Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12939
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
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2021
ISSN: 2525-4863
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Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as
ações e percepções de mediadores formados no curso
Educação do Campo da Transamazônica e Xingu
Alcione Sousa de Meneses
1
, Ramonildes Alves Gomes
2
1
Universidade Federal do Pará - UFPA. Campus de Altamira. Faculdade de Etnodiversidade. Rua Cel. José Porfírio, 030,
Bairro Recreio. Altamira - PA. Brasil.
2
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG.
Autor para correspondência/Author for correspondence: alcione@ufpa.br
RESUMO. As reflexões do presente artigo centram-se nos
egressos do curso de Licenciatura em Educação do Campo da
UFPA-Campus de Altamira, vistos, para efeito desta análise,
enquanto agentes mediadores, os quais se auto declaram
pertencentes às ações coletivas ligadas ao campesinato.
Objetivamos analisar, a partir de uma abordagem qualitativa de
pesquisa, a dimensão histórica manifesta no pressuposto de
continuidade da classe (o nominado, genericamente, Movimento
Social da Transamazônica) que os mediadores portam, aliada
aos sentidos de mudança que os mesmos têm incorporado diante
da formação universitária recebida que repercutem sobre os
espaços de mediação dos egressos. Os dados produzidos através
das técnicas de entrevistas individuais e de grupo focal
permitem inferir que a incorporação e o uso de outras formas de
capitais (institucionalizados por meio do ensino superior) têm
contribuído para a emergência de mediadores, alguns advindos
da posição de lideranças locais, outros assumindo esse lugar de
intermediar demandas, recursos, etc; em ambos os casos, é
possível que estejam construindo instâncias locais de poder,
criando espaços de inclusão política, ou ainda questionando
internamente a própria ação coletiva.
Palavras-chave: educação do campo, deslocamentos sociais,
mediadores, Transamazônica e Xingu.
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Social dislocations caused by college education: actions
and perceptions of mediators graduated in Countryside
Education of Campo da Transamazônica and Xingu
ABSTRACT. The present work focuses on individuals with
Licentiate degree in Countryside Education of UFPA Campus
of Altamira, regarded as mediating agents who consider
themselves participants in peasantry-related actions. The main
objective of this study is to analyze, through a qualitative
research approach, the historical dimension present in class
continuity assumption supported by these mediating groups
(referred as Social Movement of Transamazônica), associated
with the sense of change they have developed in college thus
affecting their mediating scope. The data obtained through
techniques of individual and focus groups interviews reveal that
incorporating and using certain forms of capital
(institutionalized through college education) has contributed to
the emergency of mediators, some of them deriving from local
leadership positions and others intermediating demands,
resources, etc. In both cases, these groups may be building local
instances of power, by creating chances of political inclusion or
even questioning internally the collective action itself.
Keywords: countryside education, social dislocations,
mediators, Transamazônica, Xingu.
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Desplazamientos sociales provocados por la enseñanza
superior: las acciones y percepciones de facilitadores
egresos del curso de Licenciatura en Educación del
Campo, de la UFPA - Altamira Campus
RESUMEN. El presente artículo busca focalizar las acciones y
reflexiones de militantes de las acciones vinculadas al
campesinado en la zona Transamazônica y Xingu, egreso en el
curso de Licenciatura en Educación del Campo de la UFPA-
Campus Altamira, tomando como presupuesto, a efectos de este
análisis, el encargo de facilitadores. El objetivo es hacer un
estudio, desde un abordaje cualitativo a través de una anchura
histórica expresa en el presupuesto de continuidad de acción
clasista llevada a cabo por el denominado genéricamente
‘Movimento Social da Transamazônica’, al que los facilitadores,
añaden, así como los sentidos del cambio en sus performances
de militantes. Los datos producidos tras las técnicas de
entrevistas individuales y por equipos focalizados, asienten la
deducción de que la incorporación del habitus académico, bien
como el uso de maneras referente al capital cultural reunido a
través del acceso de los militantes a la enseñanza superior,
hayan aportado para que los mismos tomen sus posiciones de
liderazgo y de fundamental importancia para el intermedio junto
al Estado de exigencias comunales, sino también a la
capacitación de demandas. Los facilitadores intervienen
buscando la construcción de peticiones regionales de poder,
creando espacios de inclusión política, cuestionando
internamente el propio entorno colectivo.
Palabras clave: educación del campo, esplazamientos sociales,
facilitadores, Transamazônica e Xingu.
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Introdução
O curso de licenciatura em
Educação do Campo, do campus
universitário de Altamira, localizado na
região Transamazônica e Xingu, adota
como matriz de referência do processo de
formação, não os indivíduos enquanto
alunos, mas coletivos sociopolíticos e
étnicos que expressam outras formas de ser
e estar pertencente a povos e comunidades
tradicionais. Este é um dos requisitos para
ingressar nestes cursos, cujo Processo
Seletivo Especial (PSE), ao exigir a
apresentação de documento de
pertencimento social emitido pelas
autoridades representativas dos respectivos
coletivos, demarca a forma diferenciada de
entrada no ensino superior.
Os coletivos sociopolíticos que
articulam o alunado desse curso são
camponeses, extrativistas, pescadores
artesanais. A pesquisa centra-se nos
egressos que se declaram pertencentes aos
coletivos ligados ao campesinato, cujas
famílias de origem e eles próprios vivem
da agricultura familiar ou conjugam formas
de vida e trabalho no campo e na cidade.
Os sujeitos pesquisados abarcam os
egressos das primeiras turmas formadas em
Educação do Campo, entre 2018 e 2019,
que moram e atuam na região
Transamazônica e municípios adjacentes à
mesma, e, por isso mesmo, mantêm
também relação econômica intensa com o
rio Xingu ou Amazonas. Os egressos
vivem e atuam nos dez municípios que
constituem a região Transamazônica
i
, vale
destacar, assim nomeada a partir da frente
de expansão da fronteira agrícola para a
Amazônia brasileira, implementada na
década de 1970. Gradativamente, a
referência ao Rio Xingu foi sendo
incorporada à nominação do território
Transamazônica e Xingu, tendo em vista,
principalmente, a visibilização das lutas
sociais para reconhecimento de direitos a
partir dos impactos socioambientais
provocados pela construção da hidrelétrica
Belo Monte, cuja discussão local data da
década de 1980.
Ao todo, nas quatro primeiras
turmas formadas entre 2018 e 2019, são
118 egressos. Destes, entrevistei
ii
sete,
entre homens e mulheres, em julho de
2019, sendo essas entrevistas individuais
ou no formato grupo focal. Em outubro de
2020, em meio à campanha eleitoral para
os cargos de vereador e prefeito,
respectivamente nos Poderes Legislativo e
Executivo municipais, realizei entrevistas
com seis egressos e uma liderança sindical.
Destes egressos, cinco estavam
concorrendo a cargos de vereador/a em
quatro dos municípios da região
Transamazônica. As questões giraram em
torno da história de vida, da relação dos
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egressos e de suas famílias de orientação
com o movimento social, e das
repercussões do curso Educação do Campo
em suas vidas.
Além da formação universitária em
cursos diferenciados ou específicos, os
marcos temporal e histórico comuns a estes
egressos desenham a sua condição social
em termos de características econômicas e
políticas inseparáveis das ações públicas e
da dinâmica da estrutura agrária no
processo conformativo da região
Transamazônica. Essa condição social se
exprime por três processos sociais:
a) A constituição do campesinato de
fronteira na Amazônia como expressão do
capitalismo autoritário (Velho, 1979). b) A
relação das famílias de referência desses
egressos com os desdobramentos e ões
inerentes à construção e à reprodução da
colonização, reconhecida localmente como
estrada Transamazônica (BR 230). c) A
organização social de base sindical, forma
de resistência coletiva visando às
possibilidades de permanência na terra e na
região, de fato reivindicante de
investimentos do Estado, para além do
iniciado e alardeado projeto de colonização
da década de 1970, sem a completa
implementação desse projeto.
Os atores sociais representativos da
atividade agrícola por meio do Movimento
pela sobrevivência na Transamazônica
(MPST), do Movimento pelo
Desenvolvimento da Transamazônica e
Xingu (MDTX) e da Fundação Viver,
Produzir e Preservar (FVPP) vêm se
posicionando, por ação coletiva
iii
, em
relação concorrencial ou de parcerias, para
operarem no campo de disputas por
recursos diversos e adequarem-se às
exigências interpostas pela ação pública.
Por tais ões, condições de possiblidade
foram criadas para implementação de
projetos coletivos, sejam os familiares,
sejam os políticos, ou seja, de alcance
estrutural.
Assim, pretendemos refletir acerca
da posição de mediadores sociais que esses
egressos têm assumido junto às
organizações sociais representativas do
campesinato (que se deram e se dão
sempre inseparável das lutas por educação
na região lócus deste estudo). Objetivamos
ainda analisar os sentidos que os egressos
dos cursos atribuem à sua prática, em
diálogo com dois elementos do contexto
social que demarca a socialização dos
mesmos, a saber, a experiência de
campesinato de fronteira vivida
pessoalmente ou por tabela (via
socialização familiar), e a formação
universitária em curso específico. Além
desse objetivo, buscamos também refletir
sobre as formas de atuação desses agentes
mediadores que constituíram redes,
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ligações institucionais a partir das
ramificações de suas ações. Movemo-nos
por algumas questões centrais: quais
conteúdos, sentidos e valores os egressos
mobilizam ao ocupar o lugar de
mediadores sociais com capital cultural
institucionalizado via ensino superior?
