y
experiencias de afrodiaspora en la educación: un diálogo
del conocimiento desde las prácticas culturales
RESUMEN. En este ensayo buscamos reflexionar sobre las
experiencias educativas negras en Brasil - particularmente en el
contexto de Bahía - observando desde una perspectiva
metodológica las formas que constituyen la capoeira, sambas de
roda y bloques afro como horizontes civilizatorios africanos,
cuyo contexto de diáspora ha engendrado una educación
emancipadora. experiencias de diálogos epistemológicos
pluriversales. En este sentido, la reflexión aquí realizada trajo,
como un agregado, el surgimiento de pensar sobre dichos
saberes y prácticas pedagógico-educativas derivadas de las
poblaciones negras en Brasil, como un camino inclusivo y
diverso de enseñanza y aprendizaje artístico.
Palabras clave: experiencias educativas negras, capoeira,
sambas de roda, blocos afro.
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Saberes africanos, experiências
afrodiaspóricas
Muitos dos valores civilizatórios
construídos pelas sociedades africanas
permanecem e ainda direcionam modos de
vida de populações negras no Brasil.
Dando conta dos grupos culturais os quais
foram trazidos para este território a partir
do século XVI os ambundus, bakongos e
ovimbundu da África central, e
posteriormente os hauça, yoruba e gêge da
África ocidental, é evidente considerar que
uma multiplicidade de experiências
filosóficas, espirituais e educacionais
oriundas deste continente se fundiram
àquelas até então desenvolvidas pelos
povos originários daqui, bem como
também se mantiveram presentes desde
seus fundamentos ancestrais e em
ressignificações formuladas em muitas
comunidades negras.
No âmbito das relações cotidianas,
tais valores civilizatórios são princípios
percebidos desde o cuidado no criar
coletivo de uma criança que nasce, na
partilha de um prato de feijão, no cuidado
com a terra que gera o alimento bem como
na benção materna a um filho ou filha que
de casa se e a sair. Neste universo,
dinâmicas colaborativas sustentam o
significado do existir, onde a ideia do ser
sendo em estado de ubu-ntu movimenta
implicações de ordem comunitária, onde o
elemento ocidental do eu individual cede
espaço para o elemento afro orientado do
eu comunidade.
Nessa chave, pensar o lugar da
educação é pensar o lugar do viver em seu
estado pleno, onde a hierarquia do saber se
numa via de mão dupla durante todo o
tempo, onde quem aprende também ensina.
Seja menino, mulher ou idoso, nessa esfera
de partilha a idade cronológica não
necessariamente determina lugares
estáticos de saber, pois aqui o
conhecimento opera sob diversas camadas.
No Brasil, ao passo em que assumimos a
África como ponto de partida para
reflexões que tangenciam as experiências
negras, torna-se possível enxergar os
caminhos e formas educacionais
estruturadas por estas civilizações e então
ressignificados no contexto americano. Tal
qual uma rede, as linhas que costuram
estas formas perpassam a materialidade do
fenômeno do ouvir/falar desde seu caráter
polidimensional. Aqui, esta chave
ouvir/falar é, portanto, a linha mestra
educacional a qual encaminha os pontos
cruzados nesta rede de saberes cujo início e
final estão emaranhados.
A saber, enquanto valor civilizatório
africano, o falar é antes de tudo um ato de
orientar, um ato de cuidar e de abençoar. A
escuta, por sua vez, é um território fecundo
e sedento desta orientação e do
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acolhimento; lugar este então repleto de
outros saberes cujo propósito também é o
de re-orientar aquele ou aquela que lhe
orienta.
Vale também ressaltar que além das
experiências africanas em diáspora outras
foram e continuam sendo gestadas, fruto
das trajetórias afrodiaspóricas que são
vivas e continuam em constante processo
de transformação, ressignificação,
reexistência e resistência. São fluxos,
refluxos, conexões, diálogos, conflitos,
influências, caminhadas, disputas de
narrativas, negociações. Tudo isso faz com
que se amplie o arcabouço de experiências
socioculturais e, mais do que isso,
experiências de existência, a citar:
alimentícias, de saúde, socioeconômicas,
culturais, artísticas, políticas, sociais,
afetivas, relacionais.
Aqui na afrodiáspora, somos
desafiados a redefinir nossos rumos
pensando em trajetórias cujas orientações
estão sob cuidados ancestrais, nos
assentando no lugar de sujeitos
constituídos a partir de uma localização
própria com histórias, culturas, filosofias,
epistemologias e cosmovisões que
apresentam outras formas de construções e
elaborações nas relações humanas. A
relação tempo/espaço se estabelece dentro
de uma visão metafísica diversa que geram
outras interpretações sobre cronologias e
linearidades que interferem profundamente
na maneira como podemos realizar leituras
de mundo. É com essa consciência que
compreendemos a linguagem como um
código e por meio dele decodificamos
elementos concretos e simbólicos que
entrelaçados organizam outras formas de
aprender, ensinar e preservar
conhecimentos.
