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Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15692
Infância Indígena Apinayé: reflexões sobre o ser criança
na aldeia
Rosimar Locatelli1, Janaina Ribeiro de Rezende2
1, 2 Universidade Federal do Norte do Tocantins - UFNT. Centro de Educação, Humanidades e Sde (CEHS). Rua 06, Vila
Santa Rita. Tocantinópolis - TO. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: rosilocatelli@mail.uft.edu.br
RESUMO. O presente artigo objetiva refletir sobre aspectos
sócio-históricos e culturais da infância Apinayé, com base em
revisão de duas pesquisas etnográficas realizadas com esse povo,
um TCC de Pedagogia, desenvolvido em 2012, e uma pesquisa
de Mestrado em Letras, finalizada em 2016. Partimos da
compreensão da infância enquanto uma construção sócio-
histórica. Portanto, ao refletir sobre as crianças Apinayés,
defendemos uma abordagem sensível e atenta aos modos de vida
desse povo. Buscamos considerar aspectos culturais, étnicos,
geracionais, históricos e geográficos para tentar compreender
essa infância. Destacamos que a cultura Apinayé, vivenciada e
praticada pelas crianças por meio dos ritos, tradições e costumes
ocupam uma dimensão constitutiva da infância desse povo.
Além disso, as crianças não reproduzem o que lhes é
ensinado, mas inventam, criam e transformam o que lhes é
oferecido por meio da cultura de pares, enquanto sujeitos ativos,
que brincam, elaboram e constroem. O corpo, a relação com a
natureza e os grupos infantis são indispensáveis para se entender
o jeito que essas crianças estão no mundo. Mais do que trazer
conclusões sobre o modo de ser criança indígena, propomos
reflexões sobre as infâncias possíveis, tecidas entre brincadeiras,
responsabilidades e aprendizagens nas aldeias Apinayé.
Palavras-chave: infância Apinayé, infância indígena, culturas
de pares, sociologia da infância.
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Apinayé Indigenous Childhood: reflections on being a
child in the village
ABSTRACT. This article aims to reflect on socio-historical and
cultural aspects of Apinayé childhood, based on a review of two
ethnographic research carried out with this people, a TCC in
Pedagogy, developed in 2012, and a Master's in Letters research,
completed in 2016. We start from the understanding of
childhood as a socio-historical construction. Therefore, when
reflecting on the Apinayé children, we defend a sensitive and
attentive approach to the ways of life of these people. We seek
to consider cultural, ethnic, generational, historical and
geographic aspects to try to understand this childhood. We
emphasize that the Apinayé culture, experienced and practiced
by children through rites, traditions and customs, occupies a
constitutive dimension of childhood for this people. Furthermore,
children not only reproduce what they are taught, but they invent,
create and transform what is offered to them through peer
culture, as active subjects who play, elaborate and build. The
body, the relationship with nature and children's groups are
essential to understand the way these children are in the world.
More than bringing conclusions about the way of being an
indigenous child, we propose reflections on possible childhoods,
woven between games, responsibilities and learning in the
Apinayé villages.
Keywords: Apinaye childhood, indigenous childhood, peer
cultures, childhood sociology.
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Infancia Indígena Apinayé: reflexiones sobre ser niño en el
pueblo
RESUMEN. Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre
aspectos sociohistóricos y culturales de la infancia apinayé, a
partir de una revisión de dos investigaciones etnográficas
realizadas con este pueblo, una TCC en Pedagogía, desarrollada
en 2012, y una Maestría en Literatura, concluida en 2016.
Partimos de la comprensión de la infancia como una
construcción socio-histórica. Por eso, al reflexionar sobre los
niños Apinayé, defendemos un acercamiento sensible y atento a
las formas de vida de este pueblo. Buscamos considerar aspectos
culturales, étnicos, generacionales, históricos y geográficos para
intentar comprender esta niñez. Destacamos que la cultura
Apinayé, vivida y practicada por los niños a través de ritos,
tradiciones y costumbres, ocupa una dimensión constitutiva de
la infancia de este pueblo. Además, los niños no solo reproducen
lo que se les enseña, sino que inventan, crean y transforman lo
que se les ofrece a través de la cultura de iguales, como sujetos
activos que juegan, elaboran y construyen. El cuerpo, la relación
con la naturaleza y los grupos infantiles son fundamentales para
comprender la forma en que estos niños son en el mundo. Más
que sacar conclusiones sobre el modo de ser niño indígena,
proponemos reflexiones sobre infancias posibles, entretejidas
entre juegos, responsabilidades y aprendizajes en los pueblos
apinayé.
Palabras clave: niñez Apinaye, niñez indígena, culturas de
pares, sociología infantil.
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Introdução
O presente artigo é foi produzido como trabalho de conclusão do Curso de
Especialização em Educação Infantil da Universidade Federal do Tocantins UFT, Campus
de Tocantinópolis TO. Nesse sentido, buscamos trazer elementos para refletir sobre a
infância indígena Apina1, povo que vive em Terra Indígena demarcada na década de 1980 e
localizada ao Norte do estado do Tocantins, na região conhecida como Bico do Papagaio. A
fonte das informações apresentadas nesse trabalho é de pesquisas realizadas anteriormente
(Locatelli, 2012; Locatelli, 2016), que possibilitaram que reflexões e considerações sobre o
modo de ser criança no contexto sociocultural Apinayé.
