Revista Brasileira de Educação do Campo
ARTIGO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2017v2n2p708
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 708-727
jul./dez.
2017
ISSN: 2525-4863
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O trabalho como princípio educativo no MST: um estudo
de caso do Assentamento Padre Réus
Beliza Stasinski Lopes
1
, Cheron Zanini Moretti
2
1
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Programa de Pós-Graduação em Educação. Avenida
Independência, 2293. Universitário, Santa Cruz do Sul - RS. Brasil. beliza6@yahoo.com.br.
2
Universidade de
Santa Cruz do Sul - UNISC
RESUMO. A pesquisa realizada no Assentamento Padre Réus,
no município de Encruzilhada do Sul, interior do Rio Grande do
Sul, traz o problema do trabalho como princípio educativo,
através da reconstituição da trajetória de 37 famílias assentadas
no seu percurso da zona urbana de Sapiranga, onde trabalhavam
na indústria calçadista, até o lote conquistado na reforma agrária
através de seu processo de luta social. Nessa trajetória foi
apresentado o “tempo de acampamento” como um momento de
preparação para o trabalho, onde se valorizam o trabalho
camponês, o cultivo da terra e a produção de alimentos. A
metodologia da pesquisa partiu de seis entrevistas com os(as)
trabalhadores(as) que narraram suas experiências individuais e
coletivas. O texto foi construído através da análise de material
coletado, com a técnica de análise de conteúdo. Pode-se concluir
que “o trabalho” foi central na mobilização dessas famílias até o
campo, e que “o trabalho” no lote tem sido um princípio
educativo para essas famílias, particularmente, a partir das
escolhas que fazem no processo de produção.
Palavras-chave: Trabalho, Educação, Trajetória, Campo e
Produção.
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The work as educational principle in the MST: a case
study Padre Réus Settlement
ABSTRACT. The research carried out at the Padre Réus
settlement in the municipality of Encruzilhada do Sul, in the Rio
Grande do Sul, presents the problem of work as an educational
principle, through the reconstitution of the trajectory of 37
families settled in their urban area of Sapiranga, where worked
in the footwear industry, up to the land won in agrarian reform
through its process of social struggle. In this trajectory, "camp
time" was presented, as a moment of preparation for work,
where peasant work, land cultivation and food production are
valued. The methodology of the research was based on six
interviews with the workers who narrated their individual and
collective experiences; the text was constructed through the
analysis of the collected material, with the technique of content
analysis. It can be concluded that "work" was central to the
mobilization of these families to the countryside, and that
"work" in the lot has been an educational principle for these
families, particularly from the choices they make in the
production process.
Keywords: Work, Education, Trajectory, Countryside and
Production.
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El trabajo como principio educativo en el MST: un estudio
de caso del Asentamiento Padre Réus
RESUMEN. La investigación realizada en el Asentamiento
Padre Réus, en el municipio de Encruzilhada do Sul, interior de
Rio Grande do Sul, trae el problema del trabajo como principio
educativo, a través de la reconstitución de la trayectoria de 37
familias asentadas en su recorrido de la zona urbana de
Sapiranga, donde Trabajaban en la industria del calzado, hasta el
lote conquistado en la reforma agraria a través de su proceso de
lucha social. En esa trayectoria se presentó el "tiempo de
campamento" como un momento de preparación para el trabajo,
donde se valora el trabajo campesino, el cultivo de la tierra y la
producción de alimentos. La metodología de la investigación
partió de seis entrevistas con los trabajadores que narraron sus
experiencias individuales y colectivas, el texto fue construido a
través del análisis del material recolectado, con la técnica de
análisis de contenido. Se puede concluir que "el trabajo" fue
central en la movilización de esas familias hasta el campo, y que
"el trabajo" en el lote ha sido un principio educativo para esas
familias, particularmente, a partir de las elecciones que hacen en
el proceso de producción.
Palabras clave: Trabajo, Educación, Trayectoria, Campo y
Producción.
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Introdução
Este artigo trata do tema da educação
informal
i
no Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), a partir de um
estudo de caso da trajetória dos/das
assentados/as no Assentamento Padre
Réus, no município de Encruzilhada do
Sul, no Rio Grande do Sul, que busca
compreender, através de suas narrativas, a
experiência que tiveram, no “tempo do
acampamento” e no assentamento, bem
como as vivências que permitiram a esse
conjunto de trabalhadores voltar ao campo.
É importante salientar que a
educação é compreendida, neste trabalho,
como a vivência que esses trabalhadores
tiveram no interior do movimento social.
No seu processo de aprendizado de viver
no campo, houve um período de transição,
que passou, necessariamente pela
organização nas fileiras do MST. Nesse
sentido, é importante escutar as falas, que
rememoram tal experiência.
Quer-se saber se o trabalho, nessa
trajetória, figura como um princípio
educativo, o qual, no caso do MST,
permite aos/às trabalhadores(as) saírem de
zonas urbanas e voltarem ao campo, lugar
em que muitos nasceram.
Apoiado na ideia de Ribeiro (2009,
p. 49) entende-se que:
1) O trabalho se institui como
princípio educativo, considerando a
educação em sua dupla dimensão
de adaptação e de emancipação por
ser práxis que comporta, como um de
seus fundamentos integração entre
ciência, cultura e trabalho. 2) O
trabalho, social do capitalismo, ao se
instituir como trabalho alienado,
reforça o sentido de adaptação e
impõe limites à dimensão
emancipatória da educação (2009, p.
49).
A descoberta do caminho que esses
trabalhadores/as percorreram permite
auferir alguns aprendizados, sendo na
constituição de grupos no interior do
acampamento, seja no assentamento, no
momento de pensar um trabalho de cultivo
combinado ou coletivo. O ambiente de
solidariedade que o movimento social
propicia é considerado um fator
preponderante que constitui a prática social
dos/das trabalhadores/as.
