Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n2p381
Tocantinópolis
v. 3
n. 2
p. 381-410
mai./ago.
2018
ISSN: 2525-4863
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Educação do Campo e Autonomia: desenvolvimento
comunitário e pedagogia de participação no Assentamento
do Movimento Sem Terra [MST], Luís Inácio Lula da
Silva (Lulão)
Altemar Felberg
1
, Geovani de Jesus Silva
2
1
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias - ULHT. Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração.
Campo Grande, 276, 1749-024. Lisboa. Portugal.
2
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Autor para correspondência/Author for correspondence: felberg_imt@hotmail.com
RESUMO. Este artigo busca apresentar o papel da Educação do
Campo no processo de formação de sujeitos autônomos, a partir
de estudo realizado em um assentamento do Movimento Sem
Terra no Sul da Bahia, que buscou compreender de que modo os
indicadores de desenvolvimento refletem o grau de autonomia
de seus moradores. A investigação foi realizada por meio da
pesquisa quali-quantitativa, tendo como instrumentos de coleta
de informação o questionário, entrevistas semiestruturadas e
grupos focais. Define-se aqui a autonomia como a capacidade
do indivíduo governar-se, conforme uma lei própria, de maneira
livre e racional, conduzindo-o à dignidade humana;
configurando-se como um poderoso recurso capaz de livrar os
indivíduos não da submissão a processos heterônomos que
interferem sobre suas liberdades de escolha e ação, mas também
dos quadros de vulnerabilidade social e econômica. Ter mais
autonomia e agir com maior liberdade de pensamento e ação
melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para
influenciar o mundo - questões centrais para o processo de
desenvolvimento. Para potencializar a autonomia, a educação
exerce um papel fundamental, no universo e na população
estudada, efetivando-se na práxis da vida cotidiana, no exercício
da cidadania e na participação social, consolidando-se como
prática de liberdade.
Palavras-chave: Educação do Campo, Autonomia,
Desenvolvimento Comunitário Rural.
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Rural Education and Autonomy: community development
and pedagogy of participation in the Settlement of the
Landless Movement [MST], Luís Inácio Lula da Silva
(Lulão)
ABSTRACT. This article seeks to present the role of Rural
Education in the process of training autonomous subjects, based
on a study carried out in a settlement of the Landless Movement
in the South of Bahia, which sought to understand how
development indicators reflect the degree Autonomy of its
residents. The research was carried out through the qualitative
research, with the questionnaire, semi-structured interviews and
focus groups as instruments of information collection. Here
autonomy is defined as the capacity of the individual to govern
himself, according to a law of his own, in a free and rational
way, leading him to human dignity; Setting itself up as a
powerful resource capable of freeing individuals not only from
submission to heteronymous processes that interfere with their
freedoms of choice and action, but also from the frameworks of
social and economic vulnerability. Having more autonomy and
acting with greater freedom of thought and action improves
people's potential to take care of themselves and to influence the
world - issues central to the development process. To empower
autonomy, education plays a fundamental role in the universe
and in the population studied, taking place in the praxis of
everyday life, in the exercise of citizenship and in social
participation, consolidating itself as a practice of freedom.
Keywords: Rural Education, Autonomy, Rural Community
Development.
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Educación del Campo y Autonomía: desarrollo
comunitario y pedagogía de participación en el
Asentamiento del Movimiento Sin Tierra [MST], Luís
Inácio Lula da Silva (Lulão)
RESUMEN. Este artículo busca presentar el papel de la
Educación del Campo en el proceso de formación de sujetos
autónomos, a partir de un estudio realizado en un asentamiento
del Movimiento Sin Tierra en el Sur de Bahía, que buscó
comprender de qué modo los indicadores de desarrollo reflejan
el grado De autonomía de sus habitantes. La investigación se
realizó a través de la investigación cualitativa, teniendo como
instrumentos de recolección de información el cuestionario,
entrevistas semiestructuradas y grupos focales. Se define aquí la
autonomía como la capacidad del individuo de gobernarse,
conforme a una ley propia, de manera libre y racional,
conduciéndolo a la dignidad humana; Configurándose como un
poderoso recurso capaz de liberar a los individuos no sólo de la
sumisión a procesos heterónomos que interfieren en sus
libertades de elección y acción, sino también de los cuadros de
vulnerabilidad social y económica. Tener más autonomía y
actuar con mayor libertad de pensamiento y acción mejora el
potencial de las personas para cuidar de mismas y para influir
en el mundo - cuestiones centrales para el proceso de desarrollo.
Para potenciar la autonomía, la educación desempeña un papel
fundamental en el universo y en la población estudiada, que se
efectúa en la praxis de la vida cotidiana, en el ejercicio de la
ciudadanía y en la participación social, consolidándose como
práctica de libertad.
Palabras clave: Educación del Campo, Autonomía, Desarrollo
Comunitario Rural.
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Introdução
Buscamos, neste artigo, apresentar de
que modo os indicadores de
desenvolvimento comunitário rural do
Assentamento do Movimento Sem Terra
[MST], Luís Inácio Lula da Silva (Lulão),
integrante da Brigada Elias Gonçalves de
Meura, localizado no Extremo Sul da
Bahia, refletem o grau de autonomia de
seus moradores, homens e mulheres do
campo, destacando, nessa relação, o papel
da Educação do Campo no processo de
formação de sujeitos com maior
capacidade de reflexão crítica e ação, sobre
si mesmos e o mundo.
Para obter os resultados expressos
neste trabalho, adotamos a pesquisa quali-
quantitativa, como enfoque metodológico,
com a convergência das pesquisas
descritiva e exploratória, tendo como
instrumentos de coleta de informação, o
questionário, entrevistas e grupos focais,
aplicados a uma amostra de 30 pessoas,
respeitando-se a divisão paritária e os
critérios de gênero e geração, dentre os 57
associados/as originais do Assentamento.