Dada à necessidade de apresentar e
de melhor aprofundar as dimensões que
tangenciam formas civilizatórias africanas
de compreensão sobre processos
educacionais artísticos então presentes no
Brasil, o presente texto busca apontar
caminhos educacionais que tangenciam
essas dimensões a partir de uma
metodologia reflexiva em torno das
práticas da capoeira angola, dos sambas de
roda e dos grupos musicais blocos afro.
Assim, pretende-se com esta proposta
reflexiva contribuir junto ao campo da
educação de modo geral, e da educação
artística no campo de modo específico.
Dimensões educacionais desde a
capoeira angola: corpo e ancestralidade
A capoeira angola é convocada aqui
a ser pensada como um fenmeno
afrodiasprico potente desde sua dimensão
educacional. Em seu fazer orgânico, os
elementos tocar-danar-cantar anunciam de
antemão a dimensão complexa e horizontal
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em que se o diálogo de saberes entre as
instâncias musicais e gestuais
coreográficas. Quem toca, canta, quem
canta, dança, quem dança, joga. Estes
elementos atuam enquanto base epistêmica
produzindo pluralidades corporais e
sonoras fundadas em diálogos dinâmicos.
Em sua arte encarnada, a capoeira
constituda de informaes historicamente
registradas, cujo acesso aciona seu carter
malevel de aparente desequilbrio, onde o
corpo enquanto ponto de partida e de
chegada igualmente visto aqui como
canal de fruio dos atravessamentos que
constituem essa arte/luta/jogo enquanto
produo negro diasprica.
Por ser atravessada por vetores
identitrios, polticos e epistemolgicos
relacionais, o bojo capoeira assumiu a
partir da segunda metade do sculo XX
perspectivas diversas desde suas vertentes
Angola e Regional, destituindo neste
complexo qualquer tentativa de
homogeneizao entre as linguagens.
Nesse sentindo, buscamos aqui dialogar
desde a vertente angola do fazer capoeira,
a qual o lugar do sagrado encobre todo o
fazer ritual desde a tiragem e raspagem do
arame, o corte e raspagem da beriba, bem
como da limpeza e preparo das cabaas na
confeco do berimbau, at o estgio de
acontecimento da roda. Toda a sua
dimensão é educacional, pois ela está
fundada numa construção coletiva onde se
ensina brincando, aprende brincando e
busca dialogar através de uma ética da
troca em prol de um equilíbrio no
desequilíbrio da ginga.
Por ser ancestral, a capoeira angola é
um modo de ser e estar no mundo. Ela, por
si só, é um modo de vida cujo caminho
filosófico é orientado por dimensões que
perpassam, antes de tudo, a experiência no
corpo. Este corpo que é moldado pelos
movimentos, pelas negaças, pelas cantigas,
pela mandinga, ele também molda o
mundo a sua volta e assim estabelece uma
condição de relação em
complementaridade. Este mesmo corpo é
atravessado e constituído pelo que os mais
velhos e mais velhas chamam de
fundamento, um profundo e complexo
conjunto de saberes que em sua dinâmica
de existência tem sido engendrado pela
negritude ao longo do tempo e, sobretudo
nos dias de hoje.
A dimensão ancestral ou a
ancestralidade que encobre e alimenta o
fazer capoeira é entendida por Oliveira
(2007) como um princípio educacional em
si, fazendo, portanto, parte de sua própria
constituição. Para o autor,
a ancestralidade converte-se no
princpio mximo da educao.
Educar o olhar Educao. No caso
da cosmoviso africana, educa-se
para a sabedoria, para a filosofia da
terra, para a tica do encantamento.
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Educar conhecer a partir das
referncias culturais que esto no
horizonte da minha histria
(ancestralidade). Olhar um treino
de sensibilidade. Agua-se a
sensibilidade para perceber o encanto
que tece as coisas. Sensibilizado, o
Outro deixa de ser apenas um
conceito, e me interpela para uma
ao de justia e me convida a uma
conduta tica. Sensibilizado, posso
fazer da vida uma obra de arte, uma
construo esttica. Edifico uma
moral e uma tica baseada na
criatividade e na tradio. (Oliveira,
2007, p. 259).
Enquanto fluxo de vida perene, que
atravessa o tempo/espaço passado-
presente-futuro numa dinâmica espiralar, o
elemento ancestralidade ao passo em que
atua como teia ancorando este fazer, ele
também constrói abertura, território e
espaços de aprendizagem que se ramificam
nos diversos fazeres. Este é o caso do
território onde a capoeira acontece; o
espaço da roda. Ela, "enquanto
acontecimento, é um princípio que
fundamenta muitas das tradições do
continente africano bem como tradições
dos povos originários do Brasil. Ela
organiza a partilha de experiências
musicais nos diversos lugares e contextos
do nosso território" (Santos, 2020, p. 2).
