Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12921
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12921
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2021
ISSN: 2525-4863
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Professoras de Educação do Campo e resistência: as
brechas no habitus docente
Hildete Pereira dos Anjos
1
, Débora dos Reis Cordeiro
2
1
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - UNIFESSPA. Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e
Sociedade/Instituto de Ciências Humanas. Avenida dos Ipês, s/n. Cidade Jardim. Marabá-PA. Brasil.
2
Faculdade Santa
Terezinha - CEST.
Autor para correspondência/Author for correspondence: anjoshildete@unifesspa.edu.br
RESUMO. O artigo analisa ações docentes que remetem à
resistência no habitus docente. A pesquisa teve como método
um estudo de caso, envolvendo entrevistas e observação em sala
de aula de professoras formadas nas turmas iniciais da
Licenciatura em Educação do Campo. Parte-se do pressuposto
de que a formação docente engajada nas lutas da educação do
campo deve formar professoras cuja ação docente escape ao
habitus estruturante da educação em geral, produzindo
resistência também no campo pedagógico. Os resultados
apontam para a produção de modos de resistir através de táticas
em que improvisam na ausência de materiais necessários, de
equipamentos; em que compartilham o pouco existente e fazem
disso motivo de reflexão; em que problematizam situações
vividas no cotidiano por docentes e discentes, fazendo disso
material e atividade pedagógicos; em que redesenham de modo
circular a distribuição dos alunos na classe e fazem a dinâmica
das relações quebrar a linearidade. Em contraponto, o modo
rígido com que a educação como um todo se organiza, forte
componente do habitus, continua enquadrando/limitando as
iniciativas, apontado para a necessidade constante de
problematização do currículo, dos tempos escolares e dos
lugares sociais ocupados pela escola e pelas professoras.
Palavras-chave: habitus, resistência, educação do campo.
Anjos, H. P., & Cordeiro, D. R. (2021). Professoras de Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus docente.
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Rural Education teachers and resistance: the breaches in
teaching habitus
ABSTRACT. This work analyzes teaching practices which
refer to resistance in teaching habitus. We carried out a case
study involving teachers graduated in the first classes of the
Rural Education degree course. We assume that a student
graduation engaged in the rural education struggles must train
teachers whose teaching practices escapes the education
structuring habitus in general, producing resistance also in the
pedagogical field. The results point to the production of ways of
resistance through tactics in which they improvise in the
shortage of necessary materials and equipment; in which they
share the little they have and make it a reason for reflection; in
which they problematize the lived situations in daily life by
teachers and students and make this a material and pedagogical
activity; in which they redesign the circular distribution of
students in the class and make the dynamics of relations break
the linearity. In contrast, the rigid way in which education is
organized as a whole - which is a strong component of the
habitus - keeps framing/limiting initiatives, pointed to the
constant need to problematize the curriculum, school times and
social places occupied by the school and teachers.
Keywords: habitus, resistance, rural education.
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Profesoras de Educación Rural y resistencias: las brechas
en el habitus docente
RESUMEN. El presente artículo analiza acciones docentes que
remiten a la resistencia en el habitus docente. La investigación
tuvo como metodología un estudio de caso que incluyó
profesoras formadas en los años iniciales de la Licenciatura en
Educación Rural. Se parte del presupuesto que la formación
docente, comprometida con las luchas de la educación rural,
debe formar profesoras que, en su acción docente, escapen al
habitus estructurante de la educación en general, para producir
resistencia también en el campo pedagógico. Los resultados
muestran la producción de modos de resistencia a través de
tácticas de improvisación ante la ausencia de materiales y
equipos necesarios; de compartir lo poco que existe y hacer de
esta carencia motivo de reflexión; de problematizar situaciones
vividas en lo cotidiano por docentes y alumnos, haciendo de eso
material y actividades pedagógicas; de rediseñar, de forma
circular, la distribución de los alumnos en la clase y hacer que la
dinámica de las relaciones quiebre la linealidad. En
contraposición, el modo rígido con que la educación como un
todo se organiza, fuerte componente del habitus, continúa
encuadrando/limitando las iniciativas, apuntando para la
necesidad constante de problematizar la malla curricular, los
tiempos escolares y los lugares sociales ocupados por la escuela
y por las profesoras.
Palabras clave: habitus, resistencia, educación rural.
Anjos, H. P., & Cordeiro, D. R. (2021). Professoras de Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus docente.
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Introdução
O curso de Licenciatura Plena em
Educação do Campo (doravante LPEC) foi
oficializado pelo Ministério da Educação e
Cultura (MEC) a partir de 2009. Nasceu
dentro do movimento da Educação do
Campo, que chegou ao cenário político
mediante as lutas dos movimentos sociais,
como o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST), Pastorais da Terra,
entre outros, nas duas últimas décadas do
século XX e na primeira deste século XXI;
contou, em sua gênese, com a parceria de
instituições de ensino superior e
comunidades rurais.
