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Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15983
O Ensino da Matemática no contexto da Educação do
Campo: limites e possibilidades
i
Gasiele Leal Martins1, Sueli Fanizzi2
1, 2 Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Programa de Pós Graduação em Educação - PPGE. Instituto de Educação-
IE. Avenida Fernando Corrêa da Costa n° 2367, Bairro Boa Esperança. Cuiabá MT. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: gasielemartins@hotmail.com
RESUMO. O presente artigo aborda a necessária e
contextualizada relação pedagógica entre o ensino da
matemática e a realidade do campo. Corresponde a uma síntese
da revisão de literatura realizada para um estudo de Mestrado
em Educação, na Linha Educação em Ciências e Educação
Matemática. A pesquisa propõe uma análise comparativa entre
as práticas pedagógicas de matemática, reveladas por
professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, de uma
escola do campo em Diamantino/MT, e os textos que
normatizam essa realidade, como orientações curriculares e
outros materiais de apoio pedagógico. O referencial teórico
compreende uma literatura sobre os temas Educação
Matemática, Educação do Campo e Educação Matemática do
Campo. Este artigo está organizado em três eixos: 1. Uma breve
contextualização entre educação do campo e educação
matemática; 2. Uma leitura do Marco Legal da Educação do
Campo e do Currículo e 3. O professor reflexivo e a prática
pedagógica no Campo. Destaca-se a importância da prática
pedagógica contextualizada para um ensino significativo, sendo
fundamental repensar a atuação do professor das Escolas do
Campo, desmistificando o ensino da matemática e valorizando
os saberes camponeses, na busca por uma formação de cidadãos
conscientes e capazes de transformar sua realidade.
Palavras-chave: educação matemática, educação do campo,
práticas pedagógicas, currículo.
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The teaching Mathematics in the context of Rural
Education: limits and possibilities
ABSTRACT. This article aims to analyze the necessary
pedagogical and contextualized relationship between the
teaching of mathematics and the reality of the countryside and
corresponds to a synthesis of the literature review carried out for
a Master's study in Education, in the Research Line Education in
Science and Mathematics Education. The research proposes a
comparative analysis between the pedagogical practices of
mathematics, revealed by teachers in the early years of
Elementary School, from a countryside school in
Diamantino/MT, and the texts that regulate this reality, such as
curricular guidelines and other pedagogical support materials.
The theoretical framework comprises a literature on
Mathematics Education, Rural Education and Field
Mathematics Education. This article is organized in three axes:
1. A brief contextualization between rural education, and
mathematics education; 2. A reading of the Legal Framework
for Rural Education and the Curriculum and 3. The reflective
teacher and pedagogical practice in the field. The importance of
contextualized pedagogical practice for meaningful teaching is
highlighted, and it is fundamental to rethink the role of the
teacher in the countryside schools, demystifying the teaching of
mathematics and valuing peasant knowledge, in the search for
the formation of conscious citizens capable of transforming their
reality.
Keywords: mathematics education, rural education, pedagogical
practices, curriculum.
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La enseñanza de la Matemática en el contexto de la
Educación del Campo: límites y posibilidades
RESUMEN. El presente artículo aborda la necesaria y
contextualizada relación pedagógica entre la enseñanza de la
matemática y la realidad del campo. Corresponde a una síntesis
de la revisión bibliográfica realizada para un estudio de Maestría
en Educación, en la Línea Educación en Ciencias y Educación
Matemática. La investigación propone un análisis comparativo
entre las prácticas pedagógicas de la matemática, indicadas por
docentes de los años iniciales de la Enseñanza Fundamental, de
una escuela del campo de Diamantino/MT, y los textos que
regulan esa realidad, tales como orientaciones curriculares y
otros materiales de apoyo pedagógico. El marco teórico
corresponde a la literatura sobre los temas Educación
Matemática, Educación del Campo y Educación Matemática del
Campo. Este artículo está organizado en tres ejes: 1. Una breve
contextualización entre la educación del campo y la educación
matemática; 2. Una lectura del Marco Legal de la Educación
Rural y del Currículo y 3. El docente reflexivo y la práctica
pedagógica en el campo. Se destaca la importancia de la práctica
pedagógica contextualizada para la enseñanza significativa, de
manera que es fundamental repensar el papel del docente en las
Escuelas del Campo, desmitificando la enseñanza de la
matemática y valorizando los saberes del campo, en la búsqueda
de la formación de ciudadanos conscientes capaces de
transformar su realidad.
Palabras clave: educación matemática, educación del campo,
prácticas pedagógicas, currículo.
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Introdução
O presente artigo assume a defesa da necessária relação pedagógica entre o ensino
contextualizado da matemática e a realidade do campo e justifica-se uma vez que as pesquisas
científicas ainda têm apontado a existência de grandes desafios no processo de ensino e
aprendizagem dessa área do conhecimento nesse espaço. Ademais, no contexto do campo,
como veremos mais à frente a partir dos dados do Saeb (2019), as avaliações externas
apresentam índices de aprendizagem ainda mais alarmantes, situação que perdura ao longo do
tempo e que persiste enquanto desafio a ser superado.
É importante destacar que essa discussão emerge de uma pesquisa de Mestrado,
realizada na Linha de Pesquisa Educação em Ciências e Educação Matemática, que tem por
título Educação do Campo: Ensino de Matemática nos Anos Iniciais em uma Escola
Municipal em Diamantino-MT. O objetivo central da pesquisa consiste em analisar como as
professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Escola Municipal Maria Euzébia
Ferreira, município de Diamantino/MT, interpretam os documentos curriculares oficiais e
relatam suas práticas pedagógicas no ensino de matemática no contexto do campo.
Para tanto, o problema de pesquisa ajuda a visualizar e delinear os percursos
investigativos que se pautou na seguinte indagação: Como as professoras dos anos iniciais do
Ensino Fundamental da Escola Municipal Maria Euzébia Ferreira, município de
Diamantino/MT, interpretam os documentos curriculares oficiais e relatam suas práticas
pedagógicas no ensino de matemática no contexto do campo?
A metodologia da pesquisa é de abordagem qualitativa, do tipo exploratória (Gil,
2008), e tem por interlocutores autores que tratam da etnomatemática (D’Ambrósio, 2002;
Knijnik, 2004), sob um viés interpretativo (Gamboa, 2018), pois acreditamos que, por meio
dessas abordagens, a percepção social em torno do objeto de estudo pode ser ampliada. Em
relação à concepção de Educação do Campo e Educação Matemática, foi estabelecido na
pesquisa diálogo com Lima e Lima (2013), Cruz e Szymanski (2012) e Caldart (2002); em
relação aos saberes dos docentes e à prática pedagógica Tardif e Moscoso (2018) nos ajudam
a pensar acerca do professor reflexivo e, de modo transversal, dialogamos com Freire (1996).