A roda assume aqui nesse contexto
um lugar estratégico e genuíno de troca
horizontal de saberes. Onde os olhos se
encontram, os gestos se completam, onde
as vibrações sonoras das cantigas e
chamadas ecoam no correr da grande e da
pequena roda. Iêeee, gritou o mestre. Os
olhos se voltam atentos para aquele corpo
curvado, que ao do berimbau invoca o
Nguzu a Nzambi, mirando cada pessoa na
roda como se enxergasse o fundo da alma.
Alí se entende que lá vem ladainha, cântico
que descreve histórias, trajetória, travessias
de antepassados vencedores, construtores
de resistência e fazedores de conhecimento
orgânico. São eles e elas as ancestrais
professoras e professores por excelência.
Formados nas universidades da vida vivida
que, quando partilhada, ramifica esse
aprendizado por entre todas as gerações.
Nessa relao espiralar entre
juventude, velhice, passado, presente e
futuro que os fios os quais tecem o
equilbrio tocar-danar-cantar se
encontram. Enquanto base para a produo
de um conhecimento corporificado no ser
capoeira, este “trio poderosotem nas vias
da ancestralidade e das permanncias
ressignificadas as suas ramificaes, as
quais so engendradas em permanentes
processos de resistncias e negociao.
Nesse sentido, o estabelecimento de
escolas, grupos e academias de capoeira,
pode ento ser percebido como traos de
ramificaes desta tradição, as quais
possibilitam a proliferao destes
conhecimentos atravs do ensino e
aprendizagem de maneira sistematizada,
socialmente legais e acessveis.
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Enquanto lugar construtor de
consciência política, racial e cultural, o
ambiente possibilitado pela capoeira se
constitui no que o artista e pensador
Abdias do Nascimento (1980) chamou de
kilombo urbano, considerando ele este
modelo de ajuntamento um fruto da
emergência de invenções negras no
contexto das cidades do século XX.
Forjada nos poros de uma sociedade racista
patriarcal, a capoeira reinscreve o gestual
corporal centro africano no contexto
colonial do Brasil através de metodologias
e procedimentos pedagógicos que
alcançam e dizem respeito a toda uma
comunidade então subjugada. Antes de
tudo, a capoeira emerge como símbolo de
existência e (re)existência perante um
quadro social que se organizou para
dizimar o corpo negro. Em sua trajetória
dinâmica e insurgente, a capoeira tem
construído caminhos de luta, de fuga e de
ressignificação da vida de populações não
somente negras, mas de toda uma gente
sedenta de um mundo equânime.
A capoeira tem na metodologia da
oralidade uma de suas principais
ferramentas. Junto à escrita gestual
corporal dos movimentos, gingas e
mandingas, a comunicação oral exercida
através da música conduz as pessoas
envolvidas a um estado de conexão com a
dimensão ancestral cujo acontecimento
reacende a necessidade política de
continuar a viver a partir de valores que
sejam significativos para o corpo coletivo.
A voz, enquanto guia mestra deste fazer
metodológico, encaminha as diretrizes
conceituais do fazer capoeira sublinhando
histórias e convocando os envolvidos à
dinâmica de reflexão do que é ser um ou
uma capoeira (capoeirista) no mundo
contemporâneo. Esses ensinamentos dizem
sobre a responsabilidade que é fazer parte
de um kilombo onde a queda de um é a
queda de todos e todas.
Atabaque, Gunga, viola, médio,
pandeiro, reco-reco, agogô, dão o colorido
sonoro numa roda tradicional. Mesmo
aqui, no soar instrumental, a dimensão do
ensino/aprendizagem perpassa
compromissos que dizem respeito ao
funcionamento do corpo coletivo, onde a
entrada de um precede o início dos demais
instrumentos. Na esfera do tocar, um dos
elementos mais significativos a
concepo de andamento ou, como se
costuma chamar, o ritmo”. Compreendido
a partir das dinâmicas "lentoe “’rpido”,
o ritmo, aqui, responsvel por ditar a
inteno sentimental inscritas nas cantigas
(se de agradecimento e louvor, de
proteo, saudade ou desafio, etc.), assim
como ele guia a intensidade
(dinmica/fora/energia) a qual cada
instrumento deve ser tocado e determina o
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estilo dos cnticos (ladainha, corrido,
chula, declamao, etc.) que compem um
jogo.
Do mesmo modo, os toques”,
instncia que estrutura a partir dos
berimbaus todas as nuances da prtica, so
responsveis por desenhar e nomear o tipo
de jogo proposto. Mestre Naldinho explica
que o toque influencia na movimentao e
na conversa que se d entre os corpos. "Se
um jogo do toque de angola, deve-se
estudar o outro. Se for So Bento pequeno,
será um jogo mais amistoso. Se for So
Bento Grande, dependendo do toque,
acontecer um tipo de jogo" (Mestre
Naldinho, 2012 apud Medeiros, 2012, p.
102).
