Silva, R. P., & Sena, I. P. F. (2016). Educação do Campo, experiência e formação docente numa perspectiva política emancipadora...





Educação do campo, experiência e formação docente numa perspectiva política emancipadora



Raimunda Pereira da Silva, Ivânia Paula Freitas de Souza Sena2

Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Departamento de Educação, campus VII. Rua Silveira Martins, 2555, Senhor do Bonfim - BA. Brasil. raimundaps88@hotmail.com. 2Universidade do Estado da Bahia - UNEB.





RESUMO. Este artigo é parte de um trabalho de conclusão de curso e traz reflexões sobre a docência no campo e seus desafios. Tem como referências as experiências do estágio nos anos iniciais do ensino fundamental e do PIBID/CAPES/UNEB no curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia, em duas escolas multisseriadas do campo de dois municípios da Bahia, sendo fruto de uma pesquisa participante decorrida de um período de dois anos de PIBID e no Estágio dos anos iniciais do ensino fundamental. Compartilhamos aqui parte das investigações, ressaltando os problemas enfrentados por estas instituições de ensino e a esperança de mudança de vida que as comunidades depositam na escola, destacando como a Educação do Campo pode modificar a realidade. O trabalho reflete, ainda, sobre os desafios que envolvem a oferta da educação no campo e a necessária construção de uma visão política em torno da educação, da escola e da docência. Conclui que na escola do campo e no campo, a educação é mais do que um processo de ensino e aprendizagem de conteúdos disciplinares, reiterando, portanto, que a escola assume um importante papel na vida comunitária, na formação intelectual, política e humana de seus sujeitos.


Palavras-chave: Educação do Campo, Escola Multisseriada, Docência.









Rural Education, experience and teacher formation through a political emancipator perspective





ABSTRACT. This work is part of a final paper and brings discussions about teaching in rural areas and its challenges. It takes as references some experiences lived during teacher training period at fundamental school and at PIBID/CAPES/UNEB in a Pedagogy graduation course of Bahia State University. It is the result of a participant research that was developed for two years through PIBID and teacher training period at fundamental school. Here we share part of the research, highlighting problems faced by theses educational institutions, and the hope for life-changing that communities lay in school, emphasizing how rural education can modify reality. Besides, this work reflects on the challenges related to rural education supply and the indispensable building of a political view on teaching, school, and education. It is concluded that at rural school in countryside, education is much more than a teaching and learning process of academic contents, reaffirming, therefore, that school plays an important role in community life, in intellectual, political and human formation of subjects.


Keywords: Rural Education, Multi-grade School, Teaching.



















Educación del Campo, experiencia y formación docente desde una perspectiva política emancipadora





RESUMEN. Este artículo es parte de un trabajo de conclusión curso y trae reflexiones sobre la enseñanza en el campo y sus desafíos. Tiene como referencias, las experiencias prácticas en los primeros años de la escuela primaria y del PIBID / CAPES / UNEB en el curso de Pedagogía de la Universidad del Estado de Bahia, en dos escuelas multigrado en el campo de dos municipios de Bahía, siendo el resultado de una investigación participante transcurrido un período de dos años PIBID y la etapa de los primeros años de la escuela primaria. Compartimos aquí, parte de las investigaciones, resaltando los problemas que enfrentan estas instituciones educativas y la esperanza de un cambio de vida que las comunidades depositan en la escuela, destacando cómo la educación en el campo puede cambiar la realidad. El trabajo reflexiona, al mismo tiempo, sobre los desafíos que envuelve la oferta educativa en el campo y la construcción necesaria de una visión política en torno de la educación, de la escuela y de la enseñanza. Se concluye que en la escuela del campo, la educación es más que un proceso de enseñanza y aprendizaje de contenidos disciplinares, por lo tanto, reiterando que la escuela juega un papel importante en la vida comunitaria, en la formación intelectual, política y humana desde sus sujetos.

 

Palabras-clave: Educación del Campo, Escuela Multigrado, Docencia.

















Contextualizando


O processo de formação de professores na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Departamento de Educação, Campus VII, tem proporcionado, nos momentos do estágio e em programas como os de iniciação à docência, vivências relevantes para que os futuros professores possam compreender a prática docente, prioritariamente, nas escolas públicas, trazendo reflexões e acepções que permitem a ressignificação dos saberes em torno, tanto do processo de formação de professores, quanto da educação. Além disso, as experiências que saem da sala de aula da universidade trazem a necessidade de retomada das discussões e pautas ensaiadas ao longo de todo trajeto da formação docente, uma vez que servem como suporte para pensar sobre a conduta e postura assumidas junto aos sujeitos que ajudamos a formar, até porque buscamos uma aprendizagem que corresponda às nossas expectativas de vida, de presente e de futuro.

Parte do percurso formativo como discente na Universidade foi direcionado à Educação do Campo. Ao longo do curso, buscamos compreender, a partir das investigações acadêmicas, a forma como as escolas estão inseridas nas comunidades do campo e o papel que elas assumem nesses espaços, onde na maior parte das vezes, é o único órgão estatal presente.

No trabalho de conclusão de curso em que este artigo se aporta, intencionamos aprofundar as provocações que se acentuaram no estágio nas classes multisseriadas, com carga horária de 80 horas, bem como a vivência do Subprojeto PIBIDi/UNEB/CAPES “Experimentando possibilidades na organização do trabalho pedagógico das escolas do campo multisseriadas”, desenvolvido pelo Colegiado de Pedagogia do Departamento de Educação, Campus VII da Universidade do Estado da Bahia, de março de 2014 a dezembro de 2016.

Durante o estágio e ao longo do percurso investigativo do PIBID, compelimo-nos a refletir sobre os desafios que permeiam a educação oferecida em duas escolas da rede pública municipal de ensino, uma situada no município de Itiúba onde o estágio foi concretizado, como requisito do componente curricular Pesquisa e Estágio II e, a outra no município de Senhor do Bonfim, onde é desenvolvido o subprojeto PIBID/UNEB/CAPES.

Partimos do pressuposto de que a escola, como um espaço de socialização, precisa estar adequada para atender às necessidades que a contemporaneidade exige, necessitando reconhecer as demandas dos alunos e da comunidade, pois, ela é a principal mediadora do processo dialógico entre os conhecimentos sistematizados e as demandas comunitárias.

