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Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14702
Entre o ideal e o real: disputas e tensionamentos na
construção do currículo de uma escola de Sapeaçu-BA
Débora Gomes Gonçalves1, Tatiana Polliana Pinto de Lima2
1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade
(CETENS). Avenida Centenário, 697. Feira de Santana - BA, Brasil. 2 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB.
Autor para correspondência/Author for correspondence: deboralg.03@gmail.com
RESUMO. Este artigo buscou compreender os desafios dos
docentes na construção de um currículo para sujeitos do campo
em uma escola do município de Sapeaçu-BA, observando as
disputas e tensionamentos inerentes a essa construção,
alicerçando-se em uma concepção crítica do currículo. Para
tanto, pautou-se em uma Pesquisa Colaborativa, utilizando a
roda de conversa, como instrumento capaz de fazer emergir
experiências curriculares. Junto a isso foi aplicada a análise
documental para verificar as proposições para os sujeitos do
campo. Os resultados da pesquisa revelam que, através de
contextualizações, os docentes buscam estabelecer um diálogo
entre os saberes dos estudantes e os constructos científicos.
Entretanto, essa construção fica fragilizada diante da nucleação
escolar e da oferta de cursos técnicos que destoam da realidade
do território, apontando uma desarticulação entre o Currículo
Bahia e a oferta de cursos na unidade escolar.
Palavras-chave: currículo, território, educação do campo.
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Between the Ideal and the Real: Disputes and Tensions
within the Construction of a School’s Curriculum in
Sapeaçu-BA
ABSTRACT. This article sought to understand the challenges
faced by teachers during the construction of a curriculum for
rural people, at a school in the city of Sapeaçu-BA, observing
the disputes and tensions inherent in this construction, based on
a critical conception of the curriculum. For that, it was based on
Collaborative Research, using the talking circle as an instrument
capable of bringing out curricular experiences. Additionally,
document analysis was applied to verify the validity of the
propositions concerning the subjects of the field. Research
results show that, through contextualization, teachers seek to
establish a dialogue between students' knowledge and scientific
constructs. However, this construction is weakened when faced
with the nucleation of the school and the offer of technical
courses that are out of touch with the reality of the territory,
pointing to a disjunction between the Bahia Curriculum and the
course offered at the school unit.
Keywords: curriculum, territory, rural education.
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Entre lo ideal y lo real: Disputas y tensiones en la
construcción del currículo de una escuela en Sapeaçu-
BAHÍA.
RESUMEN. Este artículo buscó comprender los desafíos de los
docentes en la construcción de un currículo para las personas del
campo, en una escuela de la ciudad de Sapeaçu-BA, observando
las disputas y tensiones inherentes a esta construcción, basada
en una concepción crítica del currículo. Para eso, fue realizada
una Investigación colaborativa, usando la rueda de conversación
como un instrumento capaz de sacar experiencias de currículo.
Además, se aplicó el análisis documental para verificar las
proposiciones para los sujetos del campo. Los resultados de la
investigación revelan que, a través de la contextualización, los
profesores buscan establecer un diálogo entre los saberes de los
estudiantes y las construcciones científicas. Sin embargo, esta
construcción se debilita ante la nucleación escolar y la oferta de
cursos técnicos que chocan con la realidad del territorio,
demostrando una desarticulación entre el Currículo Bahia y la
oferta de cursos en la escuela.
Palabras clave: currículo, territorio, educación rural.
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Introdução
A Educação do Campo alicerça-se no entendimento de que os povos do campo têm o
direito a uma educação e a escolas com características, projetos político-pedagógicos e
currículos que traduzam suas especificidades, considerando a materialidade de suas vidas e
que se pautem em um projeto contra-hegemônico para o desenvolvimento do campo
(Fernandes, Cerioli & Caldart, 2011).
Uma proposta ancorada na materialidade da vida dos sujeitos do campo perpassa pela
discussão de currículo, haja vista que este é um dispositivo através do qual se propõe e se
constrói uma trajetória formativa para os estudantes. Nesse sentido, o currículo precisa ser
pensado enquanto espaço que engendra poder e ideologias hegemônicas (Apple, 2008) e que
por sua vez precisam ser problematizadas e recontextualizadas a partir da perspectiva de
formação humana cunhada pela Educação do Campo.
Observamos nas últimas décadas os avanços conquistados pela Educação do Campo,
sobretudo no âmbito das políticas públicas que referenciam, por exemplo, as etapas,
modalidades e características das escolas do campo, trazendo diretrizes consonantes à sua
identidade, princípios e concepções, ao passo que em contrapartida vivenciamos o fenômeno
de fechamento de escolas do campo (Santos et al., 2020). A referida autora salienta que essa
violação do direito ontológico dos sujeitos do campo são expressas também na ausência de
garantias e efetivação de currículos próprios para as escolas do campo, situação apontada
por Arroyo (2015) como mecanismo de fragilização e precarização da própria proposta de
Educação do Campo.
Corroborando com os autores supracitados, percebemos que o currículo escolar pode
constituir-se como fortalecedor ou fragilizador das escolas do campo e da identidade, cultura
e conhecimento dos seus sujeitos. Por isso, a pesquisa que subsidiou a escrita do presente
artigo, teve como objetivo compreender os desafios dos docentes na construção de um
currículo para sujeitos do campo em uma escola do município de Sapeaçu - BA, observando
as disputas e tensionamentos inerentes a essa construção.