Quais mudanças têm ocorrido na posição
social que estes egressos ocupam e no
modus operandi da mediação exercida por
esses agentes?
Este artigo está organizado da
seguinte forma: inicialmente, abordamos o
conceito de mediadores sociais e os
referenciais teórico-metodológicos que
embasaram as análises; em seguida,
abordamos a relação do curso Educação do
Campo com o movimento social local; no
terceiro tópico, fazemos uma
caracterização inicial dos agentes
mediadores e apontamos as possíveis
disposições e percepções valoradas como
herança cultural própria; e, por fim,
analisamos como esses agentes significam
o passado comum e como a formação
universitária influencia na reflexão do que
valorizam como permanências desejadas e
mudanças requeridas dos repertórios de
ação, todos exprimindo estruturas
cognitivas que operam na construção de
formas de se representar e pensar sua ação.
Escolhas teórico-metodológicas
O processo de mediação social, bem
como o papel e a forma de atuação do
mediador, vem sendo adotada como
categorias explicativas de certos
fenômenos sociais, sobretudo na literatura
sobre campesinato. A princípio, nas
décadas de 1950/60, as análises
antropológicas sobre campesinato e
mediação foram realizadas em meio aos
estudos de comunidade. Privilegiaram
temas da mediação associados à
patronagem; o foco estava sobre a
organização interna das comunidades.
Nesse momento, a figura do mediador é
comumente apresentada como o broker,
alguém que age na articulação entre partes
distintas, facilitando transações
econômicas. A ampliação e consolidação
da mediação enquanto conceito acadêmico
se deu sobretudo com Wolf (2003), quando
o mesmo passa a operar com tal conceito
para analisar as relações sociais e trocas
(políticas, econômicas, culturais) entre
sociedades camponesas e a sociedade
nacional (Nussbaumer & Ros, 2011). Wolf
lança luzes sobre o papel estratégico do
mediador enquanto agente que atua na
interconexão entre universos sociais
distintos e assimétricos, típicos de
sociedades complexas.
Apesar de distintos, o local (o
interno) e o nacional (o externo)
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universos sociais onde atuam os
mediadores são interdependentes,
constituem-se por redes de grupos de
relações mútuas. Destaca-se nas pesquisas
de Wolf, uma das principais funções do
agente mediador: a lida em meio a relações
de poder, especialmente na busca de acesso
a recursos e serviços públicos pelas
populações locais. Decorre daí a posição
também de exercício de poder desse
agente, dado o acesso a informações, às
redes institucionais e ao conjunto de
competências que desenvolve. Segundo
Nussbaumer e Ros (2011), sob esses
referenciais analíticos, amplia-se a noção
de mediador para além da ideia de broker
(cuja ênfase esteve nas transações
econômicas); o mediador é também
compreendido enquanto o agente que atua
na articulação de vários campos sociais o
cultural, o econômico, o político, o
religioso, etc.
Outro aspecto presente na literatura
específica sobre mediação é a referência
aos processos de transformação social
senão mudança social , que a atividade
mediadora é capaz de protagonizar.
Sobretudo por agir na interligação entre
mundos sociais hierarquizados, os
mediadores, fazendo uso de competências
e relações sociais, são potencialmente
capazes de promover formas de inclusão
pelo acesso menos desigual às instituições,
programas e políticas públicas, dentre
outras. Essa temática vem sendo bastante
refletida nas obras de Neves (2008, p. 32),
para a qual a ação mediadora põe em
movimento “... as transformações dos
lugares públicos e a renovação das
modalidades e funções da política”.
Foi com o enfoque nas
transformações no meio rural, catalisadas
pelas lutas sociais em contextos de
concentração de terra e exclusão de
trabalhadores que os estudos de mediação
iniciaram no Brasil, a partir dos anos 1970
(Novaes, 1994). Essa perspectiva analítica
continuou muito presente na bibliografia
sobre mediação no Brasil nos anos 1990 e,
principalmente entre os anos de 2003 a
2016, devido à efervescência de políticas
públicas voltadas ao desenvolvimento
rural; à criação de créditos agrícolas
voltados à chamada agricultura familiar (a
exemplo do FNO especial, do PRONAF e
das políticas orientadas pela dimensão
territorial de desenvolvimento que
orientaram as ações nos governos
democráticos nesse período); e às ações
públicas favoráveis a uma maior
participação da sociedade civil na
construção de demandas e execução destas
ações.
Como interpretamos, no curso
histórico da região Transamazônica e
Xingu, um processo de constituição da
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militância, sobretudo ligadas ao campo, na
Transamazônica, na década de 1970,
regida por uma legitimidade carismática
sob mediação da igreja católica; a partir de
meados da década de 1990, assiste-se a
processos formais de constituição de
lideranças ou mediadores em cursos,
demandados pela ação coletiva, visando à
profissionalização de seu quadro (Meneses,
2010). Esse fato diz respeito a um processo
de racionalização social em curso, visto
que o diploma universitário passa a ser
valorizado diante da necessidade de
legitimação e da necessária qualificação da
fala, a partir do aquisição do saber formal,
dado ser importante para captação de
recursos públicos, para participação nos
espaços institucionalizados, sobretudo
quando o Estado se aproxima da sociedade
civil atribuindo a esta responsabilidades
que em princípio seriam suas (como nos
casos de gerenciamento de serviços de
previdência social nos STTRs), ou
convidando-a a pautar políticas de
desenvolvimento por meio dos conselhos
municipais, etc. Vê-se um contexto social
que passou a exigir uma espécie de
atualização da distinção da classe à qual
esses agentes mediadores pertencem.
Situamos o curso Educação do
Campo como parte deste contexto de
mudança da legitimidade do grupo,
definido genericamente como movimento
social. O diploma obtido nesse curso
implicaria racionalização da ação
mediadora no contexto da Transamazônica,
uma espécie de publicação oficial dos
mesmos, e tem um efeito de consagração e
licitação (Bourdieu, 1990), produzindo
pessoas autorizadas porque investidas do
conhecimento e do reconhecimento; um
tipo de legitimidade racional-legal,
distanciando-se da tradicional-religiosa
(Weber, 1999).
A mediação, dado ser um fenômeno
próprio de sociedades complexas, demanda
investimentos e constante atualização do
saber em mediar, a fim de adequar-se às
espécies de capital e autoridade requeridas
para falar em nome da classe aos
interlocutores com perfis e itinerários
políticos distintos. Bourdieu (2006) nos
inspira a pensar a classe a partir de
elementos econômicos e, principalmente,
simbólicos reconhecidos a manutenção
desta ordem simbólica passa por um
trabalho de produção de legitimidade.
Estratégias de conservação e/ou
reconversão das formas de capital
(cultural, social, econômico) são
necessários a fim de fazer ver e fazer
reconhecer a distinção social da classe.
Em linhas gerais, valoramos ainda
dois aportes empíricos na trajetória dos
egressos estudados: o pertencimento ao
percurso social de uma determinada
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classe/grupo; e a formação universitária,
cujas finalidades sociais dialogam com
demandas de organizações representativas
do campesinato, concebido como categoria
política e epistêmica. Importa ainda, para
fins de análise dos dados, neste artigo,
pensar a posição dos mediadores enquanto
porta-vozes em espaços de relações em que
tal posição os leva a falar de classe, ou
seja, de grupo mobilizado ainda que seus
atores estejam morando e atuando fora das
comunidades rurais; assim como falar em
nome da classe segundo representação de
demandas.
A origem comum dos agentes
mediadores aqui analisados e/ou de suas
famílias de orientação seria mobilizadora
da representação de uma classe. As
condições e condicionamentos
concernentes à colonização dirigida pelo
Estado, seguida da constituição de formas
diversas de ação coletiva para
enfrentamento da reclamada situação de
abandono do Projeto de Colonização e
consecução de recursos, são fatores que
lhes atribuiriam o sentido coletivo e
delineador de identidade social, de
pertencimento dos egressos, engajados no
chamado grupo do movimento social da
região”.
A experiência, conforme analisa
Barth (2000, p. 129) é “... resultado da
interpretação de eventos pelos indivíduos”.
A experiência liga-se também aos
processos de subjetivação dos agentes em
diálogo com a (não subsumidos na)
estrutura onde são socializados; a ação dos
mesmos sobre situações determinadas está
imbuída da consciência desta experiência
(Thompsom, 2009). O conceito de
experiência também vai ao encontro do
fenômeno de projeção ou de identificação
com determinado passado, sendo este
construído por personagens e fatos vividos
pessoalmente ou por tabela (Pollak, 1992)
uma espécie de memória herdada na
socialização histórica ou na socialização
política em um território que se constituiu
e/ou se modificou a partir do campesinato
de fronteira.
Assim como Bourdieu, Thompson
(2008) apresenta a noção de classe, ao
abordar a classe não como algo dado, com
existência perene e consolidada; antes são
as lutas cotidianas em determinado espaço
social
iv
, que constroem experiência em
comum, “[e] essa experiência adquire
feições classistas, na vida social e na
consciência, no consenso, na resistência, e
nas escolhas de homens e mulheres”
(Thompson, 2008, p. 260).