O sagrado, o ldico e o poltico
tangencia toda a dimensão educacional
assim como comungam de um mesmo
sentido de partilha nessa esfera musical
coreográfica, fazendo da capoeira um lugar
onde o corpo negro se inscreve desde sua
plenitude de expresso. Nesse sentido, a
capoeira traz em suas expressividades, um
modo de fazer musical, bem como
caminhos de pensar a dana de uma
singularidade inerente ao seu fazer ao
passo em que se ancora em princpios
filosficos/cosmolgicos ancestrais
comuns ao universo da diáspora africana.
Por ser um elemento fruto dos
agenciamentos negros na diáspora, a
capoeira se relaciona com outras formas de
expressões de negritude onde a dimensão
educacional se imbrica com a produção
sonora musical e todos os elementos que
constituem estes fazeres, a exemplo do
fundamento da roda e da metodologia oral
como caminho comunicacional primordial
nos processos de ensino e aprendizagem.
Assim, temos como algumas destas
práticas relacionais os sambas de roda,
elemento que em muito apresenta
características comunitária, educacionais
então atravessadas pela dimensão ancestral
africana.
Os sambas de roda: uma experiência
afrodiaspórica - "Pacatatá Tándan"
O Mestre Milton Primo costuma
dizer que o samba de roda é o
denominador comum das manifestações
culturais, visto que ele dialoga e está
presente dentro do rito de muitas práticas
musicais afrodiaspóricas. A própria
experiência do samba de roda é uma
experiência diaspórica e ao mesmo tempo
diversa, visto que a depender do contexto
no qual está inserido acaba ganhando
particularidades, o que contribui para a
diversidade de conceitos que podem ser
utilizados para descrever o samba de roda.
Tenho preferido assumir essa diversidade
no discurso e uso a ideia de sambas do
Recôncavo, inclusive considerando a
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diáspora destes sambas para trazer à
memória as diversas manifestações de
sambas que circundam a Baía de Todos os
Santos e/ou que estão dispersos em todo o
estado da Bahia e no Brasil, seja samba
chula, samba barravento, samba de
caboclo, samba de capoeira, samba de
lavagem, samba de beira de praia, samba
duro, samba de enxada, samba de viola,
samba de lata, samba rural…, essa lista no
pararia por aqui. É importante destacar
essa ideia de diáspora dos sambas, visto
que o êxodo rural foi e é uma realidade na
formação das grandes metrópoles
brasileiras.
Não foi nem é diferente com a
formação da capital baiana. Esse fluxo e
refluxo, seja para a capital ou para outras
regiões do estado, por motivos vários,
também provocou fluxos e refluxos nas
manifestações culturais, nas tradições, nas
formas de viver, nas formas de ser e estar
no mundo. Entendemos que essas outras
formas de viver, ser e estar no mundo
também se aplicam aos sambas, às suas
maneiras de ser e estar nas tradições e nas
culturas afro-brasileiras. Sendo assim,
também reivindicamos e defendemos do
ponto de vista conceitual, a ideia das
diásporas dos sambas do Recôncavo, tendo
a capital, o sertão, as ilhas, também como
territórios de fluxos diaspóricos. Mas, a
dimensão relacional e educacional
enquanto fundamento epistemológico
acompanha todas essas manifestações
desta tradição, nos seus diferentes
territórios. Como dito, estamos falando
de saberes e fazeres que possuem
fundamento.
“Pacatat Tndam” foi uma
onomatopeia usada por um dos violeiros
do Samba Chula Mirim Flores da
Pitangueira, grupo que é fruto dos
trabalhos desenvolvidos pela casa de
samba Mestre de Lelinha através do
projeto “essa viola d samba!”, para nos
ensinar um toque na viola machete. Após
sua apresentação no quintal da casa do
Mestre de Lelinha, um jovem violeiro
nos ensina a tocar a viola que representa a
vida. De uma maneira muito natural, ele
entrega o instrumento, colocou os dedos
nas cordas e diz: “pacatat tndam,
pacatatá tándam. Vai, toca!” Assim
executamos o “Pacatat Tndam”, o outro
integrante do grupo mirim prontamente
começa a tocar o seu surdo. Nos tornamos
sambadores! Mas, como é que se aprende
samba? O que significa "pacatatá tándam"
em uma experiência coletiva de existência
afrodiaspórica? Como as sambadeiras e
sambadores aprenderam os seus saberes e
fazeres? Quais são os fundamentos?
Quando perguntados ou quando
consultamos em publicações (Sodré de
Souza, 2019) é quase unânime a resposta
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de que aprenderam sozinhos por meio da
observação, escuta, da imitação, do fazer,
da prática, da memorização, da
experiência, do fazer em conjunto. Como
diz Dona Bete, "não tenho nada escrito por
papel, tudo na cabeça!" (Barreto,
Rodsário & Gumes, 2015, p. 29). Esse
aprendizado se dá, sobretudo, a partir da
vivência e convivência com as mestras e
mestres, sambadores e sambadeiras, nas
rodas de samba, nas casas de samba. Trata-
se de um processo de aprendizagem oitiva.