Além do vasto estudo bibliográfico, foi realizada a análise de documentos curriculares
oficiais, de âmbito federal e estadual, bem como um estudo de campo, junto ao contexto da
Escola Municipal Maria Euzébia Ferreira, em Diamantino-MT, com entrevistas com as
professoras e análise de documentos locais.
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Para este momento, faremos um recorte da pesquisa, trazendo algumas dimensões
importantes que emergiram em seu percurso, a partir do estudo bibliográfico. Os autores com
os quais dialogaremos neste momento são: Andrade (2020), Borba e Santos (2005), Gadotti
(2000), Gomes (2019), Fiorentini (2005), Hage et al., (2022), Molina e Freitas (2011);
Rossato, (2010), Tardif e Moscoso (2018).
O desafio de pensar a intersecção entre o ensino da matemática e a realidade
camponesa é o ponto central desse momento, dialogando com o que Lima e Lima (2013, p. 6),
diz sobre a importância de compreender que “mesmo reconhecendo os aspectos que
aproximam os princípios norteadores da Educação Matemática e da Educação do Campo,
pouco se sabe ainda sobre suas relações, inter-relações e vivência nas escolas do campo”.
O presente estudo se justifica não apenas por ser um tema pouco investigado, mas
porque procura tratar dessas inter-relações mencionadas pelas autoras e das práticas
pedagógicas dos professores, em interface com os desafios do ensino da matemática nas
Escolas do Campo. Com isso, o propósito central deste trabalho refere-se ao devido respeito e
valorização à diversidade sociocultural e histórica de um povo que foi deixado à margem.
Diante disso, conhecer o currículo e demais documentos que orientam uma prática
educativa realmente significativa faz parte do itinerário profissional do corpo docente, de
modo a se tornar capaz de articular currículo (adequado ao contexto) às práticas pedagógicas,
sempre visando atender às necessidades educativas, culturais, éticas, estéticas, afetivas,
políticas e pedagógicas da comunidade escolar, ou seja, desenvolver uma prática articulada
com a realidade dos estudantes camponeses.
Conforme defende Caldart (2002), o povo camponês
ii
tem direito a ser educado no
lugar onde vive e por meio de uma educação pensada desde o seu lugar, à sua cultura e às
suas necessidades humanas, afetivas e sociais. Mesmo com algumas conquistas na política
para a Educação do Campo no Brasil, verifica-se ainda um cenário de profundas
desigualdades, como a ausência de instituições escolares nas proximidades das residências
dos estudantes. Essas são condições objetivas que dificultam o acesso à escola. Além disso,
a ausência de transporte escolar adequado em muitas realidades, potencializando a
fragilização de todas as fases de desenvolvimento da criança, devido a essa rotina desgastante,
que os desestabiliza física, emocional e pedagogicamente.
De acordo com Cruz e Szymanski (2012, p. 454),
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... a importância atribuída ao ensino da matemática está vinculada ao papel decisivo que ela
desempenha enquanto área do conhecimento, permitindo resolver problemas da vida
cotidiana e funcionando como instrumento essencial para a construção de conhecimentos em
outras áreas.
Os autores chamam a atenção para uma dimensão indispensável à formação de um
cidadão com condições objetivas de viver em sociedade, que é resolver problemas de um
modo autônomo. O estudo da matemática possibilita o desenvolvimento da capacidade de
resolver problemas, o que é essencial no contexto rural, onde a vida fica cada vez mais difícil,
devido ao fato de que o poder econômico hegemônico, aliado aos processos do agronegócio,
considera cada vez menos relevante a vida das pessoas dentro dos campos.
Para olhar essa realidade de modo crítico, propomos esse artigo organizado em três
tópicos: 1. Uma breve contextualização entre educação do campo e educação matemática; 2.
Uma leitura do Marco Legal da Educação do Campo e do Currículo; 3. O professor reflexivo
e a prática pedagógica no campo. As discussões estão imbricadas com o contexto do campo,
em uma tentativa de ampliar e fortalecer cada vez mais um paradigma de Educação do Campo
que seja realmente inscrito a partir de seus protagonistas, suas necessidades e diferentes
interrelações.
Cabe às instâncias acadêmicas propor discussões sobre o ensino da matemática em
contexto camponês, problematizando os modos, os lugares e os tempos de ensiná-la e
aprendê-la. Nesse sentido, a intenção deste trabalho é de colaborar com o tema, sem a
pretensão de apresentar verdades ou esgotar um fenômeno que por si é complexo,
polissêmico e contínuo. Em síntese, buscamos apresentar possibilidades e enfrentamentos no
tocante aos processos do ensinar-aprender matemática no campo, mais especificamente
quanto à atuação do professor e suas práticas pedagógicas, em interface com as orientações
curriculares e outros materiais utilizados nesse contexto.
Uma breve contextualização sobre Educação do Campo e Educação Matemática
A preocupação com a educação no meio rural se pelo distanciamento entre o
conteúdo/discurso escolar e as vivências e cultura do contexto camponês. Historicamente, os
saberes do campo, bem como suas práticas, modo de vida e relações estabelecidas, viveram
sob a égide de uma visão distorcida, alienada, desvalorizada.
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Sobre essa questão, Gomes (2019, p. 15), destaca que ... a Educação do Campo
surgiu pela demanda de trabalhadores do campo aos quais foram negados os direitos à
educação”. O autor se refere a uma educação com práticas educativas que valorizam os
saberes e a identidade camponesa, os direitos humanos, o contexto agrário, a luta contra a
desterritorialização, a formação e politização dos profissionais da educação e um Projeto
Político Pedagógico (PPP) específico da Escola do Campo.
Conforme o autor, a Educação do Campo ainda é um território de disputa que
necessita ser reconhecido e valorizado em suas diversidades geopolíticas, humanas, sociais e
culturais. A própria reprodução da vida, nesse lugar de resistência, é dimensão pedagógica
que carece ser assumida, valorizando o ensino dos conteúdos escolares vinculando a realidade
e necessidades locais.
Na perspectiva do ensino da matemática, por exemplo, Lima e Lima (2013) afirmam
que, independentemente do lugar, no campo ou na cidade, conjunturas históricas e sociais
mostram um modelo de ensino que prioriza a memorização, a repetição de exercícios, a
aplicação de fórmulas, dentre outras abordagens ultrapassadas de ensino que ainda são
amplamente adotadas nas aulas de matemática. Esse “modelo” de ensino dialoga com o
silenciamento histórico de culturas tradicionais que se auto-organizam de modo distinto ao da
cidade. Portanto, a codificação e a descodificação automáticas, acríticas e lineares do
conhecimento matemático, historicamente construído, precisam ser enfrentadas.