O interesse em pesquisar essa temática emergiu a partir do reconhecimento de que a
escola onde atuamos, embora localizada no centro urbano, atende predominantemente a
estudantes oriundos do campo, sendo definida conforme o Decreto de 7.352/ 2010 como
escola do campo. Diante dessa constatação, a escola que oferta o Ensino Médio Integrado à
Educação Profissional, que anteriormente priorizava em suas ações curriculantes a formação
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profissional, passou a problematizar e trazer em pauta um currículo para o atendimento dos
sujeitos do campo.
Buscamos desvelar ao longo deste artigo que, concomitante ao fenômeno de fechamento
de escolas do campo, a legitimação da nucleação escolar na etapa de Ensino Médio, inclusive
em sua articulação com a Educação Profissional permitidas na forma da lei através da
Resolução Nº2/2008, podem fragilizar a construção de currículos que dialogam com o
território, a cultura e a realidade dos estudantes do campo. Além disso, demonstramos os
efeitos da nucleação sobre a identidade dos discentes, bem como a bifurcação curricular que
pode se efetivar dentro da instituição.
Essa investigação foi estruturada enquanto Pesquisa Colaborativa, haja vista que o
objeto de pesquisa não se restringia ao currículo enquanto documento cristalizado, mas pelo
contrário, compreendeu o currículo enquanto dispositivo da práxis, construído por todos que,
com intencionalidades formativas, se implicam em sua construção, sobretudo os docentes,
conforme salienta Macedo (2013). Como instrumentos de compreensão, optamos pela análise
documental, dispositivo que nos ajudou a reconhecer as proposições curriculares para os
sujeitos do campo nas Diretrizes Curriculares da rede de ensino pesquisada e a roda de
conversa, que possibilitou que as narrativas e as experiências docentes acerca do currículo
para os estudantes do campo fossem reveladas.
Para realização da roda de conversa, foi estruturado um roteiro que vislumbrava eliciar
as falas dos participantes e conduzir a investigação pautando-se em seu objetivo. Além disso,
para compor a roda de conversa foram convidados seis docentes das diferentes áreas do
conhecimento que compõem o currículo, inclusive das disciplinas de formação profissional, a
fim de que fosse possível perceber as diferentes concepções e experiências na construção
deste currículo. Para tanto, foi definido como critério de inclusão de participantes, o exercício
da docência durante o período de realização da pesquisa e a lotação de no nimo dois anos
na unidade lócus da pesquisa, critérios essenciais para uma pesquisa que buscou captar a
experiência docente.
Importante salientar que para preservar o anonimato dos participantes da pesquisa, os
nomes dos docentes foram substituídos por nomes de comunidades rurais do município
pesquisado.
Esse artigo foi estruturado em quatro seções. A introdução, onde foram apresentados o
contexto de pesquisa, o objetivo da investigação, metodologia e os participantes da pesquisa.
A segunda seção constitui-se como referencial teórico, onde se apresenta a intersecção entre a
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crítica curricular e a educação do campo. A terceira seção onde apresentamos e discutimos os
dados da pesquisa, e as considerações finais.
A crítica curricular como perspectiva para as escolas do campo
As reflexões acerca do currículo feitas neste artigo ancoram-se em uma compreensão
crítica deste dispositivo, pautando-nos na concepção de currículo enquanto “documento de
identidade” Silva (2020, p. 150). Assim, concebemos tal como Giroux (1997), que existe um
vínculo entre escola, sociedade e currículo, no qual estão subjacentes políticas e ideologias
dominantes. Deste modo, as escolas reproduzem através de seus currículos estas ideologias,
seja em seu currículo formal ou em seu currículo oculto, se configurando como dispositivo de
manutenção e sustentação da ordem social e das relações de dominação e subalternização.
Essa inter-relação entre sociedade e escola fica notória ao analisar as tentativas de
fragilização e a precarização do sistema de Educação do Campo, como chama atenção Arroyo
(2015). É possível perceber a intencionalidade social em fazer com que a formação dos
sujeitos do campo aconteça de forma precarizada, e essa precarização se reflete inclusive na
ausência de currículos construídos de modo a contemplar as singularidades de seus sujeitos
concretos e na ausência de articulação entre os conhecimentos produzidos em suas
experiências, enquanto classe trabalhadora, com os conhecimentos científicos, mostrando que
o currículo engendra as ideologias e o poder das classes dominantes ao selecionar conteúdos,
de modo a provocar uma conformação e um controle social.
Nesse sentido, Apple (2008) declara ser imprescindível olhar a educação e suas relações
socioeconômicas, pois ela reproduz aspectos importantes das desigualdades sociais, inclusive
através dos currículos, tanto do ponto de vista economicista, quanto do ponto de vista
simbólico e cultural. Assim, o autor considera o conceito de hegemonia muito caro para as
análises dos currículos, pois
... ela assim constitui um sentido de realidade para a maior parte das pessoas na sociedade,
um sentido de ser absoluta porque experimentada [como uma] realidade a que a maior parte
dos membros de uma sociedade dificilmente conseguirá ir além ... Só podemos entender uma
cultura dominante e de fato existente se entendermos o real processo social do qual ela
depende: o processo de incorporação. Os modos de incorporação são de grande significação
e, além disso, têm significação econômica considerável em nosso tipo de sociedade. As
instituições de ensino são geralmente os principais agentes de transmissão de uma cultura
dominante eficaz e representam agora uma atividade importante tanto econômica quanto
culturalmente. (Apple, 2008, p. 39).