A música está nas pessoas, podendo ser
acessada a qualquer momento. É através do
fazer música que as subjetividades ganham
forma acústica, me refiro a aquelas
subjetividades que atravessam as diferentes
trajetórias, existências e experiências
afrodiaspóricas. Sendo assim, a própria
existência dos corpos e corpas que fazem
música, que fazem samba, é o que
sentido ao fenômeno acústico no momento
da sua concepção. Neste ponto, vale
lembrar que esses corpos são atravessados
de subjetividades e que também estão em
constante processo de metamorfose, visto
que os processos identitários são
complexos, vivos e dinâmicos. Desta
maneira, esses corpos também estão em
plena diáspora de si mesmo.
A experiência, no caso deste texto a
experiência musical ou o fazer musical,
também pode ser vista como um processo.
Aqui vale mais um lembrete: essa
experiência é destes corpos plurais. E se
são plurais, um mesmo evento pode gerar
experiências diferentes em corpos
diferentes. Nessa perspectiva, os processos
empreendidos nas casas de samba, às quais
tive acesso, partem de uma lógica na qual o
conhecimento musical é visto na sua
totalidade. O processo de ensino é
basicamente o fazer musical. Ou seja,
aprende-se fazer música fazendo. O
processo de aprendizagem se dá justamente
através do exercício do fazer mediado pelo
mestre, pelos colegas, pela comunidade,
pela vivência e experiência. Não é
diferente do processo educacional da
capoeira, narrado acima. As pessoas
vivenciam desde cedo, mesmo sem
necessariamente dominarem aqueles
saberes. À medida que vão vivenciando,
aproximando-se e dedicando-se, vão
adquirindo novos saberes, ao mesmo
tempo em que vão se apropriando de novas
camadas de experiência. Mas isso acontece
de uma maneira diversificada, sem abrir
mão da unidade que é a roda e da
diversidade dos corpos que a compõem.
Então, assistir a roda e bater palmas faz de
você alguém que é parte daquele
fenômeno, ao mesmo tempo em que o
mestre ou mestra também é e está fazendo
o samba compondo aquela unidade da
roda. Os diferentes níveis, ou melhor, as
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incompletudes com diferentes níveis e
camadas de experiência convivem e dão
vida a uma roda que soma as experiências
e se retroalimenta formando cada vez mais
aqueles que dela participam. O que
estamos apresentando é uma leitura de
processos que acompanham a
sobrevivência das culturas afrodiaspóricas
no Atlântico Negro (Gilroy, 2001) e no
Brasil.
A experiência, o fazer, o existir,
reexistir, o festejar, o estar, a alacridade
(Sodré, 2018), não estão desatrelados de
uma trajetória de existência cujo futuro foi
quase sempre uma incógnita. Sim, foram
os fazeres e o compromisso com essas
experiências que conduziram as trajetórias
coletivas das existências afrodiaspóricas.
Esses fazeres, que dentre eles é também
fazer samba, foram e são potências
formativas, educativas e diaspóricas desde
um tempo em que não tínhamos direito a
escola. Aqui falamos de uma formação
comunitária, de uma experiência africana
em diáspora que está conduzida por uma
experiência cultural afrodiaspórica e que,
ao mesmo tempo, é um ato de resistência
às condições socioculturais afrodiaspóricas
no Brasil e na Bahia.
"Pacatatá Tándan" é mais do que
uma onomatopeia ou uma partitura oral
para um toque de viola machete. Pacatata
Tándam é um convite à experiência. Um
convite ao fazer. Um convite a sermos
quem somos naquele momento. "Pacatatá
Tándan" é uma experiência
epistemológica, pedagógica, metodológica,
mas é também um ensinamento sobre
viver. "Pacatatá tandam", vai, toca!
Repete! Não desiste! Tenta! Isso! Vou
fazer pra você ver! Se ligue! Vai! Isso!
Tenta novamente! Isso! Pacatata tándan!
Vamos juntos!
A dimensão educacional desde os blocos
afro
Quando nos limitamos a escutar e
apreciar música apenas como um
fenômeno sonoro, de entretenimento ou
como um simples recurso que incrementa
as produções midiáticas, reduzimos a
complexidade existente do fazer musical a
um estágio de incompletude, na medida em
que não podemos dissociar a música da
história da humanidade e o grande lastro
que isso representa. Ao passo que
localizamos a música como base para
construção de um discurso, somos
instigados a fazer uma análise do visível e
invisível ali presente, evitando as
armadilhas que falsas percepções impeçam
processos analíticos da música enquanto
verbo, fonte de saberes, representação
identitária e cultural.
Direcionando os olhares para os
processos educacionais envolvidos no
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ensino e aprendizagem musical, nos
valemos das profundas discussões sobre a
educação e sua importância na elaboração
e estruturação social. Ainda que estejamos
longe do que consideramos como o básico
necessário, em certa medida, um senso
comum sobre o quão importante é a
educação para o crescimento não
econômico, mas também na melhoria no
que se refere ao bem-estar social, a qual,
por consequência, garante uma melhor
qualidade de vida para os cidadãos e
cidadãs de qualquer localização.