Nessa jornada epistemológica, três
importantes conceitos foram mobilizados
para compreender a questão. Primeiro, a
autonomia, entendida como a capacidade
do indivíduo governar-se conforme uma lei
própria, de maneira livre e racional,
conduzindo-se à dignidade humana. Pode
ser compreendida como um poderoso
recurso capaz de livrar os indivíduos não
da submissão a processos heterônomos
que interferem sobre suas liberdades de
escolha e ação, mas também dos quadros
de vulnerabilidade socioeconômica,
devendo ser considerada como importante
medida na avaliação do desenvolvimento,
conforme os estudos de Kant (1974),
Adorno (1984), Castoriadis (1991), Freire
e Shor (1986), Chauí (1990), dentre outros.
Segundo, a Educação do Campo, que
conforme os estudos de Cury (2002),
Arroyo, Caldart e Molina (2004) e Caldart
(2009), surge como crítica à realidade do
sistema educacional no Brasil,
particularmente à situação educacional da
população brasileira que trabalha e vive
no/do campo, ao modelo de sistema
econômico capitalista e sua injusta
distribuição de renda, ao incentivo ao
agronegócio e à expropriação de terras
tradicionais, à elitização do acesso à
ciência, à tecnologia, à cultura e às suas
produções, enfim, críticas a não
universalização de direitos que garantem
uma maior cidadania. Terceiro, e último, o
desenvolvimento comunitário rural, que se
configura como um processo através do
qual a comunidade amadurece em relação
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a si mesma, reconhece suas fragilidades e
potenciais de desenvolvimento, rompe seus
casulos e se transforma em novas
possibilidades de ser (Silva & Arns, 2002).
Na visão de autores como Favareto (2006),
Veiga (2005; 2006), Sen (2008), Sachs
(2000), este tipo de desenvolvimento é
identificado por meio de indicadores que
ultrapassam o mero crescimento
econômico, levando em consideração a
avaliação de aspectos mais subjetivos,
como acesso a oportunidades sociais,
liberdades políticas e facilidades
econômicas.
Assim, discutimos e analisamos os
diversos aspectos que envolvem essas três
categorias, estabelecendo as inúmeras
possibilidades de relação entre elas, no
universo e sujeitos estudados, buscando
compreender o desenvolvimento e
exercício da autonomia, a partir dos
contributos da Educação do Campo, rumo
ao ‘desenvolvimento com autonomia’.
Autonomia: uma condição do sujeito de
“ser para si”
Em revisão literária, podemos
perceber que o conceito de autonomia
que etimologicamente vem do grego autós
(ele mesmo, por si mesmo) e nomos (lei,
convenção, regra), que significa o poder de
dar a si a própria lei fora construído
historicamente pelas diferentes
características culturais, econômicas e
políticas que configuraram as sociedades
ao longo de sua trajetória, tendo sido
refletido inicialmente pelos historiadores e
filósofos gregos e ganhado destaque e
notoriedade na modernidade com os
estudos de Kant (1974).
Posteriormente aos estudos
kantianos, diversos outros autores se
debruçaram sobre a temática, abordando a
autonomia numa perspectiva mais política
e sociológica, a partir de um entendimento
de que os conceitos de autonomia e
participação social possuem tênue relação.
Adorno (1984), Freire e Shor (1986),
Chauí (1990), Castoriadis (1991), Bobbio
(2000) e Sen (2008) são apenas alguns
destes autores, dentre muitos outros.
Para Castoriadis (1991), a autonomia
conduz diretamente ao problema político e
social da humanidade, posto que não se
pode desejá-la sem desejá-la a todos, e cuja
realização pode conceber-se plenamente
como empreitada coletiva. Esse
entendimento é também defendido por
Freire e Shor (1986) quando nos alertam de
que mesmo quando nos sentimos mais
livres, mais autônomos, se esta conquista
não for utilizada a favor da coletividade,
estaremos apenas exercitando uma
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autonomia individualista, no sentido do
empoderamento pessoal.
Nesta mesma linha, Chauí (1990) nos
diz que a autonomia é a posição do sujeito
sócio-histórico-cultural que, por sua
própria ação e vontade ética, é criador das
leis e regras da sua existência social e
política; o que na perspectiva freiriana tem
a ver com o ‘ser para si’, onde num
contexto histórico subdesenvolvido dos
oprimidos, a autonomia está intimamente
relacionada com a libertação. É justamente
sob esta perspectiva que se pretende firmar
este texto, reconhecendo a autonomia
como defende Pereira (2007), como um
recurso capaz de livrar os indivíduos não
da heteronomia de processos opressores
sobre as suas liberdades de escolha e de
ação, mas também da miséria e do
desamparo, da privação do exercício de um
dos direitos sociais mais sagrados: a
participação ativa e qualificada nos
processos de discussão, formulação e
usufruto efetivos das políticas de
desenvolvimento.
O conceito de autonomia advém do
sentido de participação política e social, a
qual é considerada como um das mais
importantes medidas na avaliação do
desenvolvimento “...a liberdade de
participação ou dissensão política ou as
oportunidades de receber educação básica,
são ou não são conducentes ao
desenvolvimento” (Sen, 2008, p. 19), ideia
corroborada também por Frey (2000), o
qual defende que autonomia apresenta-se
como dimensão a ser considerada, seja nos
indicadores, seja no ciclo das políticas
públicas.
Para os autores, ter mais autonomia e
agir com maior liberdade de pensamento e
ação, melhora o potencial das pessoas para
cuidar de si mesmas e para influenciar o
mundo questões centrais para o processo
de desenvolvimento. E como conquistar ou
potencializar essa autonomia? Aí entra o
papel da educação, seja formal ou
informal.
Na sua obra sobre pedagogia, Kant
(1996) fala sobre a importância de a ação
educativa seguir a experiência. A educação
não deve ser puramente mecânica e nem se
fundar no raciocínio puro, mas deve
apoiar-se em princípios e guiar-se pela
experiência. A partir da pedagogia
kantiana, podemos dizer que uma educação
que vise formar sujeitos autônomos deve
unir lições da experiência e os projetos da
razão.
Neste sentido, a temática da
autonomia, que ganhou centralidade nos
pensadores e na educação moderna,
especialmente em Freire e Shor (1986) que
a atribui um sentido sócio-político-
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pedagógico: autonomia é a condição sócio-
histórica de um povo ou pessoa que tenha
se libertado, se emancipado das opressões
que restringem ou anulam sua liberdade de
determinação. E conquistar a própria
autonomia implica, para Freire e Shor
(1986), em libertação das estruturas
opressoras uma das bandeiras defendidas
pelos educadores e educadoras da
Educação do Campo.