O objetivo é aprender quais são as
novas práticas sociais, baseadas em um
processo de educação que se gesta no
interior do movimento, que possibilitam
pensar uma pedagogia da luta do
movimento social.
Para isso, foi realizada uma descrição
baseada em entrevistas que abordaram a
condição social das famílias do
assentamento Padre Réus antes, durante, e
depois de assentadas.
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Metodologia
Este trabalho foi realizado por meio
de seis entrevistas, na tentativa de buscar
memórias, através das narrativas que
esses/as trabalhadores/as assentados/as
fazem da sua prática política e social,
remetendo a sua trajetória. A partir das
suas falas e da apreensão de suas
experiências, constrói-se a narrativa do
trabalho.
Na elaboração dos dados, foram
aplicadas seis entrevistas semiestruturadas
entre os assentados. Os nomes estipulados
são fictícios e a escolha dos/das
entrevistados/as ocorreu através de uma
cadeia de informações, a qual começou
com o coordenador do Assentamento,
Mário, que indicou o diálogo com os
demais assentados, o que contribuiu para a
escolha dos demais entrevistados/as. No
total das seis entrevistas, tem-se o
depoimento de três mulheres e três
homens. Vera foi a segunda entrevistada.
Ela é uma mulher de 33 anos, possui cinco
filhos e mora com a família no
assentamento. A terceira entrevistada se
chama Júlia, tem 28 anos, dois filhos e não
conhecia o trabalho no campo antes de
obter o lote. O quarto entrevistado se
chama João, pertenceu à frente de massas
quando esteve acampado, trabalhou cerca
de quatro anos aproximando novos
integrantes para o MST. Também se
entrevistou o Paulo, um senhor de 65 anos
e Alcina, de aproximadamente 59 anos.
Os dados coletados foram
organizados para uma melhor apreensão
tanto dos aspectos gerais, como a história
das famílias e do assentamento rural,
quanto dos individuais, como as suas
percepções sobre as experiências
vivenciadas no movimento da luta pela
terra. A partir da análise do material,
pretendeu-se aprofundar o conhecimento
sobre o objeto de pesquisa.
Para realizar uma descrição da
situação das famílias e sua condição
socioeconômica, foi utilizado um relatório
elaborado pela EMATER-RS, em que foi
realizada a aplicação de questionário aos/às
trabalhadores/as e sistematizados os dados
que foram produzidos durante o ano de
2003.
Essa pesquisa está baseada em dois
métodos desenvolvidos pela pesquisa
social, a análise de conteúdo das
entrevistas, que oferece qualidade aos
trechos que dialogam com nosso problema,
e o estudo de trajetórias de vida, a partir de
narrativas. As entrevistas foram realizadas
ao longo de 2011.
O início da trajetória: a adesão ao MST
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Os/as trabalhadores/as estavam no
assentamento quando foram realizadas as
entrevistas. Nesse sentido, foi realizado um
trabalho de memória, para que eles
pudessem reconstruir o passado, trazendo
suas lembranças mais significativas em
relação ao trabalho, verificando as escolhas
tomadas em optar pela organização no
movimento social e também a vivência no
movimento, até chegarem à situação atual
no assentamento. Eles/as falam de um
tempo presente que lhes possibilita a
comparação com a vida antes do
movimento social e o aprendizado que
obtiveram neste, porque, como relatam, a
luta não foi em vão. E, o futuro que
projetavam com esperança se realizou, mas
não sem luta social.
No começo foi difícil porque a gente
era acostumada a ser assalariado por
mês, cada empregado a cada
quinzena ganhava o seu salário,
depois, quando viemos para cá, levou
em média, que eu me lembro, um ano
e meio mais ou menos para sair o
primeiro recurso. Claro que para a
alimentação, né, sempre tinha alguma
coisa, mas foi sofrido no começo,
menina do céu, ainda mais nós que
viemos do acampamento e não tinha
nada. Era um gibão para cozinhar
debaixo de uma árvore e um barraco.
Dalí começaram a vim um tempo
para começar a fazer galpão (...). Eu
pensava na minha ideia de voltar
embora, eu queria voltar (Vera, 32
anos).
Segundo a EMATER (2003), as
trinta e sete famílias do assentamento
Padre Réus, ao chegar ao município de
Encruzilhada do Sul, no dia 15 de
dezembro de mil novecentos e noventa e
oito, receberam do Instituto de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
uma propriedade denominada pelos
assentados de “lote” com vinte e cinco
hectares, para se estabelecerem na terra. A
fazenda desapropriada com fins à Reforma
Agrária tinha 1.214,5 hectares, na região
denominada Foles, no município de
Encruzilhada do Sul, próximo à divisa de
Amaral Ferrador, no interior do Rio
Grande do Sul.
As famílias contempladas com as
terras são provenientes de no mínimo nove
municípios do: Tenente Portela, Erexim,
Redentora, Santo Ângelo, Três Passos,
Erval Seco, Passo Fundo, Horizontina e
Camaquã. A maioria delas residia no
município de Sapiranga antes de aderirem
ao MST e ingressarem na luta pela terra.
Atuavam basicamente como
trabalhadores/as do setor calçadista, mas
também se constatou que, entre os homens,
havia profissões no setor da construção
civil e, entre as mulheres, de empregada
doméstica. Também, em sua maioria, eram
filhos e filhas de camponeses que
abandonaram a terra natal para buscar
oportunidades de emprego em regiões
industrializadas.
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Estas famílias tiveram o primeiro
contato com o MST através do diálogo
com a equipe responsável por recrutar
novos adeptos às fileiras do movimento
com vistas à formação de novos
acampamentos, e que formavam, portanto,
a Frente de Massas.,. Alguns também
conheceram a proposta através de parentes,
como pais e tios, ou conhecidos, ou, no
caso da maioria que veio de Sapiranga, da
relação intermediada pelo Sindicato dos
Sapateiros.