Arroyo (1999) ao tratar sobre as
políticas públicas para a educação do
campo, afirma que as questões tratadas
pelos movimentos transitaram para a
esfera pública a partir do momento que ela
passou a ser vista como direito de todos os
trabalhadores e cidadãos do campo, não
uma educação exigida e praticada entre os
movimentos; aponta que essa concepção
pôde ser vista na demarcação ideológica e
do enunciado adotado no II Conferência
Nacional da Educação do Campo em
Goiás, no ano de 2004, cujo tema foi “Por
uma educação pública do Campo”, tendo
como slogan “Educação; direito nosso,
dever do Estado”. Esse salto duplo, ao se
configurar em direito de todos e dever do
Estado, colocou a educação do campo no
campo das políticas públicas, tornando
assim possível a exigência de transportes,
professores, recursos públicos e demais
condições que garantissem educação digna
para os povos do campo.
A Educação do Campo, enfim, foi
debatida nesses encontros de modo a
serem propostas ideias de educação em
contraposição ao ideário capitalista; uma
educação pensada pelos grupos
historicamente excluídos para os grupos
historicamente excluídos; exigiam-se, nas
oportunidades do debate, não uma
educação para formar mão de obra, mas
uma educação que oportunizasse a
cidadania e a inserção política desse
público na agenda do Estado; a Educação
do Campo assume assim caráter de
oposição paradigmática da educação
praticada até então. Urgia a luta por uma
formação humana que combatesse a
exclusão e a opressão social sofrida por
esse público. Caldart (2000) propõe,
destarte, que a educação do campo seja
uma demarcação ideológica oposta à
educação rural, a qual é ditada pela lógica
dos saberes hegemônicos instituídos, e que
seja essa a base para as novas políticas a
serem pensadas e executadas.
Esse jogo de palavras rural/campo
não está desarticulado de uma concepção
ideológica. A palavra “rural” pode
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desconstruída epistemologicamente e
combatida em debates acadêmicos, leis,
textos científicos na proporção que ela se
torna signo (Bahktin, 1988) de uma
política educacional excludente. A palavra
“campo”, do mesmo modo, se torna
palavra que evoca emancipação, se
contrastada com a primeira e
contextualizada na ideologia advinda dos
movimentos sociais e da educação
popular. Bahktin (1988, p. 36), explica que
“a representatividade da palavra como
fenômeno ideológico e a excepcional
nitidez de sua estrutura semiótica
deveriam nos fornecer razões suficientes
para colocarmos a palavra em primeiro
plano do estudo das ideologias”.
A expressão “Educação do Campo”
nasce significando, então, não uma
proposta de educação fechada (Caldart,
2000), mas como arcabouço epistêmico
reflexivo, que parte das construções
materiais e das necessidades dos
trabalhadores, com vistas à transformação
da realidade. É uma concepção de
educação que “nasceu como crítica à
realidade da educação brasileira,
particularmente à situação educacional do
povo brasileiro que trabalha e vive no e do
campo” (Caldart, 2008, p. 4).
A LPEC, visando à formação
docente de educadores do campo, ao ser
institucionalizada no formato de curso de
graduação pelos Institutos e Universidades
Federais, demarcou uma nova
configuração na política pública
educacional. Tal demarcação se pela
presença de um novo agente que, dentro
do campo acadêmico, se opõe às estruturas
de poder na seleção do conhecimento,
propõe novas bases pedagógicas e,
consequentemente, mudanças culturais no
campo da educação que afetam e são
afetadas pela política e a economia. Pode-
se afirmar que inaugura também uma nova
participação da Universidade na relação
com as lutas populares, sendo ela mesma o
espaço configurado como terreno de
conquista popular, tendo ali não mais um
auxílio externo, mas se configurando como
mais um instrumento de emancipação.
Essa realidade foi o cenário
definidor do objeto da pesquisa de
mestrado
i
da primeira autora (Cordeiro,
2017). Tratou-se de uma pesquisa
qualitativa, situada como estudo de caso
que se permeou com o objetivo de analisar
o habitus professoral de três professoras
egressas da Licenciatura em Educação do
Campo, mediante análise de documentos
oficiais, leis, projeto pedagógico do curso,
observação em sala de aula e entrevista
semiestruturada. Para este artigo, enfoca-
se, contudo, as táticas de resistência à
rígida estrutura escolar na prática de duas
professoras, aqui denominadas Carmem e
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Júlia, das quais se apresenta um breve
perfil nos parágrafos a seguir.
Agentes da educação do campo: as
bases de formação do habitus, táticas e
estratégias de quem ensina
Júlia estudou regularmente até a
sexta série; aos quatorze anos, quando se
casou, parou de estudar. Teve três filhos.
Aos 28 anos voltou para a sexta série (hoje
sétimo ano) e cursou, no formato
supletivo, as duas séries finais do ensino
fundamental na época (sétima e oitava
séries, hoje oitavo e nono ano). Toda a sua
trajetória escolar feita em escola da rede
pública. Aos 38 tentou fazer cursinho
comunitário. Tentou vestibular em Letras,
Pedagogia e Biologia. Em 2009 entrou
para a turma do LPEC da Unifesspa, com
ênfase em Humanas e Sociais, formando-
se em 2015. Seu primeiro emprego foi aos
45 anos como professora em uma escola
municipal de Educação Infantil, na qual a
encontramos para a pesquisa. Sua inclusão
tardia no mercado de trabalho deu-se,
sobretudo, pelo casamento precoce; o seu
trabalho, até então, fora o de dona de casa.