O espaço socialmente construído
compõe-se por campos onde se tecem as
estruturas de relações e posições dos
agentes. Os campos sociais são o lugar de
luta no sentido da participação dos agentes
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em atividades regradas e no sentido das
relações de força entre agentes e entre
instituições (Bourdieu, 2007). As formas
de pensar, sentir e agir dos agentes são
orientadas por “disposições ligadas a uma
trajetória passada (habitus)” (Idem, 2006,
p. 23). presente na subjetividade, nos
esquemas de percepção e ação dos
indivíduos, estruturas interiorizadas
constituintes da coesão do grupo ou classe.
A noção de trajetória social é aqui
assumida como orientação da análise.
Algumas de suas características de análise
são particularmente importantes para as
finalidades a que nos propomos: a
articulação entre as trajetórias individuais e
as socializações coletivas, e a
potencialidade de apreensão do social a
partir do indivíduo, assim, o “... o acento se
põe não na interioridade dos sujeitos, mas
no exterior a eles: os contextos sociais que
eles têm adquirido por experienciar um
conhecimento prático” (Bertaux, 2005, p.
21).
A constituição do espaço em um
campesinato de fronteira e as lutas pela
permanência na região: contexto da
demanda por educação diferenciada
A existência do campesinato
enquanto categoria social vai ao encontro
do caráter político de sua trajetória,
especialmente no Brasil. Condizente com
este olhar, Wanderley (1997) analisa o
campesinato como expressão da
diversidade político-cultural do mundo
rural brasileiro, constituindo-se pelo
enfrentamento de situações próprias da
história social marcada por instabilidade
econômico-política e precariedade
estrutural, condição adversa que nutre a
construção de uma identidade política
contrastiva com os defensores do latifúndio
e o autoritarismo do Estado. Nas relações
com órgãos do Estado para consecução de
recursos diversos, vêm sendo construídas
autoidentificações distintas: agricultores
familiares, ribeirinhos, quilombolas e
tantos outros grupos que se mantêm como
cultivadores rurais.
O espaço social deste campesinato
de fronteira na Transamazônica, ao longo
de sua trajetória, vem se constituindo pelo
campo político (representado pelas
organizações sociais/sindicais), o campo
religioso (representado pelos espaços das
organizações comunitário-religiosas) e o
campo científico-acadêmico (representado
por instituições de pesquisa como o LAET
e a UFPA).
O processo de territorialização da
região Transamazônica tem como marco a
década de 1970, momento no qual se
efetiva uma intensificação demográfica,
resultante de um conjunto de políticas
ligadas ao movimento desencadeado pelo
Estado de expansão da fronteira
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amazônica, expressiva de sucessão
migratória dirigida (Velho, 1979), via
ocupação horizontal da abertura de
estradas e projetos de colonização, para
expansão econômica brasileira fundada em
grandes projetos, cuja finalidade era
viabilizar a industrialização em larga
expansão no contexto de regime militar. Os
agentes da ação coletiva, na região
polarizada por Altamira, conformam um
grupo cuja posse da terra se deu com o
projeto de colonização.
O período referente à metade da
década de 1970 e, principalmente, os anos
iniciais da década de 1980 coincidem com
o auge da recessão provocada pela crise do
modelo de intervenção estatal por meio do
projeto de colonização agrícola. Este fora
abandonado pelo governo federal, ficando
as famílias de migrantes desamparadas e
tendo que enfrentar uma série de
dificuldades de sobrevivência, contando
apenas com as relações de parentesco, as
redes de vizinhança e os laços de
conterraneidade (Hébette, 2002). A essas
redes de solidariedade entre grupos
familiares soma-se, aos poucos, os grupos
de vizinhos organizados pela Prelazia do
Xingu, mediante as Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs), cuja finalidade fora
discutir os direitos dos agricultores e a
questão fundiária, bem como realizar a
alfabetização dos migrantes e seus filhos
(em experiências quase informais, dada a
ausência do Estado).
Dessa forma, tendo em vista a
aglutinação dos colonos em torno dos
debates sobre direitos trabalhistas, ação
sindical, celebrações religiosas, bem como
a escolarização inicial dos migrantes e seus
filhos, foi dado início a uma espécie de
comunidade política (Weber, 1999), e,
dentre os conteúdos mobilizadores, está
uma certa crença subjetiva na comunidade
de origem. Posto que “[a] realidade de
todas as pessoas é composta de
construções culturais” (Barth, 2000, p.
111), neste tempo-espaço orientado pela
atuação militante, ao mesmo tempo
política e religiosa, a construção do grupo
aconteceu, sobretudo, pela força política
mobilizadora da ação coletiva em torno da
identidade de trabalhadores rurais junto à
de colonos da Transamazônica. A
autoidentificação, a partir de uma
organização própria e contrária à definição
circulada pelo Estado, manifesta um
projeto coletivo de resistência a partir do
‘trabalho de base’.
Até meados da década 1970, o
projeto de colonização agrícola da
Transamazônica funcionou com alguns
subsídios estatais que garantiram acesso à
terra, assistência à saúde e algumas poucas
linhas de financiamento para o início da
produção agrícola. A retirada da ação
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pública neste processo de constituição do
chamado campesinato de fronteira forçou a
constituição de quadros institucionais
forjados pela ação coletiva camponesa,
que, grosso modo, constituíram o que é
denominado pelos agentes enquanto
“movimento social da região”, cuja base é
sobretudo o sindicalismo rural, e, junto a
este, vem constituindo-se agentes
intelectuais e políticos ou mediadores
sociais, os quais assumem o lugar de
articulação entre atores e campos sociais
para a construção de direitos e recursos,
tendo em vista o atendimento de interesses
específicos do campesinato, assim como
provocar transformações nas relações de
poder (Neves, 2008).
Como é possível observar, a reação
dos agricultores para tornar realidade a
construção de um espaço social de
produção e reprodução camponesa
corresponde a dois momentos nos quais a
ação coletiva e a ação pública, por vezes,
são antagônicas, outras vezes são
complementares.
O primeiro diz respeito à
constituição de quadros institucionais a
partir da imposição do projeto de
colonização e à gradativa organização
coletiva de base comunitário-religiosa,
que, aos poucos, frente à retirada da ação
pública, em 1975, vida às organizações
sindicais mais integradas e formalizadas,
cuja atuação regional e relações com
organizações nacionais, como a
Confederação Nacional dos Trabalhadores
Rurais Agricultores e Agricultoras
Familiares (CONTAG), possibilitou a
barganha política por direitos e a
proposição de ações e projetos
reivindicatórios de formas de inclusão de
demandas dos agricultores na ação pública.
Desse momento, constituíram-se o
Movimento pela Sobrevivência na
Transamazônica (MPST), entidade
representativa dos diversos grupos sociais
da região, sob a liderança dos colonos
agricultores organizados em Sindicatos de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e
com a parceria estratégica local/regional do
“grupo dos professores” (que
posteriormente viria a formar, na região, o
Sindicato dos Trabalhadores em Educação
Pública do Estado do Pará SINTEPP),
como também da Igreja Católica, mais
precisamente, da Prelazia do Xingu. O
espaço público das organizações sociais se
fortalece significativamente também no
cenário nacional, seja com os pares
estratégicos como Federação dos
Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI),
CUT e Confederação Nacional de
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG),
seja ainda na esfera político-partidária,
tendo em vista a consolidação gradativa do
PT, partido com o qual dialogavam as
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
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lideranças do MPST e seus pares
estratégicos.
O conjunto de articulações regionais
e nacionais reforçou a construção de um
Projeto Global de Desenvolvimento
(PGDT), em 1991, a partir do “Grande
Acampamento de Altamira”. Também
definido como projeto alternativo de
desenvolvimento ou projeto da “Nova
Colonização”, propunha-se a “... recuperar
o projeto de colonização em outras bases”.
Nesse projeto, percebe-se o papel
reivindicativo da ação coletiva, mas
também o papel de ator social propositivo
que passa a marcar o perfil do MPST
(MPST, 1991), cobrando, para a realização
de suas ações, assessoria de um quadro
gerencial e de instituições de pesquisa, a
fim de fundamentar o projeto de
desenvolvimento que referenciava as
reivindicações e proposições. Nesse
contexto, foi constituída a Fundação Viver,
Produzir e Preservar e, em 1993, a parceria
com o LAET, através do Programa Agro-
Ecológico da Transamazônica (PAET).
Gradativamente estas formas de
agenciamento de mediadores vão se
mesclando (não o anula) com conteúdo
mais institucionalizado, tendo em vista a
mudança discursiva e de repertórios de
ação da classe para manter a distinção
social e a legitimidade política. Isso
corresponderia ao segundo momento da
constituição do espaço social camponês, no
final da década de 1980 e início da década
de 1990, que diz respeito à consolidação
dos quadros institucionais e ao desafio da
profissionalização e da ambientalização
v
.
Com a conquista de financiamentos
específicos para a agricultura familiar,
como o FNO especial, considerado uma
das maiores conquistas por esse quadro
institucional da década de 1990, por
garantir a permanência das famílias nos
lotes, as organizações sociais passam a
exigir um quadro cada vez mais específico
de profissionalização para apoio técnico,
demandantes de saber acadêmico/escolar.