A Educação do Campo caracteriza-se como um “conjunto de princípios que deve orientar as práticas educativas ... com a perspectiva de oportunizar a ligação da formação escolar à formação para uma postura na vida, na comunidade.” (Molina & Sá, 2011, p. 329). É uma educação comprometida com os sujeitos, suas lutas e suas histórias.

Por assim compreendermos, voltamo-nos neste artigo aos fenômenos observados/vivenciados durante essas duas experiências, lembrando que do estágio decorrem experiências diferentes do PIBID, pois, cada um possui sua própria dinâmica formativa. No estágio, o período de observação da prática do docente é exíguo, apenas 15 horas, sendo o restante da carga horária, 90 horas, destinado à prática docente, quando o futuro professor assume a sala de aula sob a orientação do professor de estágio da Universidade. O tempo de experimentação da regência da sala, no geral, embora pareça longo ao licenciando (105 horas), acaba se revelando insuficiente tanto para apropriar-se da dinâmica da sala de aula, quanto para conhecer os aspectos mais importantes das comunidades onde se situa a escola e dos próprios alunos que compõem a turma de estágio.

Concluímos ainda que o licenciando parte para uma intervenção altamente complexa, sem muita segurança diante das situações que lhes são apresentadas pelo cotidiano imprevisível da sala de aula, e isso se agrava pelo distanciamento dos professores regentes que não acompanham e pouco apoiam esse momento.

A experiência do PIBID tem caráter distinto. Dedicamos todo tempo a uma observação-participante aprendendo a ser professora, observando a docência em seu efetivo exercício e intervindo sob orientação e acompanhamento do professor supervisor, considerado por nós como o ‘par’ experiente, que tem na sala de aula, a responsabilidade maior tanto com sua turma, quanto pelo discente em formação. No PIBID, a inserção do licenciando é orientada para a observação e registro permanentes dos elementos da prática e, também, para o desenvolvimento de pequenas intervenções planejadas pelo professor supervisor, o que nos ajuda a elucidar os problemas detectados via problematização e aprofundamentos teóricos nos encontros com a professora coordenadora do projeto.

Todo esse trabalho, portanto, tem um viés da pesquisa-participante, tanto pelo caráter do estágio, quanto pela estrutura do PIBID. Acreditamos que o olhar minucioso, integrado ao fenômeno social, dedicado no período da pesquisa, como diz Thiollent (1992, p. 76), faz com que “os pesquisadores estabeleçam canais de investigação e de divulgação nos meios estudados, nos quais a interação entre os grupos 'mais esclarecidos' e 'menos esclarecidos' gera e prepara mudanças coletivas nas representações”. Entendemos que tal relação favorece as discussões e a produção cooperativa de conhecimentos sobre a realidade vivida de modo que, tem como prática principal, a inserção do pesquisador no ambiente, interagindo diretamente com o cotidiano dos sujeitos pesquisados. Em caráter maior, o tipo de vivência da qual somos parte e aqui relatamos, de modo reflexivo-crítico e propositivo favorece, no nosso entendimento, a relevância da pesquisa a ser socializada, apontando sempre para o que ela sinaliza como possibilidade de transformação da realidade.

A escola da Serra de Itiúba – lócus do Estágio


As escolas de nossa investigação, mesmo estando situadas no campo, são muito distintas. A instituição onde ocorreu o estágio (Escola Municipal M. J. S – aqui denominada de Escola da Serra de Itiúba) tem uma estrutura física bastante precária e está sendo ameaçada pela nucleaçãoii, por conta dos inúmeros entraves que a inviabilizam e a configuram como inadequada ao processo de ensino e aprendizagem, o que tem causado muitos conflitos na localidade onde está inserida, uma vez que essa é a única escola da localidade e acolhe outros povoados vizinhos.

A escola da Serra de Itiúba fica na comunidade de São Bento, atende apenas à Educação Infantil e o Ensino Fundamental - Anos iniciais (1º, 2º, 3º, 4º, anos). Funciona em dias úteis, no período matutino. Conta com uma professora e uma merendeira, atendendo 32 alunos de 14 famílias de cinco comunidades diferentes, Retiro, Cabeça, Shoem, e Barreiro.

Dentre essas, respectivamente as quatro últimas, assim como outras que compõem a Serra de Itiúba, são limitadas quanto aos transportes urbanos por se situarem em um morro bastante acidentado do ponto de vista geográfico, o que o torna deslumbrante por conta da diversidade de vegetação, frutas nativas, lajedos, montanhas, nascentes, planícies e as modificações causadas pelo homem, como é o caso das famosas “cercas de pedra”, um dos trabalhos braçais de separação de espaço realizados como forma de sobrevivência.

Nesse cenário de proezas, detecta-se uma série de desafios acarretados pelo isolamento. Esse tipo de comunidade geralmente fica desprovido de postos médicos, energia elétrica e água encanada, entre outros componentes básicos e necessários para a sobrevivência. Entretanto, a dificuldade de acesso por serem espaços isolados não justifica o desamparo por parte do poder público.

A Serra de Itiúba é o nome que foi dado ao conjunto composto por 15 povoações e um povoado chamado Adro de São Gonçalo, devido à localização em cima de uma serra. Na maior parte destes arraiais, o tráfego ocorre apenas a pé ou através de animais. Somente no Adro de São Gonçalo – comunidade com população maior entre as que compõem a Serra de Itiúba - é que há possibilidade de encontrar carros, motos e bicicletas como meios de transporte. É lá também que se pode acessar os poucos equipamentos públicos disponíveis, acesso a linha telefônica (orelhão), pavimentação, iluminação (postes com lâmpadas), uma igreja datada do século XVIII considerada como patrimônio cultural da Serra, pois, foi a primeira igreja de Itiúba. Além disso, serviços como água encanada, energia elétrica, bem como uma escola mais ampla com atendimento, desde a educação infantil até os anos finais do ensino fundamental. As demais localidades, povoações, dependem do Adro para quase todas as suas necessidades, visto que a cidade fica distante, e seria necessário um gasto maior de tempo e dinheiro para buscar produtos industrializados.