Com filhos em suas formações e
empregos, Júlia resolveu perseguir o
antigo sonho de se formar e trabalhar na
área da educação.
Nascida na cidade de Tocantinópolis
(estado do Tocantins), em 1972, Carmen é
filha de lavradora atualmente aposentada;
sua mãe tinha como escolaridade a quarta
série do ensino fundamental (quinto ano
hoje). Quando Carmen tinha 2 anos de
idade, a família migrou para a cidade de
Araguaína/TO; quando tinha 12 anos,
migrou novamente, desta vez para São
Domingos do Araguaia/TO, com três
irmãos. Nessa última cidade, onde
permanece até os dias atuais, passou a
morar com uma tia e primos. Nunca
trabalhou no campo após a fase adulta,
apenas na idade escolar, quando auxiliava
sua mãe nos plantios. Segundo a
entrevistada, era difícil manter uma rotina
escolar, pois, em determinados meses, eles
permaneciam em casa para ajudar a mãe,
que era sozinha (conheceu o pai
tardiamente, com 35 anos de idade, o que,
em suas palavras, “não fez diferença”, pois
a ausência significativa na infância não
poderia ser mais suprida). Essa condição
precária provocou, segundo ela, algumas
intempéries na caminhada escolar.
Reprovou na sétima série do ensino
fundamental, terminou o ensino médio aos
19 anos (fez o curso de magistério). No
ano de 1992 começou a trabalhar num
escritório de contabilidade. No ano de
1998 começou a trabalhar como professora
do ensino fundamental em escolas
privadas e, posteriormente, em escolas
públicas, por contrato. No ano de 2011
começou um curso de Letras por uma
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faculdade privada, levada pelo seu gosto
por leituras, apesar de, em suas palavras,
“não ter acesso a livros nem em casa e
nem na escola” e apesar de não ter
frequentado biblioteca em sua infância,
outrossim, lia panfletos em rua, livros que
conseguia emprestado dos primos que a
visitavam nas férias; em 2013 começou
Pedagogia também pela iniciativa privada,
mas interrompeu para iniciar em 2015 o
curso da LPEC, na Unifesspa. Atua como
professora em São Domingos do Araguaia
quinze anos, e em Apinagés (zona rural
de São Domingos do Araguaia), cinco
anos, sendo esse último o local das
observações.
Para compreender as táticas de
rompimento das práticas de reprodução no
fazer docente das egressas da LPEC,
foram observados aspectos pertinentes à
rotina em sala de aula e às falas docentes,
mobilizando na análise os conceitos de
habitus (Bourdieu, 2012) e de tática e
estratégia (Certeau, 2011) na produção da
resistência. No trabalho de análise do
habitus docente foi percebido que as
professoras se organizam nas contradições
entre a formação para uma educação
crítica emancipatória e uma escola
predominantemente tradicional. A
conquista, por agentes historicamente
excluídos do espaço da universidade, as
colocou na condição de jogadoras
(Bourdieu, 2012), reconfigurando os
espaços da educação do campo: não
podendo deixar de levar em conta as
regras institucionais, se empenharam em
desconstruir esquemas de operação ditados
pela estrutura da escola.
A observação direta das ações
docentes favoreceu perceber a produção de
novos esquemas, formando brechas de
resistência, para além da reprodução do
habitus: atentou-se para os modos de agir
que intentam escapar dos ditames da
ordem hegemônica.
Habitus é um conceito-chave dessa
pesquisa, pois é visto dentro da teoria de
Bourdieu como a noção que compreende a
prática cultural para além da
intencionalidade. Consegue explicar
diferentes práticas culturais entre as
manifestações humanas, geralmente
atrelando os agentes que “optam” ou
“escolhem” a partir de esquemas
subjetivos que são criados e deflagrados
pelas determinações das relações sociais,
ou seja, são disposições internas que
geram e orientam as ações/gostos de
acordo com o capital simbólico
adquirido/investido no campo (Bourdieu,
1996).
Habitus são sistemas de posições
duráveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como
estruturas estruturantes, quer dizer,
enquanto princípio de geração e de
estruturação de práticas e de
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representações que podem ser
objetivamente 'reguladas' e
'regulares', sem que, por isso, sejam
o produto da obediência a regras,
objetivamente adaptadas a seu
objetivo sem supor a visada
consciente dos fins e o domínio
expresso das operações necessárias
para atingi-las e, por serem tudo
isso, coletivamente orquestradas sem
serem o produto da ação combinada
de um maestro (Bourdieu, 2001, p.
94).
Partindo dessas considerações,
entendemos que práticas relacionadas com
o habitus são passíveis de serem
estudadas, mesmo que essas disposições
que orientam as práticas se deem na
condição simbólica, haja vista que as ações
dos agentes manifestam estratégias que
estão em concordância com as
representações que fazem sentido em seu
meio cultural. Isso nos leva às elaborações
de Certeau (1998) acerca das
possibilidades de, dentro de uma cultura de
massas, os sujeitos comuns serem capazes
de agir não contra essa ordem, mas
inclusive de maneira alheia à ordem, por
estarem obedecendo às próprias
determinações culturais. Tais maneiras de
fazer só são possíveis no momento que são
forjadas numa arte de utilizar, o que sugere
que também existe nelas uma formalidade
material, encontrada e criada na relação do
homem com o Outro, em ocasiões reais.