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Dessa forma, o autor compreende que a escola através de seus currículos, formais e
reais, constitui um corpus de conhecimentos que formam pessoas, nos quais estão subjacentes
os processos de incorporação cultural e simbólica de caráter dominante. Essa afirmação do
autor configura-se como um dos pontos chaves para se pensar o currículo das Escolas do
Campo, haja vista que um dos seus pleitos é a democratização do conhecimento. Entretanto,
Caldart (2009) salienta que essa democratização pleiteada traz consigo uma problematização
radical, pois esta exigência vai para além do acesso ao conhecimento socialmente
referenciado, reivindicando o lugar dos sujeitos do campo e de seus coletivos na produção de
conhecimentos, buscando romper com a hierarquização da produção e legitimação do
conhecimento vinculado ao modelo capitalista.
Por esse motivo, o currículo em questão está em um lugar contra hegemônico, pois
precisa estar atrelado à construção de um projeto de desenvolvimento do campo, centrado nos
camponeses, que não veja a escola/currículos como lugares/dispositivos de acessibilidade à
ciência, à tecnologia e aos conhecimentos como se estes fossem neutros. Pelo contrário, a
construção de currículos do campo precisa partir da consciência de que estes estão, em grande
medida, associados a processos hegemônicos do capital.
Caldart (2009) salienta que o grande desafio desse fazer curricular não se reduz a
ignorar os constructos científicos. Na verdade, a Educação do Campo carrega o contraponto
que vislumbra superar a lógica da produção de conhecimentos, como se estes não estivessem
fundados também nas experiências sociais. Outrossim, a autora diz que, ainda que alguns
teóricos considerem um risco essa reflexão, precisamos avançar sem negar as contradições
produzidas pelo capitalismo no modo de produção do conhecimento. Por esse motivo Caldart
(2009) faz um alerta:
Esta compreensão sobre a necessidade de um diálogo de saberes’ está em um plano bem
mais complexo do que afirmar a valorização do saber popular, pelo menos na discussão
simplificada que predomina em meios educacionais e que na escola se reduz por vezes a um
artifício didático vazio. O que precisa ser aprofundado é a compreensão da teia de tensões
envolvida na produção de diferentes saberes, nos paradigmas de produção do conhecimento.
(Caldart, 2009, p. 45).
Avançar em direção a outros currículos, pautados nessa problematização da produção
do conhecimento e do reconhecimento de que “todo conhecimento é uma produção social”
(Arroyo, 2013, p. 117), não é uma tarefa fácil e exige dos sujeitos instituintes de currículo, um
exercício de reflexão e principalmente de reconhecimento da natureza e constituição do
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conhecimento, sem os quais a Educação do Campo, embora vinculada a concepções contra
hegemônicas, continuará a serviço do capital, da adaptação e do controle social.
Quando Giroux (1997) discute a importância de incidir um olhar crítico sobre o
currículo para compreender que este não é um dispositivo neutro e perceber seu caráter
reprodutor, ele mostra em suas reflexões que essa compreensão é a chave para a proposição
de outros currículos, de natureza emancipatória e crítica. Para ele, a partir dessa sensibilidade
crítica, em olhá-los a partir de uma consciência histórica e social é que teremos fundamentos
para avançar por outros caminhos curriculares. Esses avanços precisam partir do
aprofundamento e do reconhecimento das singularidades dos sujeitos concretos.
Pelo exposto acima, quando nos reportamos a um currículo para escolas do campo,
pensamos seus sujeitos concretos: a classe trabalhadora do campo. Desse modo, uma proposta
curricular centrada nesses sujeitos, precisa pautar-se no vínculo imperativo entre educação e
projeto contra hegemônico para o desenvolvimento do campo, haja vista que sem ele o
modelo capitalista baseado no agronegócio continuará por intensificar a
expulsão/expropriação dos seus povos, tornando desnecessária a luta por escolas/currículos
com as particularidades do campo, tendo em vista que se mantidos os fluxos de expropriação,
o campo não terá mais gente, como salientam Arroyo (2004) e Fernandes, Cerioli e Caldart
(2011).
Os diálogos entre as teorias pedagógicas e as experiências educativas dos movimentos
sociais fizeram germinar um vínculo entre o projeto educativo para o campo com o projeto
contra hegemônico de desenvolvimento, ancorando ambos os projetos em uma concepção de
formação humana emancipatória. Assim, para Caldart (2008) o diálogo principal da Educação
do Campo é com as teorias críticas “vinculadas a objetivos políticos de emancipação e de luta
por justiça e igualdade social” (Caldart, 2008, p. 4). Desse modo, a autora defende que a
Educação do Campo possui três referências prioritárias, a saber: a tradição do pensamento
pedagógico socialista; a Pedagogia do Oprimido; e por último e mais recente a Pedagogia do
Movimento.