Não é preciso estar no dia a dia das
populações que vivem no/do campo para
notar o quadro de marginalidade e
exclusão em que se encontram, seja na
esfera nacional ou local, delineado a nosso
ver, principalmente, dentre outros fatores,
pela ineficácia das políticas públicas,
principalmente no que tange ao
oferecimento de uma educação de
qualidade e libertária da dependência e
alienação base primordial para a
conquista do poder, em suas várias
dimensões, capaz de promover e
transformar a sociedade. Um poder, no
sentido usado por Freire e Shor (1986),
como um aumento da conscientização e
desenvolvimento de uma “faculdade
crítica”; um poder de “fazer” e de “ser
capaz”, bem como de sentir-se com mais
capacidade para agir e desempenhar um
papel ativo nas iniciativas de
desenvolvimento.
Nesse contexto, perspectivas que
apontam que a restrição da autonomia dos
atores sociais do meio rural elidem as
possibilidades desses grupos menos
favorecidos em participar ativamente dos
processos de discussão, formulação e
usufruto efetivos de políticas de
desenvolvimento local. Por outro lado, a
autonomia construída a partir da expansão
das capacidades individuais e coletivas, de
refletir e decidir autonomamente sobre
aquilo que é significativo e de valor para si
e para seu grupo, pode ampliar as
possibilidades de exercício da cidadania,
de luta contra as pressões externas e de
desenvolvimento.
Sentido da autonomia para moradores
do Assentamento Lulão
O Assentamento Luiz Inácio Lula da
Silva (Lulão), antiga Fazenda Coroa
Cabrália, com área total aproximada de
650 hectares, está localizado no Município
de Santa Cruz Cabrália, Costa do
Descobrimento, Extremo Sul da Bahia, na
altura do Km 22, às margens da rodovia
BR 367, a 167m de altura, com latitude de
1638328135 e longitude de 39.38086867,
encontrando-se a 46 km de Porto Seguro
(BR 367), 03 km de Vera Cruz (BR 367) e
23 km de Eunápolis.
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Atualmente, possui 57 famílias
assentadas
i
e uma população estimada em
228 habitantes, que vivem sob um sistema
de moradia organizado em Agrovila,
possuindo, cada assentado, uma área de
produção individual de 5,00 hectares (3,4
de terra livre e 1,6 de reserva legal) e a
possibilidade de participação em atividades
coletivas de produção.
Inicialmente, era conhecido como
Projeto de Assentamento Coroa de
Cabrália, fruto de um processo de luta do
MST, que teve início em meados de 2002,
a partir da chegada à região, do militante
Francisco de Assis Souza, conhecido como
“Estrela”. Naquela época, o espaço onde
hoje é o Assentamento era uma área
improdutiva e desabitada, com uma grande
descrença em relação à conquista da terra,
como descreve um dos assentados
entrevistados:
Eu lembro. No início aqui era uma
fazenda, uma fazenda, é... cheia de
mato; eu morava aqui ao lado, na
cidade de Vera Cruz, aqui perto, o
pessoal acampou botando barraco de
lona e tudo, a minha mãe mesmo foi
uma delas...Aí eu falei assim: “Meu
Deus do céu, minha mãe, a senhora tá
doida, ficar nesse lugar aqui?” (++)
um deserto, não tinha ninguém, o
pessoal estava fazendo casa ...
dormindo debaixo das lonas, com
medo de sumir os material (Indaiá,
excerto extraído do Grupo Focal
02, realizado em maio de 2016, p. 1).
Mesmo encontrando dificuldades no
processo de articulação e mobilização de
famílias para inserção na luta pela terra na
região, “Estrela” surpreendeu, ao reunir
mais de 1.500 pessoas para a ação de
ocupação de terra em área próxima ao
entroncamento de Trancoso, em Porto
Seguro, às margens da BR 367. Pela
conjuntura política e dimensão da ação, o
acampamento recebeu o nome de Luís
Inácio Lula da Silva, apelidado depois de
“Lulão”.
As famílias que hoje se encontram
assentadas no Assentamento “Lulão”
participaram e são oriundas de inúmeros
acampamentos do MST, espalhados pela
região do Extremo Sul da Bahia, de acordo
com os relatos abaixo:
... aí um dia passa uma pessoa em
minha casa e falou: “Você não quer
participar, pegar essas famílias e
participar do MST?” Ia ter a
ocupação do Chico Mendes (++).
eu falei: “Vou pensar”. Depois eu
falei não. Vou nada, não vou, porque
é muita bagunça, muita briga, e eu
não vou pegar essas famílias, né, e
levar pra isso, que a gente estava
tentando, naquela ilusão de que
conseguiria as coisas, tudo numa boa,
né? ... eu conheci o acampamento do
MST, e surgiu o interesse, também
pelo fato de entrar no acampamento,
ver a organização né, ver ali aquelas
famílias já produzindo né, então eu
resolvi ir para esse acampamento do
MST, em Guaratinga, que era
Itatiaia, e a gente começou a nossa
história no movimento ... (Areca,
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excerto extraído do Grupo Focal
01, realizado em maio de 2016, p. 1).
... eu fui pra em 1998, e
permaneci lá até 2003, na Rosinha do
Prado. Rosinha do Prado é tudo, até
hoje, em qualquer canto. Foi a minha
escola. Ali, conversei com eles, foi o
momento que eles colocaram que o
município de Porto tava montando
um acampamento, que estaria
surgindo um acampamento em
Eunápolis, se eu poderia ajudar. Eu
coloquei pra eles que eu iria pensar,
mas que realmente, pra mim, era uma
alegria que eu estava dentro da
organização, mas não fui logo, foi
assim que surgiu o Salgado. E aí, dali
do Salgado, em 2005, nós acabamos
vindo pra aqui. (Aricuri, excerto
extraído do Grupo Focal 01,
realizado em maio de 2016, p. 2-3).