Foram acampar no início do ano de
mil novecentos e noventa e oito, na
formação de um acampamento que ocorreu
no município de Piratini, e muitos
participaram neste município de sua
primeira ocupação de terras, uma ação
direta para denunciar a existência de
latifúndio. Permaneceram alguns meses em
Piratini, depois saíram em marcha para
Porto Alegre e montaram acampamento na
cidade de Viamão. O acampamento era
composto por algumas centenas de
famílias, e sua organização interna era
realizada através de cleos compostos,
cada um, por vinte e cinco famílias, as
quais se reuniam através de proximidades
como região, parentesco e afinidades e
também de organização por setores
educação, saúde e segurança.
As famílias do assentamento Padre
Réus faziam parte de, pelo menos, dois
núcleos, que foram sorteados pela
coordenação do MST para ocupar as terras
desapropriadas na Fazenda Santa Rita, em
Encruzilhada do Sul, entre aqueles que
estavam mais de seis meses acampados,
regra de tempo estabelecida pelo próprio
movimento como critério para receber as
terras. Até o dia quinze de dezembro de
mil novecentos e noventa e oito, quando
receberam as terras em Encruzilhada do
Sul, estavam acampados pelo menos
dez meses.
A estrutura do acampamento: uma
forma de educação política
Em vinte e cinco anos de história do
MST-RS (ou aproximadamente trinta anos
se toma com marco histórico o
Acampamento em Encruzilhada Natalino),
pode-se dizer que o “acampamento” tem se
constituído como uma das principais
formas de resistência e mecanismo de luta
pela Reforma Agrária no Brasil, desde o
ângulo da organização popular.
O acampamento constitui-se como
um espaço importante na mobilização
política e também na dimensão educativa
dos acampados, haja vista as tarefas e a
discussão coletiva provenientes desse
espaço de auto-organização. A sua
existência é um fator motivador de um
conjunto de pessoas à adesão ao
movimento social, um meio de
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socialização de vivências, organizado
através de uma pequena vila ou até, de
acordo com a extensão de cada um, de uma
cidade de barracos de lonas pretas, no qual
é instituído, através de uma estrutura
organizacional específica, um conjunto de
regras, as quais devem ser seguidas.
Segundo Shimidt (1992, p. 638).
O acampamento não pode ser visto,
no entanto, apenas como uma forma
de luta: o novo espaço que se
organiza é também um espaço de
sociabilidades, no qual se estabelece
uma complexa rede de interações que
serve como suporte para a construção
de novas definições acerca da
realidade social ... para as famílias
dos agricultores, a estruturação desse
território inaugura o “tempo de luta”.
Ao ingressar em suas fronteiras, os
“colonos” identificam-se
publicamente enquanto uma
coletividade, que compartilha
aspirações e direitos comuns.
O acampamento, pensado como parte
do processo organizativo do MST, é um
espaço privilegiado da educação informal
produzida no movimento e também
desenvolve um importante papel na
inserção de novos integrantes ou de novas
famílias na luta social pela Reforma
Agrária. Além do mais, adquire um papel
central na sustentação do movimento
social, no momento em que, através dele e
das atividades desempenhadas pelas
instâncias de sua organização interna, se
torna possível à renovação da base social
do MST e da sua direção política.
A vivência no acampamento
representa um período transitório na vida
de cada trabalhador/a, determinado pela
espera da desapropriação de novas terras
pelo INCRA, instituto governamental
responsável pela política de reforma
agrária.
O papel atribuído a cada “Sem terra”
no interior do movimento pode estar
relacionado com o tempo que este
permanecerá no acampamento, tendo em
vista que aqueles que ocupam cargos de
direção política no/do acampamento,
muitas vezes, passam a sua vez na lista de
espera do lote, para continuarem na
organização de novos acampamentos. Cabe
ressaltar que alguns casos de ocupações de
terras, principalmente os das famílias
precursoras nas “ocupações de terra”,
chegaram a permanecer até dez anos sobre
a terra sem a desapropriação, e outros
casos, seis ou quatro anos, tempo que
configura um longo período de espera para
a regularização da propriedade da terra.
A caracterização de um
acampamento passa pela análise de uma
série de elementos culturais, organizativos
e educativos, que potencializam a
transferência e a criação de valores e
contribuem para a inserção de novos
integrantes ao MST, ou simplesmente para
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a luta pela terra. Com isso, um conjunto de
símbolos foram construídos no decorrer
dos anos a bandeira, o hino, o
conhecimento da história da luta pela terra
no Brasil, a ênfase em valores como a
solidariedade e a justiça social cujos
valores são transferidos através da
“mística”
ii
, que se apresenta em espaços
formais, como teatro, arte, poesia e
músicas, ou espaços não formais, como
marchas e mobilizações. A mística tem
uma dimensão educativa que impulsiona
processos de conscientização política e o
engajamento.
A construção de um ambiente que
possibilita o fomento a determinados
valores sociais é fundamental para a
construção do discurso da chegada a terra
como a conquista de um direito que
provém do resultado da sua luta social e
organização política e não como um direito
concedido pelos governos ou pelas elites.
Entre os muitos aspectos da relação de
poder contida neste discurso está o da
dignidade humana e social, resgatada,
construída e recorrentemente lembrada a
cada lutador social, como meio de
empoderamento social. Segundo Gohn
(1997, p. 53), quanto mais a massa se
apega aos símbolos, aos deres, e à
organização, mais ela luta, mais se
mobiliza e mais se organiza”.
