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Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14659
A sanitarização dos rurais no discurso higienista da
década de 1910
Pedro de Oliveira Milagres1, Anderson da Cunha Baía2
1 Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Faculdade de Educação (FE). Cidade Universitária Zeferino Vaz. Barão
Geraldo. Campinas SP. Brasil. 2 Universidade Federal de Viçosa - UFV.
Autor para correspondência/Author for correspondence: p244157@unicamp.dac.br
RESUMO. Objetivamos compreender o discurso higienista
destinado aos espaços rurais e agrícolas brasileiros, em meio a
ascensão do movimento de saneamento dos sertões. Para isso,
realizamos a análise externa dos discursos produzidos por
Belisário Pena, nas suas duas principais publicações de
expressão no movimento sanitarista, em articulação com ideias
de Monteiro Lobato e Alberto Torres. Identificamos que a partir
das expedições pelos sertões Pena caracterizou um quadro
sanitário doente no interior brasileiro e o colocou em circulação,
no intuito de promover um apelo messiânico pela higiene. Os
discursos do higienista foram favorecidos pelos debates da
intelectualidade da época, e vinculou-se ao pensamento de
Torres e de Lobato para se aproximar dos espaços rurais e de
produção agrícola. Quanto a Lobato, Pena exerceu influências
sobre o pensamento do escritor e, em contrapartida, teve seus
discursos favorecidos pelas representações de atraso dos rurais
veiculados pelo debate literário. Considera-se que o discurso
investido por Pena no debate higienista da década de 1910
colocou em destaque as doenças e a precariedade física dos
rurais e dos trabalhadores agrícolas, e reforçou a
responsabilização do Estado pela garantia da higiene o campo.
Palavras-chave: movimento sanitário, higienismo, belisário
pena, sertão.
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The sanitization of the farmers in the hygienics discusses
in the 1910s
ABSTRACT. We aimed to understand the hygienist discourse
aimed at the Brazilian rural and agricultural spaces amid the rise
of the sanitation movement in the backlands. To this end, we
conducted an external analysis of the discourses produced by
Belisário Pena, in his two main publications of expression in the
sanitation movement, in articulation with the ideas of Monteiro
Lobato and Alberto Torres. Based on the expeditions through
the backlands, Pena characterized a sick sanitary picture in the
Brazilian countryside and put it in circulation with a messianic
appeal for hygiene. The debates within the intelligentsia of the
time favored the hygienist discourses, linking up with the
thought of Torres and Lobato to approach the rural and
agricultural production spaces. As for Lobato, Pena influenced
the writer's view, and, on the other hand, his discourses were
favored by the representations of rural backwardness conveyed
by the literary debate. Finally, it is considered that the discourse
invested by Pena highlighted the diseases and the physical
precariousness of rural and agricultural workers in the hygienic
debate of the 1910s, and reinforced the State's responsibility for
guaranteeing hygiene in these spaces.
Keywords: sanitary movement, hygienics, belisário pena,
countryside.
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El saneamiento de la población rural en el discurso
higienista de la década de 1910
RESUMEN. Nuestro objetivo es comprender el discurso
higienista destinado a los espacios rurales y agrícolas brasileños,
en auge del Movimiento Sanitario en Brasil. Para ello,
realizamos un análisis externo de los discursos producidos por
Belisário Pena, en sus dos principales publicaciones de
expresión en el movimiento sanitario, en articulación con las
ideas de Monteiro Lobato y Alberto Torres. Identificamos que a
partir de las expediciones por los sertões brasileños Pena
caracterizó una situación de salud enfermiza en el campo
brasileño y la puso en circulación junto con un llamamiento
mesiánico a la higiene. Los discursos del higienista se vieron
favorecidos por debates en la intelectualidad de la época,
vinculándose al pensamiento de Torres y Lobato para abordar
los espacios rurales y la producción agrícola. En cuanto a
Lobato, Peña ejerció influencias en el pensamiento del escritor
y, por otro lado, sus discursos se vieron favorecidos por las
representaciones del atraso rural que transmite el debate
literario. Se considera que el discurso invertido por Peña destacó
las enfermedades y precariedades físicas de los campesinos y
trabajadores agrícolas en el debate higienista de la década de
1910, y reforzó la responsabilidad del Estado por garantizar la
higiene en estos espacios.
Palabras clave: movimiento sanitario, higienismo, belisário
pena, rural.
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Introdução
O Higienismo foi um movimento médico-científico em prol da saúde das populações e
da moralização da limpeza, o qual inicialmente atuou nos Estados Unidos (EUA) e em
diversos países europeus, vindo a circular no Brasil entre meados do século XIX e nas
primeiras décadas do culo XX (Gois Junior, 2003; Vigarello, 1996; Lima & Hochman,
1996; Soares, 1990). Os higienistas objetivavam o controle do meio e dos corpos, sendo que,
para isso, investiu-se no combate de agentes patológicos, na medicalização das doenças e na
moralização dos hábitos e costumes da população. Essas e outras estratégias se justificavam
pela saúde e em favor do progresso nacional, difundindo, por meio de práticas educativas,
uma nova noção higiênica de cuidado do e com o corpo (Pizolati & Alves, 2019; Gondra,
2018).
Frente ao cenário de modernização brasileira no século XX, os preceitos higiênicos
circularam com mais intensidade e foram propostos como parte do processo de instrução e
educação da população. Instituições educacionais foram alvo de visitas sanitárias para o
controle profilático, investiu-se na responsabilização dos educadores pelo inspecionamento de
alunos, disseminaram-se prescrições sobre os cuidados dos corpos, bem como exigiram-se
nos currículos tempos para trabalhos manuais, ginástica e economia doméstica (Santos, 2019;
Narciso, 2016; Dogliotti, 2012; Moreno & Vago, 2011; Cruz & Ramírez, 2010; Rocha, 2003).