Ainda como consequência desta conquista,
constata-se o predomínio da pecuária como
prática produtiva e a capitalização das
famílias. A fim de dar continuidade ao
projeto não de ‘sobrevivência na
Transamazônica’, mas de
‘desenvolvimento da Transamazônica’, ao
mesmo tempo que se buscava alternativas
para diminuir os impactos da evolução
diferenciada dos estabelecimentos
agrícolas, bem como qualificar os seus
quadros, o MPST e FVPP mobilizam
parcerias com órgãos de pesquisa como a
EMBRAPA, o Groupe de Recherches et
d’Echanges Technoligiques (GRET) e com
a Universidade Federal do Pará, para a
criação do Laboratório Agroecológico da
Transamazônica (LAET/UFPA), em 1993,
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
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para o qual se previa um Programa de
Pesquisa-Formação-Desenvolvimento, a
fim de desenvolver pesquisas técnico-
científicas orientadas para as demandas da
agricultura familiar.
Em 1996, o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura
Familiar/PRONAF, ao lado do instalado
FNO, dão visibilidade à agricultura
familiar, mas impõem cada vez mais a
exigência formal de profissionalização
para inserção nos mercados agropecuários,
em que a escolarização é posta como meio
de acesso a este objetivo. Ao lado disto, a
partir de 1999, tem-se a liberação de
recursos do Programa Piloto para proteção
das Florestas Tropicais do Brasil (PP/G-7),
captados pela FVPP, para difusão de novas
técnicas de uso da terra.
A profissionalização e a
ambientalização da ação coletiva põem em
voga tanto a incapacidade técnica da
produção agrícola (frente às demandas de
agentes financiadores), quanto a
inabilidade das antigas lideranças à frente
dos quadros institucionais. Ao lado disso, a
baixa oferta de alternativas (em quantidade
e em qualidade)
vi
de escolarização nas
vicinais da Transamazônica e nas
comunidades ao longo do Xingu não
atenderia às demandas e aos interesses
específicos de profissionalizar os
camponeses em bases agroecológicas, bem
como não promoveria a identificação das
novas gerações de agricultores com a
ideia-valor ‘luta’, referendada na ação
coletiva e na trajetória da mesma para
constituição da condição camponesa na
região (Meneses, 2010).
Nesta conjuntura, o campesinato
coloca em questão a educação universal
frente aos desafios da gestão política da
sua reprodução social. Diante dessa
problemática, a partir de meados da década
de 1990, investimentos importantes em
propostas de escolarização diferenciadas,
via Alternância Pedagógica, vêm sendo
implementadas pelo campesinato ou com a
parceria do mesmo em interface com o
campo acadêmico. Assim pensadas, essas
propostas têm sido colocadas como
estratégias de reprodução social do grupo
(Bourdieu, 2007), visando conservar sua
posição social na condição camponesa,
afirmar ou reforçar o habitus coletivo, mas
transformando seu capital social
vii
e
simbólico
viii
pela incorporação do capital
cultural
ix
(representado pelo saber
escolar/acadêmico).
A estrutura de legitimidade da ação
coletiva exigia, assim, a credibilidade das
proposições a partir de resultados de
pesquisa, do emprego do conhecimento
técnico e acadêmico. As formas de
agenciamentos de agentes mediadores
passam também a ter estes elementos como
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
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referências, afinal a autoridade da agência
dos mesmos não é mais exclusivamente a
tradição de luta embasada no carisma
religioso, nem nos repertórios dos
discursos e lutas sindicais. A manutenção
da classe e seu poder de diálogo ou de
barganha com o Estado e suas instituições
exigem mudança no capital de legitimidade
específico (Bourdieu, 2006), ou seja, a
distinção para se colocar como porta voz
do grupo e porta voz de direitos advém
agora da academia.
A necessidade do diploma, para além
do capital social a que os agentes
mediadores têm incorporado, expõe uma
estrutura social em mudança e, como
interpretamos, dois investimentos
importantes da ação coletiva para a
conservação e/ou ampliação de seus
quadros institucionais são assumidos: as
escolas comunitárias Casas Familiares
Rurais, a partir de meados da década de
1990, e, na década de 2000, o curso
Educação do Campo, além do curso
Etnodesenvolvimento que já vinha sendo
demandado à UFPA pelas organizações
sociais da região as primeiras, mantidas
pelos STTRs, sobretudo, e destinadas a
formar os filhos dos colonos agricultores
no nível de ensino fundamental e médio; os
segundos, destinados a formar em nível
superior os agentes da ão coletiva. Em
grande medida, esses cursos superiores de
educação diferenciada foram sendo
implementados com a parceria formal ou
tácita dos quadros institucionais que
compõem a ação coletiva regional:
Associações indígenas, MDTX, FVPP (que
articula os STTRs da região), Movimento
de Mulheres do Campo e da Cidade,
Coletivo de Mulheres Negras, Movimento
Xingu Vivo para Sempre, Movimento de
Atingidos por Barragens e Colônias de
Pescadores Artesanais.
A ideia de educação diferenciada
vem se convencionando enquanto conceito
genérico para definir/nomear as
experiências de educação escolar e
universitária de caráter inovador
(Brasil/Mec-Secad, 2007), distintas das
oferecidas nas cidades e implementadas
com/a partir do protagonismo político de
povos e comunidades tradicionais,
constituídos por diversos pertencimentos
étnico-políticos: indígenas, camponeses,
ribeirinhos, extrativistas, quilombolas. No
cenário nacional, as lutas por educação
diferenciada, coladas à construção de uma
nova categoria de percepção do mundo
social: povos e comunidades tradicionais,
em um contexto de transformações
políticas e novas práticas organizativas
(Cruz, 2012), juntam-se ao debate e às
demandas por Educação do Campo que
vinha sendo protagonizada por diversos
atores sociais desde meados da década de
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
Campo da Transamazônica e Xingu...
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1990, especialmente quando se constitui a
Articulação por uma educação básica do
campo entre 1997 e 1998 (Caldart, 2012).
O curso de Licenciatura em Educação do
Campo no campus de Altamira iniciou
suas primeiras turmas em julho de 2014, a
partir do edital do MEC/SECADI, com
recursos do Procampo, que previa vagas
para docentes, técnicos administrativos e
recursos financeiros para implementação
das turmas. No nível local, a
implementação desse curso contou com o
protagonismo de docentes da UFPA que
tinham uma trajetória de condução de
cursos de ensino médio a partir do
Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (PRONERA), bem como
um profícuo diálogo com lideranças das
organizações sociais ligadas ao
campesinato (STTRs, MPST, MDTX), de
modo que as diretrizes gerais acerca da
finalidade social e pedagógica do mesmo
fora se desenhando na interface entre o
movimento social local e a universidade,
em observação ao que propunham as
diretrizes nacionais do Movimento Por
uma Educação do Campo.
O curso Educação do Campo em
Altamira destina-se a formar educadores
para atuar na Educação Básica, nas áreas
de Linguagens e Códigos e Ciências da
Natureza, nas séries finais do ensino
fundamental e no ensino médio. Este curso
parte do pressuposto de que a educação
deve realizar-se no conjunto das lutas e
organizações do povo do campo, na luta
pela terra e por condições dignas de vida e
de afirmação de sua identidade; logo,
defende que a mesma deva ser definida
coletivamente pelos próprios sujeitos do
campo, em contraposição às propostas
urbanocêntricas de ensino (Caldart, 2012).
A forma de ingresso nesses cursos,
por ter como um dos principais requisitos o
pertencimento a coletivos sociopolíticos do
campo, bem como as escolhas político-
pedagógicos, acima expostas, que
compõem a estrutura curricular dos
mesmos, parecem reforçar ou atualizar o
sentido da classe mobilizada. Os egressos
expressam este possível conteúdo definidor
de fronteiras identitárias e de uma
trajetória de ‘lutas’, na qual o mesmo é
posicionado enquanto meio para dar
continuidade a essas lutas. Vejamos como
externalizam esses conteúdos quando
indagados sobre o que os mobiliza para
agir no “movimento social” e para
ingressar no curso: ... o curso de educação
do campo veio como uma dupla dose de
tudo aquilo que a gente almejava de luta,
melhorar cada vez mais nesse processo de
desenvolvimento rural para os camponeses,
que estão no final do rio ...” (Lívio.
Município Gurupá. Turma 1 Educação do
Campo. Entrevista/julho de 2019).
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
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A seguir veremos como estes agentes
mediadores que obtiveram o diploma
universitário representam a si mesmos,
como significam o passado comum e como
a formação universitária influencia
permanências e mudanças dos repertórios
de ação e estruturas cognitivas.
Repercussões atuais da formação
universitária em Educação do Campo:
deslocamentos identitários e
socioprofissionais
Os egressos entrevistados têm entre
vinte e quarenta e cinco anos; formaram-se
entre 2018
x
e 2019. Todos/as são
casados/as ou constituíram famílias
próprias. Em comum, manifestam uma
certa consciência moral e afetiva com o
“movimento social da região”, que seria a
sua base, e o curso de ensino superior os
habilitaria para atuar melhor nesta base.