Essa abordagem convencional da matemática necessita ser ampliada, de modo que os
docentes possam propor um ensino dessa área do conhecimento que, de fato, atenda às
necessidades de uma formação para a cidadania e que, consequentemente, supere os modos
engessados de pensar, por exemplo, a vida dos camponeses. Faz-se necessário que a escola do
campo reconheça, entre outras coisas, que não se trata apenas da justaposição de duas
dimensões ou modalidades do ensino educação matemática e educação do campo uma
vez que “vai além, pois sintetiza questões filosóficas, sociais, culturais e históricas, dentre
outras” (Borba & Santos, 2005, p. 294).
O ensino escolar é atravessado por múltiplas dimensões: sociais, culturais, políticas e
econômicas. Isso é fato. Não é possível permanecermos com a rotina de um ensino que ocorre
por meio da simples memorização, repetição, caracterização e classificação aleatórias, neste
caso, da matemática. Borba e Santos (2005), que estudam sobre alguns aspectos da educação
matemática, vista como uma região de inquérito, mostram os laços que esse campo estabelece
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tanto com a matemática quanto com a educação e outras áreas que, nesse caso, a Educação do
Campo é uma delas. Elas chamam a atenção justamente para essa relação endógena entre
ensino e os determinantes sociais que condicionam a vida social, quando pesquisam acerca do
ensino da matemática por meio dos espaços virtuais uma cultura digital que também é
desafiante.
As autoras tratam de dimensões que legitimam o acesso ao conhecimento, à
permanência com qualidade na escola, as condições objetivas e subjetivas de construir saberes
a partir de sua realidade. Entendemos que a ciência matemática é um conhecimento
complexo, que pode e precisa ser assumido enquanto conteúdo de cidadania, afinal, não se
trata de negar o papel relevante dessa ciência, e sim de resgatar expressões matemáticas
daqueles que não têm o poder de dizer o que é matemática” (Borba & Santos, 2005, p. 295).
A Matemática, como problematizado anteriormente, ultrapassa o fazer meramente
mecanizado de contar, somar, subtrair, multiplicar e dividir. A área articula dimensões
cognitivas superiores responsáveis pela capacidade de discernimento e raciocínio que podem
e devem auxiliar no processo de humanização das relações, mas, para tanto:
A transformação precisa ser orgânica e profunda. De um lado, para uma concepção de
Campo que valoriza os saberes e os projetos de vida dos educandos e educandas; de outro,
para uma concepção de ensino fundada na emancipação humana, rompendo com a dicotomia
campo/cidade que considera a cidade superior ao campo e o urbano melhor que o rural (Lima
& Lima, 2013, p. 05).
Uma transformação dessa envergadura requer muito mais que procedimentos
metodológicos bem formulados, por mais que mobilizem e facilitem a apresentação dos
tópicos matemáticos. A mudança vem do lugar que ocupamos, de nossas vivências, da prática
que me (re)faz cotidianamente. Isso envolve muito mais que dinâmicas e dispositivos
tecnológicos que provocam a curiosidade discente. As autoras reivindicam que, para uma
Educação do Campo, que se ter uma educação matemática comprometida com a
humanização e não com um ensino baseado na memorização de fórmulas e regras, mesmo que
abrilhantado por inúmeros recursos pedagógicos.
É sobre a dimensão humanização que Lima e Lima (2013) refletem sobre a relação
entre o ensino da matemática e a Educação do Campo. Em relação à humanização por meio
do ensino da matemática em contexto do campo, recorremos a Freire (1996), para olhar para a
educação de modo mais amplo. O ensino, nesse sentido, precisa se voltar contra toda forma de
opressão, barbárie, violência institucionalizada, segregação, preconceito, discriminação,
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negação do direito de aprender a partir de sua realidade e desvalorização sociocultural. Eis o
processo político com o qual a educação e seus componentes curriculares deveriam se ocupar,
reconhecendo a necessidade de reflexão aprofundada sobre a realidade, uma vez que:
Quase sempre, ao se criticar esse gosto da palavra oca, da verbosidade, em nossa educação,
se diz dela que seu pecado é ser “teórica”. Identifica-se assim, absurdamente, teoria com
verbalismo. De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica numa inserção na
realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo
plenamente, praticamente. Neste sentido é que teorizar é contemplar... Nossa educação não é
teórica porque lhe falta esse gosto da comprovação, da invenção, da pesquisa. Ela é verbosa.
Palavresca. É “assistencializadora”. Não comunica. Faz comunicados (Freire, 1996, p. 101).
Sendo assim, uma educação “assistencializadora”, em outras palavras, alienadora,
precisa ser enfrentada e, para tal, exige-se de seus pares o comprometimento com um
processo intenso de desmistificação a partir da preocupação autêntica com a comunidade
escolar, suas necessidades, suas histórias de vida, dilemas e saberes que promovam a
cidadania. Além disso, de uma prática contextualizada, profundamente engajada com a
realidade em que está inserida.
Nesse processo endógeno de construção do conhecimento, a teoria e a prática são
dimensões fundamentais para que um ensino contextualizado aconteça e possa colaborar com
o enfrentamento pedagógico do processo de desmistificação de um mundo cindido, que ainda
é construído em critérios lineares e dicotomizados. Caso não atuemos de modo intencional
visando mudança dessa lógica alienadora, as relações sociais continuarão excluindo,
rotulando, medindo, quantificando e segregando pessoas, culturas, processos e modos de ser e
agir.
Dentro dessa gica se encontra a matemática, disciplina do campo das exatas que,
como tal, se ressente dessa corrente filosófica acrítica
iii
, que não valoriza outros modos de
ensinar e aprender, concebendo-a como um conhecimento da cultura letrada que Freire (1996)
denuncia como “palavresca” e “verbosa”, ou seja, um discurso diferente da prática. Contra
essa lógica, o autor defende uma educação para humanização das relações e para
transformação social; uma relação na qual Educação do Campo e o ensino da matemática
possam se encontrar.
Diante dessa realidade, é necessário ao professor compreensão sobre a importância dos
aspectos histórico, político, social e cultural da matemática e que, assim, ele possa
desmistificar a ideia preconceituosa de que matemática o é para todos. Essa visão de
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matemática ainda assombra o imaginário de muitas crianças, adolescentes e adultos e
corresponde a um senso comum relacionado a uma experiência abstrata e procedimental, que
não a concebe como um campo do conhecimento que transcende, como problematizado, o
universo das fórmulas, regras, critérios procedimentais e memorização. Ao contrário,
compreendemos que a matemática é uma área do conhecimento presente no cotidiano de
todos e, por isso mesmo, possível de ser aprendida por qualquer pessoa.