Além disso, foram colocados em circulação diversos saberes sobre higiene doméstica,
cuidado dos filhos, recreação e práticas de cuidado ao ar livre (Mayboroda & Grazziotin,
2019; Salas-Huetos, Huetos-Solano & Salas-Salvadó, 2019; Jubé, 2017; Soares, 2016).
Sendo assim, os higienistas buscavam incutir preceitos higiênicos nos espaços públicos
e privados, com o respaldo médico-científico, de forma a promover condutas antecipadas que
evitassem o aparecimento e proliferação de males à vida e ao corpo. Calcado em uma razão
prática, os agentes higienistas tinham por função não apenas higienizar o corpo, mas também
propagar práticas de assepsia corporal e do meio pela formação de sujeitos higiênicos,
higienizados e higienizadores
i
(Gondra, 2018; 2003; Góis Junior & Garcia, 2011).
Em meados da década de 1910, com os investimentos realizados em prol da campanha
de saneamento dos sertões, os preceitos higienistas passaram a ser disseminados com ênfase
no interior do país. Essa campanha foi mobilizada por Belisário Penna (1868-1939), um
médico-higienista mineiro, natural de Barbacena/MG, que se formou pela Faculdade de
Medicina da Bahia, em 1890. Ele atuou de forma intensiva na política nacional, em um viés
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conservador e crítico, caracterizando-se como um combatente pela saúde pública brasileira
(Santos, 2012; Castro-Santos & Figueiredo, 2012).
A campanha de saneamento dos sertões encontrou correspondência entre parte da
intelectualidade da época, vindo receber contribuições de sujeitos encampados em diversos
setores do debate nacional, como na literatura, por Monteiro Lobato (1882-1948)
ii
, e nas
discussões político, econômico e educacionais, por Alberto Torres (1865-1917)
iii
.
A partir do investimento desses e de outros sujeitos, as regiões suburbanas, as pequenas
cidades e vilas, e os espaços rurais, passam a ser enfatizados no debate higienista brasileiro,
inflexionando o olhar dos higienistas das regiões litorâneas e dos portos
iv
rumo ao interior do
país. Neste estudo, buscamos compreender o discurso higienista destinado aos espaços rurais
e agrícolas brasileiros, em meio a ascensão do movimento de saneamento dos sertões.
Tomamos como recorte a década de 1910, período atribuído pela historiografia do higienismo
como momento de eclosão do Movimento Sanitarista.
O conceito de discurso é tomado em sua acepção mais restrita. Conforme Albuquerque
Júnior (2021), essa acepção compreende uma peça oratória ou escrita, que é proferida a um
determinado público ouvinte ou leitor o qual se procura cativar e convencer. Em seus
diferentes tipos de produção, nos interessa aquela em que o discurso é transmitido por uma
abordagem extensa e argumentada, e elabora um raciocínio sobre determinada temática
(Albuquerque Júnior, 2021).
Nesta pesquisa foi assumido como eixo de investigação os discursos produzidos por
Belisário Pena apontado como um dos personagens centrais do higienismo na década de
1910 e o responsável pela campanha de saneamento dos sertões em suas produções de
grande expressão para a ascensão do movimento sanitário. Foi utilizado o relatório da
expedição científica pelos estados da Bahía, Pernambuco, Piauí e Goiás realizada em 1912
, publicado em 1916, e a segunda edição
v
do livro Saneamento do Brasil, que teve sua
primeira edição publicada em 1918. Atentou-se à análise externa do discurso. Segundo
Albuquerque Júnior (2021), nessa abordagem deve-se explorar as condições históricas de
possibilidade do discurso, situando-o em um dado tempo, e as ligações com aquilo que o
margeia.
Assim, o corpus documental foi composto, além do relatório de expedição e da obra de
Belisário Pena, por documentos que se articulavam ao discurso do higienista. Utilizou-se
obras de Monteiro Lobato e de Alberto Torres, que possibilitaram a aproximação das ideias
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do higienista com os espaços rurais e agrícolas, alimentando sua emergência. A saber: de
Monteiro Lobato o livro O problema vital, na edição (de 1956, a primeira publicada em
1918); de Alberto Torres os livros Problema Nacional Brasileiro: introdução a um programa
de organização nacional, na edição (de 1933, a primeira publicada em 1914), e A
organização Nacional, na 4ª edição (de 1982, a primeira publicada em 1914).
Os livros, aqui tomados como fonte de discursos que fundam seu próprio objeto em
determinado tempo histórico (Albuquerque Júnior, 2021), funcionaram na produção de
determinadas realidades. Conforme Cândido (2000), seu texto ou discurso estabelece uma
função dialética com o contexto, tendo a sociedade uma função estruturante. Assim, essas
obras expressam realidades radicadas no autor que, mais do que transmissão de conceitos e
noções, buscam exercer determinada função
vi
(Candido, 2000). Todavia, cabe frisar que nesse
estudo nos detivemos mais na função do discurso do que na relação dialética do texto e do
contexto.
Desta feita, o texto foi organizado em duas partes. Num primeiro momento, apontamos
as investidas médico-higiênicas feitas por Belisário Pena e que possibilitaram a eclosão das
ideias sanitaristas. Num segundo momento, enfatizamos a articulação dos discursos
produzidos por Belisário Pena com outros intelectuais da época, de forma a promover uma
mobilização visando os espaços rurais. Por fim, num terceiro momento, tecemos
considerações finais.
Emergência do saneamento dos sertões: as contribuições de Belisário Pena para uma
mobilização nacional
Nas primeiras décadas do século XX, o território brasileiro esteve caracterizado pela
disseminação de epidemias e endemias que assolavam o país, tendo sido palco de um
conjunto de práticas encampadas pelos higienistas. Conforme Ferreira (2001), as primeiras
investidas do poder médico-higiênico ocorreram desde o início do século XIX, a fim de
compreender as doenças tropicais. Interpretações advindas do clima e da condição racial
brasileira fizeram parte das investigações, e caracterizaram o país como um território de vasto
ambiente natural e passível de ser civilizado (Ferreira, 2001).