Quando nós chegou aqui, já tinha
uma quantidade de pessoas né, já...
né, de outro local, que era do Lulão,
que a gente veio do Salgado, né,
perto de Eunápolis, próximo à
Eunápolis. Quando a gente veio pra
aqui, começou a conhecer, né, esses
outros barracos, né, fomos conviver
com as pessoas que a gente não
conhecia ainda. (Babaçu, excerto
extraído do Grupo Focal 02,
realizado em maio de 2016, p. 1).
Os três depoimentos demonstram
características peculiares dos sujeitos sem-
terra: primeiro, de serem forjados e
formados no movimento, na luta pela terra,
por direitos e por melhores condições de
vida; segundo, pelo aparente sentimento de
pertencimento a um grupo social; e
terceiro, pela solidariedade e coesão social
demonstrada nos processos de construção e
desenvolvimento dos acampamentos sem-
terra.
Em abril de 2004, a ocupação foi
estendida às terras de uma multinacional
de celulose, que ficavam ao lado do
acampamento “Lulão”, ão que forçou o
Governo Federal a negociar três áreas para
assentar as famílias: Fazenda Serro Azul,
situada no Município de Porto Seguro, hoje
Assentamento Milton Santos; Fazenda
Bela Vista Movelar, situada no Município
de Cabrália, hoje Assentamento Ojeferson
Santos; e a Fazenda Coroa de Cabrália,
situada no Município de Santa Cruz
Cabrália, hoje Assentamento Luís Inácio
Lula da Silva.
Fato histórico e de muito orgulho
para os sem-terra do Acampamento Lulão
ocorreu no dia 20 de janeiro de 2005,
quando o então Presidente da República,
Luis Inácio Lula da Silva, visitou o
acampamento e reafirmou a luta do seu
governo para a consolidação da Reforma
Agrária no país, comprometendo-se com as
famílias presentes a assentar todas elas
ainda naquele ano, e participar da entrega
oficial da emissão de posse das áreas.
Conforme o prometido, em 22 de
setembro de 2005 chegou a notícia, pelas
mãos de dirigentes do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária [INCRA],
do Governo do Estado da Bahia e de
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líderes do MST, que as terras reivindicadas
pelas famílias estavam liberadas para o
processo de Assentamento, o que foi
motivo de grande comemoração e alegria,
segundo relata Santos (2015).
Assim, imediatamente à confirmação
da tão esperada notícia, as famílias
seguiram para as três áreas recentemente
conquistadas, dando origem aos
Assentamentos Milton Santos, Ojeferson
Santos e Luís Inácio Lula da Silva. Esse
acontecimento é narrado por Macaúba:
... depois foi quando saiu pra cada
um o pedaço de terra, cada um foi
mudando pros seus lugares, só que
ainda não era o local certo, minha
mãe ficou logo em uma terrinha aqui
próxima, e nós ia pra lá, e todo
mundo ficou mudando. Uns ficou
aqui, outros foram mudando pras
terrinhas, depois que teve o local
certo, que dividiu os lotes e cada um
foi pros seus lotes, cada um foi se
virar e fazer o seu. (Macaúba, excerto
extraído do Grupo Focal 02,
realizado em maio de 2016, p. 1).
Depois de devidamente assentadas,
com moradias em regime de Agrovilas,
lotes individuais e áreas coletivas de
produção, o então Presidente Luís Inácio
Lula da Silva reúne-se, no dia 27 de
setembro de 2005, com todas as famílias,
para entregar oficialmente a imissão de
posse das áreas. O presidente abre seu
discurso, dizendo:
Eu queria chamar aqui o seu
Tertuliano, se ele pode ficar aqui do
lado, porque eu acho que a nossa
querida Anita Maria de Jesus e o
nosso querido Tertuliano Dias
Nascimento, ela com 64 anos de
idade, e ele com 82 anos de idade,
são a mais viva demonstração... E eu
vou repetir uma coisa que eu dizia
em 89, em 94, em 98, e não posso
mudar o meu discurso porque eu
virei Presidente da República. Eu
sempre achei que a grande coisa, ou
uma das grandes coisas que o
Movimento Sem-Terra faz, pelo
Brasil, é que o Movimento Sem-
Terra é capaz de tirar pessoas que
estão quase virando párias da
sociedade, espalhadas por esse
mundo, sem esperança, e transformá-
las em guerreiros e guerreiras, como
ele fez com a Dona Anita ou com o
senhor Tertuliano: dar esperança,
perspectiva, mostrar um horizonte
para as pessoas, o que acontecerá
com muita perseverança e com muita
luta (Brasil, 2005, p. 1-2).
Em seu discurso, o presidente fala
da árdua luta dos trabalhadores e
trabalhadoras rurais sem-terra, e reconhece
a importante contribuição do MST para a
construção de um país mais justo, fraterno
e humano, com igualdade de oportunidades
a todo brasileiro.
Considerando o potencial de
desenvolvimento da terra conquistada, a
aprendizagem social oportunizada por
meio da participação no MST e a luta e
esforço dos sem-terra no Assentamento
“Lulão”, dez (10) anos depois da sua
criação, é que tratamos de compreender de
que modo os indicadores de
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desenvolvimento comunitário rural desse
assentamento refletem o grau de autonomia
de seus moradores e qual o papel da
educação no processo de formação de
sujeitos autônomos.
A partir do entendimento de que a
autonomia pode ser definida como a
capacidade de conceber e fazer suas
próprias escolhas, tratando-se de uma
condição a ser conquistada
individualmente pela independência da
vontade e pela liberdade de ão,
apresentamos, a seguir, o sentido dessa
autonomia para os homens e as mulheres
trabalhadores/as rurais sem-terra, sujeitos
da pesquisa realizada no Assentamento
“Lulão”.
No universo pesquisado percebe-se
que a autonomia individual das mulheres
traduzida na capacidade destas, de
conceber e fazer suas próprias escolhas é
bastante significativa, registrando-se uma
alta porcentagem, entre 86,67% e 100%,
que demonstram decidir autonomamente
sobre questões do âmbito da vida privada,
considerando-se o representado nas
questões que tratam da liberdade e poder
de decisão de ir e vir, de levar a vida
conforme seus próprios preceitos, de
realizar trabalhos domésticos por vontade
própria, de como se vestir, de visitar
amigos quando sente vontade, de como
utilizar o tempo livre e de relaxar quando
sente vontade. Todavia, se analisarmos as
questões que se relacionam à vida coletiva,
notaremos que esta capacidade de pensar e
agir autonomamente sofre interferência,
especialmente no que se refere à
externalização de ideias, opiniões e
emoções.