Tocantinópolis é marcada social, cultural e economicamente pela convivência, nem
sempre harmoniosa, entre indígenas e não indígenas, já que quase 45% da área do município é
ocupada pela Terra Indígena TI Apinayé. Assim, esse território é atravessado por muitas
memórias, construções do passado como experiência coletiva de formação de opiniões e
tradições.
DaMatta (1976) constatou que, na década de 1970, o distanciamento e hostilidade
existente entre os indígenas e a população de Tocantinópolis eram, na verdade, um sentimento
que misturava medo e preconceito tanto entre o “povo da rua”, como é chamado quem mora
na cidade, como entre os Apinayé.
Esses sentimentos colonizatórios, construídos pela narrativa urbana e não indígena,
permanece dentro dessas relações:
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava
sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao
encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o
seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na
Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas
feitas em diferentes períodos da história (Krenak, 2019, p. 3).
Sem dúvida, a busca por compreender melhor os sujeitos indígenas, em especial, as
crianças, enquanto produtores de cultura foi um dos motivos que conduziram a realização
dessa pesquisa. Para tanto, esperamos nos contrapor à postura “civilizatória” e colonizadora
que ainda existe com relação aos indígenas Apinayé. Assim, buscamos pinçar nas nossas
pesquisas aspectos que contribuíssem para a compreensão da realidade da infância Apinayé,
de modo a refletir sobre as culturas infantis e infâncias indígenas.
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O discurso hegemônico tende a negar a existência da diversidade, o que não é diferente
no campo acadêmico. Desse modo, muitas vezes, os estudos relacionados à infância
desconsideram as especificidades indígenas, estabelecendo um padrão e classificações que
não ajudam a compreender a vidas das crianças nas aldeias. Desta forma, esse estudo busca
abordar à infância indígena, desatrelando-a de uma concepção de infância generalizada, de
uma visão hegemônica europeia, urbana e branca.
Nos estudos do campo da etnologia indígena, pesquisas sobre a infância vem, aos
poucos, ganhando espaço. Nesse sentido, contribuições para a compreensão da criança
indígena Apinayé podem ser relevantes para os estudos em relação à infância indígena no
Brasil, que é uma área recente e pouco explorada academicamente.
A fim de tentar compreender aspectos das infâncias indígenas, além de refletir sobre
características da infância Apinayé e o sentido que tal sociedade indígena atribui à criança,
olhamos para as formas de ser criança nas aldeias. Assim buscamos refletir os seguintes
questionamentos: Como as crianças indígenas Apinayé vivenciam culturas infantis? Quais os
sentidos que a sociedade indígena Apinayé atribui à criança?
O objetivo geral deste trabalho foi discorrer sobre a infância e as formas de
sociabilidade da criança indígena Apinayé, a partir de estudo de campo e observações
registradas em pesquisas anteriores. Os objetivos específicos foram posicionar teoricamente a
concepção de infância(s) e de infância(s) indígena(s) de que partimos; destacar aspectos
específicos e comuns da infância Apinayé, relacionando com a cultura indígena e as culturas
infantis.
O estudo sobre infância nos provoca a pensar sobre qual infância nos referimos, que
essa é uma concepção atravessada por questões históricas, econômicas, políticas, sociais,
étnicas, de gênero… Pesquisas recentes sobre o tema têm reforçado a necessidade de se
compreender que existem várias infâncias, categoria construída sócio-historicamente.
Ariès (2011) aponta as mudanças nas formas de representação e de tratamento que as
crianças recebiam ao longo da história. Na Idade Média europeia, a infância era considerada
uma fase sem importância e, durante muito tempo, permaneceu silenciada e invisibilizada.
Tendência que ainda persiste em alguns setores sociais.
Mais recentemente, quando se assumiu a infância como uma fase relevante e que
demanda cuidados específicos, a ciência passou a se debruçar com mais atenção às crianças.
No entanto, o conceito de infância, muitas vezes, generaliza um modo de ser criança das
classes dominantes, invisibilizando outros, como tende a ser o caso das infâncias indígenas.
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No campo acadêmico, a infância indígena vem aos poucos ganhando espaço. Conforme
indicam Tassinari (2009) e Cohn (2013), o estudo em relação à infância indígena no Brasil é
algo recente. No Brasil, esse tema tem se tornado uma tema mais pesquisado em diferentes
áreas do conhecimento, apontando relevantes aspectos para a construção de uma etnologia
indígena brasileira. Aracy Lopes da Silva, Ana Vera da Silva Macedo e Ângela Nunes (2002)
trazem a construção de uma nova perspectiva de infância indígena, rompendo com a visão
“adultocêntrica” historicamente predominante.