Entender quais as condições que
essas práticas insurgem e que desafiam a
maioria como limite de ação desses
grupos, é o que faz com que o trabalho de
Certeau (2011) ganhe relevância e
notoriedade no cenário científico, uma vez
que estavam instaurados nos estudos da
sociedade apenas análises que tornavam
visíveis os meios de dominação. Quando
se faz uma ciência engajada com a
transformação social, é necessário
perceber brechas nos processos de
dominação, elaborações singulares que
produzem um fazer desobediente,
ancorado na quebra do puro repetir. O
autor pretende acompanhar o indivíduo
ordinário em ação, às vezes reproduzindo a
estrutura, às vezes quebrando ou limitando
as possibilidades de reprodução. Para
tanto, conta com a distinção de dois
conceitos: estratégia e tática.
Chamo de estratégia o cálculo das
relações de forças que se torna
possível a partir do momento em que
um sujeito de querer e poder é
“isolável’ em um ambiente. Ela
postula um lugar capaz de ser
circunscrito como um próprio e,
portanto, capaz de servir de base a
uma gestão de suas relações com
uma exterioridade distinta . . .
denomino, ao contrário, tática, um
cálculo que não pode contar como
um próprio, nem portanto que
distingue o outro como totalidade
visível. A tática tem por lugar o
do outro . . . ela não dispõe de base
para capitalizar os seus proveitos,
preparar suas expansões e assegurar
uma independência em face das
circunstâncias. (Certeau, 2011, p.
46).
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Em outras palavras, as noções de
estratégia e tática se referem,
respectivamente, às práticas que estão
enraizadas numa estrutura reprodutiva e,
de outro modo, práticas que fluem sem
bases pré-definidas, e cabe nessas últimas
a resistência, uma vez que contam com a
criatividade humana nas tomadas de
decisão. Essas decisões, assim, podem
burlar a ordem dominante. Na tática existe
um espaço real que ultrapassa o acúmulo
do tempo, é o agora operando, e o agora
tem em si uma carga de inventividade que
auxilia as pessoas a serem mais que
reprodutoras: sobreviventes dentro das
condições que estão imputadas. Daí o
sentido de dizer que a tática se utiliza dos
objetos disponibilizados para outros meios
de fazer, o que é possível mediante as
diversas interpretações, que variam de
grupo para grupo, como no exemplo da
concepção de um santo, que transitou da
pregação de harmonia e paz e milagres
individuais para um santo vingativo, santo
que atendia a um grupo minoritário, e que
atendia orações para oprimir os opressores.
“Os crentes rurais desfazem assim uma
fatalidade da ordem estabelecida”
(Certeau, 1998, p. 78).
Mesmo que na ordem do imaginário,
desfaz-se com essa crença militante a
sensação de que a cultura popular está
morta, ou em estado latente; mesmo que
utópica a mudança, a prática cultural é
real, viva e operante, e que, se não for
cerceada, poderá evoluir para uma
organização menos silenciosa e menos
dispersa. A ciência que se ocupa das
práticas sociais, destarte, não pode deixar
de ouvir os burburinhos; seria tão
empobrecida a sua análise como seria a de
um geógrafo que, ao estudar um rio, ignora
a existência de seus afluentes, que se
ramificam fragmentariamente e que, em
seus desvios, enfraquecem a fluidez e o
volume do rio principal.
Como analisar então a ação das
professoras em sala de aula segundo esses
dois movimentos: tática e estratégia?
Como perceber as irrupções ou desvios
desses agentes? Ora, Certeau (1998)
contou muito com as bases
epistemológicas da linguagem para
compreender essas nuances. Passou a
perceber como a fala, a postura, e algumas
práticas como cozinhar, conversar, traziam
dentro de si o nascimento do novo.
Seguindo essas possibilidades de
acompanhar as práticas humanas, este
estudo mobiliza, a par da noção de habitus
em Bourdieu (2012), as noções de
estratégia e tática em Certeau (2011) como
ferramentas teóricas para analisar práticas
culturais de docentes egressas da educação
do campo no limiar das reproduções e das
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criações/rompimentos: seu exercício de
resistência no campo pedagógico.
Reunir e colocar em debate as ações
docentes que remetem à resistência é uma
tarefa de ação militante, que é na
medida em que avaliamos as ações de
resistência que podemos compreender os
modos pelos quais podemos caminhar.
Prestar atenção ao habitus como
reprodução, outrossim, nos faz refletir
sobre o que devemos evitar, transformar,
desconstruir, descolonizar. Acompanhar
os movimentos (ainda que frágeis) de
resistência atravessando as macro e
microestruturas de poder é necessário
tanto para mantermos uma esperança
frente aos severos mecanismos de
opressão como na qualidade de exercício
do cientista social, que se dispõe a
perceber a realidade em sua materialidade,
superando o senso comum (Bachelard,
1996).
As professoras relatam, desde a
infância, táticas de resistência, contudo
não capitalizadas de modo a se
transformarem em modos de ação
estruturadas, conforme situa Certeau
(1998), e são deflagradas no imediato,
sem gerar uma economia capaz de fazer
trocas significativas nas chamadas relações
de poder. No espaço da LPEC, essas três
professoras repensam suas trajetórias ao
confrontá-las com um novo ideal de
educação.