Focalizando nos processos de
resistência, somos instigados pela
necessidade da existência a confrontar o
projeto político que historicamente visa
manter uma estrutura de poder
hegemônico. Desta maneira, é com o
propósito do enfrentamento que o
pensamento contracolonial surge como
rompimento com a colonialidade do saber
e do ser, apresentando estratégias para
subverter epistemologias dominantes,
trazendo para o centro saberes
invisibilizados.
O conceito das epistemologias do Sul
(Boaventura, 2009), evidencia a
necessidade de alinhamento do discurso
decolonial tendo como foco e centro as
questões referentes às produções dos povos
originários e afrodiaspóricos. Conforme
nos alerta (Bernardino-Costa, Maldonado-
Torre & Grosfoguel, 2018),
É preciso trazer para o primeiro
plano a luta política das mulheres
negras, dos quilombolas, dos
diversos movimentos negros, do
povo de santo, dos jovens da
periferia, da estética negra, bem
como de uma enormidade de ativistas
e intelectuais, tais como: Luiz Gama,
Maria Firmina dos Reis, José do
Patrocínio, Abdias do Nascimento,
Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez,
Beatriz do Nascimento, Eduardo de
Oliveira e Oliveira, Clóvis Moura,
Sueli Carneiro, Frantz Fanon,
Césaire, Du Bois, C. L. R. James,
Oliver Cox, Angela Y. Davis, Bell
Hooks, Patricia Hill Collins, etc.
(Bernardinho-Costa, Maldonado-
Torre & Grosfoguel, 2018, p. 10).
Prosseguindo com nossa reflexão, é
impossível não associar o conceito da
interseccionalidade ao nosso discurso,
trazendo a luz às questões referentes a
gênero e raça. Uma vez que o racismo, o
machismo, o sexismo provenientes do
patriarcado branco, hétero e cisgênero
alicerçam como parte fundante e
“estruturante do sistema-mundo
moderno/colonial” (Bernardino-Costa,
Maldonado-Torre & Grosfogue, 2018, p.
11), os quais, por sua vez são refletidos nas
práticas educacionais e na forma como
produzimos e ensinamos música.
Considerando esses elementos como
obstáculos para construção de uma
sociedade equânime, torna-se
imprescindível a retomada dos passos
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como em um movimento de Sankofa que
nos levam aos caminhos traçados por
aqueles que nos antecederam, a fim de
aprender a reaprender a partir dos saberes
ancestrais, indicando formas de superar e
protagonizar um novo modelo de
sociedade experienciada a partir de novas
práticas educacionais.
É justamente sobre essas formas
outras de se produzir e perpetuar
conhecimentos que os Blocos Afros da
cidade do Salvador/BA se destacam ao
apresentar práticas pedagógicas que, sem
dúvidas podemos classificar como contra-
hegemônica na medida em que os
processos de ensino e aprendizagem são
realizados a partir de um outro lugar. O
Bloco Afro Ilê Aiyê em seu movimento
político na luta contra o racismo no
carnaval de Salvador, assumiu como pauta
a construção de uma narrativa e o discurso
de valorização identitária das pessoas
pretas, a referência à ancestralidade
africana tanto no aspecto cultural como
religioso e sobre a importância da estética
negra como forma de exaltar a beleza dessa
afrodiáspora, assim como ação de
enfrentamento a discriminação racial.
O Il Aiy foi o primeiro Bloco Afro
do Brasil, criado em 1974 no Curuzu,
bairro da Liberdade, em Salvador, como
fruto do desejo de um grupo de jovens,
entre os quais Antnio Carlos dos Santos
(Vov) e Apolônio de Jesus. Segundo
Silva (2014, p. 90), o Bloco Afro Il Aiy
constituiu o embrião da Lei no. 10.639/03,
que torna obrigatória a inclusão no
currículo em toda rede de ensino básico a
obrigatoriedade da abordagem de temáticas
ligadas a história de cultura africana e afro-
brasileiro, sendo um redefinidordas aes
do Movimento Negro na Bahia em funo
da sua busca por uma educao
pluricultural. O Bloco no ficou restrito ao
entretenimento como sugere a sua
definio, enquanto entidade poltica e
cultural, foi visto tambm como precursor
do movimento negro no incio da dcada
de 1970, como afirma Ana Clia da Silva
em seu livro A discriminao do negro no
livro didtico”.
Que bloco é esse? Eu quero saber! é
o mundo negro que viemos mostrar pra
você! Repleta de simbolismo, essa frase
foi um grito de resistência dado no
primeiro desfile do bloco em 1975. O
mundo negro que foi apresentado de
diversas maneiras através dos sons
marcantes dos tambores, do canto negro
que se alto afirmava, nos turbantes, nos
trajes e cores que traziam a estética das
múltiplas Áfricas vivas na diáspora. Essa
conexão transatlântica com nossas matrizes
históricas, culturais e epistemológicas
promovida pelo I Aiyê, transita por um
território de saberes que buscam através
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dessa ancestralidade invisibilidade,
retomar o rumo a uma localização
epistêmica que extrapola as fronteiras
estabelecidas pelo sistema colonial.