Ao debruçarmos sobre a infância indígena, percebemos que o tema é atravessado por
fatores econômicos, geográficos, culturais e linguísticos, que possibilitam vivências infantis
distintas. Embora sejam inúmeras as diferenças culturais entre os povos, existem muitos
pontos em comum na criação das crianças que se assemelham entre os diversos grupos
étnicos, conforme observa Mandulão (2006, p. 219):
Quando a criança nasce, é uma extensão da mãe que a amamenta e a protege. A criança é
socializada pela família e nas relações cotidianas da aldeia. Ela aprende fazendo,
experimentando, imitando os adultos. As crianças acompanham os pais e os seus brinquedos
são miniaturas dos instrumentos que posteriormente irão utilizar em sua vida de adulto.
Neste sentido, podemos inferir que a forma de ensinar nas comunidades indígenas têm como
princípios inseparáveis a construção do ser, pela observação, pelo fazer, testado dentro de
um contexto real.
Silva, Macedo e Nunes (2002, p. 18), apresentam seis princípios para compreender a
noção de infância indígena:
1. A infância deve ser entendida como uma construção social, fornecendo assim um quadro
interpretativo para os primeiros anos da vida humana ... 2. A infância deve ser considerada
como variável de análise social, tal como gênero, classe e etnicidade ... 3. As relações sociais
e a cultura das crianças são merecedoras de estudos em si mesmas, independente da
perspectiva e dos interesses dos adultos. 4. As crianças devem ser vistas como ativas na
construção e determinação de sua própria vida social, na dos que as rodeiam, e na da
sociedade na qual vivem. As crianças não são apenas sujeitos passivos de estruturas e
processos sociais. 5. A etnografia é um método particularmente útil ao estudo da infância ...
6. A infância é um fenômeno em relação ao qual uma dupla hermenêutica das ciências
sociais está presente, ou seja, a proclamação do novo paradigma da sociologia da infância
também deve incluir e responder ao processo de reconstrução da infância na sociedade
Com base nesses princípios, é que nos propomos a falar sobre a infância Apinayé,
entendendo que é um contexto étnico composto de uma enorme diversidade cultural.
Compreendemos que existem diferenças entre as infâncias indígenas e não é possível
abranger a totalidade dessas manifestações a partir do estudo de um povo. Além disso, é
necessário o afugentamento da concepção generalizada de uma infância urbanizada,
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eurocêntrica, da classe dominante, moradora das regiões centrais do país que tende a ser
adotada nos estudos sobre crianças. É preciso buscar um olhar amplo das formas indígenas de
entender à infância.
A priori, é importante se aproximar da criança indígenas para perceber sua infância.
Nesse sentido, buscamos referências nas produções acadêmicas sobre o tema, que revelam a
participação dessas crianças nas atividades cotidianas, nos rituais tradicionais da aldeia, bem
como nas relações com os adultos.
Tassinari (2007, p. 22) ressalta cinco aspectos importantes de serem considerados nos
estudos sobre a(s) infância(s) indígena(s):
1) o reconhecimento da autonomia da criança e de sua capacidade de decisão; 2) o
reconhecimento de suas diferentes habilidades frente aos adultos; 3) a educação como
produção de corpos saudáveis, 4) o papel da criança como mediadora de diversas entidades
cósmicas; 5) o papel da criança como mediadora dos diversos grupos sociais
Essas perspectivas com relação às infâncias contribuem para a compreensão da
especificidade dessas infâncias. Entendemos a infância como um tempo da vida, uma
condição singular da experiência humana. E foi com esse olhar atento, cuidadoso e
respeitador que buscamos observar as crianças e a infância Apinayé.
Percursos investigativos: caminhos percorridos
Esse trabalho se baseia em informações levantadas em pesquisas e trabalho de campo,
que somam mais de oito anos de estudos com os Apinayé, principalmente, na Aldeia São
José, localizada na TI Apinayé, no município de Tocantinópolis - TO. Para contextualizar as
fontes das informações utilizadas na construção desse artigo, apresentamos inicialmente um
resumo dessa jornada etnográfica entre os Apinayé.
Na graduação em Pedagogia da UFT, Campus de Tocantinópolis, desenvolvi o Trabalho
de Conclusão de Curso TCC, intitulado Criança Indígena Apinayé a Alfabetização Bilíngue
no contexto da Aldeia São José (Locatelli, 2012), orientado pelo Prof. Dr. Francisco Edwiges
Albuquerque. Esse estudo tinha como objetivo compreender como a alfabetização bilíngue
era desenvolvida na Escola Estadual Indígena Mãtyk, localizada na Aldeia São José, a partir
da observação em sala de aula.
Nessa pesquisa, buscamos explorar a formação da criança no contexto de construção de
uma identidade indígena e a aquisição dos conhecimentos a partir dos ensinamentos escolares.
Foi possível perceber que havia uma necessidade de construção do sujeito bilíngue nas
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relações sociais, uma vez que a história recente do povo Apinayé é atravessada por uma
vivência com modelos culturais não-indígenas, que foi imposta, mudando e reconstruindo as
relações estabelecidas entre eles e entre a sociedade.
Ressaltamos a necessidade da valorização dos ensinamentos dos costumes e tradições
guardados nas memórias anciões da comunidade. Caso não se cultive, esses saberes podem
ser perdidos a medida que os mais velhos morrem e as novas gerações não preservem tais
conhecimentos, expresso nos rituais, artesanatos e cantorias. Destacamos que a educação
escolar Apinayé pode ser lugar privilegiado para essas aprendizagens, uma vez que cultivar os
aspectos tradicionais da cultura indígena deve ser uma das responsabilidades da instituição de
ensino nesse contexto.