Outra característica importante da
organização interna do acampamento está
relacionada à forma de construção do
poder de decisão sobre as ações do
movimento. Segundo os dirigentes, o poder
de decisão sobre as ações empreendidas
pelos integrantes do movimento deve vir
das instâncias da sua organização, e não de
fora da organização, como partidos
políticos ou entidades aliadas, e esse seria
um aspecto para denotar o sentido
autônomo do movimento social frente a
outras organizações políticas e instituições
do Estado.
A partir de Oliveira (2012), em
pesquisa realizada no âmbito de
acampamento de sem terras, pode-se
identificar o seguinte organograma
político-organizativo:
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Fonte: Adaptação de organograma de Oliveira (2012), pelas autoras.
Essa estrutura político-organizativa
pode ser encontrada nos acampamentos
construídos atualmente pelo MST e pode
ser considerada parte do acúmulo das
experiências em organização resultante de,
pelo menos, três décadas de organização de
acampamentos de “Sem terra”.
O núcleo de base está na fundação
desta estrutura. E é o espaço em que todos
os integrantes do acampamento estão
incluídos, participando do debate dos
assuntos da vida interna do acampamento e
também dos debates e decisões sobre as
ações que serão empreendidas. Cada
núcleo se constitui de vinte e cinco
famílias, aproximadamente. A partir de
cada um deles, são eleitos um ou dois
integrantes que irão compor a
coordenação-geral do acampamento.
A coordenação-geral do
acampamento se reúne sempre que
demandada para planejamento de ações, de
mobilização dos acampados, de decisões
sobre as ações de confronto. Além disso,
tem por objetivo, em alguns casos, trazer a
posição dos acampados sobre temas
colocados para a discussão; não se reúne,
no entanto, com a mesma intensidade e a
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mesma frequência que a Brigada de
Organicidade. Esta se caracteriza por ser
composta por um conjunto de
acampados/as, reconhecidos/as como
“militantes”, o que significa uma forma de
distinção social em relação aos demais,
uma vez que possui suas particularidades,
principalmente no que tange a aspectos
políticos. A sua forma de eleição é
diferenciada da coordenação-geral, pois os
seus integrantes são convocados por
aqueles/as que fazem parte da Brigada
de Organicidade, sendo referendados em
reuniões das demais instâncias
organizativas.
As setoriais são semelhantes aos
grupos de trabalho, pois são responsáveis
pelas atividades da vida prática do
acampamento. O setor de educação é
responsável pelo ensino das crianças do
acampamento, e, em algumas vezes, pela
alfabetização de jovens e adultos; o setor
de saúde organiza a farmácia do
acampamento, (fundamental no trabalho de
assistência aos/às acampados/as); o setor
de segurança, por sua vez, é muito
valorizado devido às situações adversas de
confronto em que os/as assentados/as estão
colocados; ao setor de infraestrutura se
colocam as tarefas relativas à construção
dos barracos de lona preta e às estruturas
básicasa serem construídas.
A Frente de Massas tem uma
importante função devido ao papel
desenvolvido por ela na aproximação e no
recrutamento de novos integrantes para o
movimento e, por consequência, na
renovação de sua base social. Os/As
acampados/as que estão na Frente de
Massas desenvolvem sua tarefa fora dos
limites do acampamento e empreendem um
processo de convencimento de famílias que
se encontram em uma situação de vida
precária para vir ao acampamento
engrossar as fileiras do MST e ingressar
na luta pela terra.
João, por exemplo, desenvolve esse
significado e importância em seu relato:
Eu trabalhava na frente de massa,
convidando para acampar, e eu
abrangia de El Dourado do Sul até
Camaquã, viajava toda essa região aí,
na época, né, surgiu esse lote aqui,
eu tinha direito. Eu digo aguenta isso
e fica, fiquei quatro anos (no
acampamento) e não me arrependo,
feliz da vida que, se tivesse ficado
quatro anos trabalhando não tinha
conseguido 24 hectares de terra que
nem eu tenho. Então eu não posso me
queixar. Muita gente e graças a Deus
com meu trabalho eu consegui
acampar, assentar muita gente, no
meu período foram assentadas mais
de 1.300 famílias. Eu vou te dizer
que ajudei a assentar essas famílias
nas fazendas improdutivas. Então
isso para gente é um orgulho, né,
hoje eu encontro os meus
companheiros fora da região , o
pessoal em Pelotas, então é muito
gratificante o pessoal vim e te
agradecer, hoje, estão assentados, não
graças a eu, porque eu não dou terra
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para ninguém, né, mas eu ajudei eles
a chegar em cima do lote, né, que é o
sonho de cada um, tem uns que
dizem que ganharam o lote, o lote
não se ganha o lote se conquista com
o maior sacrifício (João, 50 anos).
A experiência do “tempo do
acampamento”
A adesão ao MST traz, num primeiro
instante, a vivência do acampamento, e
este período é caracterizado pelos/as
trabalhadores/as como uma experiência
particular, denominado por Shimidt (1992)
como “o tempo do acampamento”, o qual
também pode ser definido como uma etapa
de mobilização permanente do processo
que envolve a conquista do lote, [e]
constitui-se basicamente no tempo de
vivências coletivas que caracteriza o
processo de formação da identidade “Sem
Terra”.
A relação entre as trajetórias sociais
não é mecânica, na medida em que
diversas variáveis interferem na
forma como diferentes vivências são
significativas. As experiências
históricas não o sempre atualizadas
da mesma forma, passando pela
mediação do contexto que essendo
vivido (Shimidt, 1992, p. 163).
Trazidas sob a forma de memórias,
as referências dos camponeses do
assentamento Padre Réus são ligeiramente
identificadas como difíceis, ou seja, como
um período de enfrentamento de
dificuldades, no qual “se aprende a dar
valor às coisas” essas coisas entendidas
como elementares à sobrevivência, como
um lugar para dormir ou ter do que comer.