Em meados do século XIX, com a chegada das epidemias de peste, cólera e febre
amarela que antes afligiram os continentes da Europa e da Ásia, além da América do Norte
, houve uma progressiva intensificação das ações sanitárias para o controle das doenças.
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Assim, enquanto na primeira metade do século XIX o Brasil sobressaía em termos de
salubridade, posteriormente, no início do século XX, o país foi marcado por grandes surtos
epidêmicos e mortes que se apresentaram ao longo de todo território e das mais
diferentes formas (Fonseca, 2018). Em meio ao cenário que se configurou no Brasil, o poder
médico-higiênico foi fortalecido social e politicamente. Logo, nas primeiras décadas do
século XX, surgiram mobilizações em prol do saneamento, conhecidas como Movimento
Sanitarista (Hochman, 2012) ou Movimento Higienista (Soares, 1990).
Diferente do Higienismo europeu, que centralizava suas ações nos espaços urbanos e
industriais (Gois Junior, 2003), no Brasil a intelectualidade higienista esteve também
preocupada com o interior brasileiro. Para Fonseca (2018), as expedições científicas
empreendidas em diferentes partes do território nacional, pouco ou nada conhecidas, fizeram
emergir um quadro das condições precárias de higiene dos sertões brasileiros. Hochman
(2012) e Castro Santos (1985) destacam que, entre as expedições, foi muito repercutida a
viagem realizada por Arthur Neiva
vii
e Belisário Pena, em 1912. Ela se estabeleceu como um
dos acontecimentos de forte influência para que o interior do país tivesse destaque no olhar
higienista (Hochman, 2012; 1998; Lima & Hochman, 1996; Castro Santos, 1985).
A convite do médico Oswaldo Cruz
viii
, Neiva e Pena lideraram uma viagem científica
pelos estados da Bahia, do Piauí, de Goiás e de Pernambuco, investigando a fauna, a flora,
questões sanitárias, entre outros, em regiões pouco exploradas pelos naturalistas. Essa
expedição resultou na publicação de um relatório em 1916, que ganhou grande repercussão
social e política, e possibilitou a impulsão de debates e de reformas a favor da interiorização
do higienismo no Brasil (Fonseca, 2018).
Por meio do relatório, foi construída uma imagem de atraso dos habitantes nas regiões
percorridas, sendo característicos os hábitos e os costumes rudimentares que eram cultivados,
assim como o seu estado higiênico. Neiva e Pena (1916) relataram que o meio em que viviam
os sertanejos comportava parasitas que eram favorecidos pela situação de miséria sanitária,
perpetuavam doenças e fragilizavam os indivíduos.
Além de condições habitacionais precárias que decorriam da miséria e do abandono, os
hábitos higiênicos dos sertanejos foram apontados como parte dos males que contribuíam para
a propagação de doenças. Como podemos observar durante a visita em uma habitação, no
sertão do Piauí:
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A Musca domestica, inseto cosmopolita, incriminada de ser disseminadora de varias
enfermedades, encontra condições incomparaveis de proliferação nas caatingas pois os
referidos chiqueiros servem de excelentes criadouros. Dentro das casas o numero deste
diptero é por vezes verdadeiramente incrivel e em uma casa do lugar chamado Barrinha,
municipio de S. Raymundo Nonato, a abundancia atinjiu a proporções inverosimeis, jamais
por nós observadas; o requeijão, cuja fabricação é feita sem a menor proteção, constitue a
principal fonte de alimentação das moscas. (Neiva & Pena, 1916, p. 111).
Observa-se que, por mais que as moscas sejam as propagadoras das doenças, o que
ganha destaque no relato é a precariedade dos bitos higiênicos e de cuidado dos animais,
bem como a organização sanitária da habitação, que favoreciam a proliferação de insetos.
Igualmente, Neiva e Pena (1916) ressaltam, em diferentes momentos do relatório, que os
brasileiros no interior do país conservavam hábitos e costumes corporais e de cuidado das
habitações que beneficiavam a perpetuação de doenças e parasitas presentes na natureza.
Hábitos como a conservação de alimentos, a preparação da “carne de vento” ou “do sertão”, a
não utilização de calçados e o pouco asseio corporal, são apontados no relatório como um
fator para a precariedade física encontrada nos sertões (Neiva & Pena, 1916).
Assim, ao realizar uma caracterização ampla dos sertanejos e do meio em que estavam
inseridos, o relatório de Arthur Neiva e Belisário Pena serviu como um verdadeiro exame
médico do país. Nele, são identificados os problemas sociais da população no interior e
observados os sintomas decorrentes da falta de higiene. Como resultado, produziu-se um
diagnóstico sanitário que poderia ser generalizado para todos os rincões brasileiros (Neiva &
Pena, 1916). Esse resultado foi divulgado na imprensa como a redescoberta do Brasil,
chamando a atenção das elites intelectuais e políticas para o interior e para a emergência de
sua reabilitação, em favor do progresso nacional (Lima & Hochman, 1996; Santos, 2012).
Enquanto Arthur Neiva retornou ao laboratório, Belisário Pena investiu em uma viagem
similar pelos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, no ano de 1913, e,
a partir de 1916, colocou em circulação inúmeros textos pelo jornal Correio da Manhã. Para
Santos (2012), o contato com a precariedade dos habitantes nos sertões brasileiros fez com
que Belisário Pena se tornasse um pregador incansável de um projeto de educação higiênica
contra os problemas nacionais.