Esse pequeno “centro”, mesmo com dificuldades por conta do trajeto - subida e descida de uma grande ladeira que compõe parte do percurso de nove quilômetros até a cidade de Itiúba, é aonde chegam os poucos recursos, como: vacinação, alimentos, gás de cozinha e o transporte escolar que leva os alunos para a cidade, dentre outros serviços destinados à comunidade onde estagiamos e circunvizinhança.

A Serra de Itiúba é um dos locais onde há muitos obstáculos para o acesso e permanência na escola, limitações referentes ao difícil trajeto de ida e retorno da escola, onde só têm duas opções: ou as crianças vão andando ou são transportadas pelos animais como os jegues e burros. Segundo relatos dos pais, há preocupação com esse deslocamento, porque há sempre o risco de o animal se assustar, a criança cair e sofrer danos físicos.

As condições socioeconômicas são o maior obstáculo e incidem diretamente na ‘frequência escolar’, visto que muitos têm baixa assiduidade por terem de auxiliar suas famílias na lavoura e assim garantir a sobrevivência.

Os jegues, burros e cavalos são utilizados como o único meio de condução. Eles transportam, além das pessoas, objetos e são fundamentais a outras tarefas que exigem esforço físico e longo percurso, uma vez que a localidade é composta por veredas cheias de pedras, o que certamente impossibilita a circulação de outros transportes. O poema de Joel Portoiii retrata bem o cenário.


Quando a manhã bela e fria se revela, junta-se à alegria dos burrinhos da Vila Eles estão felizes, apesar das cargas Eles estão contentes, vão descer a Serra. Seguem em fila, uns levam verduras, outros levam frutas, farinha, feijão abastecem a feira daquela cidade, toda a produção é da região. De noitinha voltam, cruzam a Rua do Fato, perdem-se no cansaço, na escuridão. Agora na Serra uma estrela brilha, os burrinhos dormem para outras lidas.



Utilizar os serviços dos animais para comportar diversas “bugigangas” que são carregadas em malas, caçoas, caixões, aparatos que são primordiais ao carregamento, feitos de cipós, madeira e pele de outros animais, ainda é habitual nas comunidades da Serra de Itiúba. Diante da localização, o acesso à escola é cansativo e parcialmente restrito. Esses coeficientes, talvez sejam considerados pelos governos como preponderantes para podar os benefícios que instituições idênticas a ela podem usufruir. Alguns fatores implicantes como esses geram uma espécie de amnésia adotada pelo Estado para provavelmente se eximir da responsabilidade de dar um suporte maior às escolas dessas localidades.

Uma constante nas escolas do campo é que a maioria dos educadores não reside na comunidade onde trabalha. A nossa professora regente, da Serra, não reside na comunidade e, para chegar até a escola, ela precisa realizar uma rotina que demanda força física, já que tem uma parte do trajeto onde é necessário ir a pé pelo menos durante alguns longos minutos. A sua jornada diária talvez acabe tornando-se um tanto mais desgastante que o normal.


Escola do Subprojeto PIBIB/CAPES/UNEB


A segunda escola é aonde vem sendo desenvolvido o subprojeto “Experimentando Possibilidades na Organização do Trabalho Pedagógico das Escolas do Campo Multisseriadas”. Está localizada em Senhor do Bonfim, região norte da Bahia. Atende alunos da comunidade onde a escola está inserida e também recebe alunos de outras localidades vizinhas. A unidade escolar é composta por sete (07) cômodos divididos em três salas, uma acanhada cozinha, dois banheiros, um feminino e outro masculino que não são adaptados para os alunos com deficiência e um pequeno recinto que tem uma mesa com uma espécie de banco de madeira, onde os alunos se concentram durante a merenda. São três turmas atendidas no turno matutino, Educação Infantil e duas de anos iniciais (1º ao 3º ano e 4º e 5º anos).

É válido versar que a infraestrutura dessa escola, apesar de pequena, é mais adequada ao ensino aprendizagem do que a escola onde realizamos o estágio. Contudo, pode-se perceber que está longe de ser a estrutura necessária para um processo de instrução mais qualificado no campo. Os espaços das três salas de aula precisam de reparação no teto, pois, quando chove, fica impossibilitada de haver aula porque a água escorre por um buraco que há no forro. Os alunos, durante o intervalo, brincam em um espaço na frente da escola, uma vez que esta unidade não possui um muro, ou qualquer outro tipo de proteção que delimite o espaço escolar.

Quanto à prática pedagógica, seria importante dedicar maior enfoque ao desenvolvimento autônomo e crítico dos alunos. Entre tantos aspectos a considerar, o propósito do subprojeto é ajudar no progresso da escola como um todo e desenvolver nos estudantes de pedagogia a capacidade de conhecer, analisar e esclarecer como funciona o trabalho pedagógico nas escolas do campo multisseriadas, identificando e propondo ações conjuntas (escola-universidade), que contribuam para organização da prática docente nessas escolas, numa perspectiva integrada e interdisciplinar.


A educação escolar no campo: que contexto é esse?



De contorno claro e simples, embora se ressaltem avanços significativos, a Educação do Campo ainda tem as marcas da precariedade decorrente do histórico descaso por parte do Estado brasileiro. Ainda é comum ouvir falar (e esse trabalho aponta, claramente) de escolas que não dispõem de uma boa estrutura para comportar o ensino e a aprendizagem dos educandos, mesmo que seja esse ambiente o único espaço oferecido em muitas comunidades para a educação sistematizada, para o acesso ao saber universal.

A escola é um espaço de socialização do conhecimento, que deve ser capaz de preparar o indivíduo para a convivência em sociedade. É um local propiciador de vivências, culturas, interação de opiniões, valores e de construções de identidades que possibilitam ao indivíduo o desenvolvimento de aptidões e inteligências. Dessa forma, (Fazenda, 1991, p. 24).


O papel da escola é o de oferecer condições, propiciar oportunidades e estímulos dos mais variados para a criança educar-se, socializar-se, formar-se independente e autônoma para enfrentar situações de conflito dos mais diversos, apropriando-se do processo de aprendizagem como sujeito de sua história.