As práticas culturais dessas
professoras (ainda não estão estruturadas
em um habitus, mas já em processo de
incorporação, uma vez que, lançadas
“golpe a golpe”, tendem a se aglutinar em
esquemas estruturados) não são estratégias
plenas, mas ações táticas. As táticas são,
assim, modos de ser/existir na realidade da
luta de classes. São forjadas pelos agentes
a partir de uma política implantada,
gerando em seu processo as possibilidades
ou interdições e, nessas demandas de
poder de criação ou de recusa, é inventado
um cotidiano (Certeau, 1998). Essas
táticas, elaboradas desde a vivência na
infância ou experienciadas na LPEC, são
as que passaremos a pontuar a seguir, em
vários movimentos: de disputa e
organização do espaço, de criação de um
tempo para os conteúdos não previstos e
das interações necessárias para tanto.
Organização do espaço de formação e
disputa dos conteúdos escolares
Inicialmente, pontua-se a relação
conflituosa relacionada às condições de
formação e de exercício da docência na
prática cultural das professoras do campo.
Sobre as condições de formação, na
qualidade de alunas, elas apontam marcas
das relações de poder na concretude da
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rotina de estudante: vão percebendo que o
fato do curso ter sido institucionalizado
não lhes garante espaço de trabalho
semelhante ao dos demais cursos
superiores. Elas percebem que existem
formas de diferenciação para além do
acessar ou não a universidade, mediante a
hierarquização social dos cursos. Carmem
narra, acerca das lembranças de quando
começou o curso:
...a gente assim, não tinha sala de
aula nossa, nossa mesmo, tinha que
ficar pedindo, né? A gente se sentia
menor, porque todos tinham um
local, mas a gente era assim, meio
nômade. O que era bom porque a
gente aprendeu que pra ter uma aula
não precisa de muito, podemos criar
com o que temos, e isso é verdade,
porque é o homem que produz as
coisas, não as coisas que fazem a
gente. (Entrevista com Carmem,
2015).
Na narrativa acima, percebe-se que,
mesmo o curso fazendo parte das
estruturas institucionais, os primeiros
estudantes precisam pleitear um lugar para
fixar-se; que a disputa pelo espaço
acadêmico ocorre até em relação ao nível
infraestrutural. O espaço acadêmico é
também um espaço determinado pelas
relações de força entre grupos sociais
(Bourdieu, 2012). A mesma condição
social que preconiza a distinção e exclusão
do grupo de educadores do campo é,
dialeticamente, a mesma oportunidade que
lança para os discentes a tática de ação,
que se configura em resistência.
Evocando essa memória da produção
das condições de formação, enquanto
docente, Carmem produz também um
movimento de resistência na criação de
atividades curriculares, forjadas a partir da
própria experiência e vivência na
academia. Noutra fala de Carmem,
referindo-se à transmissão de conteúdos
exigida pela escola, ela diz da necessidade
de “correr com o livro” para esgotá-lo. No
entanto, Carmem não está falando apenas
de cumprimento de metas: ela tem pressa
de concluir as determinações oficiais para
recorrer à criatividade e autonomia,
inaugurando um processo de criação a ser
desenvolvido também pelos alunos. Trata-
se da produção de jornal, com atividades
extraclasses, com entrevistas e temas
pertinentes à região de moradia,
produzindo uma relação pedagógica
inventiva (Certeau, 2011).
Diversas discussões produtivas
foram elaboradas nessa brecha curricular
desenhada pela docente citada. Desde
dúvidas de ortografia até discussões acerca
da realidade local, as questões geradas
pela produção do jornal foram sendo
construídas em sala de aula. Os discentes
que produziam o texto permaneciam
juntos, em círculo, em ou sentados. A
conversa a seguir, extraída das gravações
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em sala de aula, mostra a problematização
do cotidiano em classe:
_ Mas o prefeito fez a ponte, né?
Isso é um ponto positivo, não é
mesmo, meninos? indaga a
professora
_ Fez mais ninguém passa, porque tá
caindo aos pedaços, né professora?
diz um aluno
_ Ah, é? Não sabia desse detalhe
Carmem pondera.
_Sim, e tem mais de ano que era pra
ele ter entregado, enrolou, enrolou e
ainda entregou assim.
_ Tacaram fogo nela, professora, a
população ficou com raiva diz
uma aluna.
_Foi? Não, sabia disso... Pois
coloquem no jornal.
Tal diálogo supera toda e qualquer
tentativa livresca de traduzir o mundo. Os
fatos recortados são trazidos pelos
discentes, experienciados por eles. Eles se
tornam agentes (Bourdieu, 2012) com
autonomia de produção; a relação
pedagógica passa, assim, pela participação
ativa dos adolescentes aprendizes. Ao
trazer dados para a escola, reelaboram.
Reelaboram mediante conversa
horizontalizada, onde a professora
desloca-se do lugar do saber legitimado
pela instituição e passa a coordenar a
atividade técnica de produzir o jornal,
cujos conteúdos são elaborados mediante
conversação com os alunos.