Caracterizam-se por um período em que,
segundo a Júlia (28 anos), não se comia
carne e que os grãos de feijão eram
contados para cada família.
Os/As assentados/as passaram pelo
menos por dois momentos de
acampamento: o primeiro foi o ponto de
encontro e formação do assentamento no
município de Piratini, que, de acordo com
o Paulo (65 anos), eles contribuíram na
ação de ocupação da Fazenda Rubira, a
qual, anos depois, foi transformada em um
assentamento rural; o segundo momento,
refere-se a quando partiram em marcha até
Viamão, onde se estabeleceram e
permaneceram até a conquista da terra.
é uma escola, por causa do
pessoal, ia muito pessoal de vocês lá,
da faculdade, muitas pessoas de
outros países também, para aprender,
ver como é que é a situação, não é
muito fácil, que tem que dizer que
vou acampar e ficar, naquela época
tinha que resolver o problema com a
polícia, porque sempre foi assim,
que agora está melhor, porque antes a
polícia chegava e batia, sabe, hoje
tem negociação, tem o Marcon, esse
deputado, sabe, eles chegam na
frente, sabe, várias vezes a polícia
chegou e nós ia apanhá, eles chegam
na frente, negociamos na hora e
mandam a polícia parar. Levemos
dezesseis tiros uma vez lá em
Piratini. Teve ocupação da fazenda
Rubira, que hoje é assentamento. No
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mais é bom, é bem divertido, no
modo assim, tudo se bem, tem
escola, tem comida, não tem
carne. Tem um servicinho, tem que
trabalha, eu não posso me queixar
(Paulo, 65 anos).
O acampamento foi o ponto de
encontro de diferentes pessoas, com
origens e faixas etárias diversificadas.
Mário, o coordenador do assentamento e
da regional do MST, lembra que do
município de Sapiranga partiram seis
ônibus para o acampamento em Piratini.
Naquele tempo, fazia parte do Sindicato
dos Sapateiros, em cuja sede local teve o
primeiro contato com os membros do
MST. Eles estavam em fase de
recrutamento para a formação de um novo
acampamento e procuravam um canal de
diálogo com os moradores da periferia da
cidade para propor a adesão ao movimento.
O entrevistado fala ainda que já exercia
atividades políticas quando estava
trabalhando na indústria calçadista, em
Sapiranga, e que foi demitido após
organizar uma ocupação para moradia
numa área verde pertencente à prefeitura
municipal. Diz que, na época, foi
estimulado a tomar a decisão de acampar
pela telenovela “Rei do Gado” (1997), de
Benetido Ruy Barbosa, que passava na
Rede Globo.
Em geral, as famílias que
inicialmente foram assentadas no Padre
Réus, conheceram-se no período do
acampamento. Mário conta que o
acampamento era organizado através de
núcleos que eram formados a partir da
organização de vinte e cinco famílias. O
núcleo de que ele participava foi sorteado
pelo MST para o assentamento em
Encruzilhada do Sul.
Segundo Mário, no início, todos
os/as assentados/as sentem-se estranhos,
mas isso até começarem as reuniões. As
reuniões passam a fazer parte do cotidiano
dos/as assentados/as e tomam um lugar
fundamental no processo organizativo do
acampamento, que assim, por meio das
afinidades que surgem, vão se constituindo
os núcleos.
A relação era toda boa porque a gente
chega lá, em dois três dias a gente é
tudo estranho um do outro, depois a
gente começa a fazer reunião e daí no
acampamento a gente começa a
trabalhar, o trabalho de base que é
chamado pra unir as pessoas e tira
um relacionamento e a partir dali as
pessoas começam a se conhecer e
formam os núcleos, são a vinte e
cinco famílias por núcleos, e ali é um
pega o setor da educação, outro o
setor da saúde, da segurança (Mário,
45 anos).
Alguns elementos são relevantes na
construção política e social da identidade
“sem terra”: a vivência no acampamento, a
influência do conjunto de símbolos e a
situação de exclusão social. Esse último é
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caracterizado por aqueles de origem urbana
como desemprego, a falta de moradia; ou,
por aqueles vêm do campo, como a perda
de suas terras ou falta de acesso às
mesmas. .
Esse espaço de reuniões do
acampamento, a pré-disposição às ações
propostas pelo MST, como uma marcha ou
uma ocupação de terras, as viagens para
outras cidades, a participação em atos
públicos e manifestações, bem como o
compartilhamento dos poucos recursos
elementares vão fazendo parte dos
ensinamentos da vivência coletiva.
Conforme o relato de Júlia,
No acampamento tu não tem
estrutura nenhuma, tu não tem água,
não tem luz, não tinha cama, não
tinha nada. Para fazer uma cama era
uns colchão, cravava uns pau e
botava a dormir, de manhã cedo caia
uns pingo d´água gelado ainda, né,
porque ela (a barraca) soa bastante.
Comida também era dividida em
grãozinho pra cada um, leite também
muito pouco, não tinha quase nada
pras criança pequenas que nós tinha,
mesmo. Lavava roupa na sanga, essas
coisa (Júlia, 28 anos).
A experiência de trabalho no
assentamento
Tem-se a impressão de que a
condição de assentado, que coloca o
indivíduo na condição de pequeno
proprietário rural, não dissolve
completamente a identidade “Sem terra”,
haja vista que a própria relação com o
movimento é mantida de diferentes
maneiras, seja através da forma política
mais tradicional, que elege uma
representação do assentamento para a
composição da instância de coordenação
estadual do MST, seja através de relações
de solidariedade com aqueles/as que estão
acampados. Essa foi uma das situações
relatadas por Vera, ressaltando que os
assentados/as do Padre Réus contribuíram
com alimentos de sua produção para o
acampamento do MST em Canguçu,
cidade vizinha.