No ano de 1918, Belisário Pena investiu na mobilização de uma campanha sanitária
voltada para os espaços interioranos. Essa campanha é marcada pela publicação do livro
Saneamento do Brasil. A obra reúne uma coletânea de textos oriundos das viagens
científicas de Belisário Pena colocados em circulação pelo jornal Correio da Manhã, em
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1916, onde foram feitas as primeiras manifestações pela campanha de saneamento (Santos,
2012). Ela foi organizada em duas partes, de forma a sugerir uma “reconstrução sanitária do
Brasil: na primeira parte, intitulada Demolição, foram reunidos textos publicados no Correio
da Manhã, em que Pena expunha a precariedade sanitária como o grande problema nacional;
já na segunda, intitulada Reconstrucção, o autor expõe diferentes doenças que assolam o país,
seus agentes transmissores e os ambientes disgênicos que favoreciam as proliferações de
doenças, além de elaborar um plano para o saneamento rural e a defesa sanitária do Brasil
(Pena, 1923).
A publicação alcançou ampla repercussão no país e efervesceu as mobilizações políticas
pela sanitarização do interior (Fonseca, 2018; Hochman, 2012; Castro Santos, 1985),
caracterizando o Movimento Sanitário. Por meio da obra o higienista expressou, de forma
explícita, seus interesses na mobilização da mocidade e dos agricultores pela defesa do
saneamento dos sertões brasileiros (Pena, 1923).
Figura 1 Caracterização das habitações e de habitantes rurais que foram veiculadas nas páginas do Saneamento
do Brasil, 1923. Uma família em sua casa de Taipa, com aparência triste e adoentada.
Fonte: Pena (1923).
Na publicação da obra em 1918, Belisário Pena constrói um retrato dos sertões
brasileiros e propõe um projeto sanitário de recuperação nacional, tendo a higiene munida
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de seus preceitos racionais e científicos como norteadora do progresso. Utilizando-a como
ferramenta educacional e sanitária, por meio da saúde pública, ele declara que seria possível
elevar os brasileiros no interior do país e, junto consigo, a pátria, que sem saúde nada
prospera: nem o indivíduo, nem a família, nem a sociedade” (Pena, 1923, p. 150).
Sendo assim, as mobilizações feitas por Belisário Pena em favor da campanha de
saneamento dos sertões caracterizaram um quadro higiênico do interior do país, tendo a
higiene como solução para os problemas nacionais (Figura 2). Essa caracterização se deu a
partir de suas expedições científicas nos sertões brasileiros, e reorientou as pretensões
higienistas no país. Em posse de ideias messiânicas propondo remédios para os problemas dos
sertões e para a salvação nacional, o discurso pela higienização do interior passa a participar
das discussões sobre o progresso nacional, evidenciando os espaços rurais e de produção
agrícola.
Figura 2 Caracterização do estado físico dos trabalhadores das lavouras brasileiras (à direta), e os resultados
que poderiam ser obtidos com o cuidado higiênico (à esquerda), veiculado nas páginas do Saneamento do Brasil,
1923. A ilustração visa a conscientização dos patrões quanto aos benéficos obtidos no cuidado da saúde dos
trabalhadores.
Fonte: Pena (1923).
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Estreitamento dos laços entre o higienismo e os espaços rurais brasileiros
A publicação da obra O saneamento do Brasil, de Belisário Pena, se deu em meio aos
debates em circulação no país, e buscou reforçar a caracterização de precariedade física dos
rurais brasileiros para justificar as intervenções higienistas nesses espaços. Essa emergência
dos pressupostos higiênicos e sanitários nos espaços rurais ocorreram desde meados da
década de 1910, a partir das investidas de Belisário Pena em seu projeto de higienização
nacional (Santos, 2012), e se ancorou em produções literárias e políticas de notabilidade na
época.
Em face da expedição Neiva-Pena, novas viagens científicas foram realizadas no
interior do país, o que provocou uma mobilização de intelectuais na construção de uma
identidade nacional próxima à higiene. Para Lima e Hochman (1996), à medida que se
investigava o interior do país, era produzido um diagnóstico sanitário pelos higienistas que
contrastava com as representações construídas pela literatura nacional e as tensionava. Como
os autores afirmam:
A descoberta da tripanossomíase americana e de suas graves formas clínicas problemas
cardíacos, neurológicos e deformações físicas traziam uma imagem sobre as populações
do interior distinta da idealizada pela literatura romântica. Somada a outras doenças
endêmicas, conformava um quadro em que era impossível apostar na vitalidade do caboclo.
(Lima & Hochman, 1996, p. 25).
As investigações médicas no interior passaram a desvelar a imagem de um Brasil pouco
conhecido entre os ciclos intelectuais das metrópoles e que se distanciava daquela veiculada
pela literatura romântica, composta por sertanejos fortes e robustos. Para os higienistas,
existiria um Brasil real, que era o revelado por eles, composto por uma população fraca,
ignorante e doente.
O termo “sertão”, explorado na literatura brasileira, era tomado pelos higienistas como
metáfora do Brasil, que, em um país de vasto território e pouco explorado, com população
rural de 85% (em 1920), pouca diferença existia em termos sanitários (Castro-Santos &
Figueiredo, 2012). As diferenças regionais existiam, contudo todos os estados comungavam
dos mesmos problemas: as doenças, os vícios e o analfabetismo. Nesse sentido, fazia-se
conveniente pensar o interior brasileiro a partir de uma definição estabelecida pela literatura,
tomando-a por uma ótica cientificista. Sua utilização, portanto, foi ampliada pelo médico
Afrânio Peixoto (1876-1947)
ix
, definindo-a a partir de fronteiras imaginárias.
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Num discurso de grande repercussão feito por Afrânio Peixoto no ano de 1918, em
homenagem a Miguel Pereira, ele afirma que os sertões começavam no fim da Avenida
Central, sendo ela um marco das reformas urbanas no Rio de Janeiro. Fazendo eco a outros
higienistas, Afrânio Peixoto utilizava critérios médicos, sociais e políticos, para sinalizar a
redefinição de uma fronteira entre os sertões e o litoral (ou o rural e o urbano). Para além de
um limite geográfico, o que delimitaria a fronteira dos sertões era a presença de doenças
endêmicas e a ausência da autoridade pública (Lima & Hochman, 2000; Hochman, 1998).