Certeau (2011, p. 142), ao elaborar a
concepção de que “para que haja cultura,
não basta ser autor das práticas sociais; é
preciso que essas práticas sociais tenham
significado para aquele que as realiza”,
possibilita compreender que prática
cultural é exatamente a oportunidade de
exercer ações que estejam coerentes com
os modos de vida das pessoas, mas não os
praticados forçosamente, como o
preenchimento de atividades arbitrárias em
livros didáticos, desenvolvidos como
esquema de ação reprodutora de uma
economia educacional tradicional.
A resistência em movimento: a forma do
círculo e as conversas de porta e
corredor
Júlia relata que entrou na
universidade para cursar a LPEC, tendo
sido inscrita para o Processo de Seleção
Especial por sua sobrinha, por não ter ela
mesma vontade ou interesse de estudar
nessa área. Uma vez cursando, no entanto,
compreendeu que estava diante de uma
educação não-convencional, como narrou:
“mudou alguma coisa aqui dentro”. Ou
seja, passou a fazer sentido para ela. Nas
práticas em sala de aula, por diversas
vezes recorreu aos modelos tradicionais de
educação; destacam-se, no entanto,
rompimentos nas condições de aula e no
desenvolvimento da prática dessa agente,
principalmente na organização dos alunos
e disposição em sala de aula.
Em nenhuma atividade no decorrer
dos dias, desde a entrada em sala de aula,
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os alunos se dispuseram em ordem de
enfileiramento. Todas as atividades foram
desenvolvidas em círculo. A turma era
“redemoinho”, se bem pensado, pois era
um círculo dinâmico, assumia sua forma
geométrica e rodava, girava, movia-se em
diferentes gravitações, ora em torno da
figura docente, ora em frente à TV, por
vezes para ler um livro ou para brincar à
mesa. No currículo de uma educação
tradicional, entretanto, a disposição em
ordenamento de fileiras impossibilitaria
esses modos de se relacionar docente-
discente, discente-discente. Os círculos,
como meio de disposição em sala de aula
traduzem a horizontalidade entre os
parceiros escolares (Freire, 1997).
O segundo aspecto de
ruptura/resistência observado nas práticas
da professora Júlia, e que se destaca
também nas demais agentes: os discursos
de resistência que flutuam nos espaços
oficiais. Os discursos que tratam de uma
nova concepção de educação e que surge
não de uma ordem hegemônica, mas é
instaurada pela ideologia do cotidiano
(Bakhtin, 1988), afetada pela formação da
licenciada em educação do campo. A
educação do campo se apresenta no
discurso docente e se está no discurso, é,
de modo efetivo, uma concretude, mesmo
que ainda não seja uma estratégia de ação.
É nas conversas espontâneas nos
momentos de intervalo de sala de aula que
se apresentam essas temáticas. O corpo de
Júlia torna-se menos tenso, ela ouve a
sirene e ri, e avisa: “vamos, turminha, se
organizar para a saída”. Estaria nesse
relaxamento a velha memória da
dicotomia vida x escola? Entretanto, Júlia
permanece na sala, esperando que os pais
ou responsáveis busquem os alunos.
Desencadeiam-se, a partir de então, os
“papos de porta”, onde os seguintes temas
foram abordados e alguns, estendidos por
mais de cinco minutos: paralisação dos
professores, os festejos da comunidade
para o fim do ano e conversas acerca da
última tomada de ações da diretoria.
Nenhum desses temas sugere um
conteúdo próprio da educação rural. É na
porta da sala que se encontram escola e
vida, escola e manifestação e cultura
popular. Encontram-se escola e luta de
classes, escola e embates pelo poder tanto
nos aparelhos de Estado, quanto nas
relações imediatas. Os muros simbólicos
da escola, ao que parece, cercearam a
professora até o ponto da sirene. A sirene
de encerramento permite uma entrada de
conteúdos impensados no rol escolar
tradicional.
Em uma das conversas, o pai de
aluno questiona acerca da possibilidade de
paralisação docente. Júlia informações
de data e em seguida completa: “e se não
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formos atendidas, virá greve!”. Outra
responsável conversa com Júlia acerca da
paralisação. A mãe, ao ouvir a afirmação
da Júlia, completa: “sim, eu entendo,
vocês precisam mesmo, não é justo, esse
prefeito é um desgosto”. O pai do aluno
para um pouco e avalia o calendário
escolar. “E as férias?”. Júlia completa:
“sim, mas, as férias, é daqui a quinze dias,
vai depender do resultado né, da
reunião”.
Em outro dia, a conversa com uma
avó que vem buscar o neto, assume outro
tema, dessa vez, festas populares na escola
escolares:
Avó:_ E a festinha lá?
Júlia: _ Sim, vai sair, né?
Avó: _ É. Ah, os meninos tão
empolgados, tão ensaiando a dança
todo dia.
Júlia:_ Vai ser ciranda infantil, as
músicas. Vai ficar bonito.
Avó: _ Parece que é carimbó, pra
mais velha.
Júlia: _ Ih, dancei muito quando era
nova (risos).
Avó: _ Eu já disse na turma, pra
gente apresentar ano que vem, tu
ensaia nós.