A segunda pesquisa foi desenvolvida durante o Mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura, na mesma universidade, no campus de
Araguaína, também sob a orientação e supervisão do professor Dr. Francisco Edwiges
Albuquerque. A dissertação teve como título: O processo de aquisição do português como L2
(Segunda língua) (Locatelli, 2016).
Tratou-se de pesquisa etnográfica, que buscou aprofundar os achados da pesquisa
anterior, a partir da compreensão do processo de aquisição do Português como segunda língua
L2 entre os alunos Apinayé do e anos do Ensino Fundamental da Escola Indígena
Mãtyk, da Aldeia São José. A faixa etária escolhida se deu pelo motivo de ser nessa etapa que
de fato eles começam a apropriação da segunda língua. Assim, investigamos como o
Português era ensinado e como essas crianças aprendiam.
É valido ressaltar que a língua Apinayé, denominada como língua materna, é a primeira
língua que aprendem na aldeia e, portanto, a ngua que as crianças o inicialmente
alfabetizadas, já o Português é a segunda língua. Os resultados da pesquisa apontam um
ensino fragilizado do Português como L2, o que contribui com questões bem complexas,
como o isolamento e desigualdade de acesso dos indígenas aos bens culturais, intelectuais e
tecnológicos da sociedade hegemônica, sendo um fator que aumenta a discriminação que eles
sofrem na sociedade não indígena.
Entendemos que esse é um processo intricado e que se constitui de forma dialética, na
qual convivem duas situações extremas e complexas: de um lado, a sociedade indígena com
seus valores culturais engua estigmatizadas e do outro, a sociedade majoritária que mantém
o domínio das relações culturais, linguísticas, políticas, econômicas e financeiras, em que as
comunidades indígenas estão cada vez mais dependentes e submetidas às regras para
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sobreviverem. Assim, os Apinayé se fortalecem pela manutenção de sua cultura através das
práticas tradicionais, rituais, cantorias, pinturas e a língua, o que favorece a identidade étnica.
Ao mesmo tempo em que o domínio da Língua Portuguesa é fundamental para as relações
interétnicas, o que exerce uma relação de poder entre as culturas. Dessa forma, os Apinayés se
deparam com um conflito linguístico.
Com base nas informações reunidas na convivência nas aldeias durante o
desenvolvimento dessas pesquisas, passamos a refletir sobre aspectos que caracterizam a
infância Apinayé. A partir de 2020, período de início da realização do curso de Especialização
em Educação Infantil da UFT, em decorrência da pandemia de Covid-19 e das restrições
sanitárias para evitar a disseminação da doença, o acesso às aldeias passou a ser limitado. De
modo que não foi possível realizar novas incursões a campo, conforme planejado
inicialmente.
Assim, para a elaboração do presente trabalho, partimos de percursos investigativos de
base bibliográfica, visando subsidiar a análise das informações. Além disso, baseamo-nos nas
informações e registros já realizados nas pesquisas anteriores, por meio das observações dos
trechos das pesquisas que revelam as características da infância Apinayé, bem como, das
anotações do diário de bordo com informações inéditas, que na época não eram o objeto das
pesquisas. Destacamos que os frutos desse trabalho vêm de um longo convívio, vivências
espontâneas e lúdicas com as crianças Apinayé, em momentos informais e no ambiente
escolar, nas festas culturais, no banho no ribeirão da aldeia e em muitas outras situações do
cotidiano, que possibilitaram a tessitura dessas reflexões.
Apinayé: o povo que resiste entre os rios Araguaia e Tocantins
Os Apinayés pertencem ao grupo dos povos Timbira, cuja língua faz parte da família
linguística Jê, possuindo uma cultura marcada pela tradição oral, rica tanto do ponto de vista
material como imaterial. O povo Apinayé ocupava o território entre os rios Araguaia e
Tocantins. Atualmente, a Terra Indígena Apinayé abrange os municípios de Cachoerinha,
Maurilândia do Tocantins, São Bento do Tocantins e Tocantinópolis, ao Norte do estado de
Tocantins.
Sua população é de 2.342, de acordo com Torres e Costa (2014), e vive da caça, pesca,
coleta e agricultura como formas de subsistência no território. No entanto, essas formas de
reprodução da vida sofrem os impactos do desmatamento, urbanização, expansão do
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agronegócio e de grandes projetos de desenvolvimento na região. Portanto, as formas de vida
tradicionais nem sempre têm garantido o provimento de alimentos que seria necessário. Uma
fonte de renda importante das famílias Apina vem da aposentadoria dos idosos, de
programas sociais, como o Bolsa Família, bem como de salários de membros que trabalham
em cargos públicos, em escolas ou no serviço de saúde, de acordo com as informações do
Distrito Sanitário Especial Indígena do Tocantins DSEI/TO (Ladeira & Azanha, 2003).