Vale destacar que 53,33% descartam
a possibilidade de respeitarem ou seguirem
somente as regras que julgam necessárias,
o que confirma a tese defendida por Morin
(2002), quando este afirma que a
autonomia não se trata de uma liberdade
total e plena, livre de qualquer dependência
e influência externa, mas uma autonomia
que depende de seu meio ambiente; o que é
visivelmente representado no seguinte
relato de uma das assentadas:
... aqui tem uma regra, mas você
escolhe, você é livre, ninguém vai
impedir o que você vai fazer, que
você tem que respeitar as normas
do movimento, e eu creio assim: se
vo quer fazer algo, não querer
respeitar as normas daquele
assentamento, se acontecer algo com
você ou alguma coisa, a direção não
tem nada a ver, porque você que
escolheu a sua escolha, então você
tem livre arbítrio pra fazer o que você
quiser, que tem que fazer o certo
pra você poder ter o reconhecimento
aqui dentro e poder desfrutar do que
tem aqui no assentamento, porque
tem muita coisa boa, agora basta
você querer (Macaúba, excerto
extraído do Grupo Focal 02,
realizado em maio de 2016).
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O fato de o sujeito decidir abdicar de
sua autonomia individual, a favor do bem-
estar coletivo, não significa que o mesmo
perdeu sua capacidade intelectual de
conceber e fazer suas próprias escolhas,
como bem explica Morin (2002), pois a
pessoa dotada de liberdade, sem
intervenção alheia, torna-se autônoma à
medida que utiliza a liberdade com maior
clareza e consciência em suas atitudes na
sociedade, de acordo Kant (1974), uma vez
que, no estado civil, o homem adquire uma
liberdade moral, que ele passa a
obedecer a uma lei que ele instituiu a si
próprio, em vez de seguir o impulso,
conforme Rousseau (1978).
Fazendo uma análise comparativa
entre a autonomia para as mulheres e a
autonomia para os homens, podemos
inferir que a autonomia individual dos
homens é bastante similar à das mulheres,
com registro de alta porcentagem de
autonomia (entre 86,67% e 100%) para as
questões relacionadas à vida privada,
explicitadas na análise anterior, com
exceção aqui para a questão relacionada à
liberdade de ir e vir, onde 33,33% dos
homens disseram nunca sair sem
autorização, e a questão relacionada à
decisão de como gastar/investir a renda
familiar, onde 26,67% afirmaram sentir a
necessidade de dividir a decisão com a
companheira, o que pode aqui ser
justificado pelo fato de serem casados e
culturalmente compartilharem as decisões
da vida cotidiana com as mulheres, que no
universo e população estudados, tem
grande poder de decisão, conforme relatos
abaixo:
A minha história veio através da
minha esposa, eu não gostava do
movimento, eu tinha uma imagem
que o movimento era (++) não era
boa a imagem do movimento. Minha
esposa, ela tem alguns parentes na
liderança do movimento há vinte e
cinco (25), trinta (30) anos... eu
comecei a namorar com ela e ela me
convidava pra eu visitar, e eu falava:
“eu não, você vai só, eu não vou não”
(Buriti, excerto extraído do Grupo
Focal nº 01, realizado em maio de
2016, p. 1).
No relato acima é retratada a
influência da mulher nas decisões da vida
privada, mas, sobretudo, seu papel nos
processos de mobilização social e
representação do MST, conquistando sua
autonomia a partir de uma atuação efetiva
no movimento.
no que diz respeito às demais
questões que se relacionam à vida coletiva,
à capacidade de pensar e agir conforme sua
própria razão e vontade, percebe-se uma
interferência, especialmente no que se
refere à externalização de ideias, opiniões e
emoções. 53,33% descartam a
possibilidade de respeitarem ou seguirem
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somente as regras que julgam necessárias,
comportamento já, outrora, explicado por
Rousseau (1978), Kant (1974) e Morin
(2002), que existe um consenso de que a
vontade individual cede lugar à vontade
coletiva.
Por fim, a pesquisa também revela
que uma das estratégias para o
desenvolvimento e sua avaliação é a
importância e valorização da participação e
da autonomia dos indivíduos,
transformando-os em sujeitos de ação, o
que pode ser entendido como a busca de
um maior grau de conscientização e
interferência no processo de dinamização
socioeconômica e cultural da localidade,
através da ação coletiva e organizada.
Educação do/no Campo: construção de
uma pedagogia do movimento
Essa história é muito bem contada
pelos estudiosos e militantes da área,
Miguel Arroyo, Roseli Caldart e Mônica
Molina (2004), dando voz e repercutindo o
desejo de um grupo que brada um pedido
de respeito a uma população
historicamente marginalizada; um
manifesto por uma educação não periférica
à das cidades, que considere a
singularidade do modo de vida do homem
e mulher do campo; que considere sua
história, valores, cultura e identidade e;
que desmistifique o campo como lugar
atrasado, obsoleto e fadado à extinção.
Essa retrospectiva começa com a luta
dos movimentos sociais e dos educadores e
educadoras do campo pelo direito à
educação, assim como à reforma agrária.
Direito esse que foi negado e usurpado à
população brasileira do campo décadas,
com raízes que remontam o processo de
colonização da nação brasileira, como
salienta Batista (2011, p. 54-55):
As lutas no campo brasileiro têm
início com o processo de invasão e
colonização portuguesa. Os
movimentos se originam dos
conflitos em torno da luta por terra,
mas também se rebelam contra as
relações sociais de produção
marcadas pela exploração, pela
dominação e degradação da pessoa
humana, como a escravidão, contra a
negação da cidadania, pelos direitos
sociais e trabalhistas, pelo
reconhecimento das diferentes
culturas. Essas múltiplas demandas
envolveram diferentes sujeitos,
índios, negros, caboclos, agricultores,
escravos, ferreiros, barqueiros. O que
denota que a resistência dos povos
oprimidos e despossuídos esteve
presente ao longo da história
brasileira, nos períodos colonial,
monárquico e republicano e é um dos
elementos da identidade política do
povo.