Um senso de auto responsabilização é
acionado quando se reportam ao seu papel
na condução e continuidade das lutas pelo
que julgam “desenvolvimento” de sua
localidade, de sua comunidade. A
aplicação do conhecimento formal
direcionado à ão coletiva seria o
dispositivo de atualização dos laços e das
formas de “pagamento da dívida” ou
renovação dos laços, agora segundo uma
lógica institucionalizada ao modo de uma
rotinização da tradição. Vejamos umas das
falas significativas:
... o comprometimento né, com a
causa que a gente vem lutando, desde
a base como movimento social, foi
um presente que nós ganhamos, fazer
um curso de educação do campo, no
sentido de incentivo, de aprimorar
cada vez mais o nosso pensamento e
acima de tudo conhecendo os
direitos que s temos, nós que
moramos no campo. Então a gente,
eu não me canso de falar que eu sou
camponês com todo orgulho, e o
curso de educação do campo trouxe
para mim além do que minha base
que foi na Casa Familiar Rural, que
eu não esqueço disso. Mas o curso de
educação do campo veio como uma
dupla dose de tudo aquilo que a gente
almejava, pensava de luta nas causas,
melhorar cada vez mais nesse
processo de desenvolvimento rural
para os camponeses, que estão no
final do rio ... (Lívio. Município
Gurupá. Turma 1 Educação do
Campo. Entrevista/julho de 2019).
Na fala acima é interessante ainda
observar dois aspectos importantes que
demarcam os pertencimentos e as
atualizações políticas e identitárias dos
egressos. 1) O primeiro diz respeito à
origem da relação com as organizações
sociais da ação coletiva, o que vai ao
encontro das formas de agenciamento que
mobilizaram/mobilizam estes agentes
mediadores a compor seus repertórios de
ação e sua experiência com a formação
universitária obtida. 2) O segundo trata-se
da forma de representar a si mesmo, que
resguarda uma forte relação com o local e
com a ideia de região, mas também uma
ampliação de identificações sociopolíticas
que parece ir ao encontro do que Hannerz
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(1997, p. 24.) define como ‘zonas
intersticiais’. Tratar-se-ia de agentes
constituídos em zonas fronteiriças (reais ou
simbólicas), e, deste lugar social, os
mesmos têm “... espaço para ação [agency]
no manejo da cultura”.
Agenciamentos, legitimação como
“porta-voz” da classe, mobilidades
socioprofissionais e identitárias
Dez dos treze entrevistados entre
julho de 2019 e outubro de 2020 têm uma
relação orgânica com os quadros
institucionais que compõem a ação coletiva
na região Transamazônica e Xingu, com
base no sindicalismo rural e/ou ao Partido
dos Trabalhadores, cuja base nessa região é
eminentemente rural. Três têm suas formas
de atuação política a partir do sindicalismo
docente (Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Pública do Estado do
Pará/SINTEPP), cujas referências de
atuação são bandeiras de luta relacionadas
à condição profissional e de funcionamento
das escolas sem distinção sobre serem do
campo ou da cidade. É possível identificar
duas formas de agenciamento que os
levaram a construir uma atuação de
mediadores sociais.
No primeiro grupo, situam-se os dez
agentes mediadores cujo agenciamento se
deu pelo pertencimento à “família de
lideranças”, como eles definem. Estes são
filhos/as, sobrinhos/as das primeiras
lideranças ou agentes mediadores que
atuaram na constituição dos primeiros
quadros institucionais para enfrentamento
das condições de abandono do projeto de
colonização agrícola no período da
abertura da Transamazônica, retomada do
sindicato de trabalhadores rurais, fundação
do Partido dos Trabalhadores (PT)
local/regional, constituição do MPST,
MDTX e FVPP. Nesse grupo, ainda se
situam os egressos cujo recrutamento para
a luta se deu a partir do STTR (por assumir
funções nele) e a partir da formação na
Escola Comunitária Casa Familiar Rural
(CFR), a qual se configura enquanto um
dos principais quadros institucionais da
ação coletiva representativa do
campesinato na década de 1990 e anos
2000. Neste grande grupo, é comum a
passagem dos agentes pelas ações
sociocomunitárias da igreja católica
(grupos de jovens e demais ações
pastorais). No terceiro grupo,
identificamos os/as que em geral
exerciam a docência em escolas públicas,
daí sua relação com o sindicalismo docente
via SINTTEPP neste caso, o sindicalismo
rural, ou os quadros institucionais dele
decorrentes, não são uma referência nem
para ingresso no curso, nem para a atuação
posterior à formação universitária, mas
todos têm uma relação com a região que se
inicia pela origem familiar rural, e a posse
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da terra a partir do projeto de colonização
agrícola representa um tempo importante
de sedentarização e com formas de
representar a si mesmos reforçadas pelo
curso.
Vejamos no quadro abaixo, de forma
sucinta, a origem sociopolítica destes
egressos, suas atuações profissionais e
políticas antes, durante e após o curso:
Quadro 1 - Caracterização dos/as egressos/as.
Egresso/
Município de
origem e de
maior
atuação
Origem
sociopolítica/
relação com o
“movimento
social da
região”
Atuação socioprofissional antes
e durante o curso
Atuação
socioprofissional após o
curso
Júlio/
Placas
Família de
lideranças
pioneiras; Ex
CFR
Educador na CFR; assistência
técnica em agropecuária via
STTR
Educador na CFR; assistência
técnica em agropecuária via
STTR (voluntariado); educador
na rede municipal; diálogo com
SEMED
Jermana/
Placas
Família de
lideranças
pioneiras
Funções burocráticas no STTR;
presidente do STTR
Presidente do STTR
Kátia/
Placas
Família de
lideranças
pioneiras/
Grupo de
Jovens
Empregos no comércio local
Empregos no comércio local;
candidatou-se a vereadora pelo
PT; maior engajamento nas ações
do STTR
Simara/
Placas
Sindicalismo
docente
Dona de casa; professora
Professora; candidatou-se a
vereadora pelo MDB.
Renilda/
Medicilâ
ndia
Família de
lideranças
pioneiras;
Grupo de
Jovens
Escola de Formação da
CONTAG; Funções
administrativas no STTR;
Grupos de Jovens
Professora substituta na
Faculdade
Etnodiversidade/UFPA; Escola
de Formação da CONTAG
Flávia/
Medicilâ
ndia
Família de
lideranças
pioneiras
Professora concursada do
município
Prof. concursada do município
Rosa/
Medicilâ
ndia
STTR
Secretária do STTR
Secretária do STTR; candidatou-
se a vereadora pelo PT; compõe
quadro técnico da Secretaria
Municipal de Turismo;
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Geane/
Brasil
Novo
Família de
lideranças
pioneiras/ CEBs
Secretária e depois presidente do
STTR; Vereadora pelo PT
STTR; candidatou-se a vereadora
pelo PT, mas não foi reeleita
Lívio /
Gurupá
Ex CFR; Grupo
de Jovens
Assistência técnica em
agropecuária via STTR; Grupos
de Jovens
Prof. nas séries finais do ensino
fundamental (área de linguagens
e códigos); presidente da
Associação da CFR; lutas para
inclusão de ações em educação
do campo na SEMED
Elaine/
Gurupá
Ex CFR; Grupo
de Jovens
Direção da Associação da CFR;
direção do STTR; prof na CFR
Secretaria de Desenvolvimento
Econômico em Macapá/políticas
voltadas à agricultura.
Ismael/
Senador
José
Porfírio
Ex CFR
Prestação de serviços em
agropecuária
Diretor da Associação da CFR;
desenvolvimento de pequenos
projetos em agricultura
Mara/
Pacajá
Sindicalismo
docente
Professora do município/zona
rural
Prof. do município/zona rural;
participação em eventos de
formação docente; mobilizações
na comunidade rural e na cidade.
Luana/
Pacajá
Sindicalismo
docente
Professora do município/zona
rural
Prof. do município/zona rural
participação em eventos de
formação docente; mobilizações
na comunidade e na cidade.
Fonte: Dados de campo das autoras, 2020.
No primeiro grupo (mediadores cuja
origem sociopolítica liga-se às famílias de
lideranças, e os que têm essa origem
construída pelo STTR e/ou pelas CFRs,
onde se situa Lívio anteriormente citado),
observa-se que os mesmos apresentam em
seus discursos, de forma eloquente, um
passado de luta, seja vivido pessoalmente
ou por tabela. A experiência de um
campesinato de fronteira parece ser um
conteúdo forte que os mobiliza para se ver
e se colocar como “porta-vozes” do grupo
ou classe, pois a família ou pessoas muito
próximas funcionam como referências para
a construção daquela consciência moral e
afetiva da qual falávamos anteriormente:
O meu pai e minha ...vieram do
Ceará em 1972, logo quando abriram
a Transamazônica, vieram naquela
leva da propaganda de governo “terra
sem homens, para homens sem
terra”. E eles conseguiram um lote,
no município de placas ... Meu pai
foi o fundador do Partido dos
Trabalhadores em Placas ... E ele ia
para Santarém, para Itaituba, para
Altamira, rodava todos esses trechos
aí, fazia reuniões escondido,
apanhou, e teve todo aquele
processo... eu cresci vendo meu pai e
minha mãe saírem para as reuniões
sindicais, esse vínculo nós crescemos
juntos, inclusive os meus irmãos
foram pra essa área da política (Júlio.
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
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Município Placas. Turma 1 Ed do
Campo. Entrevista/julho de 2019).
Fica implícito, na trajetória de
socialização destes agentes, um trabalho de
agenciamento político ao modo de uma
possível estrutura internalizada em termos
de classe, que seria transmitida pela
experiência. Uma experiência
experimentada como “... sentimento e
lidam com esses sentimentos como cultura,
como normas, obrigações familiares e de
parentesco, e reciprocidades, como
valores...” (Thompson, 2009, p. 235).