Esse povo vive suas tradições e contribui significativamente com a preservação e
manutenção dos riachos, fauna e flora da região, o que pode ser confirmado em dados
apresentados pelo Instituto Socioambiental ISA (s/d), com relação aos índices de
desmatamento da TI.
Giraldin (2001, p. 33) apresenta elementos que atestam a abundância da riqueza cultural
e natural da cultura desse povo:
Os Apinaje são mais um grupo que pensa o universo unificado através do compartilhamento
de elementos (os m karõ) presentes tanto no reino animal quanto no vegetal. Tais elementos
mostram que também para os Apinaje não se aplica aquela dicotomia clássica do pensamento
das sociedades modernas, separando natureza e cultura.
Apinagé (2017) destaca que mesmo com a convivência cada vez mais ampla com a
cultura de kup (não indígena), os Apina resistem se organizando na comunidade
tradicional e preservando a cultura, apesar de todos os conflitos enfrentados de ordem
econômica, política, linguística e cultural. Nesse sentido, fortalecer o ensino étnico nas
escolas indígenas pode ser uma das maneiras de valorização da cultura tradicional, uma vez
que as crianças são o foco principal dessa ação pedagógica, podendo ajudar na preservação de
conhecimentos ancestrais.
As crianças fazem parte da cultura Apinade forma vívida e ativa. Nesse sentido, as
práticas sociais presentes na comunidade apresentam um conjunto extenso de habilidades, as
quais as crianças Apinayé vão gradativamente aprendendo, à medida que participam delas.
Assim, o processo de socialização das crianças Apinayé é uma dimensão importante para
entendermos essa cultura indígena.
Os jeitos de ser criança Apinayé: a infância compartilhada no “quintal maior do que o
mundo”2
Os estudos de Curt Nimuendajú (1983); Roberto da Matta (1976); Francisco Edviges
Albuquerque (2007); Severina Alves de Almeida (2010; 2011); Rosimar Locatelli (2012;
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2016) trazem reflexões sobre o modo de vida desse povo, oferecendo apontamentos sobre a
infância Apinayé.
Existe um consenso entre os trabalhos analisados, de certo modo, ao caracterizarem a
aprendizagem da criança indígena quando participam das atividades cotidianas, dos rituais
tradicionais e enquanto observam pessoas adultas. Nesse sentido, essas práticas funcionam
como exemplo ou modelo para seu aprendizado.
A cultura Apinayé se expressa nos mitos, na produção de artesanato, nos rituais, nas
festas tradicionais, nas cantorias, nas pinturas corporais, nas danças, na culinária e nas
brincadeiras vivenciadas e praticadas por adultos, idosos e crianças. Estas, enquanto dançam e
cantam as músicas indígenas com os mais velhos, brincam, constroem memórias e aprendem.
Ao falar da infância Apinayé, é necessário destacar o lugar que elas vivem, convivem e
um conjunto de fatores que as envolvem. Inicialmente, os Apina vivem em famílias
extensas, chegando a morar até seis famílias nucleares em uma mesma casa, ou seja, até a
quarta geração de uma família3 compartilham o mesmo espaço. Isso significa que as crianças
convivem intensamente com os adultos e os seus pares.
A infância é entendida pela cultura Apinayé como um momento único de existência, e
que não se espera outra coisa além do que é, pois sabem que a criança é tudo o que
precisa ser. Além disso, ela precisa brincar para ser plenamente criança (Munduruku, 2018).
Não é difícil observar o respeito a essa fase da vida no cotidiano das aldeias Apinayé,
visto que as crianças estão sempre presentes, subindo em árvores, brincando de terra,
construindo brinquedos com a palha de palmeira, banhando no ribeirão, correndo, jogando
futebol, cuidando umas das outras. Estes elementos contribuem com a construção da
identidade cultural indígena nas crianças, que se desenvolvem de forma plena.
Tassinari (2009) destacou cinco aspectos recorrentes que configuram o aprendizado das
crianças indígenas: a) a forma de interação entre crianças e adultos; b) as noções da cultura
local sobre corpo, aprendizagem e desenvolvimento infantil; c) as posições diferentes que as
crianças assumem no processo; d) a indissociabilidade do momento de ensino com o
momento da prática; e) as práticas são desenvolvidas, principalmente, no contexto da aldeia.
É possível identificar cada um dos aspectos descritos acima no processo de socialização
das crianças Apinayé, pois o primeiro lugar de aprendizagem das crianças é o quintal de sua
própria casa, no terreiro, no pátio, no chão de barro. Lugar onde nasceram e, quando ainda
pequenos, iniciam seu processo de socialização. Grupioni (2001) relata que as crianças
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indígenas aprendem como em todo lugar, elas têm seu pequeno mundo, têm brinquedos de
palha, de madeira, de barro e cabaça, imitam os adultos nos afazeres cotidianos.
As pesquisas entre os Apinayé mostram que muitos dos ensinamentos são passados das
mães para filho(a). As crianças pequenas estão sempre nos colos de suas mães, que os
amamentam a todo momento. Dessa forma, desde que nascem, os bebês são integrados na
cultura comunitária, que a responsabilidade de criação parece ser compartilhada por toda a
aldeia, mãe, pai, família e outras crianças. Ao aprender a andar, a participação das crianças
nas atividades da casa se intensifica, tendo contato com objetos, alimentando-se sozinhas,
pegando na terra.