Na escola, os sujeitos são submetidos às práticas de socialização que objetivam o desenvolvimento, a aprimoração de valores que, possivelmente, servirão de base por toda a sua vida. Além disso, essa instituição deve garantir que o ensino e a aprendizagem colaborem significativamente no processo formativo, aguçando a criatividade, dando autonomia e subsidiando o aluno nessa linha tênue, que é a construção de sua identidade como sujeito social. A escola, certamente, passa a fazer parte da vida da grande maioria das pessoas e, mesmo que alguém diga que não gosta de estudar, ainda assim é possível que goste da escola, pois ela se tornou um ponto de encontro, um universo que transcende a sua principal função, a de ensinar, para ser o lugar de descobertas importantes. Como bem diz (Caldart, 2003, p. 22):


Uma escola do campo não é, afinal, um tipo diferente de escola, mas sim é a escola reconhecendo e ajudando a fortalecer os povos do campo como sujeitos sociais, que também podem ajudar no processo de humanização do conjunto da sociedade, com suas lutas, sua história, seu trabalho, seus saberes, sua cultura, seu jeito.


Há muitas escolas, contudo, em estado de degradação e, outras, ainda que mais conservadas, são carentes de inúmeros elementos pedagógicos para o trabalho docente ocorrer na linha que acreditamos ser papel destas instituições. As escolas que fazem parte desta pesquisa possuem algo em comum: professores, alunos e pais que desejam e esperam que a escola ofereça-lhes oportunidades de crescimento pessoal e social. Como nos lembra, (Leite, 2002, p. 53) “as dimensões da problemática que envolve a escola rural atualmente são bastante extensas, considerando que, historicamente, a educação em si sempre foi negada ao povo brasileiro e, especificamente, ao homem do campo”.

O contexto dessas escolas, contudo, desafia essas intenções, a começar pela fragilidade na estrutura física, abarcando aí a ausência de condições pedagógicas para um trabalho mais organizado e com maior qualidade. O cenário da escola onde realizamos o estágio exemplifica bem essa situação. Como ela atende trinta e dois alunos desde a Educação Infantil até o quarto ano do Ensino Fundamental, eles foram divididos em dois turnos: matutino e vespertino; essa organização foi a forma que a professora encontrou para facilitar o trabalho pedagógico, uma vez que o espaço é pequeno.

As condições precárias saltam aos olhos. Ainda nessa mesma escola (na Serra de Itiúba), a merendeira é responsável por levar o lanche e utensílios que precisa usar para a alimentação escolar, todos os dias. Ela mora em outra comunidade e, por conta do trajeto, usa um balde para carregá-los, porque, além da escola não ter espaço para o armazenamento da merenda, não está livre de ser invadida por animais nocivos (ratos, baratas, formigas, etc.) que ao entrarem em contato com os alimentos a serem consumidos, colocam em perigo a saúde dos alunos, sem contar que pelas péssimas condições das portas e janelas, a escola fica vulnerável a atos de vandalismo.

Nesse sentido, embora existam muitos avanços no histórico da educação brasileira, é possível observar que há muitas lacunas a serem reparadas de forma a assegurar que as políticas públicas direcionadas para a educação do campo sejam implementadas. De acordo com as proposições do marco legal existente, a função primordial da Educação do Campo é garantir a todos os seus sujeitos, uma educação de qualidade, assegurando-lhes o direito de acessar o conhecimento, sem que, para isso, necessitem sair do seu espaço e/ou menosprezá-lo. “Daí a certeza de que a construção da escola possível é uma tarefa política extremamente complicada, fruto de longas lutas. (Arroyo, 1991, p. 9)”.

Mesmo que tais questões estejam legalmente respaldadas, essa não tem sido uma asserção para as gestões das redes de ensino. Comprova isso, por exemplo, o processo de nucleação de escolas, uma pauta que precisa ser discutida e socializada urgentemente, numa tentativa de assegurar que os povos do campo, tenham garantido seu direito de acessar a educação nos lugares onde vivem, “pois, a escola na comunidade é um importante instrumento que mobiliza os sujeitos para dialogarem com as questões da realidade em que vivem. (Hage, 2008, p. 8)”.

O número de escolas que vem sendo fechadas no campo é um exemplo do lugar ainda não prioritário da educação do campo nas redes de ensino. Segundo o Censo Escolar (MEC/INEP, 2011) são mais de 30 mil escolas fechadas nos últimos anos. Embora haja lutas e movimentos que buscam garantir escola para a comunidade, a nucleação escolar no campo sob o formato de fechamento das pequenas escolas, vem se tornando um método comum no Brasil, um perverso processo de destituição desses espaços que têm imposto às crianças e jovens um longo e árduo percurso diário para acessar um direito que lhes é afirmado pela Carta Magna do nosso país, o direito à educação.

Destacamos ainda, que os argumentos utilizados pelos gestores públicos para o fechamento dessas escolas vão de encontro ao que afirmam as legislações educacionais do campo. Conforme o Artigo 5º das Diretrizes Operacionais de Educação do Campo (RESOLUÇÃO Nº 2 CNE/CEB, 2008) inciso1, “sempre que possível, o deslocamento dos alunos, como previsto no caput, deverá ser feito do campo para o campo, evitando-se, ao máximo, o deslocamento do campo para a cidade”. Nessa mesma Resolução, destaca-se ainda, que mesmo o deslocamento intracampo é recomendado apenas aos anos finais do ensino fundamental e médio, quando esses não puderem ser ofertados na comunidade.

Entendemos que é possível que a legislação ainda seja desconhecida a fundo pela grande maioria dos povos do campo, talvez até mesmo por alguns representantes desses sistemas educativos, que tentam alegar ser essa prática, a nucleação, uma forma de ‘sanar problemas de estrutura física e manutenção dessas unidades escolares’, justificando, ainda que, pelos ‘custos’ para manter um professor para grupos pequenos de alunos serem altos, fechar as escolas é a melhor saída.

Dessa forma, é bem mais cômodo levar as crianças, adolescentes e jovens do campo para estudar na cidade, mesmo que saibam que “a oferta de transporte escolar público e gratuito deve ser realizada para garantir a educação para a população em idade escolar que não tem escola ou não encontrem vagas próximas as suas residências. (Cordiolli, 2011, p. 126)”, o que não é o caso de muitas comunidades do campo onde a escola existe, porém, está sendo fechada por ausência de investimentos prioritários por parte das redes de ensino.