No tocante à Educação do Campo, trata-se de olhar para o ensino de matemática nas
Escolas do Campo de modo ético-político, visando contribuir com a construção de um projeto
societário fundamentado em tais princípios equidade, valorização sociocultural, local-
global, solidariedade, empatia - e mediados por práticas pedagógicas que possam, no atual
contexto, minimizar os impactos pandêmicos e contribuir para a transformação da sociedade.
Fica evidente a necessidade da articulação entre os diferentes campos do
conhecimento, da matemática e do contexto do campo, que integram saberes distintos, mas
complementares. Faz-se necessário um movimento pedagógico organizado a partir de um
maior preparo dos profissionais e que aponte para uma política pública capaz de fortalecer
uma prática pedagógica contextualizada.
Sobre tudo que foi dito, é importante considerarmos que, para uma Educação do
Campo potencializadora, é necessário um currículo que seja capaz de promover a construção
intelectual, a difusão do conhecimento crítico e reflexivo e que promova a cidadania. A
articulação entre o ensino da matemática e os saberes camponeses na Escola do Campo
precisa estar objetivamente garantida nos documentos oficiais que legitimam os
conhecimentos e temas tratados nessa escola. Para, além da legalidade, a corporificação
dessas dimensões no cotidiano da Escola do Campo e na prática pedagógica dos professores
são desafios a serem considerados na seção a seguir.
Uma leitura do Marco Legal da Educação do Campo e do Currículo
Ao longo da seção anterior, reafirmamos a importância da interrelação entre o ensino
da matemática e o contexto camponês nas Escolas do Campo. Isso dialoga com uma memória
histórica e pedagógica estudada por Molina & Freitas (2011, p. 4), quando afirmam que o
“movimento da Educação do Campo acumulou, a partir de suas diversas lutas, um conjunto
importante de instrumentos legais que reconhecem e legitimam as condições necessárias para
a universalidade do direito a educação”. Esse processo de luta pela educação, liderada pelos
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diferentes Movimentos Sociais do campo, da agricultura familiar e campesina, revelam,
sobretudo, a articulação do povo campesino em torno do direito de estudar no lugar em que
vivem. Isso por meio de um processo que de fato emerja de sua realidade, seus saberes e
necessidades para que os fortaleça em sua especificidade.
Na pesquisa, da qual este artigo deriva, o estudo documental foi finalizado e para este
momento apresentamos parte dos dados que, entre outras coisas, revela o paradoxo
estabelecido entre o processo de construção de políticas públicas para a Educação do Campo e
o processo de apropriação, valorização, (re)conhecimento e popularização dessas políticas
públicas pela escola, Secretarias de Educação, gestores escolares e professores. Afinal, a
quem interessa um processo de fortalecimento das Escolas do Campo? Essa discussão está
sendo aprofundada na finalização da Dissertação de Mestrado, que embasa a reflexão aqui
apresentada.
Salientamos que, nesse processo de construção de direitos civis elementares, a
primeira conquista se deu por meio da inserção na Lei de Diretrizes e Bases (Brasil, 1996) de
critérios que se alinham aos princípios da Educação do Campo. No Artigo 28, dispõe:
Art. 28: Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino
promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural, e de
cada região, especialmente:
I Conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos
alunos da zona rural;
II Organização escolar própria, incluindo adequação do calendário às fases do ciclo
agrícola e às condições climáticas;
III Adequação à natureza do trabalho na zona rural. (Brasil, 1996, p. 16).
Em consonância à LDB 9.394/1996, apesar de uma lacuna temporal de 14 anos, o
decreto n° 7.352/2010 assegura e valida que a Educação do Campo é uma política de Estado:
Art. A política de educação do campo destina-se à ampliação e qualificação da oferta de
educação básica e superior às populações do campo, e será desenvolvida pela União em
regime de colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de acordo com as
diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação e o disposto neste Decreto.
(Brasil,...
Esse artigo, em seu primeiro parágrafo, prevê que:
§ 1° Pra os efeitos deste Decreto, entende-se por:
I População do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais,
os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados
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rurais, os quilombolas, as caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzem
suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural .... (Brasil,...
Esses reconhecimentos institucionais, tanto da especificidade do lugar (campo,
florestas, águas) quanto das identidades, são, sem dúvidas, de certo ponto de vista, um marco
legal importante. Contudo, é necessário também avaliar e problematizar que, entre a
LDB/1996 e o Decreto, um lapso temporal de mais de 10 anos. Esse longo período de
tempo demonstra a dimensão da luta por direitos que não são dados pelas instâncias, mas que
correspondem, sobretudo, ao resultado da mobilização e articulação de gente simples fazendo
grandes movimentos coletivos em prol de uma sociedade mais justa.
Ainda assim, os poucos avanços se revelam de modo insatisfatório na prática, pois
ainda a necessidade de enfrentamentos, superação e resistência para a permanência dos
campesinos em seu lugar de origem e a prevalência de uma lei que nem sempre é sinônimo de
garantia de direito. O contexto do Campo é uma realidade que ainda sobrevive às margens de
uma legalidade professada, mas que, na prática, é abstrata. Esse é um dos desafios do
paradoxo estabelecido, anteriormente mencionado, e corresponde a um fenômeno que
mantém a Educação do Campo refém de práticas alicerçadas e legitimadas por uma realidade
urbana que em nada contribui com seu fortalecimento. Um dos desdobramentos pode ser
observado na comparação dos resultados da proficiência em matemática, de alunos do ano,
reflexo de investimentos educacionais de qualidade (formação continuada de professores,
criação de recursos didáticos etc.) entre o campo e a cidade. Este fenômeno fica evidenciado
com o Saeb (2019)
iv
, conforme aponta o Gráfico 1 deste estudo:
Gráfico 1 Diferença entre as proficiências médias no Saeb em matemática no 5º Ano do Ensino
Fundamental por localização (Rural e Urbana) Brasil/2019
(Fonte: Saeb, 2019, p. 123).