Murari (2009) atribui a essa fala a ampliação extrema alcançada pela palavra “sertões”, que,
em oposição ao “civilizado”, passou a definir como “atraso” tudo aquilo que caracterizava as
periferias urbanas, o meio rural e as regiões ainda selvagens.
Com isso, os higienistas passaram a ampliar a definição anteriormente estabelecida pela
literatura brasileira, que passa a atender ao apelo de Belisário Pena pelo saneamento dos
sertões. Antes, contudo, a aproximação entre os debates higienistas e a literatura teve
contribuições de Monteiro Lobato. O escritor foi influente no pensamento social da época e
sofreu influências dos achados divulgados por Belisário Pena, contribuindo para a
contraposição das representações românticas dos sertanejos (Murari, 2009; Pena, 1923).
Em virtude da publicação de Problema Vital, em 1918, Monteiro Lobato se tornou uma
das principais expressões do movimento sanitarista brasileiro. Sua contribuição central estava
na imagem do Jeca Tatu, que reservava um conjunto de críticas do escritor aos caboclos da
região Sudeste do país, motivadas pelos conflitos experienciados nas fazendas de café de sua
família e que foram herdadas por ele no vale do rio Paraíba, em São Paulo (Korndörfer,
2018). O personagem foi criado pela primeira vez em 1914, no livro Urupês, e aparecia
fragilizado por uma imagem eugênica
x
. No entanto, a partir das influências de Belisário
Pena
xi
, seu personagem reaparece quatro anos depois caracterizado por uma imagem
higiênica, que passa a ser adotada pelos higienistas brasileiros (Korndörfer, 2018).
Conforme Lobato (1956) demonstra, o Jeca Tatu vivia abandonado em uma casa de
sapé com sua mulher magra e feia, e dois filhos pálidos e tristes. Indolente, ele
resistia ao trabalho para viver em precárias condições e se entregava ao vício do álcool, sem
saber que tudo isso era decorrente das doenças que se beneficiavam da falta da bitos
higiênicos. Após ser examinado e instruído por um médico, o Jeca Tatu se regenerou e passou
a se beneficiar da terra para se alimentar e produzir riquezas. Tornou-se, assim, saudável,
moderno e um novo indivíduo, que compartilhava seus hábitos higiênicos com os outros
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caboclos do campo. Por conseguinte, ele se tornou um grande empreendedor rural e
americanizado (Lobato, 1956).
Ao demarcar a instrução higiênica como meio de se combater as doenças e vícios, e,
consequentemente, como instrumento para a formação de um vigor físico para o trabalho
agrícola, Monteiro Lobato assume uma retórica higienista direcionada ao campo. Essa retórica
colocava a higiene como remédio para o atraso dos sujeitos rurais e convoca os leitores a
também se higienizar. Murari (2009) afirma que, além de suas contribuições para circulação
dos pressupostos higienistas no Brasil, Lobato consolida, junto à imagem do Jeca Tatu, um
retrato do sertanejo abatido, indolente e ocioso.
Conforme Murari (2009), a imagem negativa do sertanejo era retratada na literatura
brasileira desde finais do século XIX. Ela chegou a receber contribuições de Valentim
Magalhães (1859-1909) e Lima Barreto (1881-1922), contudo, foi somente a partir da figura
do Jeca Tatu que a atribuição de atraso rural se consolida na literatura nacional. A imagem
literária buscou respaldos nos discursos médico-higiênicos em voga para retratar uma figura
doente em oposição aos “valentes sertanejos” (Murari, 2009; Lima & Hochman, 2000). Com
isso, o personagem de Lobato passou a ser veiculado por meio de almanaques de farmácia,
associado ao produto Biotônico Fontura, e foi reinterpretado na forma de história em
quadrinhos, comercializada como livretos (Figura 3).
Figura 3 Jéca Tatuzinho. Edição especial do Instituto ‘Medicamenta’ Fontura Serpe & Cia., São Paulo, Fontura
& Serpe, 1925, p. 15 (ilustração de Wiese). Caracterização de uma passagem em Lobato (1956, p. 333) em que o
médico prova ao Jeca a existência de pequenos organismos causadores da ancilostomíase por meio de uma lente.
Fonte: Gomes (2006).
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Apesar da virada no olhar de Monteiro Lobato e de um apelo para que os fazendeiros
promovessem melhorias sanitárias aos caboclos, conservou-se uma visão negativa dos
habitantes do campo brasileiro. Tal fato provocou manifestações contrárias, como a de um
jornal de pequena circulação da cidade de Iguapé, em São Paulo.
Em resposta a um artigo de Lobato, publicado em O Estado de S. Paulo, um jornalista
de Iguapé repudiou o escritor por atribuir à população da cidade uma imagem de indolência e
atraso, que nada mais era que “os excessos de seus conceitos apaixonados, a sua critica
parcial, desonesta e inverosimil” (Monteiro Lobato (s.d.) como citado em Lobato, 1956, p.
311). O texto foi replicado por Lobato como nota de um capítulo, e, em resposta à
manifestação do jornalista, o escritor afirmou ser aquele sujeito um exemplo de como reage
um doente com seu cérebro afetado pela verminose (Lobato, 1956).
Assim, podemos perceber que a imagem atribuída ao Jeca Tatu encontrava desgostos
entre aqueles que eram taxados por ela. Todavia, essa representação se consolidou entre
grupos literários da época e serviu aos propósitos higienistas. Ela permitiria a incorporação de
uma imagem debilitada dos sertanejos nas representações dos sertões, colocando-os como
doentes que deveriam ser salvos pela higiene moderna.