Acompanhar ao cotidiano das crianças Apinayé é um processo revitalizador. A vivência
cotidiana na aldeia proporciona às crianças uma liberdade, a solidariedade que se torna ato
muito comum entre os pequeninos no dia a dia.
As crianças Apinayé dividem o tempo com as atividades escolares e com suas brincadeiras,
na maioria dos períodos estão expostos ao tempo e a natureza; brincam no chão com a terra,
inventam brinquedos com peças de pau, barro ou ossos, algumas têm acesso a brinquedos
urbanos como bola e bonecas (Locatelli, 2012, p. 32).
Assim, a socialização se inicia no âmbito familiar, que insere as crianças na vida de seu
grupo doméstico. Conforme a criança cresce, ela passa a extrapolar o limite da casa e vivencia
todo espaço da aldeia (que de certa forma, é a casa dela). O ribeirão, o pátio, o campo de
futebol, as árvores são espaços de socialização e aprendizagem das crianças. As crianças
aprendem a andar e a falar, recebem os primeiros ensinamentos nesses espaços.
Aracy Lopes da Silva, Ana Vera da Silva Macedo e Ângela Nunes (2002) destacam o
papel das crianças como sujeitos sociais completos e interlocutores legítimos no processo de
aprendizado e desenvolvimento. Elas afirmam que constituir uma concepção própria do que é
ser criança indígena na aldeia, possibilita que o processo de aprendizagem dela ocorra através
de iniciativas próprias.
As crianças têm muita autonomia, compartilham as brincadeiras, banhos de ribeirão, as
produções de brinquedo e os cuidados umas das outras de forma coletiva, comunicam-se,
participam e se envolvem nos ritos, nos costumes tradicionais conjuntamente com as demais,
escutam os saberes e constroem o seu jeito de ser criança.
De acordo com Corsaro (2011), são nessas interações com seus pares, os grupos sociais
com que se relacionam e nos contextos de vida em que estão inseridas, que as crianças,
agentes sociais ativos e criativos, produzem suas próprias e exclusivas culturas infantis. Essas
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aprendizagens, que estão nos pátios, nos quintais e nos terreiros das aldeias são determinantes
no mundo particular dessas crianças, que são permeadas de uma construção histórica de
hábitos e costumes do conhecimento popular e eminentemente coletivo que acontece entre
pares.
Segundo o autor, a cultura de pares infantil pode ser definida como “um conjunto
estável de rotinas ou atividades, valores, artefatos e preocupações que as crianças produzem e
compartilham em interação com os demais” (Corsaro, 2011, p. 128). E continua “uma
suposição importante da abordagem interpretativa é que características importantes das
culturas de pares surgem e são desenvolvidas em consequência das tentativas infantis de dar
sentido e, em certa medida, a resistir ao mundo adulto.” (Corsaro, 2011, p. 129).
O sociólogo mostra que as famílias desempenham um papel fundamental no
desenvolvimento da cultura de pares. Sem dúvida, a família é muito importante para as
crianças Apinayé, é a primeira referência que elas têm, e a partir daí, vão gradativamente
aprendendo, a medida que participam e estabelecem relações com os demais.
A partir das observações, compreendemos que as crianças compartilham espaços
importantes de socialização da cultura Apina e de construção do seu modo de ser criança na
aldeia, sendo eles: os rituais tradicionais e os grupos infantis, em que elas produzem a cultura
de pares, aspectos que serão abordados a seguir.
A infância, a cultura infantil Apinayé e os rituais tradicionais
A cultura Apinayé é extremamente rica, com variadas manifestações, rituais e formas de
expressão. As crianças estão presentes nos espaços das tradições, seja como observadoras ou
participando das cerimônias. Algumas dessas manifestações foram destacadas nos estudos de
Curt Nimuendajú e selecionamos um dos costumes, por retratar uma dimensão do cuidado
com a infância:
A família de um morto, evita que durante o período de luto as crianças andem na roça, com
medo da alma do falecido. As almas ou sombras são mortais, isto é, depois que passam
muito tempo na terra elas morrem ou transformam-se em outra coisa como: tocos, cupins ou
animais. Em vida, a alma de uma pessoa pode se desligar do corpo, isso pode ocorrer
principalmente com as crianças, que ao levarem uma queda ou um grande susto, sua alma
poderá sair de seu corpo e ficar perdida no mato, na roça ou no local que a criança estava no
momento da queda. Ninguém, com exceção do vayangá4, a alma ou ouve o choro da
criança, e, este pode pegar a alma da criança e reintroduzir nesta (Nimuendajú, 1983, p.
113).
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As crianças Apinayé convivem com esses aspectos culturais, que forjam formas de estar
no mundo e interagir com a comunidade. Outro rito que as crianças passam é o M kâm m
hixi (festa de nome de batismo), que de acordo com Locatelli (2016), é um dos rituais mais
comuns entre os Apina e costuma ser realizado sempre que nasce uma criança. Por meio
desse ritual, a criança é batizada e recebe um nome.