Nos séculos seguintes à colonização,
até meados do início do século XIX, ainda
segundo a autora, é fato que diversas
mudanças socioeconômicas e culturais
ocorreram sobretudo por força dos
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processos de resistências sem, contudo,
provocarem transformações sociais
efetivas e duradouras, especialmente no
campo da educação, prevalecendo o
método pedagógico jesuítico do período
colonial, que se estendeu de 1549 a 1759,
ressoando nas cadas seguintes até a
independência. Com essa ruptura, d em
diante, algumas iniciativas relativas à
educação foram efetivadas, contudo,
apesar dos avanços na área, ainda não se
tinha um sistema educacional de âmbito
nacional, o que se concretizou no século
XX.
Em relação à Educação do Campo,
os militantes e profissionais “por uma
educação diferenciada do campo”
declaram que apesar dos movimentos
docente e pedagógico progressista do
Brasil buscarem o reconhecimento da
educação como um direito humano desde a
década de 80, as conquistas alcançadas
pelo movimento não geraram os frutos
esperados no campo. Argumentam que o
direito à educação então conquistado pelo
movimento progressista “ficou vinculado a
uma concepção abstrata de cidadania, não
traduzindo a concretude humana e social
em que os direitos se tornam realidade”
(Arroyo, Caldart & Molina, 2004, p. 10).
Tal concepção reafirmava o discurso
elitista da época, ao considerar cidadãos
somente os habitantes da cidade.
Diante desse contexto, fica clara,
então, na percepção aguçada dos autores
citados, em especial na releitura do assunto
por Roseli Caldart (2009), que a Educação
do Campo nasceu, essencialmente, como
crítica à realidade do sistema educacional
no Brasil, particularmente à situação
educacional da população brasileira que
trabalha e vive no/do campo. Uma crítica
não apenas à educação, mas ao modelo de
sistema econômico capitalista e sua injusta
distribuição de renda; ao incentivo ao
agronegócio e a expropriação de terras
tradicionais; à elitização do acesso à
ciência, à tecnologia, à cultura e às suas
produções; enfim, críticas a não
universalização de direitos que garantem a
plena cidadania.
Dessa forma, a crítica, ainda na visão
da autora, não foi voltada exclusivamente à
educação escolar em si, mas como essa
educação estava desalinhada à realidade
educacional do país, que não considerava a
especificidade dos processos sociais,
políticos e culturais pujantes do campo,
processos estes que extrapolavam
sobremaneira as discussões para além de
uma educação linear, cartesiana e
formadora de indivíduos na ótica do
capitalismo; e ainda, como essa educação
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desconsiderava a totalidade do sujeito, sua
natureza e condição de agente sócio-
histórico-cultural, ou seja, “precisamos
considerar na análise que uma
perspectiva de totalidade na constituição
originária da Educação do Campo
(Caldart, 2009, p. 38). Vale destacar que a
crítica não se deu no campo da
epistemologia da educação (ainda que isso
ocorresse naturamente por consequência
do processo), pelo contrário, foi
fundamentada numa “crítica prática”,
forjada no calor das reivindicações dos
movimentos sociais, que lutavam pelo
direito à educação a partir da realidade da
luta pela terra, pelo trabalho, pela
igualdade social, por condições de uma
vida digna de seres humanos no lugar em
que ela aconteça” (Caldart, 2009, p. 39).
Tratou-se, então, de
uma crítica prática que se fez teórica
ou se constituiu também como
confronto de ideias, de concepções,
quando pelo ‘batismo’ (nome)
assumiu o contraponto: Educação do
Campo não é Educação rural, com
todas as implicações e
desdobramentos disso em relação a
paradigmas que não dizem respeito e
nem se definem somente no âmbito
da educação. (Caldart, 2009, p. 40).
Retornando à sua origem, sabida e
reconhecidamente, os grandes
protagonistas do processo de criação da
Educação do Campo e seu
aperfeiçoamento foram os “movimentos
sociais camponeses em estado de luta”
(Caldart, 2009, p. 40), com destaque aos
movimentos sociais de luta pela reforma
agrária, particularmente ao MST.
No decorrer da luta, outros
movimentos sociais em defesa do povo
campesino foram surgindo e aderindo à
causa por uma Educação do Campo,
consolidando-a como hoje a conhecemos:
o Movimento dos Atingidos por Barragens
[MAB], o Movimento das Mulheres
Camponesas [MMC], o Movimento dos
Pequenos Agricultores [MPA], a Pastoral
da Juventude Rural [PJR], a Comissão
Pastoral da Terra [CPT] e a Federação dos
Estudantes de Agronomia [FEAB].
Somaram-se às iniciativas o movimento
sindical do campo, especialmente àqueles
vinculados à Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura [CONTAG]
e à Federação dos Trabalhadores na
Agricultura Familiar [FETRAF]. Assim,
o vínculo de origem da Educação do
Campo é com os trabalhadores
‘pobres do campo’, trabalhadores
sem-terra, sem trabalho, mas
primeiro com aqueles dispostos a
reagir, a lutar, a se organizar contra
‘o estado da coisa’, para aos poucos
buscar ampliar o olhar para o
conjunto dos trabalhadores do
campo. (Caldart, 2009, p. 41).
Para a autora, talvez seja essa a
marca histórica mais incômoda e
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fascinante da Educação do Campo no
contexto sócio-histórico-político-
econômico e cultural do país: o
protagonismo e a autonomia dos sujeitos
que vivem do/no campo. Hoje, por todo
país,
milhares de educadoras e educadoras
se mobilizam, se reúnem, debatem,
estudam e refazem concepções e
práticas educativas em escolas de
comunidade camponesas, em
escolas-família agrícola, em escolas
dos reassentamentos do Movimento
dos Atingidos pelas Barragens, em
escolas de assentamentos e de
acampamentos do Movimento dos
Sem Terra, ou em escolas de
comunidades indígenas e
quilombolas. (Arroyo, Caldart &
Molina, 2004, p. 09).