A celeridade alcançada pelo personagem Jeca Tatu em 1918, que consolidou uma
representação negativa dos sertanejos na literatura, alimentou a circulação dos discursos
veiculados pelo livro Saneamento do Brasil. Ao mesmo tempo, Belisário Pena, dando
subsídios para a representação literária de Monteiro Lobato, adentrava na crítica às
representações fantasiosas da literatura romântica, ecoando a imagem de precariedade física
dos sertanejos. Pena (1923, p. 26) faz um apelo para
...colaboração de todos aquelles que não se deixam mais illudir pelas fantasias e devaneios
mentirosos de romancistas e poetas, descrevendo os nossos sertões como pedaços da terra da
promissão, onde reinam a fartura, a saude, e a alegria, quando ao contrario são elles em
geral, a séde da miséria, da doença, da tristeza e do anniquilamento physico e moral do
homem.... (Pena, 1923, p. 26).
A denúncia de Belisário Pena alimentava uma crítica à perspectiva romântica da
literatura regional brasileira, que acreditava estarem conservados, na força dos sertanejos, os
elementos para a construção de uma identidade nacional (Murari, 2009). Inversamente às
fabulações românticas, suas constatações demonstravam um interior tomado pelo
analfabetismo e por doenças, que degeneravam os sujeitos e os incapacitava de usufruir da
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natureza circundante. Ora, ao contrário da força e da robustez, era a doença que se destacava
como elemento distintivo do “ser brasileiro” (Pena, 1932).
Para caracterizar a realidade tida pelos higienistas, Pena utilizou de suas observações
feitas nas expedições científicas. Foram retomadas anotações da expedição Neiva-Pena como
forma de demonstrar o estado de degeneração em que os sertanejos se encontravam,
caracterizando-os de forma vexatória. Conforme descreveu, “núcleos de populações desde 60
a 300 individuos, na sua maioria idiotas, cretinizados, ou aleijados ou paralyticos,
percorremos nós, onde difficilmente se deparava um semi-idiota capaz de dar algumas ligeiras
informações” (Pena, 1923, p. 29). Tal miséria física e educacional se combinava com os
“innumeros logarejos onde 100% dos habitantes estavam atacados pelo terrivel flagelo
[doença de chagas] nas suas modalidades mais graves” (Pena, 1923, p. 29).
Uma outra ancoragem estabelecida por Belisário Pena para a interiorização dos
pressupostos higienistas foi com as ideias do proeminente ruralista Alberto Torres, um ator
expressivo no pensamento social brasileiro, empenhado na defesa do trabalho agrícola e da
educação dos rurais. Conforme Góis Junior (2014), o intelectual influenciou e foi influenciado
pelos higienistas. Entre as suas contribuições para o pensamento médico-higiênico no Brasil,
estão a publicação das obras O problema nacional brasileiro e A organização nacional, em
1914, além de As fontes de vida no Brasil, em 1915.
Nas duas primeiras obras que se configuram como as principais do autor , Alberto
Torres se dedicou a pensar o reordenamento do Estado brasileiro. Em A organização nacional
estava contida sua proposta central de uma revisão constitucional, enquanto em O problema
nacional brasileiro, o autor demonstrava a falta de um ordenamento adequado na condução
dos problemas reais do país, colocando em destaque sua revisão constitucional (Bariani,
2007). A proposta de revisão do ruralista foi repercutida positivamente por Belisário Pena,
que denunciou que em um país de regime político falho como o Brasil, elle [Alberto Torres]
prega no deserto, e muito pouca gente o (Pena, 1923, p. 131). Caso fosse em um país
“medianamente culto, seria um <<leader>> da politica geral; a sua palavra um oraculo; as
suas idéias e principios, scientificamente fundamentados em factos, em observações
documentadas e argumentação logica, seriam discutidos e aproveitados (Pena, 1923, p. 131).
Alberto Torres se revelava um crítico do cenário político na época, em que as grandes
metrópoles eram assistidas pelos governos simulando um falso progresso pelos luxos e
espetáculos, enquanto o verdadeiro Brasil, no interior, encontrava-se abandonado (Torres;
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1982; 1933). Esse cenário se refletia na fraqueza física dos brasileiros, cujas três principais
causas eram: 1) a falta de estudos do clima e das condições de vida nele favoráveis; 2) a
escassez e a improbidade dos alimentos; e 3) as causas econômicas, sociais e pedagógicas,
relativas à prosperidade e à educação (Torres, 1933).
Identificados os problemas vitais do Brasil, a visada de uma construção nacional deveria
passar pela organização do trabalho agrícola e das condições de vida dos trabalhadores, já que
“todos os esforços da hygiene e todas as reformas sanitarias serão luxos profissionaes, ou
simples desvios, na focalização dos factos reaes, mal atacando as molestias e nunca
extinguindo as predisposições morbidas...” (Torres, 1933, p. 177-178).
Mais do que um locus que precisava ser higienizado, nos espaços rurais estariam as
bases a serem investidas e reguladas pelo governo para o fortalecimento da pátria: a terra e o
homem. Assim, Alberto Torres se demonstrava favorável aos debates higienistas que viam as
práticas de saúde como elemento importante na organização nacional, e não apenas no
combate das doenças. Os pressupostos higienistas deveriam caminhar junto a uma educação
rural visando à adaptação do homem ao solo e ao desenvolvimento do amor pela terra.
Suas ideias deram subsídios para a ruralização do ensino no Brasil e para a veiculação
de práticas moralizantes e higiênicas no interior (Tavares, 2014; Totti & Machado, 2013). Já
sua proposta de intervenção do Estado na regulação da vida social encontrou afinidade com os
embates políticos travados pelos higienistas nas décadas de 1910 e 1920, em defesa de um
Estado centralizado (Góis Junior, 2014).
Os higienistas defendiam a necessidade de um poder único na regulamentação das ações
de saúde, tirando seus encargos dos estados e municípios. Para Pena (1923), uma vez que a
miséria no interior não permitiria sequer as condições básicas para que os indivíduos
mantivessem um bom vigor físico, caberia ao governo central intervir nos estados para o
combate das doenças e dos vícios, além da promoção de educação e instrução higiênica para
toda população. Os espaços rurais que estavam abandonados, na visão de Alberto Torres,
poderiam, então, ser assistidos pelo Estado nacional.