Reconhecemos que os problemas da educação no Brasil estão presentes tanto no setor urbano quanto rural. Contudo, o descaso político continua sendo mais acentuado no campo. Mesmo diante da visível precariedade e das muitas limitações, a comunidade deposita na escola grande esperança de que ela pode ser um lugar que fará a diferença na formação das crianças.

Há um bom número de educadores comprometidos com o seu trabalho que, sozinhos, fazem investidas e alteram positivamente a realidade objetiva na qual se encontram. Há alunos que acreditam na mudança que a educação lhes proporciona e demonstram muito prazer em frequentá-la. Impressiona-nos, a possibilidade de alguns dos educadores desses espaços contornarem os desafios e com as poucas condições que possuem conseguirem realizar um bom trabalho e ainda mobilizar a comunidade para a construção de uma consciência política do quão importante é a permanência da escola no campo.

A pouca consciência sobre as dificuldades presentes no cenário das escolas do campo tem ocasionado situações em que muitas vezes a comunidade é coagida a sujeitar-se aos argumentos do poder público, que, como dissemos, por não assumir a responsabilidade em qualificar a educação, lhes dá como única opção, a nucleação. Esse tipo de despotismo vincula-se ao discurso equivocado que ratificou, por anos, que o homem do campo não carecia de estudos e apenas ofertar educação inicial (ainda que precária), era suficiente.

Na contramão dessa ideia, a Conferência Nacional de Educação do Campo já afirmava que “uma escola do campo não precisa ser uma escola agrícola, mas será necessariamente uma escola vinculada à cultura que se produz através das relações sociais mediadas pelo trabalho na terra”. (Conferência Nacional: Por Uma Educação Básica No Campo, 1998, p. 17). Entendendo que, dentre outros fatores importantes para a oferta de uma instrução de qualidade, está o de uma escola que seja engajada com as lutas da comunidade, o que exige do professor, clareza teórica e de projeto educativo junto aos povos do campo.

Que há bons professores nas escolas multisseriadas do campo isso é certo, contudo, vimos que há ainda professores não habilitados (com formação superior) ou devidamente qualificados (com formação continuada específica) para o ensino nessas unidades escolares, o que certamente dificulta a concretização dessa escola. A professora da escola da Serra de Itiúba tem ensino superior completo, participa dos programas formativos direcionados a sua área que é o campo, assim como alguns professores do quadro funcional da escola de desenvolvimento do PIBID. A teoria é essencial para pensar a prática, por isso é imprescindível ter formação adequada para atuar nas escolas do campo. Entende-se que com um professor bem capacitado, a escola, o campo se desenvolve ainda melhor. Para essa escola ser possível, é preciso pensar cuidadosamente a formação dos professores. Como diz (Arroyo, 2012), temos como desafio superar a ideia de “um protótipo único, genérico de docente” para a educação básica. E para isso, é preciso superar a visão urbana que ainda persiste no currículo e na organização do processo formativo dos professores dentro das Universidades.

Para a Educação do Campo, a escola é instrumento social, patrimônio histórico e cultural da comunidade onde está inserida e, por isso, não pode ser ignorada. Por essa razão também, para uma escola ser fechada, a comunidade tem que ser consultada para aprovar ou não, tal decisão, conforme consta na Lei 12.960, publicada no Diário Oficial da União de 27 de março de 2014, que alterou o artigo 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996). As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (Resolução nº 2 CNE/CEB, 2008), ressaltam em parágrafo único, Art. 4º:


Quando os anos iniciais do Ensino Fundamental não puderem ser oferecidos nas próprias comunidades das crianças, a nucleação rural levará em conta a participação das comunidades interessadas na definição do local, bem como as possibilidades de percurso a pé pelos alunos na menor distância a ser percorrida. Parágrafo único. Quando se fizer necessária à adoção do transporte escolar, devem ser considerados o menor tempo possível no percurso residência-escola e a garantia de transporte das crianças do campo para o campo.



Trazendo esse debate para a Escola da Serra, onde vivenciamos nosso estágio atualmente, ela também se encontra ameaçada pela proposta de nucleação, sob alegação de que não está entre as prioridades de investimento no município, mesmo sendo a única naquela comunidade. O que se vê é que o setor responsável, ao invés de dar suporte, alega que a escola não tem infraestrutura para atender a demanda de alunos, colocando como solução, removê-los para a o povoado de Adro. Dessa maneira, se a população local não se atentar para argumentar na garantia dos seus direitos, a escola será mais uma a ser fechada no município que, segundo informação de uma coordenadora da Secretaria de Educação do Estado, já fecharam nos últimos cinco anos, cerca de cem (100) escolas no campo.

É este o atual cenário da escola da Serra de Itiúba: não tem espaço suficiente para acrescentar lazer para as crianças; não dispõe de água encanada e energia elétrica; o único quadro branco existente, mal permite escrever, o outro é um quadro para a escrita com giz, os dois em péssimas condições; o piso possui muitos buracos e uma das duas janelas está sustentada por um armário que também está num estado deplorável, se decompondo. Os assentos merecem uma reparação apropriada, principalmente, os disponíveis para os alunos da Educação Infantil, para a qual não há espaço adequado.

A água, que é usada para consumo escolar, é carregada em baldes pela merendeira que, de vez em quando, conta com a ajuda de uma das mães. A água é subtraída dos lençóis freáticos, mais conhecidos como “fontes” pelos moradores da comunidade.

Infelizmente essas são características constantes em grande parte das escolas multisseriadas espalhadas pelo país, quadro empobrecido mais ainda, pela ausência das condições pedagógicas que dialoguem com as especificidades das multisséries, com seus diversos níveis de aprendizagem e anos/séries presentes, o que é desafio constante para os professores.

Nas duas escolas não há investimentos tecnológicos suficientes para atender as demandas. Na escola do PIBID ainda há energia, um notebook, uma impressora que auxiliam os professores. Na escola da Serra durante o estágio foi possível perceber o quanto as Tecnologias da Informação e Comunicação são ferramentas essenciais no processo educativo, pois poderiam enriquecer o universo cultural daquelas crianças que não têm a oportunidade de conhecer outros espaços e vivenciar novas experiências.