A sede do acampamento, antiga casa
da Fazenda Santa Rita, é um ponto de
encontro entre os jovens para jogos de
futebol nos finais de semana e,
eventualmente, nos dias de
semana.Também é o local onde são
realizadas as missas e os cultos. Alcina (59
anos), por exemplo, é crente, evangélica da
Igreja Pentecostal, mas era assistente do
padre no acampamento. Ela lembra que, no
acampamento, as missas eram ecumênicas;
“não tinha essa divisão por religiões”,
porque assim era deliberado pela
coordenação do acampamento.
Atualmente, cada um pode marcar um dia
diferente para realizações de suas
respectivas cerimônias religiosas na sede.
Percebe-se a construção de uma rede
social interna ao MST. O espaço de
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circulação social dos/das assentados/as está
muito marcado pelas relações internas ao
movimento. Este exerce sobre suas vidas
uma influência maior do que, por exemplo,
exerceria se estivessem vinculados a um
sindicato. O seguinte fragmento ajuda a
problematizar essa relação. Para Santos e
Costa (1997, p. 109),
quando o sindicato conseguia
resolver o problema de um
assalariado, você podia contar com a
perda daquele associado. Quando o
trabalhador recebia um benefício,
férias de dois anos, salário mínimo
atrasado de dois anos, o esforço do
sindicato traduzia um efeito contrário
ao esperado no que se refere à
capacidade de atração: ele pegava o
dinheiro e ia embora, e nós
perdíamos o associado.
Sugere-se que o fenômeno que
envolve a vida do/da trabalhador/a que
adere ao MST e passa pelo processo de
conquista da terra, tornando-se assentado
rural, é mais sólido do que a forma de
participação que se verifica em sindicatos
em regiões urbanas e rurais. Talvez isso
ocorra porque se aproxima, nas
experiências organizativas do período de
acampamento, de outros movimentos
sociais urbanos, que, de certa forma, tem-
se como referência, como o Movimento
Nacional de Catadores e Recicladores
(MNCR), ou o Movimento Nacional de
Luta pela Moradia (MNLM), ou ainda os
acampamentos do Movimento de
Trabalhadores Desempregados (MTD). As
famílias, no entanto, depois de assentadas,
continuam sendo motivadas para o
exercício de uma participação política. Tal
participação pode ser tanto nas questões
específicas de mobilização de recursos
quanto em lutas mais gerais, como, por
exemplo, contra o deserto verde, assim
chamada a silvicultura, discutindo os
modelos agrícolas ou o fim da violência no
campo. Essa dimensão de participação
constitui-se um diferencial em relação aos
demais movimentos sociais.
A construção da identidade político-
social do “Sem terra” é uma estratégia
desenvolvida pelo movimento para o
fortalecimento dos laços de grupo,
evidenciando-se como um fator de
identificação entre os diversos coletivos
que compõem o conjunto do MST.
Ademais, é na relação de convivência entre
os pares que, com diferentes trajetórias e
em diferentes etapas da vida, estão
colocados numa mesma condição de
sobrevivência, alimentando uma
perspectiva de futuro e estratégias de
sobrevivência semelhantes, objetivada na
conquista da terra. Essa é uma análise
possível principalmente quando se olha a
organização dos trabalhadores “Sem terra”
de dentro para fora, verificando-se seu
processo de mobilização, organização, seus
instrumentos de luta social e produtos da
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atividade política e, a partir dessas
questões, a forma a qual significa sua ação.
No entanto, existem outras forças sociais
atuando em oposição a essa organização
que também interferem nesse processo de
constituição da identidade, pois têm
capacidade igual ou maior de produzir
opiniões e disputar a consciência da
sociedade. Se por um lado se cria uma
determinada coesão interna à organização,
promovendo as condições necessárias para
empreender a luta política e social, por
outro lado, forças antagônicas estão
preocupadas em afastar setores da
sociedade da luta dos Sem terra”,
colocando barreiras e obstáculos à
efetivação da política de reforma agrária.
Como exemplo de uma expressão radical
desse pensamento, está o Manifesto de
Repúdio aos Sem Terra, distribuído
apocrifamente, em 2003, nas proximidades
da cidade de São Gabriel, no Rio Grande
do Sul, quando o MST realizava a marcha
Sepé Tiaraju, mas atribuído aos
latifundiários da região. Citado por Brum
(2006, p. 20),
GABRIELENSES DIZEM NÃO À
INVASÃO E A SEUS
APOIADORES
iii
Povo de São Gabriel, não permita
que sua cidade tão bem conservada
nesses anos, seja agora maculada
pelos pés deformados e sujos da
escória humana. São Gabriel, que
nunca conviveu com a miséria, terá
agora que abrigar o que de pior existe
no seio da sociedade. Nós não
merecemos que essa massa podre,
manipulada por meia dúzia de
covardes que se escondem atrás de
estrelinhas no peito, venha trazer o
roubo, a violência, o estupro, a
morte. Estes ratos precisam ser
exterminados. Vai doer, mas para
grandes doenças, fortes são os
remédios. ... precisa correr sangue
para mostrarmos nossa bravura. Se
queres a paz, prepara a guerra,
assim daremos exemplo ao mundo
que em São Gabriel não há· lugar
para desocupados. Aqui é lugar de
povo ordeiro, trabalhador e
produtivo. Nossa cidade é de
oportunidades para quem quer
produzir e não oportunidades para
bêbados, ralé, vagabundos e
mendigos de aluguel. Se tu,
gabrielense amigo, possuis um avião
agrícola, pulveriza a noite 100 litros
de gasolina em voo rasante sobre o
acampamento de lona dos ratos.
Sempre haverá uma vela acesa para
terminar o serviço e liquidar com
todos eles.
Se tu, gabrielense amigo, és
proprietário de terras ao lado do
acampamento, usa qualquer remédio
de banhar gado na água que eles
usam para beber, rato envenenado
bebe mais água ainda. FIM AOS
RATOS. VIVA O POVO
GABRIELENSE.