Ao se reportar a essas referências Caldart (2008) destaca que a pedagogia socialista em
sua perspectiva crítica trouxe como contributo sua análise sobre a relação entre educação e
produção, aplicável às singularidades dos sujeitos do campo, tendo em vista que tem o
trabalho e o cooperativismo como uma dimensão pedagógica. Similarmente, a Pedagogia do
Movimento, reflete acerca das experiências educativas dos movimentos sociais, incorporando
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assim uma tradição que tem como base as lutas de classe como movimentos educadores. Esta
última é a pedagogia do Oprimido, onde a autora destaca:
... a Pedagogia do Oprimido e toda a tradição pedagógica decorrente das experiências da
Educação Popular, que incluem o diálogo com as matrizes pedagógicas da opressão (a
dimensão educativa da própria condição de oprimido) e da cultura (a cultura como
formadora do ser humano), especialmente em Paulo Freire. A Educação do Campo talvez
possa ser considerada uma das realizações práticas da pedagogia do oprimido, à medida que
afirma os pobres do campo como sujeitos legítimos de um projeto emancipatório, e por isso
mesmo, educativo. (Caldart, 2008, p. 4).
Entre as três referências elencadas pela autora, Paulo Freire, em suas preocupações com
questões epistemológicas, é considerado como um autor que trouxe discussões que
implicaram de forma significativa na teorização curricular, sendo inclusive influência de
vários autores que discutem de modo mais direto as questões do currículo, como salienta Silva
(2020). Silva (2020) considera que a principal crítica de Freire ao currículo está sistematizada
no conceito de educação bancária que expressa uma visão epistemológica que concebe o
conhecimento como sendo construído como informação e de fato a serem simplesmente
transferidos do professor para o aluno” Silva (2020, p. 58).
Essa crítica constitui-se como uma das bases da Educação do Campo, pois ao tratar de
democratização do conhecimento, seus sujeitos vislumbram também serem reconhecidos
nesse currículo como autores de saberes, autores de currículo e essa relação só será possível a
partir de um rompimento dessa concepção do conhecimento como doação. Sob o mesmo
ponto de vista, Freire (1983) faz uma análise ainda mais específica em sua obra “Extensão ou
Comunicação”, quando, em exílio no Chile, discutiu a problemática da comunicação entre os
técnicos e os camponeses no processo de desenvolvimento de uma nova sociedade agrária.
Nesta obra, ao analisar a proposta formativa para os camponeses, ele descreve que
ao estabelecer suas relações permanentes com os camponeses, o objetivo fundamental do
extensionista, no trabalho de extensão, é tentar fazer com que aqueles substituam seus
“conhecimentos”, associados a sua ação sobre a realidade, por outros. E estes são os
conhecimentos do extensionista. (Freire, 1983, p. 14).
Ao descrever essa perspectiva formativa, o autor salienta que essa formação é pensada
como ato de domesticação e adaptação, e traz como contraponto a educação como prática
libertadora, onde o conhecimento, e ação curriculante precisam pautar-se na dialogicidade,
através da qual o conhecimento é construído por meio da intersubjetividade e da
intercomunicação.
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Desse modo, Freire (1983) propõe que o conhecimento é construído dialogicamente e
mediado pelo mundo cognoscível, implicando na transformação da curiosidade ingênua em
curiosidade científica, onde os sujeitos do campo são SUJEITOS e não OBJETOS. Ou seja,
Freire (1983) defende a educação como situação gnosiológica, onde o conhecimento decorre
da comunicação, transformação, problematização crítica, partindo da compreensão que o ser
humano é sujeito inacabado e histórico.
Nesse sentido, Silva (2020) pondera que uma das contribuições freireanas sobre o
currículo é a compreensão que “o conteúdo programático da educação não é uma doação ou
imposição, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles
elementos que este lhe entregou de forma desestruturada” Silva (2020, p. 61).
Para além dessas análises de cunho epistemológico, as reflexões feitas pelo autor em seu
livro “Pedagogia do Oprimido” são basilares para a Educação do Campo, e também são
fundamentais para a proposição de currículos com suas singularidades e perspectivas sociais.
O autor aponta para uma proposta educativa e curricular na qual os sujeitos são chamados ao
protagonismo, e a transformação da materialidade de suas lutas, bem como de seus processos
de desumanização como propulsores de um processo de conscientização mediante a uma
educação/currículos problematizadores:
... pedagogia do oprimido: aquela que tem que ser forjada com ele e não apenas para ele,
enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia
que faça da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o
seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que essa pedagogia se fará e
refará. (Freire, 2020, p. 43).
Referenciado em Freire, Giroux (1997) ratifica que os currículos precisam dirigir-se às
experiências desses sujeitos concretos, e aponta para a necessidade dos educadores terem a
capacidade de observar estes grupos e reconhecer a importância do capital cultural por eles
produzidos, não como simples reconhecimento de um pluralismo e diversidade de sujeitos,
mas a partir da percepção das relações de dominação às quais estes sujeitos estão inseridos.