Concordamos com Cordeiro e (Bonilla, 2015, p. 263) que “a partir das possibilidades de convergência, miniaturização, portabilidade, conectividade, participação, próprios do digital, ganha destaque a mobilidade física, os deslocamentos, tanto do nosso corpo, como dos objetos, mercadorias ou serviços”. E como a inclusão digital na escola que estagiamos é limitada apenas a algumas operadoras de aparelho móvel, o ato rotineiro de escrever manualmente tarefas em trinta cadernos, por falta de um computador com impressora, exige mais do que habilidade, exige tempo disponível e condições de fazê-lo, já que não se tem auxiliar de sala e nenhum outro tipo de equipamento que amenize esse procedimento.

Vimos que é preciso muito compromisso para atuar nesses espaços, em particular nos nossos espaços de investigação, pois eles desafiam o educador a educar suas dores e driblar as lacunas existentes no sistema educativo que impedem avançar. Ao mesmo tempo, exige-se uma consciência política desses educadores para que tais lacunas não sejam silenciadas ou que não virem justificativas para uma ação pedagógica sem intencionalidade e, portanto, também precária.

As legislações requerem que educadores propiciem estímulos para que o aluno venha desempenhar suas potencialidades e habilidades durante todo o processo de ensino e aprendizagem para tornar-se um sujeito crítico, autônomo e capaz de conviver socialmente com outros grupos sociais, respeitando as diferenças e integrando-se a outras formas de ampliar seus conhecimentos. De acordo com a Resolução CNE/CEB, 2002, que estabelece as diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo, artigo 13º, parágrafo II, constitui-se que seja relevante:


Propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas.

Para isso, é instituído que o Estado forneça condições essenciais a essa formação que, requer práticas e implementação de políticas direcionadas a cada modalidade educativa disposta, como consta no artigo 6º do Decreto Presidencial 7352/10, que trata da relevância dos recursos que devem ser ferramentas essenciais ao ensino e aprendizagem, especialmente nas escolas do campo, pois é lá onde a condições estruturais improváveis insistem em desafiar o professor.


Os recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários destinados à educação do campo deverão atender às especificidades e apresentar conteúdos relacionados aos conhecimentos das populações do campo, considerando os saberes próprios das comunidades, em diálogo com os saberes acadêmicos e a construção de propostas de educação no campo contextualizadas.



Sendo assim, é de suma importância que esses direitos assumam centralidade no debate, pois sem condições de trabalho, toda prática pedagógica fica comprometida.

Também consta no Decreto Presidencial 7352/10, artigo 10, inciso 4, que:


A educação do campo concretizar-se-á mediante a oferta de formação inicial e continuada de profissionais da educação, a garantia de condições de infraestrutura e transporte escolar, bem como de materiais e livros didáticos, equipamentos, laboratórios, biblioteca e áreas de lazer e desporto adequados ao projeto político-pedagógico e em conformidade com a realidade local e a diversidade das populações do campo.



Nesse sentido, embora os avanços relacionados à Educação do Campo sejam bastante significativos, compreende-se que boa parte desse processo ainda não foi efetivada e as condições de superação da realidade ficam limitadas. Essa afirmativa pode ser observada especialmente no lócus de estágio onde, como já nos referimos anteriormente, as condições físicas favoráveis ao ensino e aprendizagem são inapropriadas.

A visão do campo e sua influência na educação



Há necessidade de pensar o campo como um espaço amplo e diversificado que vai além de uma simples área onde provavelmente algumas pessoas da cidade utilizam para descansar, passar um final de semana; ou como o lugar em que os grandes latifundiários usufruem de mão de obra barata para fins lucrativos em autobenefício.

A escola do campo nasce no contexto da luta dos movimentos sociais camponeses pela terra (Molina & Sá, 2012). Não é a mesma concepção de escola rural cujo foco centrou-se em um tipo de escola para conter a migração dos povos do campo para a cidade com o lema “manter o homem do campo no campo”, como afirma (Ribeiro, 2012, p. 293) a escola rural era,


destinada a oferecer conhecimentos elementares de leitura, escrita e operações matemáticas simples, mesmo a escola rural multisseriada não tem cumprido esta função, o que explica as altas taxas de analfabetismo e os baixos índices de escolarização nas áreas rurais.


Como reforçam (Antônio & Lucini, 2007) o processo de urbanização crescente e o movimento de correntes migratórias, fizeram que a educação chamasse a atenção de setores não ligados à educação. O movimento conhecido como “ruralismo pedagógico” tinha como objetivo a “fixação do homem no campo” (Leite, 2002). Sua intenção não era melhorar a vida das pessoas nas comunidades, mas de incidir no desenvolvimento social da cidade. No bojo das intenções desenvolvimentistas, a migração do campo para a cidade afetava diretamente a qualidade de vida urbana, já que os recursos sociais básicos não dariam total assistência à camada periférica da população desprovida de condição financeira suficiente, para acessar a saúde, educação e moradia de qualidade, onde os camponeses se instalavam.

No campo, a educação escolar, sempre foi colocada em segundo plano, o que até hoje tem apresentado sequelas quase que irreparáveis. Como lembra (Reis, 2004, p. 30):


Basta uma rápida observação para detectar que, no oferecimento da educação para a cidade, sempre se buscaram melhores condições de ensino e aprendizagem (melhores instalações, melhores salários, mais recursos, etc.), enquanto que no campo, muitas vezes, a escola funcionava e funciona em muitos casos na própria casa dos professores, com condições mínimas de elementos que favoreçam a aprendizagem (má acomodação, limitação de espaço, falta de livros e materiais didáticos, livros didáticos voltados para a realidade urbana, etc.).

As classes menos favorecidas são as maiores vítimas da exclusão e marginalização social. Muitas crianças e adolescentes precisam deixar a escola para ajudar nas lavouras, prejudicando assim o seu desempenho escolar. “São as crianças filhas de trabalhadores, subempregados, as que enfrentam mais e maiores dificuldades para ingressar na escola, de se manterem lá por mais tempo”. (Arroyo, 2001, p. 130), devido a diversos fatores, dentre os quais, cuidar dos afazeres domésticos e dos irmãos menores, enquanto os pais estão executando os trabalhos braçais indispensáveis a sobrevivência do grupo familiar.