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De acordo com esses dados, sobre a diferença entre as proficiências médias no Saeb
em matemática no 5º ano do Ensino Fundamental por área (rural e urbana), verificamos que:
... apresenta as proficiências médias nacionais obtidas no Saeb em 2019 por localização
(rural e urbana) no 5º ano do ensino fundamental para a área de Matemática. Constata-se que
a média na região urbana (230,9) é um pouco mais elevada que a média geral do Brasil
(227,9), com uma diferença de 3,0 pontos, enquanto na região rural uma diferença mais
significativa entre as duas médias, de 203,1 para 227,9, com uma diferença para menos de
24,8 pontos na rural. Observa-se a diferença de 27,8 pontos entre as médias urbana e rural,
sendo que esta última apresenta média inferior à média nacional (Brasil, Saeb, 2019, p. 123,
grifo nosso).
O relatório afirma que o desempenho dos alunos do campo, do 5º ano do Ensino
Fundamental, em matemática, está 27,8% mais baixo do que os alunos da cidade, com “... 7,2
pontos de diferença entre as médias da capital e do interior” (idem, 2019, p. 124). Apesar de
menor, os índices apresentam depreciação. Apesar de os dados denunciarem uma distância
quanti-qualitativa significativa no quesito do domínio formal do conhecimento matemático
entre alunos do campo e da cidade, podemos considerar que, de modo geral, a concepção de
Educação do Campo vem ocupando lugar importante na vida dos sujeitos sociais.
Esse reconhecimento se a partir da luta pela democratização, demonstrando uma
nova configuração que firma a ideia das pessoas como “sujeitos de direitos”, que “refletem,
reelaboram e recriam as situações cotidianas, a partir das próprias condições de existência
social em que estão inseridas” (Molina & Freitas, 2011, p. 06). É, de fato, um processo de
participação social ainda muito tímido que sofreu uma interrupção brusca no recente cenário
político, na gestão do governo federal de 2018 a 2022.
Houve um retrocesso histórico e a estagnação do diálogo com a esfera federal, o que
minou qualquer chance de continuidade das políticas públicas para os setores populares:
... a ruptura política causada pelo golpe empresarial-parlamentar em 2016, que destituiu a
presidenta Dilma Rousseff, fez emergir, como afirmam Porto-Gonçalves et al. (2018, p.
710), o “poder dominante na sociedade brasileira, que se mostra no papel protagônico da
chamada bancada ruralista no Congresso Nacional, na economia do País e sua forte presença
no financiamento da grande mídia ...”. Para afirmar o alinhamento com o mercado, os
parlamentares, a despeito da intensa mobilização da sociedade, aprovaram a Emenda
Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016, que congelou por vinte anos o
investimento nas políticas sociais, incluindo a saúde e a educação (Brasil. Emenda, 2016)
(Hage et al., 2022, p. 197).
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Hage et al. (2022) chamam a atenção para um processo de construção política de
correlação de forças assimétricas, no qual os poderes econômico e político estão à disposição
de uma parcela da sociedade que não se trata das pessoas, por exemplo, que convivem com a
realidade do campo. A leitura para o Marco Legal da Educação do Campo, aqui representada
pela LDB 9194/96, como primeira iniciativa, e o Decreto 7.352/2010, que assegura e
valida a Educação do Campo como política de Estado, revelam que ainda muito é preciso ser
feito!
Sem dúvidas, esses aparatos legais representam uma conquista social, no entanto, por
outro lado, não menos desafiante, cabe à escola, juntamente com a apropriação desse processo
histórico das políticas públicas, (re)pensar a elaboração de um currículo que dialogue com as
comunidades que atendem. Esse é um movimento que carece ser operado tanto do ponto de
vista pedagógico como legal e que vise, sobretudo, a construção do conhecimento dos
estudantes em um ambiente colaborativo e reflexivo entre os pares (professores e estudantes).
Para Andrade (2020, p. 91), quando o currículo considera essa dimensão em sua
proposta,
... implica também a qualidade. Assim não existe marco legal se o currículo não se investe de
elementos que possibilitam a prática libertadora. Em síntese fica evidente aqui que a
concepção de educação do campo está seriamente compromissada com a transformação
social: educação de classe, massiva, organicamente vinculada ao movimento social, aberta
ao mundo para a ação e aberta para o novo.
O autor defende uma prática libertadora em diálogo com o currículo. A dimensão da
libertação defendida pelo autor, que se preocupa com o processo de humanização das
relações, faz parte do itinerário de pesquisa da qual emerge este artigo, que dialoga também
com Freire (1996). A necessária articulação entre os saberes docentes e o diálogo,
estabelecido com os documentos norteadores oferecidos pelo Estado, traz esse olhar para a
educação de qualidade que possa assumir enquanto compromisso o horizonte da
transformação social.
Dentro dessa lógica, a escola, em parceria com o Estado, tem o desafio de elaborar
coletivamente um currículo que contenha saberes de sua comunidade que julgam serem
necessários aos seus estudantes. Segundo Knijnik (2004), é necessário pensar na constituição
do currículo diante do contexto em que se apresenta, pois:
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... nosso papel nestes processos de inclusão ou exclusão de conhecimentos no currículo
escolar é, antes de tudo, e sobretudo, político. Tais processos, definindo quais grupos estarão
representados e quais estarão ausentes na escola são, ao mesmo tempo, produto de relações
de poder e produtores destas relações: produto de relações de poder, pois são os grupos
dominantes que têm o capital cultural para definir quais os conhecimentos que são legítimos
para integrar o currículo escolar; são também produtores de relações de poder, porque
influem, por exemplo, no sucesso ou fracasso escolar, produzem subjetividades muito
particulares, posicionando as pessoas em determinados lugares do social e não em outros.
Estes lugares não estão, de uma vez por todas, definidos. O campo da Educação Matemática
é também um campo possível de contestação. Por isto, político.
O ensino da matemática, conforme a autora, precisa estar contextualizado, posto que a
matemática está presente na vida das pessoas de forma decisiva. Nesse sentido, são elementos
importantes para o ensino e a aprendizagem da matemática as vivências familiares, o mundo
do trabalho e as relações sociais, o que vai além da escola. Dentro do contexto camponês, a
luta pela permanência no seu espaço, a cultura de subsistência, a cooperação, a valorização do
seu trabalho e da história que ali se inscreveu coletivamente constituem uma ontologia e uma
epistemologia
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de base para um ensino significativo.
O ensino da matemática é um ato político! A autora defende esse posicionamento em
diálogo com o desafio da humanização, pois, ambos, o ensino da matemática e o processo de
humanização, são conteúdos ontológicos de base para a autonomia e a cidadania, dimensões
elementares para um ensino realmente significativo.
Acerca da construção de um currículo articulado de modo a contemplar um ensino de
matemática contextualizado, D’Ambrósio (2002, p. 22), afirma que:
Dentre as distintas maneiras de fazer e saber alguma coisa privilegiam os fazeres próprios da
cultura. A todo instante, indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo,
explicando, generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando instrumentos
materiais e intelectuais que são próprios da cultura.