O tempo que caracteriza o fim da infância e a adolescência é marcado pelo rito de
passagem, chamado Wỳỳt (ritual de passagem). Porém, segundo relato da anciã Mno5, esse
ritual é mais comum no povo Krahô e não era muito praticado na Aldeia São José, por ser
dispendioso de recursos financeiros para a organização de uma grande festa e nem todas as
famílias conseguem fazer. Esse costume foi trazido a esse povo a partir de muitos casamentos
existentes entre Apinayé e Krahô. O ritual de passagem, geralmente, é feito com a menina ou
menino por volta dos 12 a 14 anos, pois é a partir daí que deixam a adolescência e estão
prontos para seguir suas vidas como adultos (Locatelli, 2016).
Todos os rituais exercem um papel muito importante na aprendizagem da criança
Apinayé. É nessa interação que vão estabelecendo os laços culturais, a compreensão do seu
espaço enquanto sujeitos de um povo, o que contribui na construção da sua identidade. Nesse
contexto, as crianças brincam, usam adereços, pintam-se, dançam, cantam, falam sua língua,
de forma espontânea.
Então, ser criança indígena Apinayé é aprender dentro de sua cultura, uma vivência
diversa e complexa. A partir da qual percebemos e (re)afirmamos o valor das crianças como
protagonistas dos seus espaços e participante dos contextos sociais em que são inseridas.
Crianças Apinayé produtoras de cultura
Percebemos a liberdade e natureza como aspectos constitutivos do modo de ser criança
Apinayé, pois, elas tem um contato mais próximo e um modo de vida que valoriza o cerrado,
sua vegetação, os ribeirões, os animais, em uma conexão mais integrada. A cultura lhes
permite o silêncio, outra relação com o tempo, que o precisa ser cronometrado, mais
atrelada aos ciclos naturais (Locatelli, 2011). As brincadeiras são aspectos da vida cotidiana
das crianças Apina, identificadas nas mais simples formas de brincar, com pequenos
objetos e elementos da natureza ou mesmo reinvenção do significado desses objetos e,
principalmente, com o corpo.
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As crianças, geralmente ensinadas pelas mães, respeitam e tem obediência aos mais
velhos, que ensinam as tradições através da oralidade e do exemplo. Dessa forma, a criança
Apinayé se integra gradativamente a realidade do mundo social, aprende sobre sua cultura e
produz suas próprias manifestações, criando seus espaços de aprendizagens.
Para Egon Schaden (1974), o processo de educação nessas sociedades é realizado
basicamente pela reprodução e pela participação da criança no mundo adulto, que ela
compartilha do cotidiano da casa, onde é envolvida com os trabalhos domésticos, na maioria
do tempo está ligada a cuidar dos irmãos mais novos, lavar a louça, varrer a casa e buscar
água, auxiliando o trabalho da mãe. Nesse sentido, podemos nos valer do conceito de
reprodução, que para Corsaro (2011, p. 31) “inclui a ideia de que as crianças não se limitam a
internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança
culturais”.
Assim, as crianças Apinayé se desenvolvem e aprendem nas relações com seus pares e
com pessoas adultas, momento que atuam e interagem na criação de relações sociais. O tempo
da infância e a condição de crianças para os Apinayé são construídos nas relações
compartilhadas entre seus pares (Locatelli, 2016). Apesar de ajudarem os adultos em algumas
atividades, as crianças estão juntas na maior parte do tempo, compartilhando brincadeiras,
banho do riacho, caça aos pássaros, caminhadas em busca de frutas, jogo de bola e rodas de
conversas com os adultos.
É recorrente ver as crianças agrupadas, em volta de uma árvore, no puxadinho da casa
de palha ou em outros espaços da aldeia. Essas observações reafirmam as concepções de
Corsaro (2011), ao definir as crianças como sujeitos atuantes na interação com os grupos
sociais. Assim, podemos compreender as crianças Apinayé enquanto agentes sociais ativos e
criativos nessas relações e nos contextos de vida em que estão inseridas.
É nesse espaço que as crianças Apinayé ressignificam e reproduzem suas culturas
infantis. Elas recriam, elaboram as regras, o conjunto de competições, o que vence e aquele
que perde, contam estórias e desenvolvem seu imaginário em elaborações próprias.
Percebemos ainda, nesse ato, que ao mesmo tempo elas também contribuem para a produção
de uma nova cultura na comunidade, quando reinventam o tempo, as brincadeiras e o uso de
objetos próprios de sua infância, são capazes de interferir nesse espaço, como produtoras de
novas culturas.
As crianças têm um modo ativo de ser e habitar o mundo, elas atuam na criação de relações
sociais, nos processos de aprendizagem e de produção de conhecimento desde muito
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pequenas. Sua inserção no mundo acontece pela observação cotidiana das atividades dos
adultos, uma observação e participação heterodoxa que possibilitam que elas produzam suas
próprias sínteses e expressões. A partir de sua interação com outras crianças por exemplo,
por meio de brincadeiras e jogos ou com os adultos realizando tarefas e afazeres de
sobrevivência , elas acabam por constituir suas próprias identidades pessoais e sociais.
(Barbosa, 2007, p. 1066).