Como vemos, esta forma de agenciamento
e de legitimação da posição de agentes
mediadores liga-se à incorporação do
habitus de classe e da posição que esta
ocupa no campo da organização
sociopolítica. Os agentes socializados
partilham um ethos coletivo que se
constitui por uma “... trajetória atípica,
portanto, por uma relação específica entre
esta trajetória (e o habitus correlativo) e
sua posição que os predispõe a sentir,
pressentir e exprimir uma demanda social
...” (Bourdieu, 2006, p. 176).
Nestes primeiros tipos de agentes
mediadores cujo agenciamento se pelas
famílias de orientação e pelos quadros
institucionais constituídos na ação coletiva
por elas protagonizada, o curso Educação
do Campo, reforça o lugar social de “porta-
vozes” do grupo ou classe e os laços
políticos com a mesma. Observa-se
também que o conhecimento formal
acadêmico funciona, atualmente, como
mecanismo de legitimação dessa posição,
pois atribui maior autoridade para falar e se
posicionar, especialmente junto às
instituições e aos órgãos do Estado, mas
também um reconhecimento interno destes
mediadores nos quadros institucionais que
constituem a ação coletiva. Vejamos como
os entrevistados expressam isso: “...
politicamente eu tinha essa questão
muito de eu ir falar, e hoje com o curso eu
aprendi exatamente a hora de falar e
exatamente a hora de ouvir o que as
pessoas têm pra falar (Júlio. Município
Placas. Turma 1 Ed do Campo.
Entrevista/julho de 2019).
No segundo grupo, composto por
agentes mediadores com pouca relação
política com os quadros institucionais da
ação coletiva representativa de um espaço
social camponês (o “movimento social da
região”), o curso Educação do Campo teria
contribuído para construir uma relação
mais orgânica dos egressos com o
sindicalismo docente e com o
pertencimento ao campo e às suas lutas e
demandas educacionais; parece haver um
direcionamento do olhar militante para a
questão do campo como lugar de
atribuição de auto pertencimento e de
demandas específicas da ação educacional:
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que a partir da hora que a gente
começa a entrar nessa vida de
acadêmico da educação do campo, ai
você começa a ver que você tem que
fazer a diferença, que você tem que
fazer alguma coisa, as coisas vão
começando a incomodar ... eu estudei
em uma escola coberta de palha, a
parede era de palha, mas aquilo
também não me incomodava. A
partir daí, isso passou a me
incomodar porque a gente começa a
ver que aquilo não é justo (Luana.
Município Pacajá. Turma 2 Ed do
Campo. Entrevista/julho de 2019).
Eu tinha uma visão muito assim do
campo, por a gente sofrer tanto
preconceito, eu já sofri, porque
mesmo sendo criança do campo, eu
estudei aqui no município de
Altamira ... sofri muito bullying na
escola, que veio da roça, que falava
errado .... Então o curso ele abriu
assim entendimento, eu acho que ele
fez perceber nosso valor né, como
pessoa do campo, como agricultora,
acho que despertou aquele
sentimento, como é a palavra?
Pertencimento. Me sentir pertencente
àquela comunidade, aquele local, a
questão de identidade mesmo, eu me
identifiquei a partir do curso, como
pessoa do campo (Mara. Município
Pacajá. Turma 2 Ed do Campo.
Entrevista/julho de 2019).
Entre os agentes mediadores
com pouca relação política com os quadros
institucionais da ação coletiva, podemos
observar uma timidez nas representações
sobre si e menor atuação sociopolítica
antes e após o curso. uma repercussão
política e identitária dos cursos de ensino
superior nesses casos; os cursos teriam
funcionado como meios de formação de
uma possível condição camponesa
positivada, sobretudo, por conta da
construção de uma auto representação
sobre si e seu corpo (sua forma de
expressar-se), e do seu lugar de voz
pertencente a uma causa, principalmente
quando interage com o mundo citadino.
Superação de algo próximo ao que
Bourdieu (2004, p. 117) fala acerca do
cuerpo empaysanit, acampesinado: “...
como cuerpo de campesino tiene uma
percepción negativa ... No es exagerado
afirmar que la toma de consciencia de su
cuerpo es para él la ocasión privilegiada
de la toma de consciência de su condición
campesina”.
Esta auto percepção enquanto
camponês, sobretudo entre os egressos do
curso Educação do Campo, é bastante
forte, certamente por conta do discurso
curricular cuja presença do debate entre
campesinato e a luta por direitos
educacionais específicos é uma constante.
Isso tem influenciado deslocamentos
identitários, senão ampliação destes, tal
como é possível identificar nos
posicionamentos de Lívio. Especialmente
nos trechos: “Eu não me canso de dizer
que sou um camponês com todo orgulho...
a gente pensava de lutar nas causas,
melhorar cada vez mais nesse processo de
desenvolvimento rural...”. Estes conteúdos
identitários repetem-se nas representações
de si, manifestas por Elaine e Ismael. Esses
três egressos são ribeirinhos (sua relação
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socioprodutiva é com o extrativismo
vegetal e animal/pesca artesanal), quando
estes falam de si no sentido coletivo,
acionam um “nós” com um passado de luta
pela permanência na região, na agricultura.
É possível observarmos ainda que
autoidentificações clássicas, como
agricultores ou trabalhadores rurais, são
intercambiadas com a ideia de povos e
comunidades tradicionais, e isso tem
significado deslocamentos do campo de
atuação destes agentes mediadores, assim,
as novas denominações/identidades podem
estar representando transformações
políticas locais, cuja questão indígena ou
da pesca artesanal, por exemplo,
historicamente se chocam (ou são
invisíveis) com (aos) interesses e
demandas territoriais de camponeses.
Poderíamos apontar a partir da fala
acima que, aos deslocamentos sócio
identitários, somam-se as formas de
deslocamentos da atuação mediadora,
também em uma dimensão espacial,
quando a adesão às bandeiras de lutas
socioambientais e étnicas possibilitam um
trânsito maior por quadros institucionais
diversos (do STTR para a Colônia de
Pesca, por exemplo) e ampliação de
fronteiras físicas (de uma atuação
local/comunitária para uma atuação em
nível municipal e regional). Parece ser
possível falar de uma atuação mediadora
em “zonas intersticiais”, como nos fala
Hannerz (1997), na qual as trocas (políticas
e culturais) não seriam (apenas)
concorrenciais, mas também relacionais.
As posições socioprofissionais dos
egressos estariam mais próximas de um
cosmopolitismo construído por um olhar e
atuação de mediador/a que conhece seu
lugar geográfico e político e tem poder de
barganha e de circulação porque possui
também conhecimento acadêmico.
Gilberto Velho (2010) destaca a noção de
‘plasticidade cultural’ envolta na atuação
mediadora, portanto mais próxima de um
cosmopolitismo:
Está em jogo uma plasticidade
sociocultural que se manifesta na
capacidade de transitar e, em
situações específicas, de
desempenhar o papel mediador entre
grupos e códigos. O cosmopolitismo
pode ser interpretado como expressão
desse fenômeno que não é apenas
espacial-geográfico, mas um
potencial de desenvolver capacidade
e/ou empatia de perceber e decifrar
pontos de vista e perspectivas de
categorias sociais... (Gilberto Velho,
2010, p. 19).
Essa característica cosmopolita (cujo
conceito não se prende à mobilidade
geográfica) também está presente no fato
de que os agentes mediadores, em muitos
casos, têm adquirido capacidade de diálogo
e qualificativos para adentrar como
profissional também nos quadros
institucionais do Estado (vide quadro 1). A
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fala a seguir de Júlio é bastante
significativa dessa dinâmica. Este egresso
faz parte de uma família fundadora do PT,
do MPST, do STTR, da Escola
Comunitária Casa Familiar Rural (CFR) no
município de Placas, ou seja, todo um
quadro institucional e agentes posicionados
como adversários políticos dos grupos que
historicamente têm dominado o poder
municipal (fazendeiros, madeireiros, etc.).
Apesar disto, esse egresso fala de um
processo de construção de diálogo com a
prefeitura e a secretaria municipal de
educação. A sua experiência política e
profissional nas comunidades, sobretudo a
partir da CFR, seja como educador, seja
como extensionista rural, lhe atribui
competência profissional, mas a
universidade teria sido uma espécie de
lugar de legitimação da posição e da fala
do mesmo para entrada naquelas
instituições da ação pública. Vejamos:
...é um processo de construção, e
quando eu comecei a estudar aqui [na
UFPA] eu comecei a ter relação além
da CFR, eu tive que ter relação
também direta com a SEMED,
precisava pedir autorização para
estágio, ia lá com eles, reunia para ter
um diálogo entre a universidade e a
SEMED, e essa ponte ficou em mim,
né? Eu tive essa relação, e aí eles
começaram me ver como, não como
adversário, mas como um aliado para
trabalhar na melhoria da qualidade da
educação, não foi porque eu
mudei. Na verdade, eu não mudei, eu
estou trabalhando nas duas áreas
[CFR e escolas municipais] (Júlio.
Município Placas. Turma 1 Ed do
Campo. Entrevista/julho de 2019).