O autor trabalha com a abordagem da etnomatemática para repensar o processo de
empoderamento que a Matemática pode articular na formação humana e cidadã. Segundo
D’Ambrósio (2002, p. 45), “ela (a etnomatemática) busca entender e conhecer o saber e o
fazer matemático de culturas marginalizadas. Também, além disso, procura entender o ciclo
da geração, organização intelectual, organização social e difusão desse conhecimento”.
O autor destaca a possibilidade de uma junção da matemática da escola com os
instrumentos da matemática do cotidiano. Trata-se de uma “etnomatemática não aprendida
nas escolas, mas no ambiente familiar, no ambiente dos brinquedos e de trabalho”
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(D’Ambrósio, 2002, p. 22). Essa abordagem é fundamental para este estudo, considerando os
contornos que estamos atribuindo ao processo de aprender matemática nas Escolas do Campo.
Essa construção, que parte da experiência das pessoas em seu grupo social, é também
conteúdo. Essa é uma dimensão que salientamos e defendemos ao longo do artigo, pois faz
parte dos resultados parciais da pesquisa de Mestrado em Educação que esem curso (2022-
2024). Estabelecemos como critério de base, para um ensino significativo que promova a
autonomia e a cidadania das pessoas, a relação ontológica, política e antropologicamente
delineada por D’Ambrósio (2002), por acreditarmos que, por meio dessas estratégias outras
de ensinar e aprender a matemática, podemos enfrentar a lógica conteudista, fragmentada e
reificada.
A relação estabelecida entre currículo e o marco legal, aqui representado pela LDB
9394/96 e o Decreto Pronera (2010), exige uma dinâmica maior do que a legislação
proporciona; trata-se de voltar a atenção ao processo de formação do professor. Conforme
D’Ambrósio (2002), a dinâmica da etnomatemática entra na escola na medida em que o
professor permite que os conhecimentos do cotidiano apareçam na prática de ensino. Nisso
constitui o grande desafio da escola do presente, “conciliar a necessidade de ensinar a
matemática dominante e ao mesmo tempo dar o reconhecimento para etnomatemática das
suas tradições” (D’Ambrósio, 2002, p. 24). Esse é o ponto de reflexão da próxima seção.
O professor reflexivo e a prática pedagógica no Campo
Um olhar em convergência entre os referenciais aqui valorizados corresponde à
compreensão de que o professor se apresenta como um mediador do processo pedagógico no
contexto escolar, uma vez que ele está em contato direto e permanente com os estudantes. Seu
desempenho depende de seu compromisso individual, como educador, e coletivo, de
promover mediações que valorizem os saberes de todos os envolvidos no processo educativo.
O professor mediador tem a capacidade de incentivar e potencializar o protagonismo
dos estudantes. Assim, a responsabilidade no processo de ensino e aprendizagem da
matemática no campo envolve estar em constante estudo sobre os fazeres pedagógicos em
articulação com a cultura e o modo de vida camponês, os saberes e o cotidiano do campo,
pois referem-se a um tipo de saber contextualizado, ponto de partida do processo educativo.
Dentro do contexto de convergências, diálogos e interconexões epistemológicas entre a
formação do professor reflexivo perfil necessário para operar interfaces pedagógicas entre o
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Programa da Etnomatemática e a Educação popular encontramos em Tardif e Moscoso
(2018) uma discussão acerca do “contexto intelectual ligado à noção de reflexão” operado
pelos autores, que nos ajuda a entender a etnomatemática em relação com a abordagem
freireana:
O primeiro é que um dos aspectos mais relevantes de Freire é que suas ideias são concebidas
a partir do terreno educativo e, mais ainda, do trabalho do professor. Que é um professor
nesse contexto? Um professor não é um “transmissor” de conhecimento, mas acima de tudo
um “criador das possibilidades” de construção e produção do conhecimento, um pensador
crítico e um analista de sua própria prática ... O segundo comentário tem relação com a
evolução da influência de Freire. O impacto do pensamento freiriano não se fez esperar e
rapidamente se disseminou por toda a América Latina, para atravessar o Oceano Atlântico e
difundir-se pela Europa ... não devemos esquecer que inspirou reformas e iniciativas
educativas de caráter nacional em diversos países, sobretudo em matéria de alfabetização ...
Dessa maneira, pareceria que a ideia do profissional reflexivo de Schön não está contida
no pensamento de Freire, mas também foi radicalizada e pensada a partir de sua dimensão
mais pragmática: a práxis do professor (Tardif & Moscoso, 2018, p. 398-399).
Nesta discussão, o tema transversal é a importância da formação profissional do docente
reflexivo como uma dimensão relacionada à práxis pedagógica. O termo práxis é trabalhado
por Freire (1996), como mostra Rossato (2010):
Trata-se de um conceito básico que perpassa toda a obra de Paulo Freire. É indissociável, da
análise e da compreensão do papel da educação na sua globalidade ... Opõe-se às ideias de
alienação e domesticação, gerando um processo de atuação consciente que conduza a um
discurso sobre a realidade para modificar essa mesma realidade ... Sua ação se torna um ato
político porque ela mostra ou ela oculta a realidade (Rossato, 2010, p. 325-326).
Assim, enquanto dimensão transversal dessa discussão, o perfil do professor reflexivo é
tema a ser abordado de modo amplo, visando, sobretudo, reconhecê-lo em sua polissemia.
Esse movimento vai ao encontro da necessidade de nos apropriar para, assim, o valorizar em
suas possibilidades dialógicas, entendendo a “reflexão como uma competência genérica, uma
“metacompetência” ou como uma espécie de metacognição” (Tardif & Moscoso, 2018, p.
402).
Acreditamos que a responsabilidade do professor no processo de ensino e aprendizagem
da matemática no campo envolve estar em constante estudo sobre os fazeres pedagógicos em
articulação com a cultura e o modo de vida camponês, os saberes e o cotidiano do campo.
Trata-se, sobretudo, de um saber do tipo contextualizado, ponto de partida e de chegada de
todo processo educativo comprometido com a transformação social.
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Nesse sentido, entendemos que a função social, política e cultural do professor, neste
cenário, caminha em um constante processo reflexivo, possibilitando condições de reinventar,
recriar e avaliar continuamente o seu fazer pedagógico diante da realidade vivida. De acordo
com essa perspectiva, advogando em defesa da Educação do Campo, concordamos com Lima
e Lima (2013, p. 5), quando afirmam que:
O ensino deve priorizar o diálogo dos saberes escolares com a cultura, com o modo de vida
do camponês e suas atividades produtivas, problematizando a realidade. Neste contexto, o
conhecimento dos professores sobre o Campo e seu desenvolvimento torna-se fundante e
precisa incidir no planejamento das aulas, nas escolhas didático-metodológicas dos
conteúdos e problemas matemáticos.