Assim, diante o exposto, fica
evidente que a Educação do Campo surgiu
em um determinado momento e contexto
histórico brasileiro que não pode ser
compreendida e analisada em si mesma,
segundo afirma Caldart (2009), tomando
unicamente por base os “parâmetros
teóricos da pedagogia”. Ela extrapola o
campo da ciência da educação e provoca
reflexões em várias outras áreas, como a
política, a sociologia e a economia;
gerando discussões no intuito de romper
velhos paradigmas e propor novos
caminhos para um desenvolvimento mais
ético, justo e igualitário.
Educação como prática da liberdade:
contributos da Educação do Campo
para construção da autonomia de
homens e mulheres do campo
Exposto em que contexto a Educação
do Campo surgiu e se desenvolveu (a
Educação do Campo como crítica ao
sistema e como resultado da luta de
classes, protagonizada pelos atores sociais
que reivindicavam a educação como um
direito), partamos agora para outra frente
de compreensão do fenômeno, a Educação
do Campo como práxis pedagógica, como
princípio e fundamento da luta e das
conquistas dos trabalhadores e
trabalhadoras.
Preliminarmente à apresentação
dessa outra frente de entendimento da
Educação do Campo enquanto fenômeno
não apenas educativo, mas social, cabe
aqui destacar a realização e os resultados
das discussões e consensos da I
Conferência Nacional “Por uma Educação
Básica do Campo”, realizada em Luziânia,
Goiás, entre 27 a 31 de julho de 1998,
evento que é considerado o “batismo
coletivo” de toda uma luta pelo direito à
educação, na qual, foram discutidas e
analisadas várias demandas, dentre elas: a)
o tipo de educação que estava sendo
ofertada no campo era contrária à proposta
de educação proposta pelo movimento,
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uma educação mais ampla, voltada à
formação humana do sujeito; b) revisão do
que se entende por educação básica e
escolarização, resultando na formulação de
uma proposta de escola do campo, que
considere experiências exitosas e
significativas de educação não formal e de
caráter popular; c) a substituição do termo
“meio rural” por “campo”, a fim de trazer
ao termo a essência do conceito de
camponês, que representa a diversidade de
sujeitos que vivem do/no campo e; d) a
construção de pilares metodológicos para
uma educação básica do campo, que
representasse seu caráter diferenciado,
assumindo a identidade do meio rural e
voltada a um projeto nacional de
desenvolvimento do campo brasileiro.
Não podemos perder de vista a
riqueza das experiências e aprendizagens
adquiridas por Miguel Arroyo (2004)
quando da sua participação no Encontro
de Educadores dos Assentamentos de Belo
Horizonte, em 1994, e na Conferência
Nacional “Por uma Educação Básica do
Campo”, em 1998, o que ele chama de
pedagogia dos gestos, pedagogia do fazer,
expressando as muitas formas de expressão
e linguagens utilizadas pelos educadores e
membros dos movimentos sociais do
campo, que a todo o momento, formam e
educam para a cidadania, uma nova
concepção de escola. A grande reflexão e
contribuição trazida pelos documentos
resultantes desses encontros é o
‘movimento social como princípio
educativo’ e como ferramenta de luta por
direitos. Para o Miguel Arroyo (2004) “o
movimento social no campo representa
uma nova consciência do direito a terra, ao
trabalho, à justiça, à igualdade, ao
conhecimento, à cultura, à saúde e à
educação” (p. 73).
No início dos anos 2000, Roseli
Caldart escreveu o documento intitulado
“A Escola do Campo em Movimento”, o
qual retrata a experiência particular das
escolas do MST e sua proposta pedagógica
de formação para a autonomia, a partir da
dinâmica das lutas pela implementação de
um projeto de desenvolvimento do campo.
O texto carrega em si três importantes
argumentos e pontos de reflexão: o
primeiro, de que o campo no Brasil
encontra-se em constante movimento e
processo de mudança social; o segundo, de
que a Educação do Campo está sendo
construída na dinâmica social desse
processo desenvolvimentista, sendo
retroalimentada a todo instante pelos atores
sociais que dela participam e; terceiro, de
que é dinâmico o processo de humanização
no campo a partir da educação e da
assunção dos sujeitos enquanto sujeitos
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sócio-histórico-culturais, agentes de
transformação, protagonistas de suas
próprias histórias de desenvolvimento,
pessoal e social.
Em seguida, Bernardo Fernandes
redige as “Diretrizes de uma Caminhada”,
documento que se configura como uma
grande conquista do Movimento “Por uma
Educação do Campo” iniciado em 1998,
trazendo uma análise dos significados da
aprovação, pelo Conselho Nacional de
Educação, das Diretrizes Operacionais para
a Educação Básica nas Escolas do Campo.
O texto faz menção a uma caminhada que
se iniciou em 1997 quando da realização
do Encontro Nacional de Educadores e
Educadoras da Reforma Agrária [ENERA]
evento em que se começava a
materializar as ideias progressistas que
mais adiante resultou na criação do Setor
de Educação na estrutura organizacional do
MST, que, mesmo tendo todo o sistema
educacional contra, alimentava o
desiderato de uma “nova escola”. Em
síntese, a aprovação das referidas diretrizes
representa a conquista da cidadania no
meio rural por meio da luta e a luta
traduzida em lei, resgatando o campo como
lugar de desenvolvimento, como ... lugar
de vida, onde as pessoas podem morar,
trabalhar, estudar com dignidade de quem
tem o seu lugar, a sua identidade cultural”
(Arroyo, Caldart & Molina, 2004, p. 137).
E por último, o texto que finaliza a
retrospectiva histórica do Movimento “Por
uma Educação do Campo é chamado de
Por Uma Educação do Campo: traços de
uma identidade em construção, escrito por
Roseli Caldart a partir de sua exposição no
Seminário Nacional Por uma Educação do
Campo, realizado em Brasília no período
de 26 a 29 de novembro de 2002. E como o
próprio título sugere, propõe reflexões
sobre a identidade dos protagonistas do
movimento e daqueles que pretendem
disseminar seu ideário.