Entre os egressos que constituem o
segundo grupo das tipificações usadas aqui
para falar das formas de agenciamentos
ou seja, os que têm relação política mais
com o Sindicato dos Trabalhadores em
Educação Pública do Estado do Pará
(SINTEPP) do que com o ‘movimento
social da região’ representativo dos
agricultores, mas têm uma experiência de
campesinato de fronteira é possível dizer
que houve um deslocamento de sua
posição sociopolítica de lideranças e/ou de
mediadores no nível da comunidade, para
uma posição de mediadores com atuação
municipal. Isto se faz sentir no
reconhecimento do saber acadêmico desses
agentes nos quadros institucionais da ação
coletiva (do SINTEPP) e, principalmente,
da ação pública, para desenvolvimento de
ações de formação e atualização
profissional de docentes, nos debates
públicos em torno da questão educacional
do campo. Estes estariam contribuindo
para tornar a educação do campo uma
pauta pública no interior desses quadros
institucionais e que, certamente, têm
influenciado a inserção desta temática nas
ações do governo municipal:
...a gente contribui né,
principalmente quando fala do grupo
de educação do campo, das políticas
públicas, assim fazer algumas
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colocações, porque a gente no
círculo que não tem aquela área
específica. Tem os coordenadores
que trabalham na educação do
campo, das formações, mas não é
diferenciada..., então a gente vai
trabalhar os temas mais voltados para
o campo, e os professores da cidade
trabalham os temas da cidade...
Fazendo algumas colocações
principalmente sobre as políticas
públicas porque não chega na
escola do campo, e também sobre
tentar trabalhar esse ensino
contextualizado... (Mara. Município
Pacajá. Turma 2 Ed do Campo.
Entrevista/julho de 2019).
O efeito da formação universitária
neste amplo processo de reconhecimento
de certa autoridade acadêmica para falar no
interior dos quadros institucionais da ação
coletiva, bem como em instituições do
Estado, reveste-se de distinção social que
se revelaria a exemplo das falas acima
através de um conhecimento distinto e um
reconhecimento dos traços distintivos que
os definem. Produto do habitus, a distinção
social sintetiza e expressa as diferenças da
condição de classe (Bourdieu, 2007). Esta
característica dos egressos se manifesta em
algumas expressões que utilizam para falar
de si e da relação com os outros:
A) “As portas se abriram pra mim
após a formação”. uma espécie de
capital social enquanto recíproco
reconhecimento entre os mediadores e os
demais agentes do campesinato, sobretudo,
das organizações sociais/sindicais e
comunitário-religiosas, conferindo a
posição publicizada desses egressos, ao
lado de um pertencimento à rede de
relações constitutiva do grupo, e que
permitiria aos agentes mobilizarem
proximidades e trocas materiais e
simbólicas.
B) “As pessoas querem ouvir o que
temos a falar”. Um capital cultural, seja em
forma de bens culturais, seja em estado
institucionalizado como o capital escolar
sancionado pela UFPA/Faculdade de
Etnodiversidade que se torna “parte
integrante da ‘pessoa’, um habitus
(Bourdieu, 1999, p. 74-5).
A posição de reconhecimento e
distinção social tem possibilitado dois
movimentos importantes nas ações e nas
representações sociais dos mediadores.
1- O primeiro diz respeito à
mobilidade profissional nos quadros
institucionais. No quadro 1 é possível ver
que uma ascensão que parte da atuação
nos STTRs, CFR, para uma atuação nos
quadros da ação pública (cargos de
vereadores; cargos de docência da rede
municipal e universitária, cargos em
secretarias ligadas à agricultura, ao
turismo, etc.), bem como ascensão à cargos
de direção no interior da ação coletiva: de
militantes ou ocupantes de cargos técnicos
à presidente/a do STTR, presidente/a nas
associações, sobretudo da CFR.
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Quanto à passagem da posição de
mediador à de ator político no legislativo
municipal, é interessante o destaque que os
egressos dão ao fato do curso ter lhes dado
visibilidade e construção de habilidades
para a fala pública e fundamentada durante
o processo de formação, especialmente nas
atividades que desenvolviam nos Tempos
Comunidades, como feiras culturais,
cursos, seminários temáticos, audiências
públicas, etc. Vejamos o depoimento a
seguir gerado a partir da pergunta acerca
das motivações para envolvimento na
política partidária municipal:
...eu sempre desenvolvi um trabalho
social [assistência técnica aos
agricultores, prestação de serviços
agropecuários ao STRR, etc] mas
nunca com intuito político e essa
minha decisão ela vem muito pela
minha formação, porque eu acabei
descobrindo que se eu ficar onde eu
estou eu vou ajudar menos do que eu
ser candidato a vereador. Uma,
porque talvez a possibilidade de eu
me projetar politicamente eu possa
ajudar mais ainda (Júlio. Município
Placas. Turma 1 Ed do Campo.
Entrevista/outubro de 2020).
Nas últimas eleições municipais
(outubro de 2020), além de Geane, que já
vinha se colocando como candidato a
vereador/a, outros egressos manifestaram
interesse em se colocar na atuação pública
via cargos políticos, sejam os que
tinham esse perfil e desenvolviam
atividades típicas de mediadores sociais,
como Júlio, mas não se viam como
vereador/a ou prefeito/a; sejam egressas
(sim, sobretudo mulheres!) que não tinham
esse perfil de mediadoras ou de lideranças
locais (Simara), ou tinham pouco (Rosa e
Kátia) e se candidataram ao legislativo
municipal, como elas disseram, “e não foi
para preencher os 30% de obrigatoriedade
de mulheres nas chapas”. Vejamos no
depoimento a seguir, o papel do capital
cultural nessa espécie de encorajamento
para se projetar na política partidária e na
ampliação do capital social pré-existente:
Com essa formação nós fomos vistos
com outros olhos. A nossa base, nós
tínhamos toda essa base mais na
parte comunitária, mas quando tu
leva pro lado político, a nossa voz
não ecoava como ecoa hoje... Os
meus argumentos depois do
Educação do Campo são muito
seguros e eu consegui montar uma
base de oratória que às vezes
impressiona muita gente (Júlio.
Município Placas. Turma 1 Ed do
Campo. Entrevista/outubro de 2020).
Júlio segue a entrevista dizendo que
o grupo do PT com mais peso de decisão
local, dado apoio de lideranças regionais e
nacionais petistas, (segundo ele “as velhas
ou antigas lideranças”), não o permitiram
sair como candidato, pois em sua
avaliação, ele teria mais chances de ser
eleito que outros atores locais apoiados por
essas lideranças. Em sua avaliação, o
capital social e cultural que possui agora
tem despertado conflitos internos, senão
maiores questionamentos das relações
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internas ao STTR e PT, inclusive com a
formação de novos grupos internos,
segundo ele de “jovens lideranças” e
muitas dessas “passaram pela Educação do
Campo”. Ligadas ao STTR e ao PT, no
município de Placas, pelo menos cinco
egressos desse curso em cargos de gestão,
inclusive a presidência do STTR foi
assumida por Jermana, citada no quadro 1,
de caracterização dos egressos.
Renilda também aponta com
frequência, em seus depoimentos, uma
certa ‘crise geracional’ interna aos quadros
institucionais da ação coletiva, agravada
pela projeção de novas lideranças
“estudadas” (com formação universitária).
Talvez esse seja um dos efeitos
inesperados da qualificação dos atores
sociais tão requerida pelo “movimento
social da região”.
Seguem os depoimentos de Simara e
Rosa, ambas, contrariando muitas das
expectativas locais, lançaram-se no pleito
eleitoral. Além de uma projeção pública
que surpreendeu devido à timidez de
ambas, observa-se que o curso superior
possibilitou a elas o que definem como
“empoderamento” para realizar o sonho de
formar-se diante das limitações familiares
e conjugais, bem como por verem a si
mesmas como capazes de atuar no campo
profissional e político, apesar do
preconceito de gênero:
O que me influenciou muito [para
aceitar o convite de ser candidata à
vereadora, feito pela atual prefeita]
foi a questão de adquirir
conhecimento... para conhecimentos
gerais do município... eu sempre tive
dificuldade de lidar com o público e
encarar isso pra mim vai ser uma
experiência muito boa... Eu acho que
a questão de eu ter a formação e ela
[a prefeita] ter conhecido o meu
trabalho... Porque antes a gente não
era notada, mas hoje a gente que
eles já têm um respeito maior pela
gente por causa da formação da
gente. (Simara. Município Placas.
Turma 3 Ed do Campo.
Entrevista/outubro de 2020).
... quando você lembra que você tava
na roça sofrendo...de uma certa
forma, as mulheres são
condicionadas aos maridos, e as da
roça sofrem mais. É a tal falta de
formação e informação, e quando me
vem à cabeça essa retrospectiva da
minha vida, eu me vendo aqui hoje
sendo candidata a um cargo pleiteado
em sua maioria por homens muito
enrijecido, um lugar que é muito
duro, grotesco e eu estar lá pleiteando
aquele lugar... uma satisfação tão
grande... eu lutei...(Rosa. Município
Medicilândia. Turma 1 Ed do
Campo. Entrevista/outubro de 2020).
2 - O segundo movimento diz
respeito à capacidade de influenciar
decisões e debates públicos, fazendo uso
do saber, da competência acadêmica a
partir da atuação enquanto profissionais ou
enquanto mediadores sociais. Numa
posição próxima ao que Foucault (1979)
define como intelectual específico, este
desenvolve ações na ordem do saber que
detém e o faz circular; assume
responsabilidades políticas a partir deste
saber, intervêm na produção de regimes de
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verdade ao fazer serem reconhecidas
demandas e assuntos, em geral,
negligenciados pelos quadros institucionais
da ação coletiva e da ação pública, a
exemplo da inserção do debate acerca da
especificidade da educação do campo na
secretaria municipal de ensino, destacado
pela egressa Mara.