Esse é o desafio cotidiano daqueles que assumem a tarefa emancipatória de educar de
forma contextualizada, articulando, neste caso, a realidade do campo; nela, o desafio se
multiplica, pois os condicionantes históricos, culturais, políticos e econômicos constituem sua
complexa dimensão ontológica e epistemológica, como explicado no tópico anterior. Nesse
contexto, compreendemos que:
O professor é um profissional competente e responsável, que tem um papel fundamental a
desempenhar no desenvolvimento curricular e em seu próprio desenvolvimento; de que ele
detém conhecimento próprio e capacidade reflexiva e de ação quanto a sua prática e ao seu
desenvolvimento profissional (Fiorentini, 2005, p. 109).
O compromisso do docente se reafirma na prática educativa, que necessita estar em
constante situação de revisão, reelaboração e atualização. Para tanto, a formação de
professores em exercício é uma ação que pode favorecê-los a dar continuidade na sua
aprendizagem do fazer docente, pois permite desafiá-los a buscar novos conhecimentos de
forma contínua, a partir da colaboração com seus pares. Faz-se necessário planejar tarefas
colaborativas entre corpo docente e escola, compreendendo que os espaços formativo-
reflexivos são uma forma de atender às novas exigências da sociedade que está em constante
transformação.
Para além da relação profissional e de interesse comum entre escola e professores, a
questão da formação continuada perpassa pelo projeto assumido pelo Estado para esse fim:
qual política de formação está sendo implementada, afinal, ela compreende a interface entre a
formação curricular contextualizada e a formação humana? um marco legal para a
Educação do Campo, mas essa política ainda não está chegando no aluno, de acordo com o
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Saeb (2019). Acreditamos que os números não oficiais, da realidade, podem superar essa
estatística. Nesse contexto, conhecer os critérios que determinam o currículo, verificando se
estão alinhados a uma intencionalidade voltada para a Escola do Campo, é fundamental para
avançar na qualidade desse ensino.
Dessa forma, a escola deve ser responsável por proporcionar um trabalho coletivo
entre professores nas trocas de experiências, contribuindo significativamente na aprendizagem
e na entreajuda. Sobre essa dimensão, Fiorentini (2005, p. 90) salienta que “valores como
respeito mútuo, e o bem comum; trabalho colaborativo e cooperativo; relações de cuidado
com o outro e com o bem-estar social; desenvolvimento social e emocional” são dimensões
que precisam fazer parte desse processo formativo para a transformação social.
O cuidado para não ceder a uma prática de ensino simplista, mecanizada e superficial
da matemática, desconexa com a realidade vivida, apolítica e sem sentido, que não
corresponde às necessidades dos estudantes, precisa ser redobrado quando nos referimos à
Educação do Campo. E deve ser assim em qualquer contexto. Para tanto, é importante o
comprometimento dos professores para que haja um engajamento na compreensão da
complexidade que envolve o ensino. Refletir sobre as práticas desenvolvidas pelos
professores oportuniza a reorganização das ações pedagógicas visando garantir a
aprendizagem, visto que as práticas pedagógicas são construídas por elementos que se
interligam e se inter-relacionam, mediados pelo contexto.
Isso remete ao fato de que ensinar matemática na Escola do Campo é mais do que
treinar os alunos a fazer contas, a copiar atividades do quadro, a ficar escutando por horas um
discurso a respeito de um tópico matemático abstrato e descontextualizado. Ensinar
matemática envolve promover situações em que os alunos sejam levados a buscar estratégias
para dar respostas aos problemas encontrados, problemas esses que devem estar relacionados
às suas realidades e que mobilizem os saberes matemáticos. Quando os alunos se sentem
interessados pelo conhecimento matemático vão, gradativamente, entre avanços e retrocessos,
tecendo sua autonomia com autoria e, junto com ela, o gosto pela pesquisa. Nesse movimento
dinâmico, sua curiosidade metódica
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vai sendo acionada através de algo que tenha sentido
para ele e sua vida cotidiana. Nesse ínterim, paulatinamente, os conceitos matemáticos e da
vida vão sendo articulados, ressignificados, revistos e (co)produzidos.
Educar/ensinar/aprender são processos complexos que não acontecem por mágica ou
por receita metodológica, mas que emergem do lugar de pertencimento, sendo, portanto, um
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exercício indispensável de autoria, no qual “O que importa, realmente, ao ajudar-se o homem
é ajudá-lo a ajudar-se. É fazê-lo agente de sua própria recuperação. É, repitamos, pô-lo numa
postura conscientemente crítica diante de seus problemas .... É exatamente por isso que a
responsabilidade é um dado existencial” (Freire, 1996, p. 66).
A compreensão de que o saber contextual é tão importante quanto os conceitos a
serem apreendidos pode mudar o modo como estabelecemos nossas práticas educativas. A
vida vivida, enquanto conteúdo, torna-se um dado epistemológico de base ontológica, ou seja,
é a existência aferindo sentido ao arcabouço conceitual, que, por si só, não corresponde à
realidade objetiva. Dito de outra forma, a dimensão epistemológica, que corresponde aos
conhecimentos científicos elaborados pelo homem através da história, emerge das relações
racionais mensuráveis, quantificáveis, verificáveis -, dos diferentes campos do
conhecimento; quando esse saber epistemológico é coproduzido a partir dos saberes da vida
(contextualizado), do cotidiano, das práticas, da partilha, esse conhecimento científico se
qualifica na e pela relação ontológica um saber científico que emerge de dimensões
elementares da existência plural.
A objetividade se encontra no modo de vida, nesse caso, do camponês, e na sua luta
pela permanência no campo e tudo que isso pode representar. Desse modo, a integração dos
professores em um processo reflexivo, como o proposto neste momento, revendo sua prática
em diálogo com seus pares, lhes dá a possibilidade da participação ativa na construção de
processos educativos como agentes de seu próprio processo de formação humana e
profissional. Sem desconsiderar as necessárias mudanças didáticas e metodológicas na
promoção de ensino-aprendizagem de seus alunos, jogamos luz na capacidade de
humanização por meio do ensino da matemática na Educação do Campo.