O brincar é visto de forma positiva e está presente na maioria das ões das crianças
Apinayé, carrega elementos da cultura do seu povo e de outras culturas. Desse modo, as
meninas e meninos constroem as suas compreensões de mundo e se apropriam das regras de
seu meio social. Por essa, razão o brincar é tão importante e necessário não na infância,
mas por toda a vida.
Reflexões preliminares, já que há muito a desvelar...
Partimos da compreensão de que o conceito de infância é uma construção histórica e
social. Portanto, não é possível afirmar que existe uma infância única e ideal, mas que, de
acordo com o contexto, diferentes crianças compõem infâncias, no plural. Esse é um dos
desafios de se estudar a(s) infância(s) indígena(s), atravessadas por aspectos econômicos,
sociais, políticos, geográficos e culturais. Por isso, mais do que trazer conclusões sobre o
modo de ser criança Apinayé, propomos reflexões sobre as infâncias possíveis, tecidas entre
um banho de ribeirão, uma brincadeira no pátio, uma subida na árvore, um brinquedo de palha
feito pelas mãozinhas habilidosas, um jogo de futebol e uma história contada nas aldeias
desse povo.
No recorte que fizemos dos estudos realizados, percebemos que a vida da criança
indígena Apinayé difere da das crianças da cidade, apesar da proximidade da área urbana de
Tocantinópolis. Essas crianças indígenas participam das tradições de seu povo, cultivam
costumes tradicionais e vivem, convivem e respiram a natureza, aprendem observando os
mais velhos e participando da vida dos adultos.
Compreendemos que para a criança indígena Apinayé, assim como todas as crianças, a
socialização é o que dá significados ao seu cotidiano. As práticas sociais presentes na
comunidade atuam enquanto conjunto extenso de habilidades, as quais as crianças Apinayé
aprendem gradativamente, à medida que participam e estabelecem relações com tais
atividades. Assim, o processo de socialização das crianças Apinayé é uma dimensão
importante para entendermos essa cultura indígena.
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As crianças indígenas Apinayé transitam entre as suas culturas infantis e o universo das
aprendizagens essenciais, sendo que o fazem de forma vívida e ativa. O espaço de vivência e
de partilha é de extrema importância para a manutenção da cultura desse povo, resistência que
tem início na infância.
Dessa maneira, as brincadeiras são aspectos da vida cotidiana das crianças Apinayé,
identificadas nas mais simples formas de brincar, com pequenos objetos e elementos da
natureza e, principalmente, com o corpo, que se põe em movimento, correndo, pulando,
subindo em árvores, manipulando a palha de babaçu ou banhando no ribeirão. A tradição oral
e o respeito aos mais velhos são elementos presentes na educação Apina, o que permite o
aprendizado da cultura. Dessa forma, a criança Apinayé se integra gradativamente à realidade
do mundo social, aprende sobre sua cultura e produz suas próprias manifestações, criando e
compartilhando seus modos de estar no mundo.
Essa compreensão da infância indígena Apinayé vem a partir do olhar mais aprimorado
para os meninos e as meninas das aldeias, buscando analisar a relação dessas crianças com os
seus pares, o modo específico de socialização com a sua comunidade e cultura presentes no
seu contexto social. Nesse sentido, destacamos a importância da realização de estudos
complementares, que aprofundem o conhecimento sobre as culturas infantis Apinayés, a fim
de dar mais visibilidade para esse modo de vida que tem tanto a ensinar às sociedades não
indígenas.
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1 É possível se referir ao povo Apinayé com outra grafia, escrito da seguinte forma Apinajé”. A escolha da
grafia Apinayé foi definida pelas contribuições dos estudos de Numendajú (1983), que relata sobre o nome da
comunidade, citado pela primeira vez como pinarés e pinagés, passando, posteriormente, para Apinayé.
2 Parafraseamos Manoel de Barros (2015), em seu poema com esse mesmo título, ao recordar de sua infância no
campo.
3 Na sociedade Apinayé existem dois tipos de família, a nuclear, formada pelos pais e filhos, e a extensa, que
comporta também o marido que se agrega à família da esposa, e sua “parentela” (Nimuendajú, 1983; Damatta,
1976).
4 Vayangá é o curandeiro na cultura Apinayé.
5 Entrevista com uma senhora idosa na Aldeia São José, durante a pesquisa de campo (2015).
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em: 09/02/2023
Aprovado em: 22/03/2023
Publicado em: 30/05/2023
Received on February 09th, 2023
Accepted on March 22th, 2023
Published on May, 30th, 2023
Contribuições no Artigo: Os(as) autores(as) foram os(as) responsáveis por todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação da versão
final publicada.
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production of the manuscript, critical revision of the content and approval of the final version published.
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Conflitos de Interesse: Os(as) autores(as) declararam não haver nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
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Locatelli, R., & Rezende, J. R. (2023). Infância Indígena Apinayé: reflexões sobre o ser criança na aldeia. Rev. Bras. Educ.
Camp., 8, e15692. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15692
ABNT
LOCATELLI, R.; REZENDE, J. R. Infância Indígena Apinayé: reflexões sobre o ser criança na aldeia. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 8, e15692, 2023. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15692