Na visão dos grandes proprietários de terra, o progresso da educação formal, aquela que desperta o senso crítico, certamente, afeta seus projetos, uma vez que eles trabalham na perspectiva de lucro intensivo via trabalho explorado. Diante desse pressuposto o modelo de Educação do Campo que garante educação de qualidade para os campesinos é incompatível com o modelo de agricultura capitalista que vigora no Brasil, de arquétipo latifundiário e de agronegócio, que acaba por excluir os camponeses, visto que elimina também a reforma agrária e a agricultura.

As condições econômicas desfavoráveis levam os camponeses ao arrendamento de suas terras por preços irrisórios, deixando suas propriedades sob a falsa ideia de que na cidade sua vida vai ser melhor. É no contexto desses desafios que constituem a vida no campo, das investidas pesadas do grande capital, que a Educação do Campo se assume como um “conjunto de princípios que devem orientar as práticas educativas que promovem – com a perspectiva de oportunizar a ligação da formação escolar à formação para uma postura na vida, na comunidade” (Molina & Sá, 2012, p. 329). É uma educação comprometida com os sujeitos, suas lutas e suas histórias.

É preciso, desse modo, não perder de vista que, a Educação que chegou até então aos povos do campo, se voltou muito mais aos interesses dos latifundiários e superar essa lógica, exigirá muito dos professores que estão à frente das do processo escolar.

A elucidação destas questões é fundamental para aqueles que militam em defesa da igualdade de direitos e entendem a Educação do Campo de qualidade como um deles.

A importância do professor e da escola na comunidade


A escola é, muitas vezes, o único espaço social e dinâmico de extensão dos conhecimentos adquiridos no berço familiar de que a comunidade dispõe. Por isso, seu currículo deve observar o contexto em que a escola se encontra, de forma a garantir que as especificidades do educando desses espaços sejam respeitadas, com o intuito de ampliar o conhecimento das crianças sobre o mundo, promovendo o conhecimento sobre o funcionamento da sociedade em suas contradições, na concretização de “uma prática educativa que efetivamente fortaleça os camponeses para as lutas principais”. (Molina & Sá, 2012, p. 326) no contexto social em que vivem.

Certamente uma escola dentro de uma comunidade, além de um ambiente pedagógico também serve de espaço para outros eventos como reuniões, vacinação das crianças, missas, associações, festas, entre outros acontecimentos oriundos da cultura local, como é o caso da escola da comunidade onde realizamos o estágio. Uma vez inserido nesse espaço, ao educador, seria interessante a disposição para se tornar um líder na comunidade, pois de acordo com a convivência, acaba reconhecendo as famílias, tem informações sobre os problemas da comunidade, com o passar do tempo é possível que através dos alunos e de suas experiências, ele conheça mais e melhor a comunidade como um todo, talvez até mais do que qualquer outro morador.

Nos espaços que desenvolvemos esta pesquisa, a impressão que se tem é que os pais são mais comprometidos com a educação de seus filhos, uma vez que eles participam das reuniões e se comprometem a ajudar o professor caso haja alguma atividade que favoreça o desenvolvimento da escola, como realizar uma limpeza, ajudar a consertar o telhado, entre outras tarefas que o município deixa de garantir. E quando a criança falta às aulas, sempre há justificativas, e mesmo, na maioria das vezes, não tendo escolaridade suficiente para ajudá-los nas tarefas escolares, eles estimulam os filhos a continuarem trilhando caminhos para aprender a ler e escrever. Alguns os incentivam a estudar e carregam em seus discursos palavras que instigam os filhos a buscar uma educação formal que os permita sair da condição de oprimidos.

Em conversa com os pais, as pessoas mais idosas da comunidade, apontaram, através de suas reminiscências, situações que elucidam suas vivências com a escola. Durante o processo de educação formal, as escolhas que tiveram que fazer nesse período, o qual, na maioria dos casos, não conciliava educação e trabalho, pois a educação formativa provavelmente não era instituída como direito universal e não alcançava a todos. Segundo eles, escola, especialmente para o povo da ‘roça’, era “coisa de gente rica” ou de quem tinha boa vontade e resolvia ajudar os outros a assinar pelo menos o nome. Esse delineamento dos acontecimentos através da memória é importante para fomentar as discussões educativas que descendem da comunidade, sua formação e da sua participação no atual processo de escolarização de seus filhos e netos.

A memória é um dos sentidos mais utilizados pelo ser humano, dela provêm todos os acontecimentos que perpassam os outros sentidos. Estes acontecimentos são chamados de recordações, e assim, recordar é voltar ao passado, buscar nas entrelinhas episódios ocorridos anteriormente para trazê-los ao contemporâneo. "O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios". (Le Goff, 1990, p. 366). A memória é um dos locais que guarda relíquias inestimáveis.

É possível identificar, de acordo com as memórias dos comunitários, que uma grande maioria dos pais não teve oportunidade de estudar, e aqueles que tiveram, não deram, na época, tanta importância, como hoje prezam que seus filhos se dediquem aos estudos.

No diálogo com alguns membros familiares foram identificadas frases que chamaram nossa atenção, como as seguintes: “não estudei porque naquele tempo a escola era longe e eu não me interessava, hoje em dia, as coisas estão mais fáceis, naquela época tinha que trabalhar para ajudar meu pai a criar a família”. “Estudo era coisa para rico, não tínhamos tempo para estudar”. Existem outras falas bastante comuns e que também cresci ouvindo uma delas é a que dizia: “não tenho inveja de nada, mas a coisa que tenho mais inveja no mundo é de alguém que sabe ler. A pessoa que não sabe ler é como um cego”.

Essas expressões, sobretudo das pessoas mais velhas, servem de abastecimento para nossos estímulos, para nós, que fazemos parte desse contexto, aproveitarmos os ensejos e tentar modificar a situação atual, procurando deixar legados para as próximas gerações continuarem na busca de melhorias, na luta para garantir aos filhos, os direitos negados àqueles que, hoje veem na educação a mudança que não conseguiram alcançar.