Júlia: _ Eu dou apoio, mas chama a
Lucinha pra ensaiar, ela é boa nisso,
tu não viu ano passado?
Avó: _ Ah é? Olha, então é ela
mesma (risos).
A festa da paróquia, que aconteceria
para a população, entusiasma tanto a avó
quanto a professora. Reparamos que a
escola foi rapidamente convidada pela avó
(aluna da Educação de Jovens e Adultos,
onde a professora havia lecionado à
noite), para participar do evento, em vezes
futuras. Questionada se a escola tratou no
ano letivo algo referente às manifestações
culturais, como as danças, a culinária, a
história local, a professora responde que
“às vezes a gente quer, mas não temos
recursos, e a direção não valoriza”.
A entrada de forma improvisada de
temas e assuntos diversos, do campo
político e cultural, pode ser entendida
como uma subversão do espaço escolar
tradicional, o qual não introduz (ou reduz
as possibilidades de introduzir) em seu
currículo tais conteúdos. Tal entrada surge
a partir do afrouxamento das regras, e
inaugura a possibilidade de emergir um
cotidiano que mais se assemelhe à prática
cultural desenvolvido por Certeau (2011).
O sistema escolar se mantém o mesmo, as
regras também, as estruturas são iguais,
porém é percebido pela agente uma brecha
de ação onde não está sendo exigido um
arquétipo professoral; logo, quebra-se o
habitus: surgem à porta outras vivências e
outros conteúdos descortinados por meio
das relações sociais que a docente e a
comunidade experimentam.
Nas conversas com Júlia, nota-se
certa falta da veia coletiva em sua atuação:
não planeja em coletivo com as demais
professoras, nem recebe formação
continuada, Conta que é desacreditada pela
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própria diretora, a qual postula não ser
uma escola possível de desenvolver os
preceitos da educação do campo, com a
justificativa de ser uma escola para o
público infantil e que exigiria, na visão da
diretora narrada por Júlia, um perfil
maternal (aquele oriundo do imaginário
burguês), e não um perfil de engajamento
político-social.
Entretanto, Júlia resiste. Ao concluir
os protocolos do que lhe é exigido no ato
de “dar aula”, pode deixar ecoar em si as
vozes coletivas nela, organizadas
mentalmente a partir dos meios de
produção social dos saberes em que ela se
circunscreve: a academia, a sala de
professores, as reuniões da classe, os
sindicatos, inclusive outra docência,
apontada pela avó de um aluno, ao
remeter-se à Júlia como professora do
EJA, o que de fato exerce à noite. Na porta
da sala de aula ela ainda exerce sua
docência, mas com menos mecanismos de
controle, tanto os externos, quanto aqueles
introjetados.
A conversa sobre a paralisação, por
exemplo, era quase sussurrada.
Inevitavelmente era posto entre as duas
agentes da conversa, a consciência do
inaudito escolar. Não é pertinente à cultura
da escola apoiar seus professores em
greves e manifestações de classe? Não é
cultura escolar debater a gestão de seus
governantes? Mesmo em face à eleição
democrática do gestor escolar, o que
sugere no referido diálogo é a
impossibilidade da causa política ser um
enunciado legítimo. A escola recebe, em
sua zona de afrouxamento, uma crítica. A
sirene oportuniza os momentos de
“sussurro” dos conteúdos interditados e é
no corredor que fluem as conversas não
legitimadas pelos rituais escolares.
Encontra-se nessa prática docente,
nesses discursos os ecos de sua formação,
uma vez que o currículo da LPEC
preconiza politicamente estratégias
formativas que sejam capazes de
oportunizar ao docente em formação, a
superação dessa visão restrita dos limites e
potenciais de sua ação” (Molina &
Antunes-Rocha, 2014, p. 25). Essa
formação se encontra com as exigências da
ação desenvolvida na escola, haja vista
que o professor se forja também no
exercício do seu trabalho.
Também é na porta de sala de aula
que a ação coletiva se desencadeia, de
outro modo que o previsto na estrutura
escolar. Uma das outras quatro professoras
da escola, chegando à porta, solicita que
Júlia se aproxime. Impossível escutar a
conversa ao do ouvido. Em seguida
Júlia resolve falar com maior nitidez: _ “a
gente faz assim mesmo, né? Eu não vejo
problema!”, a outra professora responde:
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_“mas como será isso? Aqui na sala?”.
Júlia a interrompe para chamar um aluno
que subia na mesa, em seguida conclui: _
“pode ser, mas vamos chamar as outras pra
decidir”. Questionada se a conversa se
referia a alguma programação escolar,
Júlia explica:
É não, quer dizer, era pra ser...
(risos). É uma confraternização que
queremos fazer antes do fim da aula.
Como esse ano trabalhamos um
projeto da Chapeuzinho Vermelho, a
gente ia fazer assim, sabe, uma
festinha com as meninas com uma
capa vermelha e os meninos com
máscara de lobo. Pedimos pra
diretora alguma colaboração pros
lanches, mas ela negou, porque só
tem dinheiro pra comprar o
computador dela, a impressora dela,
o resto a gente tira do nosso bolso,
mesmo, né? a gente se
juntando, alguns pais querem dar
assim uma ajuda de comida, mas
nem todos podem. A diretora não
quer não, mas a gente vai fazer sim,
porque é pelos meninos, né? A
escola não funciona não é pra eles?