Assim, o autor considera que qualquer proposta curricular que vislumbra a emancipação
perpassa pela consciência de que a realidade o está simplesmente dada, sendo, portanto
necessário empreender sempre uma análise crítica e problematizadora dos conhecimentos a
fim de situá-los a partir de suas relações sociais.
Além disso, Giroux (1997) salienta que os educadores enquanto intelectuais têm um
papel imprescindível nessa construção curricular, pois em que pese tenhamos políticas
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públicas que reverberam na escola, ao chegar nela, essas políticas encontram sujeitos que
trazem contrapontos para a implementação dessas propostas, incorporando assim suas
ideologias, suas concepções políticas e suas visões de mundo. Desse modo, o currículo
embora pertença a uma relação mais ampla entre sociedade/escola, também é construído nas
miudezas do cotidiano, através dos educadores, seus agentes mais diretos.
Compreendemos que na Educação do Campo essa ação direta dos educadores se faz
ainda mais necessária em vista da urgência de currículos que traduzam de forma mais efetiva
as reivindicações de seus sujeitos, e possa materializar um currículo que de fato represente a
democratização do conhecimento tal como perspectivada.
Tecituras curriculares de uma escola do campo: Meandros de sua construção
Nesta investigação tivemos como lócus de pesquisa uma escola de Ensino Médio
Integrado à Educação Profissional. A instituição é fruto do processo de expansão da rede de
Educação Profissional da Bahia, que para fins de interiorização teve sua oferta orientada pela
subdivisão do estado em vinte sete territórios de identidade, e que vislumbrava possibilitar a
formação profissional dos estudantes sem que estes se deslocassem para os grandes centros
em busca de qualificação profissional. Além disso, a oferta desta modalidade vinculou-se à
proposição do desenvolvimento e profissionalização dos sujeitos em consonância com as
necessidades de cada território. Desse modo, por meio do Decreto 11.355 de 2008, foram
então instituídos os Centros Estaduais e os Centros Territoriais de Educação Profissional
(CETEP), que teriam sua oferta exclusiva na modalidade de Educação Profissional em suas
diferentes articulações.
Notoriamente, o processo de territorialização/interiorização representou um avanço no
que diz respeito ao acesso à oferta de Educação Profissional, diminuindo o fluxo migratório
de estudantes em busca de qualificação profissional para a capital. Entretanto, este avanço
limitou-se à criação de centros educacionais no âmbito dos territórios, não contemplando de
forma efetiva os sujeitos do campo.
A instituição pesquisada remonta esse contexto, haja vista que estando em um centro
urbano na cidade de Sapeaçu - BA, contempla aproximadamente dez comunidades rurais
entre comunidades do próprio município, e comunidades rurais de municípios circunvizinhos,
atendendo hoje predominantemente a alunos do campo. Ao pesquisar as etapas de educação
oferecidas no município observa-se um decréscimo de escolas para cada etapa, sendo
registradas pelo censo do IBGE no ano de 2020, 20 escolas de Educação Infantil, 25 escolas
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de Ensino Fundamental e apenas três escolas de Ensino Médio, sendo possível inferir que ao
acolher estudantes de variadas comunidades rurais, a escola remonta um quadro de nucleação
de escolas do campo, que as vagas de Ensino Médio estão restritas a apenas três escolas no
município.
Embora a oferta do Ensino Médio em sistema de nucleação escolar seja legitimada pela
Resolução nº2/2008, possibilitando a realocação de estudantes de diferentes comunidades
rurais em escolas-núcleos, existem critérios de deslocamento das crianças e jovens das zonas
rurais, além de ser inegociável a dialogicidade entre as especificidades das comunidades e as
propostas pedagógicas das escolas. Entretanto, diante da diminuição dessa capilaridade
observada, é possível inferir que essa nucleação não respeita o critério de deslocamento, e
ainda reverbera na construção curricular das escolas de Ensino Médio, haja vista que estas
recebem uma heterogeneidade de comunidades e de sujeitos, e precisam representá-las em
seus currículos.
O referido processo de nucleação, sobretudo em uma escola localizada em um centro
urbano, ressoa na proposição curricular da instituição e é reafirmado na narrativa dos docentes
quando conversamos sobre como estes se articulam para estabelecer uma relação dialógica
com os sujeitos do campo:
Uma das coisas que a gente já sabe quando a gente chega na escola é a negação dos estudantes:
você pode entrar em qualquer turma que você vai ver que existe uma negação muito forte em
relação à sua identidade do campo.
... você tem uma ambiguidade. Porque você pode pensar o seguinte: eu não vou trabalhar e
relacionar o meu conteúdo, a minha didática, a uma coisa que ele não quer, que é a realidade
dele do campo. Ou você pode pensar também o seguinte: existe uma negação de um processo
histórico muito forte e que tendencia esse estudante a ter esse discurso e por isso eu acho que eu
devo problematizar isso. (Trecho da roda de conversa com os docentes da unidade - Prof.
Macaúbas)
A narrativa do docente possibilita entender que a nucleação escolar tem reflexos que
vão para além da contemplação da diversidade de sujeitos do campo e das múltiplas
comunidades no currículo escolar. Ela remonta a hierarquização entre o rural e o urbano, e
deixa nítido as implicações desta sobre a auto identidade dos sujeitos. Por sua vez, essa
identidade fragilizada, pode provocar alterações curriculares de dois sentidos: o da
reafirmação do não lugar desses sujeitos ou a de problematização e fortalecimento identitário
e cultural destes.