Considerações finais
A presente discussão compartilhou um olhar panorâmico acerca de algumas
percepções que estão sendo coproduzidas ao longo de uma pesquisa de Mestrado em
Educação. Sem a pretensão de apresentar conclusões, procuramos ampliar a discussão acerca
da construção de uma Escola do Campo e de um ensino de matemática mais sensível aos
povos campesinos. Vimos, ao longo do texto, que se fazem necessários estudos mais
alargados sobre as possibilidades e os enfrentamentos referentes aos processos do ensinar-
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aprender matemática no campo e a importância do professor e suas práticas pedagógicas em
interface com as políticas públicas de Educação do Campo, no ensino da matemática.
O contexto do campo precisa ser valorizado a partir de seus saberes (saberes do
campo) e não do estigma que, ao longo da história, foi sendo tecido, ampliado e fortalecido
como forma de poder para manutenção de uma realidade distorcida e malvista. Urge a
necessidade de enfrentamento do processo arquitetado pelo paradigma da Educação Rural,
que foi “ancorada na concepção de Campo como lugar do atraso com necessidades de
modernização para atender aos interesses do agronegócio” (Lima & Lima, 2013, p. 03). O
campo é muito mais do que os preconceitos e estigmas que a ele foram atribuídos, contudo, é
essa visão estereotipada que impregna o imaginário social que o negativo, arcaico, como
um lugar subdesenvolvido.
Estudar como ocorre esse movimento, entre discursos e práticas na educação
matemática e nos instrumentos oficiais que modelam tais relações, é fundamental, pois, “A
Matemática não é a finalidade do ensino; ela é o meio pelo qual a educação se produz e
contribui para a construção da cidadania de quem ensina e de quem aprende” (Lima & Lima,
2013, p. 04). A linguagem matemática, enquanto dimensão protagonista da construção da
cidadania, fortalece processos sociais que não se limitam a uma visão fragmentada, linear e
pretensamente neutra que, muitas vezes, a generalização das políticas blicas educacionais
defendem, multiplicam e legitimam.
Diante do exposto, podemos verificar por meio dessa breve análise sobre os
documentos oficiais nacionais elencados, que as mudanças ocorrem muito lentamente e que
as pessoas, direta ou indiretamente beneficiadas por esse arcabouço legal, nem sempre estão
conscientes dessa conquista. Esse desconhecimento é parte de um projeto de sociedade que
historicamente negou direitos elementares às camadas mais empobrecidas da sociedade.
A falta de percepção, de conhecimento e de apropriação dessa construção política
assume contornos perversos de controle e manutenção do status quo, configurando-se em um
fenômeno que reflete, sobretudo, uma lacuna ético-política que faz parte de nossa constituição
histórica de colonizados. Realidade essa que Freire (1996) muito bem denuncia: os processos
de desumanização, descaracterização e alienação. Ainda assim, com todos os desafios postos
e expostos, existe uma construção política importante que precisa ser colocada no campo de
visão das pessoas que estão no chão da Escola do Campo, na prática na sala de aula.
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É necessário, no entanto, que todos os atores da escola, especialmente os professores e
gestores escolares, estejam engajados e comprometidos com um ensino significativo, que
valorize os conhecimentos históricos e sociais de seus estudantes e sua comunidade. Um
processo que recupere inclusive a própria profissionalidade desse sujeito social que hoje é
demandado de uma forma exaustiva: múltipla carga horária de trabalho, desvalorização
profissional, fragilidade da saúde mental e física ainda, herdada do período da pandemia,
ainda não recuperada, responsabilização exclusiva pelo processo de aprendizagem, etc.
O processo de construção de fortalecimento da Escola do Campo, juntamente com a
ressignificação do ensino da matemática para que o mesmo seja contextualizado, estabelece
interfaces entre esse ensino, o aparato legal, o currículo e a formação do professor reflexivo, o
que não é um fenômeno simples de ser operado, pois, anteriormente, configura-se uma tarefa
gigante, coletiva e participativa de enfrentamento à lógica estabelecida!
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i
Discussão apresentada no Seminário de Educação (Semiedu 2022) da Universidade Federal do Mato Grosso
(UFMT).
ii
Assumimos a noção de camponês, campesinato e campesino, a partir do sentido atribuído nas obras de Freire
(1963, 1970, 1971): ... o camponês é percebido, além da dimensão econômica, como sujeito histórico e
político, que não possui terra nem é assalariado, mas compõe um mundo de relações sociais.” (Pacheco, 2010, p.
64).
iii
Por essas abordagens filosóficas referimo-nos sobre a necessária cautela em relação às suas raízes científicas,
baseadas nas ciências naturais, que são objetificantes, compreendendo meramente os aspectos cognitivos do
conhecimento de forma linear e neutra, sem as possibilidades críticas onde “o autor se conhece ao conhecer”
(Guareschi, 2010, p. 394-395).
iv
É importante registrar que utilizamos os dados de 2019 pelo fato de que, devido a pandemia, os resultados dos
anos seguintes sofreram em qualidade, desdobramentos do processo atípico de aulas, ora paralisadas por tempo
considerável, ora remotas, dificultaram a produção de dados quantitativos suficientes para uma análise mais
ampla.
v
A toda concepção, em qualquer campo do conhecimento humano, subjaz uma ontologia (teoria do ser) e uma
epistemologia (teoria do conhecimento) e ambas se correspondem mutuamente. Ou seja, toda e qualquer teoria ...
referencia-se em uma visão de mundo ... Em síntese, a cada ontologia corresponde uma epistemologia e vice-
versa (Romão, 2010, p. 292).
vi
Termo freireano que se refere “a rigorosidade metódica” ... posta como o primeiro saber necessário à prática
educativa, antecedendo criticidade, ética e estética, alegria e apreensão da realidade, ... O adjetivo “metódica”
expressa ... que o ensinar não se esgota na abordagem de um conteúdo, mas se alonga na preocupação com as
condições de uma aprendizagem permanente. (Streck, 2010, p. 362).
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em: 22/03/2023
Aprovado em: 12/11/2023
Publicado em: 16/12/2023
Received on March 22th, 2023
Accepted on November 12th, 2023
Published on December, 16th, 2023
Contribuições no Artigo: As autoras foram as responsáveis por todas as etapas e resultados da pesquisa, a saber:
elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação da versão final
publicada.
Author Contributions: The author were responsible for the designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: As autoras declararam não haver nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Não tem.
Funding
No funding.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Martins, G. L., & Fanizzi, S. (2023). O Ensino da Matemática no contexto da Educação do Campo: limites e possibilidades.
Rev. Bras. Educ. Camp., 8, e15983. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15983
ABNT
MARTINS, G. L.; FANIZZI, S. O Ensino da Matemática no contexto da Educação do Campo: limites e possibilidades. Rev.
Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 8, e15983, 2023. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e15983