Para favorecer o projeto de centralização dos serviços de saúde para uma guinada ao
interior, os higienistas buscaram promover uma mobilização social angariando o apoio da
população e das classes letradas nas metrópoles. Demonstrava-se a importância da
coordenação do Poder Público para a produção de uma profilaxia rural duradoura e os
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benefícios dessa reforma para a conservação da saúde nas capitais e para o progresso nacional
(Hochman, 2012).
Os grandes centros urbanos eram espaços investidos pelos higienistas desde o início do
século e se tornaram propícios à defesa do projeto sanitário. Neles, a imprensa promoveu a
circulação de imagens sobre o interior e os sujeitos rurais, na tentativa de convencimento dos
habitantes urbanos, suas comunidades científicas e classe política (Fonseca, 2018).
Notadamente, houve também a tentativa de formar um apoio mais incisivo e com
influência política por meio da criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, que buscava
promover a educação higiênica no país. Ela foi mobilizada e fundada por Belisário Pena em
1918 tendo o próprio como presidente , sendo a fundação da Liga, segundo Pena (1923),
um resultado da publicação de seu livro. Por meio da criação da Liga Pró-Saneamento, o
higienista pôde congregar diversos intelectuais, profissionais liberais e políticos atuantes no
cenário nacional, além de vários representantes estaduais, que divulgavam, de alguma forma,
as concepções e as propostas gerais do movimento. Entre eles, participava o presidente da
República Wenceslau Brás (1914-1918), que, em meio aos impactos da gripe espanhola e ao
temor do retorno da febre amarela aos portos, permitiu a criação do Serviço de Profilaxia
Rural em 1918 (Hochman, 2012; 1998; Britto, 1995).
Com a atuação da Liga Pró-Saneamento, foi realizada uma ampla investida educativa no
saneamento dos sertões, acompanhada de uma mobilização social em prol das reformas
sanitárias. Segundo Hochman (1998, [s/p]), Belisário Pena realizou um balanço das atividades
da liga indicando que, entre 1918 e 1920,
[...] teriam sido distribuídos vinte mil exemplares do panfleto Opilação ou amarelão (outros
nomes para a ancilostomíase), entre outros folhetos educativos; proferidas ‘mais de uma
centena de palestras e preleções de higiene’ em escolas, quartéis, praças públicas etc.;
publicados ‘mais de cem artigos em revistas e jornais diários’; além de ter sido prestado
auxílio a lavradores no campo da higiene, incluindo serviços profissionais gratuitos a
fazendas. Sem contar as próprias atividades profissionais e institucionais dos membros da
campanha como médicos, professores e funcionários públicos que eram consideradas
intrínsecas ao movimento.
Apesar da ampla investida, o projeto político de centralização do poder para gestão das
reformas sanitárias, defendido por Pena (1923), encontrou impedimentos constitucionais e
políticos
xii
. O projeto dos higienistas foi substituído pelo Departamento Nacional de Saúde
Pública (DNSP)
xiii
, e da Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural estando subordinada
ao primeiro. Apesar da reforma na saúde pública não ter sido como os higienistas desejavam,
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ela permitiu a penetração do Governo Federal no interior dos estados por meio de adesão
voluntária, alcançando uma parcela significativa da União, além de impulsionar a criação de
políticas destinadas à profilaxia dos espaços rurais (Hochman, 2012).
Dessa forma, as pretensões políticas encabeçadas por Belisário Pena, e que pautaram as
discussões higienistas em prol do saneamento dos sertões, não foram concretizadas em sua
completude. No entanto, a mobilização produzida possibilitou a energização dos discursos
higienistas, trazendo seu enfoque para os espaços rurais e agrícolas, e permitiu a articulação
com intelectuais que participavam dos debates acerca das condições de vida naqueles espaços,
ecoando seus discursos.
Considerações finais
A década de 1910 foi marcada pela intensificação dos debates higienistas visando o
interior do país, antes centrado nos centros urbanos. Em meio a esse processo, foram
preponderantes as contribuições de Belisário Pena que, a partir de suas expedições,
caracterizou um quando sanitário precário presente nos sertões brasileiros e o colocou em
circulação junto a um apelo messiânico pela higiene.
A campanha alimentada por Belisário Pena, além de articular os pressupostos
higienistas aos problemas das regiões suburbanas, das pequenas cidades e vilas, e dos espaços
rurais, estabeleceu relações com intelectuais que refletiam sobre as condições de vida no
interior. Assim, campanha sanitária estabeleceu influências sobre Monteiro Lobato, o que
fortaleceu a emergência do espaço rural no discurso higienista. A caracterização de atraso e de
doença dos rurais, por meio do personagem Jeca Tatu, retratava a situação sanitária dos
sertões e ecoava discursos acerca da higiene enquanto um remédio para a recuperação dos
caboclos. Ao mesmo tempo, foi estabelecido ligações com as ideias de Alberto Torres,
enfatizando sua proposta de reorganização nacional a partir do campo agrícola brasileiro, com
destaque para a higiene, de forma a trazer contribuições para o trabalho agrícola. Além disso,
as ideias do ruralista para reforçavam a centralização do estado nas ações de saúde.
Desta forma, o discurso veiculado por Belisário Pena forneceu ao debate higienista um
apelo à higiene na recuperação dos trabalhadores agrícolas. Ele colocou em destaque as
doenças e a precariedade física nos espaços rurais, atribuídas como causa da imobilização
nacional. O intuito de seu discurso estava em impulsionar a economia e o crescimento
nacional a partir do interior do país, atribuindo ao Estado a responsabilidade pela garantia da
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higiene. Nesse sentido, sugerimos o investimento em novas pesquisas que articulem os
discursos higienistas com as condições objetivas, os interesses e os costumes dos sujeitos
rurais, expondo as descontinuidades entre a realidade no campo e a radicada nos higienistas.