A percepção dos docentes em relação a fragilidade da identidade destes sujeitos, que
estando em uma escola localizada na zona urbana acabam por negar sua origem campesina,
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nos fez retomar o Currículo Bahia onde constam as “Orientações e Diretrizes Pedagógicas e
Curriculares da Rede Estadual da Educação Profissional e Tecnológica da Bahia”. Esse
documento destaque ao vínculo entre escola e comunidade e trata essa vinculação como
um princípio norteador: a “Indissociabilidade entre escola e comunidade/território e ao
mesmo tempo entre saber científico e tácito, considerando que a interdisciplinaridade é uma
realidade nas relações sociais e humanas, em sua interação consigo mesmo e com o meio
natural.” (Bahia, 2018, p. 25).
Corroborando com esse princípio, o Documento Curricular Referencial da Bahia
(DCRB), ainda em consulta na época da realização da pesquisa, ratifica essa relação entre
escola e território:
Desse modo, vincular a escola com os desafios concretos de desenvolvimento dos TI,
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significa fazer a articulação com os determinantes sociais, políticos, culturais, econômicos,
ambientais e tecnológicos de cada Território. Para tanto, faz-se necessário, incorporar a
formação e a diversidade local com processos específicos coletivos, de modo que a educação
escolar produza e fortaleça um saber que favoreça a melhoria das condições dos sujeitos e
dos Territórios onde vivem. (Bahia, 2021, p. 554).
Observamos que as diretrizes curriculares salientam o princípio de indissociabilidade
entre comunidade, território e escola e tratam dessa vinculação como elemento de construção
de currículos, propostos de forma que os conhecimentos científicos se articulem com os
saberes de experiência feita, como aponta Freire (1996). Os destaques apontados pelas
diretrizes nos quais essa interseccionalidade é colocada como ponto de partida resvalam nas
políticas de fechamento de escolas do campo, que pensam escolas e currículos com bases
numéricas, sem considerar a qualidade e o vínculo identitário e os direitos de seus sujeitos.
Esse pensamento é reafirmado na própria trajetória do Centro Escolar, visto que para
além da nucleação, a escola lócus da pesquisa, em 2018, num contexto de fechamento e
municipalização de escolas do campo na Bahia, passou por um processo de resistência da
comunidade escolar frente a uma tentativa de fechamento, processo esse que desencadeou
uma série de mobilizações através das quais a comunidade escolar conseguiu reverter o
fechamento da unidade na transformação em Centro Territorial de Educação Profissional.
Isto é, para além da concentração de múltiplas comunidades campesinas em uma única
unidade escolar e do desafio de fazer um currículo para atendimento das especificidades
desses sujeitos, a unidade escolar ainda passou por uma drástica e não planejada
transformação, necessitando assim ofertar um currículo integrado, sem tempo e sem
condições de aprofundamentos teóricos ou práticos.
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Desse modo, a implementação deste currículo se deu em um processo desafiador, no
qual o medo do retrocesso de um currículo tecnicista cercava os docentes, e era ainda mais
aprofundado pelo desconhecimento do que de fato seria essa articulação entre a base comum e
a área técnica em um currículo único. Embora em fase de transição para um novo currículo,
não houve tempo de preparação ou formação da equipe docente, que inclusive precisou
desbravar, a partir de pesquisas particulares, o mundo de novas disciplinas para as quais não
foram habilitados. Esse cenário fica claro na fala dos docentes:
Estava trabalhando no Projeto Político Pedagógico da escola e tivemos que fazer as
adaptações meio que a toque de caixa, porque tinha que cumprir o prazo, porque o NTE
(Núcleos Territoriais de Educação) estava exigindo ... E a questão do aluno assim, do… eu
acho que o aluno em nenhum momento foi assim, preocupação de ninguém, no início, né,
inicialmente. E a questão das disciplinas também teve que se fazer aquela arrumação de
disciplina técnica, sendo para pessoas que não tinha ainda nenhuma habilidade, professor
sem formação, sem estar habilitado para aquilo.(Trecho da roda de conversa com os docentes
da unidade - Prof. Palmeiras).
Além do contexto de implementação de um Ensino Médio Integrado feito “a toque de
caixa”, expressão usada pelos docentes, os mesmos ponderam que existem outros problemas
que ainda decorrem dessa implementação, a exemplo do distanciamento entre cursos
ofertados com as realidades dos estudantes, que para eles são cursos que não consideram as
potencialidades das comunidades locais e por isso, o currículo, mesmo nos processos de
subjetivações e alterações docentes, apresentam fragilidades para estabelecer uma
dialogicidade com os sujeitos do campo, como descreve uma docente: Nós temos cursos
voltados para a área do comércio, enquanto temos um público voltado mais para questões do
rural…” (Trecho da roda de conversa com os docentes da unidade - Prof. Murici).