Outra alusão às oposições se
através da grande mídia quando faz vistas
grossas aos assassinatos de lideranças
rurais e camponesas nos conflitos de terra
no Brasil, ou de partidos políticos que
atuam nacionalmente contra a reforma
agrária. A tentativa de instalação da
Comissão Parlamentar de Inquérito do
MST, em 2009, é outro exemplo. A
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identidade, sendo construída na dualidade
desse confronto de forças, disputa política
e guerra de posições.
Sempre “Sem terra” ou camponeses?
A discussão sobre a produção dos
assentados pode ser considera a questão
central da transformação do referencial dos
“Sem Terra”, construída nos marcos da
experiência no acampamento para uma
nova realidade que se traduz na condição
de camponês.
As famílias do Assentamento Padre
Réus viveram um período difícil de
adaptação a essa nova condição, visto que,
quando chegaram na terra que estava ainda
em processo de demarcação, ficaram pelo
menos um ano inteiro acampados,
contando com poucos recursos para
sobreviver. Rememorou-se que, quando
chegaram a Encruzilhada do Sul, talvez
estivessem em situação pior do que a que
se encontravam no acampamento. Alguns
pensaram em desistir, mas permaneceram
ali até chegarem os primeiros recursos
materiais e financeiros para construir
moradias e investir na produção.
Em 2011, a realidade mudou, pois
se podia contar com outra infraestrutura.
Todo/as possuíam casa, algumas com
galpão e muitas com galinheiro, chiqueiro,
acesso a eletrodomésticos, televisão, rádio
e, os mais estabelecidos, atém mesmo,
possuíam carros.
A prioridade para todas as famílias
foi pensar na produção de alimentos. A
dificuldade com a própria alimentação, no
primeiro ano de estadia, traduziu-se na
preocupação pela agricultura de
subsistência. Podemos constatar isso
através da observação e do destaque em
todas as entrevistas quanto à essa questão,
apontada como prioridade. Nesse sentido, a
realidade atual dos assentados colabora
para a ideia de Ploeg (2008, p. 49), quando
afirma que o modo de vida do camponês
contribui para a produção de riqueza social
na medida em que existe, no interior da
unidade produtiva, uma lógica de
desenvolvimento endógeno cumulativo,
diferente da gica de rupturas da
agricultura empresarial.
Está em andamento, portanto, um
processo de organização dos/das
trabalhadores/as para a produção que
ocorre por intermédio do trabalho
associado no Assentamento Padre Réus. A
associação é composta pelas famílias e tem
por interesse discutir a produção e o
comércio. Essa organização é muito
incipiente e, conforme se observa, as
estratégias estão sendo discutidas no
âmbito familiar.
A produção para o consumo diversos
é diversificada e os principais cultivos para
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o comércio são o milho, o feijão, o arroz, o
fumo.
Algumas famílias receberam o lote
com plantação de eucalipto e utilizam o
comércio da madeira como um acréscimo
de renda. Outros decidiram plantar o
eucalipto com a justificativa de
incrementar a própria renda. Existem
aproximadamente cinco famílias
envolvidas com o plantio do eucalipto, no
assentamento. O município de
Encruzilhada do Sul excedeu o limite de
terras plantadas pela silvicultura, que
empresas compraram terras e não
conseguiram o licenciamento ambiental
para o plantio.
Além desses produtos, nove famílias
estão envolvidas na fruticultura,
produzindo uva, pêssego e amora, as quais
fazem parte de um projeto que envolve
duzentas e setenta famílias no município.
Nesse projeto, cada família recebeu
setecentas mudas de frutas, além de
calcário. Elas encontraram saída para a
uva e a amora, mas não encontraram uma
maneira de escoar a produção de pêssego,
pois não recebem auxílio do poder público
municipal.
Estamos se organizando em reunião,
tem a associação, de trinta e sete
famílias, temos trinta associados,
sete que não quis vim. Estamos
discutindo a produção, a plantação, e
o comércio, e agora estamos
discutindo o comércio, como eu sou
dirigente estadual eu tenho que
discutir todos os assentamentos e
estamos trazendo agroindústria de
frutas, pêssego, uva, amorinha. De
pêssego já tem uns cinco hectares, de
maça já tem duas hectares, parreira já
tão começando e amorinha também,
a sede vai se no Segredo
Farroupilha (Mário, 45 anos).
O próximo passo, de acordo com
os/as agricultores/as, é a construção de
uma agroindústria para agregar valor à
produção e encontrar uma melhor
comercialização dos produtos. A sede será
instalada no assentamento Segredo
Farroupilha, e a construção prevê o custeio
de projeto encaminhado por deputado
federal apoiador do MST.
Sobre os mecanismos de produção
coletiva, sistemas de cooperação
elaborados pela associação, não se
encontrou nenhuma reposta concreta,
senão o desafio de construí-los, como foi
colocado nos discursos das lideranças.
A agricultura praticada pelos/as
assentados/as foi basicamente subsidiada
pelo governo federal, em forma de créditos
específicos que devem ser ressarcidos ao
final de cada ano. Esse crédito foi
importante para o estabelecimento dos
agricultores na terra, que este primeiro
momento de adaptação e reconhecimento
do território, qualidade da terra e
possibilidades de produção conjugado com
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a pouca experiência de muitas famílias,
torna a vida complicada.
Mesmo com subsídio, a inserção
agrícola dos/as trabalhadores/as está em
uma lógica desigual de comércio em
relação aos grandes empresários agrícolas.
Isso se expressa na seguinte fala: “tem que
vendê dez sacos de milho para paga dois
de adubo”. O limite não está no potencial
de produção de alimentos em si, mas no
custo-benefício das famílias na inserção
em um mercado sustentado por uma gica
de produção que não é sustentável e a mais
adequada ao modo camponês de bem-
viver.