(Entrevista com Júlia, 2015).
A programação não pode ser escolar
por causa do posicionamento pela diretora
(eleita com 97% dos votos da comunidade,
segundo ela mesma). Não um debate da
gestão dos recursos entre os agentes
escolares, segundo a professora; existe
assim democracia na escolha da direção da
escola, mas uma ruptura dessa estrutura
democrática nos procedimentos e meios de
decisão cotidiana. Daí o embate de forças
entre as docentes e a gestora.
Essa ruptura democrática, esse poder
verticalizado vindo da gestão escolar, não
permite ações estratégicas capazes de
instaurar uma nova ordem, mas orienta as
professoras à tática, cuja natureza de
emergência Certeau (1998) compreende
ser possível mediante o agir do outro
hegemônico. Assim, o outro, sendo a
figura da diretora, possibilita um fazer de
resistência que é engendrado
paralelamente ao poder vertical.
A interdição a uma ação que merecia
ser realizada com os aparatos oficiais
escolares acaba por reunir as professoras
nos corredores, após a sirene, para
reelaborarem a proposta do encerramento
do ano letivo. Não se trata, pois, de uma
ação explícita, nem audível, é, sobretudo,
um sussurro. Sobre esses “sussurros”,
Certeau (1998) observa que é um modo de
resistir do oprimido e necessita ser
observado pelo cientista como uma
prática, notando a sua arte, não a
sublimando, mas destacando seus
mecanismos, sua forma de se apresentar,
de estar e de modelar os corpos dos que
lutam por outra ordem.
Considerações finais
Compreende-se que as docentes do
campo cuja prática foi analisada neste
trabalho se envolvem em campos
conflituosos: existem mecanismos diários
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de opressão e controle que estrangulam as
iniciativas de reflexão e renovação da sua
prática. Seria inocência a compreensão de
que as professoras formadas pelo viés
ideológico da educação do campo, uma
vez lançadas em campo de atuação
docente (dentre muitos lugares, a sala de
aula), não deveriam se utilizar mais de
táticas e somente de estratégias
autônomas, como se, das agentes,
pudessem surgir uma prática que não
levasse em conta as condições materiais
em que elas se situam. Desse modo, o
objetivo de analisar a produção da
resistência nas práticas docentes foi
alcançado, uma vez que a pesquisa
apontou os modos de resistir construídos
no encontro entre formação e atividade
docente.
Apesar da formação docente estar
dentro da estrutura oficial, a docência do
campo ainda está pleiteando seus espaços
em sala de aula, sendo justificada a
resistência silenciosa como a mais
recorrente nas ações dessas agentes. Daí os
caminhos alternativos-combativos, os
sussurros, que, modificando programação
planejada de aula, que reformulando os
espaços escolares, trata de permitir um
fazer concorrente e, mais que isso, um
fazer “indisciplinado” da ação docente.
A disciplina que já se encontra
introjetada simbolicamente por todo
professor, ainda que limitando suas ações
e funcionando para disciplinar os corpos
dos demais agentes, não é a único modo de
ser/constituir-se professor, porque ocorrem
rompimentos, escorregadelas, burburinhos.
Certeau (1998) argumenta que esses
burburinhos são os sinais de uma vida para
além de uma ordem sistêmica.
Há, assim, nos modos de agir das
professoras analisadas, uma resistência
tática que permite pequenas
sobrevivências, sobremodo importantes na
construção de uma nova ordem
educacional, dentro de uma política do
campo e para o campo. A análise de tal
resistência, no cotidiano escolar, continua
extremamente necessária para uma
ampliação dos conhecimentos sobre o
fazer docente nessa experiência específica,
para lutar contra o habitus estruturado da
docência em geral, de tendência
burocratizante. Nesse sentido, conclui-se
que é necessária a instrumentalização não
científica-acadêmica, para que um fazer
emancipatório seja alargado nas escolas do
campo, mas política, a fim de produzir um
lugar na disputa do currículo, da gestão, do
planejamento, a avaliação, entre outras
dimensões educativas decididas e forjadas
por grupos não-hegemônicos.
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Anjos, H. P., & Cordeiro, D. R. (2021). Professoras de Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus docente.
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http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/
index. Acesso em: 04/11/2021.
i
Pesquisa financiada através de Bolsa pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
Docente (CAPES) do Ministério da Educação
(MEC), Brasil.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 26/08/2021
Aprovado em: 12/10/2021
Publicado em: 13/11/2021
Received on August 26th, 2021
Accepted on October 12th, 2021
Published on November, 13th, 2021
Contribuições no Artigo: As autoras foram as
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
A pesquisa fora financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
em seu Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP).
Funding
Anjos, H. P., & Cordeiro, D. R. (2021). Professoras de Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus docente.
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The research was financed by the Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
in its Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP).
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Anjos, H. P., & Cordeiro, D. R. (2021). Professoras de
Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus
docente. Rev. Bras. Educ. Camp., 6, e12921.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12921
ABNT
ANJOS, H. P.; CORDEIRO, D. R. Professoras de
Educação do Campo e resistência: as brechas no habitus
docente. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 6,
e12921, 2021. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12921