Junto a essa constatação, os professores relatam dificuldades na promoção da integração
curricular e a realidade dos sujeitos, refletindo criticamente sobre as limitações em promover
essa recontextualização:
Então eu tenho que pensar em integrar o meu currículo de biologia com cursos técnicos que
na maioria das vezes não dialogam com a realidade desses estudantes. Então olha a
problemática que é! E aí quando eu consigo fazer isso, eu acabo saindo do eixo da realidade
desses estudantes. Porque eu consigo pegar biologia e dialogar um pouco com a logística,
com a informática, dialogar um pouco com a administração e serviços jurídicos. Mas nem
sempre isso é interessante para esse estudante.
... eu consigo pegar uma atividade de logística e integrar com uma casa de farinha e falar
da cultura da mandioca, dentro da cultura da mandioca falar de botânica, de planta. Eu
consigo fazer isso. Mas não é uma coisa simples de fazer.
(Trecho da roda de conversa com os docentes da unidade - Prof. Macaúbas).
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Ao rememorar as diversas ações curriculantes que vislumbram dar centralidade aos
sujeitos do campo dentro dessa multiplicidade de contextos inerentes à característica de
nucleação, os docentes, de forma coletiva, compreenderam que em grande parte de suas
atividades pedagógicas, ainda que tenham a pretensão de estabelecer uma relação dialógica
com as vivências desses sujeitos do campo, acabam esbarrando nos currículos de cursos
distanciados da realidade local. Assim, concluíram que suas ações são em grande medida,
apenas exemplificações da realidade, embora fosse necessária uma contextualização
formativa, como fica perceptível na fala da docente:
Quanto à questão da contextualização em outros sentidos é como o professor Macaúbas
falou. Às vezes eu acho que é mais uma exemplificação mesmo. Quando eu vou trabalhar
um conteúdo, por exemplo, eu tenho de pensar o que é que Sapeaçu produz, quais são as
frutas, as verduras que culturalmente se produz na região para poder dar um exemplo de
produção. Quando eu vou falar em produção, eu penso em produção agrícola quando eu vou
trazer um exemplo, um trabalho, não levo tanto para área industrial, por pensar na própria
região que não tem tanta indústria assim; mas é mais por exemplo.
(Trecho da roda de conversa com os docentes da unidade - Prof. Laranjeiras).
Ou seja, a construção do currículo escolar delineia um gama de complexidades nas
quais as prescrições, embora frutos de políticas curriculares, não dão conta de desentrelaçar.
Assim, é possível inferir que mesmo que a unidade tenha sujeitos imbricados na construção de
currículos, atentos e sensíveis à presença dos sujeitos do campo, existem tensões e disputas
que criam circunstâncias limitantes dentro da ação docente. Por esse motivo, Giroux (1997)
salienta que a escola/currículo não podem ser analisados fora de um contexto mais amplo, que
são as estruturas socioeconômicas nas quais estão inseridos.
Desse modo, ponderamos que mesmo as políticas curriculares apontando para a
intersecção entre comunidade, escola e território, está subjacente uma concepção hegemônica
de desenvolvimento territorial, incompatível com as reivindicações da Educação do Campo.
Por esse motivo, as subjetivações e transgressões docentes na tentativa de remontar currículos
que tomem como ponto de partida a materialidade da vida desses sujeitos, esbarram nos
gradeamentos das matrizes de cursos pensados e propostos numa lógica capitalista que pensa
o território camponês sob outra perspectiva.
Nesse sentido, a tensão e disputa se instalam, pois juntamente com as matrizes
curriculares se somam uma série de conteúdos e conhecimentos que se colocam em um lugar
de distanciamento dos sujeitos. Desse modo, consideramos que nesse contexto os
conhecimentos plurais dos sujeitos do campo podem ser tratados de forma superficial e
desarticulados, reduzindo-os à meras situações didáticas, que não criam condições de uma
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apropriação teórica dos saberes produzidos no coletivo dessas comunidades, como salienta
Caldart (2009).
Essa análise nos faz perceber que, embora existam possibilidades de transgressões
curriculares nas unidades escolares onde os docentes são autores/atores de currículo e podem
propor uma formação de base libertária e emancipatória, como aponta Macedo (2013), a luta
por políticas curriculares para a Educação do Campo, não deve ser solitária, mas como vem se
propondo, precisa estar ancorada sobre uma nova premissa de desenvolvimento para o campo,
sem a qual, o currículo pautará um território e uma comunidade sob uma lógica de
expropriação/expulsão dos sujeitos do campo, entendidos como "avanço/modernização" de
seus povos, como fica claro nesta fala: Talvez para serem melhor compreendidas e para ser
melhor aceitas elas carregam esse discurso de que “não gosto de Sapé” (apelido da cidade),
“não me imagino aqui”, “aqui não tem nada, vou ser o que aqui?”entende?(Trecho da roda
de conversa com os docentes da unidade - Prof. Macaúbas).
Nesse sentido, o currículo precisa problematizar a hierarquia posta entre campo e
cidade, levando docentes e discentes a uma compreensão da relação de interdependência entre
ambos, bem como faz-se necessário desconstruir a visão de que a permanência no campo é
algo retrógrado, pautando uma formação onde as juventudes possam optar de forma
consciente a respeito de sua permanência ou não no campo.