É no contexto dessas questões que se situa o trabalho do professor nas escolas do campo. Nossa experiência no PIBID e no Estágio, mostrou que é uma tarefa provocadora, principalmente quando se observa as condições de trabalho que incidem diretamente no ‘estímulo’ do professor e, logicamente, no processo de ensino e aprendizagem. Contudo, urge na educação a necessidade fundamental de uma consciência política bem definida, próxima à comunidade, colada com suas lutas. “Esta constatação da politicidade da educação, traz para o educador a necessidade de perguntar-se a quem está servindo com a educação que pratica (Barreto, 1998, p. 62)”. Já (Mennucci, 2006, p. 152) lembra que “as zonas rurais, colocadas fora do círculo de ressonância geral, longe do bulício das cidades, ignaras de sua força e de suas próprias necessidades, continuam relegadas ao desamparo e ao esquecimento”. Daí a importância de uma formação qualificada e de profissionais que se identificam com o que fazem. Exige também desse educador uma postura política corajosa, requerendo no processo de reflexão-ação uma autoavaliação constante e modificadora da prática.

A docência no campo torna-se uma tarefa árdua e ao mesmo tempo gratificante por percebermos que sua ação não é restrita ao espaço da sala de aula nem tampouco à escola. Nos nossos espaços de estágio e do PIBID, vimos que são exigidas muitas competências do professor, que vão além do domínio teórico sobre os conteúdos curriculares. Requerem-se outras, habilidades que competem atividades de liderança e a capacidade indispensável de lidar com as diferenças culturais que demarcam o campo, as escolas, os sujeitos. Essas premissas vão além da aprendizagem de técnicas ou do cumprimento de uma função, elas exigem clareza do papel do professor no projeto da Educação do Campo, o que, ao nosso olhar, é um desafio dos grandes, para os cursos de formação de professores no atual contexto.


Considerações finais


A concretização da Educação do Campo tomando como referência os avanços legais, ainda é um desafio. A experiência vivida, nas duas escolas acompanhadas, em decorrência do PIBID e do estágio faz-nos afirmar que as mudanças anunciadas no conjunto legal conquistado, não alcançou ainda o chão das escolas do campo nessa parte do Brasil.

Constatamos que a educação do campo defendida pelos seus povos, sobretudo os que estão organizados em movimentos, pretende-se uma educação voltada para emancipação humana e, portanto, libertadora, que leva seus sujeitos a pensar criticamente sobre sua posição diante das situações que incubem um olhar mais profundo e que se concretizem em ações efetivas de transformação da realidade. Isso exige, clareza teórica de quem conduz os processos escolares no campo e ainda é um horizonte a se alcançar.

No processo de formação de professores, os estágios e os programas de iniciação à docência mostraram-se “tempos” relevantes por propiciar aos licenciandos, um maior conhecimento da realidade que abarca a organização do trabalho pedagógico no processo educativo do campo. Estágio e PIBID são experiências distintas, complementares e uma pode qualificar a outra.

A perspectiva mais longa do PIBID e a forma de inserção na docência que essa experiência provoca, ensina ao licenciando algo importante que o tempo mais ‘curto’ do estágio não permite – adentrar mais profundamente no ‘terreno’ da docência olhando-a por vias mais críticas numa perspectiva muito mais voltadas a compreendê-la, do que julgá-la.

A experiência do estágio na escola da Serra de Itiúba foi diferenciada, por conta de nossa inserção na comunidade, permitiu-nos enxergar além da escola. Não nos escapa a conclusão de que, quanto mais o educador insere-se na comunidade, mais o trabalho da escola qualifica-se e se amplia.

Não ignoramos o quanto foi importante nas duas experiências afirmar que os povos do campo lutam para vencer os desafios que historicamente os marginalizaram, tendo a vida alimentada por sonhos que buscam concretizar via organização social. Ao mesmo tempo, nas comunidades onde investigamos, vimos que esse processo organizativo ainda é frágil e talvez, por essa razão, as escolas enfrentem muitos obstáculos na superação das dificuldades que aqui narramos.

Compreendemos que a relação escola-comunidade é fundamental para situar e qualificar a escola no espaço-tempo que ela ocupa, fazendo-a refletir permanentemente sobre seu papel social, dando-lhe maior sentido. Esta parceria qualifica a escola e atua formativamente junto à comunidade, implicando-a no processo educativo escolar como extensão do processo formativo familiar.

O contexto escolar das multisséries do campo, que foram lócus de nossa pesquisa, o itinerário difícil dos discentes, a persistência dos pais, mães e das crianças, para acessarem a escola, enchem-nos de motivações e ampliam nossas esperanças diante do fato de que sabemos que a luta que vimos travando em defesa da Educação do Campo, seja dentro da universidade e ou aliadas aos movimentos sociais, não é uma luta em vão. É uma luta necessária e que exige coragem permanente e compromisso ininterrupto em difundir o que as nossas privilegiadas experiências acadêmicas proporcionam-nos, de modo que, o campo e a educação dos seus povos sejam ‘objeto’ de interesse social e coletivo, tendo em vista o reconhecimento da educação como direito de todos e, os sujeitos do campo incluídos nesse conjunto.


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Thiollent, M. (1992). Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez. Autores associados.



i Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência.

ii Processo em que se fecha a escola e transfere os alunos para uma escola maior em outra comunidade ou na cidade.

iii Poeta (com poesias publicadas no site http://www.filarmonica4dejaneiro.blogspot.com.br, dentre outras, "Os burrinhos da Serra") Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Redação/Funcionário da Prefeitura Municipal de Itiúba/SEDUC.




































Recebido em: 13/07/2016

Aprovado em: 28/08/2016

Publicado em: 13/12/2016




Como citar este artigo / How to cite this article / Como citar este artículo:


APA:

Silva, R. P., & Sena, I. P. F. (2016). Educação do Campo, experiência e formação docente numa perspectiva política emancipadora. Rev. Bras. Educ. Camp., 1(2), 231-254.


ABNT:

SILVA, R. P., & SENA, I. P. F. Educação do Campo, experiência e formação docente numa perspectiva política emancipadora. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 1, n. 2, p. 231-254, 2016.



Rev. Bras. Educ. Camp.

Tocantinópolis

v. 1

n. 2

p. 231-254

jul./dez.

2016

ISSN: 2525-4863


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