Localizao”, no sentido
afrocntrico, refere-se a lugar
psicolgico, cultural, histrico ou
individual ocupado por uma pessoa
em dado momento da histria.
Assim, estar em uma localizao
estar fincado temporria ou
permanentemente, em determinado
espao ... Descobrir a localizao de
algum refere-se a saber se essa
pessoa est em um lugar central ou
marginal com respeito sua cultura
(Asante, 2009, p. 96).
Os tambores na diáspora surgem
como reprodução de uma linguagem que
reverbera epistemologias, apresentando
lógicas que nos orientam para outras
práticas pedagógicas na medida em que a
perspectiva da afrocentricidade assume a
centralidade do pensamento.
A ideia afrocntrica refere-se
essencialmente proposta
epistemolgica do lugar. Tendo sido
os africanos deslocados em termos
culturais, psicolgicos, econmicos e
histricos, importante que qualquer
avaliao de suas condies em
qualquer pas seja feita com base em
uma localizao centrada na frica e
sua dispora. Comeamos com a
viso de que a afrocentricidade um
tipo de pensamento, prtica e
perspectiva que percebe os africanos
como sujeitos e agentes de
fenmenos atuando sobre a sua
prpria imagem cultural e de acordo
com seus prprios interesses
humanos (Asante, 2009a, p. 93).
Esse centramento foi a orientação
que levou a busca pela sonoridade que
criava a conexão com a ancestralidade
materializada nos sons dos tambores.
Surdos, atabaques, taróis e timbaus criam a
atmosfera que ao ser decodificada
apresenta diversos elementos com estreita
ligação com as religiosidades de matriz
africana resistindo a todas as perseguições
e tentativas de marginalização e
silenciamento. As ações pedagógicas
promovidas pelo Bloco Afro possibilitaram
que diversas histórias sobre a África, a luta
dos povos africanos e afrodiaspóricas
pudessem ser recontadas por meio de suas
canções. A elaborao dos “Os Cadernos
de Educao'” a partir do ano 1995,
reforçou ainda mais a abordagem
antropológica e cultural centrada em uma
perspectiva afrocentrada.
O Il Inspirou-se em referências
teóricas para sua idealização,
reportando-se a um modelo de
ideologizao poltica a partir das
informaes do movimento negro
norte-americano da dcada de 1970,
das lutas de independncia dos pases
africanos e, sobretudo, na resistncia
cultural afro-brasileira originria do
Candombl (Shaun, 2002, p. 7).
A oralidade delineia os contornos
que apresentam outras dimensões
educacionais, a voz realiza comunicações
verbais e não verbais, onomatopeias criam
e recriam ritmos e sonoridades que
traduzem a subjetividade do imaginário em
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sons concretos executados nos tambores.
Esses sons não se dissociam de uma
corporeidade, a relação do som com corpo
amplifica a capacidade perceptiva, dessa
forma o Mestre de Percussão conduz o
processo de ensino com conceitos e
abordagens que partem de uma lógica
própria, a escrita ainda que importante,
exerce um papel secundário uma vez que
ela não possui os elementos que decifram
as diversas camadas rítmicas e sonoras, ela
se limita a decodificar o que a lógica
matemática presente na música permite,
em contrapartida, as nuances que estão
presente nas entrelinhas necessitam de
abstrações que abram espaços para uma
percepção ampla do fenômeno sonoro.
A perspectiva da afrocentricidade
apresentada por Molefi Kete Asante (2009)
é visivelmente identificada nas abordagens
do I Aiyê. O discurso presente nas
canções está para além do visível, levando
os ouvintes a uma imersão no imenso
terreno de saberes que conectam os negros
da diáspora com a sua ancestralidade.
Portanto a sua música é transportadora de
uma essência capaz de interferir
profundamente no reposicionamento
histórico, político e econômico do sujeito
afrodiaspórico, tornando-se agente dos
fenômenos que irão garantir a construção
de sua própria imagem cultural atendendo
os seus interesses humanos.
Tudo o que foi exposto neste capítulo
tem como propósito, refletir sobre os
caminhos que promovam a quebra dos
paradigmas estabelecidos por um poder
hegemônico, que impõe padrões, valores
culturais e que criam regras que excluem
outras epistemologias. A Capoeira, o
Samba de Roda e os Blocos Afros nos
apresentam inúmeras formas de se pensar
outros os processos de ensino e
aprendizagem da música.
Arrastão
O caminho a percorrer em direção a
um ensino de música descentralizada do
eurocentrismo se torna potente e pulsante
quando colhemos no passado, como em um
eterno movimento de Sankofa, as
referências necessárias para reaprender a
direcionar o ato de educar em uma prática
libertadora que dista dos moldes
tradicionais tão comumente utilizados nas
instituições de ensino. Sair da linha
convencional e priorizar também saberes
outros que primam pelo respeito à
diversidade é tornar lícito a luta pela
equidade legitimando passos quem vem de
longe. Trazer como modelo de
experiências os processos de ensino e
aprendizagem existentes na Capoeira, nos
Sambas do Recôncavo e nos Blocos Afros,
é um ato revolucionário e também de
enfrentamento ao conceito engessado e
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limitante que prioriza a história única
contada apenas sob uma ótica.