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Torres, A. (1982). A organização nacional (4ª ed.). Companhia Editora Nacional.
Torres, A. (1933). O Problema Nacional Brasileiro: introdução a um programa de
organização nacional (3ª ed.). Companhia Editora Nacional.
Totti, M. A., & Machado, V. (2013). O pensamento de Alberto Torres e a educação rural no
Brasil: contribuições ao surgimento do ruralismo pedagógico. Revista de Ciências da
Educação, (29), 100-122. http://dx.doi.org/10.19091/reced.v1i29.290
i
Gondra (2003) sustenta a hipótese de que os médico-higienistas incidiram no objetivo comum de produzir
sujeitos “higiênicos, higienizados e higienizadores”, ou seja, uma dimensão educativa das práticas médicas em
formar sujeitos limpos, atuantes na sua higiene e na higiene do outro. Havia uma falsa utopia em forjar uma nova
espécie, o Homo hygienicus, que foi fundado na base do projeto higienista (Gondra, 2003).
ii
José Bento Monteiro Lobato foi um bacharel e escritor natural de Taubaté/SP, que se dedicou a realizar
produções literárias, em especial voltadas à literatura infantil. Na década de 1910, ele veio a ganhar visibilidade
a partir de publicação de artigos no O Estado de São Paulo e na Revista do Brasil (Kondörfer, 2018).
iii
Alberto de Seixas Martins Torres formou-se em Direito, e atuou como deputado estadual, federal e presidente
do estado do Rio de Janeiro, na Primeira República. Como intelectual e político, manteve-se preocupado com a
saúde pública e com a organização social do Brasil (Góis Junior, 2014).
iv
Num primeiro momento as preocupações higienistas se detiveram nas regiões litorâneas e nos portos do país,
sendo as ações que desencadearam a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, um de seus marcos. Já a
notabilidade dos sertões somente ocorreu com as expedições rumo ao interior brasileiro (Hochman, 2012).
v
Quanto às inserções feitas da primeira para a segunda edição: uma introdução para a nova edição em que são
relatadas mudanças ocorridas na política sanitária do país , considerações e comentários na primeira parte do
livro. Na segunda parte, foram feitas modificações estruturais, atualização dos dados e inserção de gravuras.
vi
A função das obras analisadas é indiciada pelo investimento em diferentes formas de circulação dos textos.
Parte do conteúdo foi anteriormente veiculado em revistas de grande circulação e, posteriormente, foi compilado
nas obras: Pena (1923) reuniu no primeiro capítulo artigos publicados no Correio da Manhã, em 1916; Lobato
(1956) publicou, integralmente, um compilado de artigos publicados em O Estado de S. Paulo, em 1918; Torres
(1933) compilou artigos publicados no Jornal do Commercio, em 1912; e, por fim, outra obra de Torres (1982)
reuniu, em sua primeira parte, artigos publicados na Gazeta de Notícias, em 1910 e 1911.
vii
Artur Neiva (1880-1943) foi um médico atuante no sanitarismo brasileiro. Na companhia de Pena, Neiva
liderou a expedição de 1912 e a liga Pró-Saneamento do Brasil. Após a publicação da expedição, ele se afastou
da “linha de frente” do Movimento Sanitarista para retomar suas atividades em laboratório (Castro Santos,
1985).
viii
Oswaldo Cruz (1872-1917) foi um higienista de notabilidade no movimento, que passou pelo Instituto
Pasteur, na França, e dirigiu o Instituto Sorológico Federal, em 1902. Como diretor da Saúde Pública do Distrito
Federal, ele empreendeu campanhas autoritárias de limpeza urbana e vacinação (Pinto; 2018; Benchimol, 2003).
ix
Afrânio Peixoto foi um médico baiano, autointitulado continuador dos legados do médico eugenista Nina
Rodrigues, e que atuou como professor na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ).
x
O posicionamento eugênico de Lobato ficou assinalado pela publicação do artigo Velha Praga, em O Estado de
S. Paulo. Nele, o Jeca Tatu retratado como condenado por uma condição indolente, preguiçosa e ignorante. Em
sua crítica literária, afirmava: “pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade” (Lobato, 2007,
p. 170).
Milagres, P. O., & Baía, A. C. (2023). A sanitarização dos rurais no discurso higienista da década de 1910...
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Pena (1923, p. 10) comenta as influências da primeira edição de sua obra sobre a publicação do livro Problema
Vital, de Monteiro Lobato, e reforça que a publicação daquela obra “destacou de modo brilhante a personalidade
combativa do notavel escriptor patricio [Monteiro Lobato]”.
xii
Os higienistas produziram inúmeras críticas à adoção do federalismo na Carta Constitucional de 1891, que
organizava o sistema de república adotado. Os intelectuais contestaram a autonomia conferida a estados e
municípios na gestão das políticas de cuidado à saúde, impedindo sua coordenação nacional (Lima & Hochman,
1996).
xiii
O DNSP foi criado pelo Decreto 3.987, de 2 de janeiro de 1920, que reorganizou os serviços de saúde
pública no país. Seu funcionamento se dá com a publicação do Decreto nº 14.354, de 15 de setembro de 1920.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em: 13/07/2022
Aprovado em: 26/08/2023
Publicado em: 21/10/2023
Received on July 13th, 2022
Accepted on August 26th, 2023
Published on October, 21th, 2023
Contribuições no Artigo: Os(as) autores(as) foram os(as) responsáveis por todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação da versão
final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for the designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os(as) autores(as) declararam não haver nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Esse trabalho recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) bolsa e projeto
APQ-02013-18.
Funding
No funding.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Milagres, P. de O., & Baía, A. C. (2023). A sanitarização dos rurais no discurso higienista da década de 1910. Rev. Bras.
Educ. Camp., 8, e14659. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14659
ABNT
MILAGRES, P. M.; BAÍA, A. C. A sanitarização dos rurais no discurso higienista da década de 1910. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 8, e14659, 2023. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14659