A imposição do receituário da
agricultura empresarial, que tem o
interesse de impor ao agricultor/a o
consumo do adubo, da ureia, dos
herbicidas, das sementes geneticamente
modificadas, da mecanização e de uma
técnica fabricada nos centros
especializados, é possível com a perda do
conhecimento tradicional de técnicas
autossustentáveis de produção em relação
aos recursos naturais, de modo que a forma
de proceder o manejo da terra passa a ser
embasado numa forma empresarial de
fazer agricultura. Essa imposição de regras
coloca o impasse entre a adesão do
assentado ao modelo agrícola e à exclusão
do mercado.
Considerações finais
É interessante observar que existem
dois momentos nesta trajetória descrita
acima. O primeiro momento consiste em
trabalhadores/as desempregados/as,
demitidos da indústria calçadista da região
onde moravam, em busca de alternativas
de sobrevivência. A alternativa que surge é
o movimento social. Esta trajetória está
marcada pela problemática do trabalho. O
segundo momento, o “tempo de
acampamento”, entendido como espaço de
auto-organização, e que consiste na
efetivação uma experiência formativa para
esses/as trabalhadores/as, na luta e à espera
da terra, sua força produtiva.
Essa experiência formativa tem, na
questão organizativa e na mística do
movimento, um momento de aproximação
com a realidade rural, através da
valorização do trabalho camponês, do
cultivo à terra, da produção de alimentos,
quando de fato é promovida a valorização
do. Para Ribeiro (2009, p. 50),
Trata-se de uma situação desafiadora,
porque a ão formadora que integra
esses três componentes arte,
cultura, intenção deve ter como
objetivo a modificação de um sistema
de referências ou um modo de
funcionamento de uma dada situação
ou realidade. É desafiadora porque as
situações de mudanças não são
triviais e, embora em algumas
situações as mudanças possam até
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acontecer com relativa rapidez, nem
sempre é assim.
Nesse sentido, o assentamento das
famílias passa por um processo de
mudança de referenciais, obtida nesse
processo formativo, construída no
movimento social. Isso se pode auferir nas
falas em que aparece o trabalho como
princípio educativo, no qual ocorre um
processo de aprendizado constante,
envolvendo a gestão do lote, a escolha das
culturas a serem produzidas, a aplicação
dos recursos. Isso faz com que o trabalho
camponês tome conta do cotidiano das
famílias, e, ao mesmo tempo, estimula o
aparecimento de laços com o movimento
social, como uma forma de aprendizado
político para a mediação e gestão dos
assuntos coletivos.
Por conseguinte, percebe-se a
questão do trabalho como o grande
mobilizador dos/as trabalhadores/as em
suas trajetórias, aparecendo sua
centralidade, ou seja, a passagem do
trabalho urbano para o trabalho rural como
a consequência dessa mobilização. Na
realidade, o que se percebe é o trabalho
como princípio educativo presente nas
ações do movimento de organização, tanto
no nível material, como no nível espiritual,
como, por exemplo, na simbologia da
mística (sementes, adereços campesinos).
As práticas gestadas e apreendidas
no interior do movimento social resultam
do trabalho com três diferentes aspectos:
organização política, busca de alternativas
de trabalho e trabalho como princípio
educativo. Esses três aspectos articulados
podem expressar a experiência das
histórias e trajetórias de vida dos/das
assentados/as do Assentamento Padre
Réus.
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do sem-terra. Porto Alegre: UFRGS.
i
Segundo Gohn (2006) educação não-formal
consiste na educação produzida nas associações
coletivas protagonizadas pelas redes associativas da
sociedade civil. Educação formal consiste na
educação promovida através da ação estatal, como,
por exemplo, a escolar, e na educação informal, os
agentes educadores são os pais, os vizinhos, os
colegas da escola, a igreja paroquial e os meios de
comunicação de massa.
ii
As místicas utilizam músicas, bandeiras e
elementos relativos à vida no campo, como
peneiras, chapéus de palha, sementes, pão e
alimentos orgânicos cultivados na roça. Esses
elementos estariam representando uma agricultura
baseada nos ideais de sustentabilidade, livre de
agrotóxicos. As Músicas ”MST, a luta faz valer”
(1999), de José Pinto Lima, “Procissão de
retirantes” (1999), letra de Marjin Cesar Ramires
Gonçalves e música de Pedro Munhóz, ambas
lançadas no Festival de músicas da Reforma
Agrária, em Palmeiras das Missões, em 1999, e
também a “Canção da Terra”, de Pedro Munhóz,
relançada em 2011 pela banda Teatro Mágico, são
trilhas consagradas na realização de místicas. Elas
trazem temas como a luta pela terra, a exaltação da
terra, a desigualdade social e a partilha do pão.
iii
Manifesto de Repúdio aos Sem Terra. Agosto de
2003. Texto recebido por e-mail e atribuído aos
latifundiários de São Gabriel.
Recebido em: 28/06/2017
Aprovado em: 10/08/2017
Publicado em: 10/11/2017
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APA:
Lopes, B. S., & Moretti, C. Z. (2017). O trabalho
como princípio educativo no MST: um estudo de
caso do Assentamento Padre Réus. Rev. Bras. Educ.
Camp., 2(2), 708-727. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2017v2n2p708
ABNT:
LOPES, B. S.; MORETTI, C. Z. O trabalho como
princípio educativo no MST: um estudo de caso do
Assentamento Padre Réus. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 2, n. 2, p. 708-727,
2017. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2017v2n2p708
ORCID
Beliza Stasinski Lopes
http://orcid.org/0000-0002-7067-3142
Cheron Zanini Moretti
http://orcid.org/0000-0002-6297-3129