Os saberes e fazeres africanos em
diáspora, bem como os saberes e fazeres
estabelecidos a partir das experiências
afrodiaspóricas nos educa e ao mesmo
tempo nos apresenta arranjos
socioculturais, socioeconômicos,
educacionais, geopolíticos,
epistemológicos que podem ser
fundamentais para repensarmos o país em
que vivemos. O Brasil entrou no século
XX com um projeto de nação que não
incluía as populações negras, pelo
contrário o projeto era de extermínio, seja
pela miscigenação ou pelas mortes
causadas pela falta de assistência do
Estado. Esse projeto fracassou!!! Outro
projeto foi instituído, o de extermínio
cultural, o de embranquecer
epistemologicamente as populações negras
no Brasil. Esse projeto também fracassou!
O Ilê Aiyê não deixou! Os movimentos
negros não deixaram! A capoeira não
deixou! Os sambas não deixaram! Os
terreiros de candomblé não deixaram! O
mundo negro não deixou! Nós não
deixaremos!
A Capoeira, Os Sambas do
Recôncavo e os Blocos Afros, tradições
escolhidas para conduzir a discussão deste
texto, vão além de serem manifestações
estéticas. São referências epistemológicas.
São os nossos referenciais teóricos para
resistir, para entender o mundo e para
analisá-lo também. As experiências
educacionais africanas na diáspora, bem
como as experiências afrodiaspóricas no
contexto educativo colocam o diálogo de
saberes desde as práticas culturais em lugar
pedagógico, de formação para uma
sociedade de respeito a terra, a quem
chegou primeiro, aos mais velhos e mais
velhas, a natureza e tudo que nela há. A
capoeira, os sambas do recôncavo e os
blocos afros são referências
epistemológicas. São referências para
aprendermos sobre resistência,
reexistência, sobre ser e estar nesse mundo.
É pensar o nosso lugar enquanto
indivíduos psicologicamente localizados na
ancestralidade e nos valores civilizatórios
que garantiram a presença das
epistemologias que sustentam a existência
dessa afrodiáspora. Essas musicalidades
comunicam, são linguagens, portanto
extrapolam os limites estabelecidos pelo
fenômeno sonoro porque a música da
diáspora africana está carregada de
elementos metafísicos que ultrapassam a
compreensão física do fazer musical, o
som é matéria prima, entretanto a sua
construção requer um conjunto de outros
elementos que unificados atribuem
diversos significados.
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Pensar uma educação emancipadora,
uma educação que não hierarquize pessoas
por raça, gênero, classe, região geográfica
ou práticas de crença, implica em trazer à
frente uma perspectiva de troca de saberes
que seja horizontal. A equidade nas
relações, enquanto premissa para se
conceber uma comunidade equilibrada e
justa, demanda considerar a ocupação de
lugares sociais os quais possuem valores
específicos e adequados ao contexto
cultural no qual está inserido. Considerar
perspectivas artísticas negro
afrodiaspóricas enquanto lugar de ensino e
aprendizagem comunitária é considerar
que nessas práticas se buscam antes de
tudo o ensino para a convivência humana.
Portanto, o que se entende aqui como
educação perpassa agências cotidianas
como uma ação coletiva de preparar e
cozinhar um feijão enquanto o samba
acontece na sala, bem como o aprendizado
de um toque cavalaria no berimbau
enquanto uma mestra ensina aos mais
jovens na roda que respeitar as nossas e
nossos mais velhos é garantir que nossa
ancestralidade futura esteja sendo bem
cuidada.
Longe de esgotar essas abordagens,
foi pretendido aqui apresentar lugares
potentes para se pensar os atravessamentos
em torno do que se entende
institucionalmente como práticas
educativas, e neste caso no campo,
partindo de valores civilizatórios africanos
então ressignificados na diáspora para
como fonte de tais potências. A capoeira,
os sambas de roda, os blocos afro são
experiências vividas e remodeladas as
quais contam histórias de pessoas ao longo
de séculos. São quilombos culturais,
filosóficos, espirituais, portanto, lugares
orgânicos de educação comunitária,
horizontal e, antes de tudo, emancipadora.
Portanto, se faz urgente pensar essas
experiências enquanto caminhos
metodológicos férteis e válidos perante o
sistema educacional institucional.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 19/06/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021
Received on June 19th, 2021
Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
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nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
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Artigo avaliado por pares.
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saberes desde as práticas culturais. Rev. Bras. Educ.
Camp., 6, e12480.
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SOUZA, L. S.; SANTOS, M.; SANTOS, V. S. Experiências
educacionais africanas na diáspora e experiências
afrodiaspóricas na educação: diálogo de saberes desde as
práticas culturais. Rev. Bras. Educ. Camp.,
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http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12480