Considerações finais
Este estudo desenvolvido com o objetivo de compreender os desafios dos docentes na
construção de um currículo para sujeitos do campo em uma escola no município de Sapeaçu-
BA, observando as disputas e tensionamentos inerentes a essa construção, possibilitou retratar
a autoria docente em suas múltiplas itinerâncias para construir um currículo que dialogue com
a realidade dos sujeitos do campo. Por meio de “exemplificações” ou “contextualizações”, as
andanças dos docentes nos possibilita inferir que existe o entendimento de que a identidade e
territorialidades dos sujeitos do campo precisam ser apreendidas para a construção curricular.
Essas ações curriculares deixam transparecer a consciência docente de que o ato de ensinar
precisa se fazer em diálogo com os discentes, e que a materialidade dos sujeitos do campo não
pode ser pensada apenas como estratégia didática e construções superficiais.
Nos relatos das diferentes situações didáticas que se constroem em sala para buscar
permear as necessidades de adentrar as realidades concretas e ao mesmo tempo mobilizar
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esses saberes para uma compreensão ampliada do mundo do trabalho, foi perceptível que
essas ações esbarram no distanciamento dos cursos ofertados com a realidade das
comunidades atendidas, fazendo com que o currículo se constitua em recortes de proposições
dialógicas com território/sujeito e outros recortes de currículos feitos para o cumprimento das
matrizes curriculares.
Esses recortes de currículos que ora remontam os sujeitos e o território, ora seguem o
caráter prescritivo, estão imbricados também com a auto identificação dos sujeitos com o
campo, num contexto de atendimento em zona urbana, fazendo com que os docentes se
dividam em ações que ratificam a identidade campesina por compreenderem que a negação
desta se dentro de um processo histórico e por ações que ignoram essa identidade, diante
do entendimento de que propostas didáticas que retomam a origem desses sujeitos podem ser
pouco significativas. Entretanto, Caldart (2009) considera que o currículo de formação dos
povos do campo, precisa pautar-se nas matrizes pedagógicas que remontam a territorialidade e
as memórias de suas vidas e de seus coletivos, para que sua apropriação teórica fomente nos
sujeitos do campo uma formação crítica e emancipatória.
Nas narrativas docentes é possível perceber, por exemplo, o esforço em transformar a
ementa do curso de logística, pensado para a produção industrial, para a produção
agropecuária, inerente à zona rural de Sapeaçu, propondo assim que os alunos relacionem
seus saberes de experiência e apropriem-se de conhecimentos científicos, não como ruptura,
mas como superação, como propõe Freire (1996). Essas auto autorizações docentes delineiam
um currículo que nasce nas entrelinhas das prescrições, nascem da sensibilidade docente em
compreender que a docência se faz a partir dos saberes do educando. Todavia, a criticidade
docente esbarra sempre nos gradeamentos curriculares, e retornam à fragmentação entre
conteúdo e realidade, pois nem todas as disciplinas que constituem as matrizes curriculares
permitem essas alterações.
Ao pautar o território como eixo estruturante do fazer curricular para esses sujeitos, as
falas carregadas de problematizações afirmam a “sensibilidade” no olhar para os discentes da
unidade, sejam em situações didáticas pensadas para o resgate das histórias e identidades, seja
dentro de contextualizações feitas a partir dos conteúdos, pensadas para provocar uma tomada
de consciência dos estudantes.
Por outro lado, as problematizações apresentadas pelos docentes, sobretudo no que
tange a oferta de cursos que não dialogam com as potencialidades do território, ratificam a
disputa em torno da Educação do Campo e da construção do próprio currículo, revelando que
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para a construção de um currículo crítico, de base emancipatória, é preciso resistir e pleitear
políticas que se integrem de forma articulada na garantia de escola no campo em todas as
etapas e modalidades de ensino, formação docente, diretrizes curriculares construídas com os
coletivos do campo, sem os quais o fenômeno de fechamento de escola se dará também no
âmbito da efetivação de suas particularidades.
A relevância deste estudo revela-se através dos apontamentos e aprofundamentos feitos
sobre o currículo, que vão para além dos documentos curriculares e se apresentam na práxis
docente. Possibilitando compreender as fragilidades dos currículos das escolas do campo,
desde os processos legitimados pelas brechas nas políticas públicas, perpassando pela
formação docente, a se materializar nas salas de aula. Permitindo assim, que tanto os
pesquisadores deste campo, quanto o próprio Movimento de Educação do Campo, possam
mapear e reivindicar novas reformulações no campo das políticas curriculares e de formação
de professores.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em: 01/08/2022
Aprovado em: 26/08/2023
Publicado em: 21/10/2023
Received on August 1st, 2022
Accepted on August 26th, 2023
Published on October, 21th, 2023
Contribuições no Artigo: Os(as) autores(as) foram os(as) responsáveis por todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação da versão
final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for the designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os(as) autores(as) declararam não haver nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
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Não tem.
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Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Gonçalves, D. G., & Lima, T. P. P. (2023). Entre o ideal e o real: disputas e tensionamentos na construção do currículo de
uma escola de Sapeaçu-BA. Rev. Bras. Educ. Camp., 8, e14702. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14702
ABNT
GONÇALVES, D. G.; LIMA, T. P. P. Entre o ideal e o real: disputas e tensionamentos na construção do currículo de uma
escola de Sapeaçu-BA. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 8, e14702, 2023.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14702