Considerações finais
Argumentamos neste texto que a
experiência de campesinato de fronteira
constitui uma condição social inicial e
funcionaria como matriz cognitiva e
valorativa para estabelecimento de
fronteiras a partir das quais os agentes
mediadores estudados constroem processos
de identificação e adesão à classe nomeada
pelos entrevistados como ‘movimento
social da região’, que tem como marco as
lutas da ação coletiva representativa do
campesinato na Transamazônica pela
constituição de quadros institucionais,
diante do abandono do projeto de
colonização pelo Estado ainda no início da
implementação deste.
Há no fluxo das mudanças culturais e
políticas um processo de racionalização
das formas de organização coletiva que
demandam a formação de agentes
mediadores capazes de mobilizar
argumentos e habilidades cada vez mais
fundados na ciência e em outros saberes,
para além dos apresentados pelas
lideranças que constituíram aquele
movimento social. Isso, em grande medida,
expôs a necessidade por cursos de
formação universitária nos marcos de
políticas públicas diferenciadas.
As disposições ou interiorizações de
saberes, valores, gostos, habilidades e
representações adquiridas pelos agentes
mediadores que são egressos daquele curso
parecem operar (construindo ou
reforçando), no espaço, um processo de
distinção social que se revelaria através de
um conhecimento distinto e um
reconhecimento dos traços distintivos que
os definem como pertencentes a uma
condição de classe. Produto do habitus
incorporado nos processos de socialização
inicial (direta ou indiretamente na ação
coletiva camponesa), esta distinção vem
sendo construída ou reforçada pela
formação universitária obtida no curso
Educação do Campo.
Desta forma, a relevância do estudo
em tela situa-se em trazer à tona um dos
retornos da ação socioeducativa do curso
Educação do Campo, não previstos no
programa Pronacampo e, talvez, por isso
mesmo, ainda pouco estudado no campo
das Ciências Sociais e da Educação, a
saber: para além da preparação de
educadores para atuarem na docência e
gestão de processos educativos escolares e
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comunitários (cf. Molina, 2015), os dados
aqui analisados expõem a incorporação
desse curso superior nas estratégias de
reprodução social do campesinato no
território Transamazônica, no que concerne
à formação de mediadores sociais
identificados com a trajetória do mesmo e
aptos a desenvolverem ações fundadas no
saber formal. Os mediadores sociais com
esse perfil se fazem necessários para a
continuidade do espaço social construído
pelos camponeses no campo de forças de
barganha com o Estado e/ou de luta
organizada. O curso Educação do Campo
tem formado agentes mediadores
identificados com o passado de lutas e com
um presente/futuro de racionalização da
ação política para a qual são
imprescindíveis os seguintes retornos
socioeducativos daquele curso, revelados
pelos egressos analisados: o domínio do
saber acadêmico/científico, a obtenção de
habilidades linguísticas, (orais e escritas) e
uma forma de atuação cosmopolita, que,
no caso em estudo, se dá, sobretudo, pela
criação de “zonas intersticiais” entre ação
coletiva e ação pública, entre lutas,
demandas de grupos sociopolíticos e
étnicos distintos. Os egressos estão
construindo, em suas ações mediadoras,
essas formas atualizadas de luta política,
instruídos pelo debate acadêmico acerca do
diálogo entre meio ambiente, povos e
comunidades tradicionais, direitos sociais,
dentre outros temas transversalizados na
formação docente interdisciplinar. No
campo pessoal, esses egressos também têm
manifestado a construção de uma
autoimagem positiva, sobretudo as
mulheres; no limite, essa forma de sentir e
agir os têm encorajado para ocupar espaços
políticos antes não projetados por si ou
pelo grupo do qual sentem-se pertencer.
Ainda no âmbito dos principais
resultados encontrados no artigo em tela,
contíguo às habilidades acima referidas e à
distinção social desenvolvidas com a
formação universitária, os deslocamentos
sociais provocados pelo ensino superior
diferenciado revelam um quadro de
reconversão da posição de egressos no
interior dos quadros institucionais da ação
coletiva, uma espécie de mobilidade social
ascendente desses egressos, especialmente
os que tinham uma relação com as
organizações sociais camponesas e
sindicais. Entre os egressos que não
tiveram a ação coletiva representativa do
campesinato como elemento de
socialização no passado, observa-se, após a
formação superior obtida, uma maior
identificação com as lutas coletivas
(educacionais ou não) que trazem à tona
demandas do campo; em grande medida
esses egressos têm se colocado como
mediadores sociais em diversas situações,
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e apontam a importância da formação
diferenciada para assumirem essa posição
social.
Por último, destacamos a
necessidade de aprofundar a relação entre
educação e reprodução do campesinato sob
a ótica da mediação social, assim como a
reflexão sobre a juventude camponesa e os
diversos arranjos sócio identitários na
configuração de modos de vida que
conjugam a relação orgânica entre campo e
cidade, configurando novas ruralidades.
Esses são “achados” não previstos no
estudo até aqui realizado, mas que
suscitam contribuições outras para a
temática dos retornos ou mudanças
provocados pelo ensino superior
diferenciado para populações do campo.
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i
Altamira, Anapu, Brasil Novo, Medicilândia,
Pacajá, Placas, Porto de Moz, Senador José
Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu. Estes
municípios fazem parte do território
Transamazônica e Xingu, localizado no sudoeste do
Pará.
ii
Todas as entrevistas foram gravadas mediante
autorização dos informantes da pesquisa que
assinaram termo de livre consentimento.
Assumimos ao longo do texto codinomes para
identificação dos mesmos, seguidos da turma a que
pertenciam e do município onde residem.
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos sociais provocados pelo ensino superior: as ações e percepções de mediadores formados no curso Educação do
Campo da Transamazônica e Xingu...
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12939
10.20873/uft.rbec.e12939
2021
ISSN: 2525-4863
32
iii
Engloba “... desde as manifestações... elementares
da ação de massa ... até aquelas marcadas pela
presença de estruturas organizacionais...como é o
caso de alguns movimentos sociais” (Azevedo &
Prates, 1991, p. 124). Consideramos ação pública
os sentidos projetados pelas políticas, projetos e
programas governamentais/estatais.
iv
Fundamentando-nos em Bourdieu (2007), espaço
social é aqui compreendido enquanto relações e
posições dos agentes no conjunto de estruturas de
decisões e serviços onde se barganha direitos e
recursos acionando-se determinados pertencimentos
sociais e fazendo-se uso de formas diversas de
capitais.
v
A ambientalização trata-se de um processo
sociopolítico em que as ações e projetos passam a
ser pautados pelas questões ambientais e pela
preocupação moral com o ‘o bom uso da natureza’
(Larrère, C., & Larrère, 1997).
vi
Entre os anos de 1990 e 1994, os dados da
Secretaria Estadual de Educação (SEDUC)
apontavam que apenas 4% dos alunos matriculados
na série chegaram à rie. Sobre a situação
profissional dos docentes, identificou-se que 70%
não têm vínculo empregatício permanente.
vii
Capital simbólico relaciona-se com a distinção
social, prestígio, percebidos e revelados na posição
de “credibilidade” ou de “ser olhado com outros
olhos”, que atribui legitimidade aos portadores do
mesmo (Bourdieu, 1989, p. 134).
viii
Capital simbólico relaciona-se com a distinção
social, prestígio, percebidos e revelados na posição
de “credibilidade” ou de “ser olhado com outros
olhos”, que atribui legitimidade aos portadores do
mesmo (Bourdieu, 1989, p. 134).
ix
O capital cultural neste contexto diz respeito ao
capital em estado incorporado, ou seja, “sob a
forma de disposições duráveis do organismo”;
capital que se tornou parte integrante da pessoa
como um habitus informado pelo capital social,
enquanto rede durável de vinculação a um grupo (
,1998, p. 74).
x
Com exceção de duas pessoas entrevistadas, os
demais estão cursando especialização por Inversão
Pedagógica, na Faculdade de
Etnodiversidade/UFPA. Destes, duas estão fazendo
mestrado pela Fundação Perseu Abramo. O critério
para escolha dos interlocutores foi apenas a
disponibilidade dos mesmos.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 30/08/2021
Aprovado em: 12/10/2021
Publicado em: 13/11/2021
Received on August 30th, 2021
Accepted on October 12th, 2021
Published on November, 13th, 2021
Contribuições no Artigo: Os(as) autores(as) foram
os(as) responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os(as) autores(as) declararam
não haver nenhum conflito de interesse referente a este
artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Não tem.
Funding
No funding.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Meneses, A. S., & Gomes, R. A. (2021). Deslocamentos
sociais provocados pelo ensino superior: as ações e
percepções de mediadores formados no curso Educação
do Campo da Transamazônica e Xingu. Rev. Bras. Educ.
Camp., 6, e12939.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12939
ABNT
MENESES, A. S.; GOMES, R. A. Deslocamentos sociais
provocados pelo ensino superior: as ações e percepções
de mediadores formados no curso Educação do Campo
da Transamazônica e Xingu. Rev. Bras. Educ. Camp.,
Tocantinópolis, v. 6, e12939, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12939