Em resumo, o texto destaca que
na sua origem, o ‘do’ da Educação do
Campo tem a ver com esse
protagonismo: não é ‘para’ e nem
mesmo ‘com’: é dos trabalhadores,
Educação do Campo, dos
camponeses, pedagogia do
oprimido... Um ‘do’ que não é dado,
mas que precisa ser construído pelo
processo de formação dos sujeitos
coletivos, sujeitos que lutam para
tomar parte da dinâmica social, para
se constituir como sujeitos políticos,
capazes de influir na agenda política
da sociedade. (Caldart, 2009, p. 41).
Partindo do pressuposto, foi
justamente por melhores condições e
qualidade de vida nos acampamentos e
assentamentos do MST que a luta pelo
direito à educação se juntou à luta pela
terra, no começo sem muita relação.
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Todavia, desde o princípio da luta social,
os trabalhadores(as) do campo
carregavam em si a certeza de que uma
transformação mais profunda se daria por
meio da educação, conforme sublinha
Caldart (2000), mas a instauração e
consolidação de um modelo educativo
dinâmico, que esteja voltado à formação
para a autonomia, para a plenitude, para a
formação de sujeitos qualificados à
construção de novos paradigmas de
educação e desenvolvimento, com
mudanças educativas e sociais efetivas e
duradouras, que inclua e considere o
homem e a mulher do campo e suas
utopias.
Passados dez anos da inauguração do
Assentamento “Lulão”, localizado no Sul
da Bahia, procuramos desenvolver uma
pesquisa no intuito de investigar e
compreender de que modo os indicadores
de desenvolvimento refletem o grau de
autonomia de seus moradores, e qual o
papel da educação no processo de
formação de sujeitos autônomos.
A pesquisa revela que, em relação ao
acesso a educação formal no assentamento,
majoritariamente, mulheres (100%) e
homens (93,33%) pesquisados/as afirmam
terem este direito garantido, com igualdade
de oportunidade a todos que desejam
estudar, bem como respeitando as
especificidades dos homens e mulheres do
campo.
em questões relacionadas aos
processos de luta social como estratégias
de formação do sujeito, 100% das
mulheres e 80% dos homens pesquisados
atestam que a luta pela terra, pelo trabalho
e por condições de uma vida digna tem
relação com a sua educação e a dos seus
filhos. Também, 93,33% das mulheres e
80% dos sujeitos pesquisados reconhecem
que a participação do movimento tem
influência positiva no modo como eles e
seus filhos aprendem e vivem dentro e fora
do Assentamento, comprovando que
uma pedagogia dentro e fora da escola,
circunscrita na luta, no movimento.
Tanto nos dados quantitativos
trazidos na pesquisa, quanto nos
qualitativos representados nas falas dos
sujeitos, evidencia-se a importância
atribuída à educação para o
desenvolvimento sócio-econômico-cultural
e ambiental do assentamento, dando
grande destaque ao MST como promotor
da expansão das liberdades e capacidades
do indivíduo, formando-o para o exercício
da cidadania. Os resultados reforçam as
palavras de Cury (2002, p. 260), quando
declara que
o acesso à educação é também um
meio de abertura que ao indivíduo
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uma chave de autoconstrução e de se
reconhecer como capaz de opções. O
direito à educação, nesta medida, é
uma oportunidade de crescimento
cidadão, um caminho de opções
diferenciadas e uma chave de
crescente estima de si.
Nesta percepção de formação para
autonomia, Caldart (2009, p. 5) também
destaca que “Os Sem Terra se educam,
quer dizer, se humanizam e se formam
como sujeitos sociais no próprio
movimento da luta que diretamente
desencadeiam”. A afirmação da autora
corrobora a narrativa de Areca, quando
define a educação como instrumento que
potencializa a luta, e o conhecimento como
um bem inviolável de homens e mulheres.
A educação é a base de tudo né,
então assim se você não tem
educação ... não consegue até mesmo
lutar né, porque se você não tiver
educação, você não tem a capacidade
de ir pra luta né, então, o
conhecimento né, esse conhecimento
vem através da educação... não ter
dinheiro é uma coisa, agora você
enquanto pessoa, você tem os seus
direitos né, você tem o direito a
estudar, é através do estudo que você
vai ter uma vida mais digna né,
porque o conhecimento é algo que
ninguém tira de você, não é? então é
isso que você leva pra sua vida, e o
Movimento Sem Terra esclarece
muito bem isso, é dizer: oh, você tem
direitos né, você é dono do seu
próprio destino, não é os outros que
vai fazer o seu destino, e sim você
mesmo (Areca, excerto extraído do
Grupo Focal 01, realizado em
maio de 2016).
Areca também nos chama atenção ao
papel do MST frente à construção da
autonomia dos sujeitos, especialmente ao
declarar que, cada um é dono do seu
próprio destino, contudo, apreendendo o
que tem de direito e lutando por ele. Desse
modo, como destaca Freire (1983, p. 32), a
autonomia é uma conquista, e implica em
libertação das estruturas opressoras. “A
libertação a que não chegarão pelo acaso,
mas pela práxis de sua busca; pelo
conhecimento e reconhecimento da
necessidade de lutar por ela”.
Outro relato que merece destaque,
dentre outras, é o de Aricuri, relembrando
umas das místicas do movimento, “o
assentamento é a nossa escola e o MST é o
nosso principal educador”, -se nessa
frase que educar não é somente o papel da
instituição escolar, mas o território, o
movimento, a casa, a terra, que vão se
configurando numa grande escola, e vão
tecendo currículos que não estão
preocupados apenas com o seguimento
escolar, mas com a vida, o trabalho e a
luta, dentre outros elementos. Ainda em
relação à frase supracitada, Aricuri diz que
ela acaba ajudando a todos nessa
parte da educação, porque em
primeiro lugar, primeiramente em
tudo, pra gente buscar tudo, a gente
precisa ter a educação, não é a
educação que ocorre em quatro
paredes, que é uma escola ali que vai
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formar, e sim aquela educação que
está presente no buscar, no agir, é
aquela educação diferenciada que
você precisa compreender que não é
só em quatro paredes que você vai
obter essa educação, é nessa conversa
que a gente ta tendo aqui, que a gente
vai direcionar, que a gente vai buscar
esse passo a passo, não precisa a
gente está nessa visão da escola de
quatro paredes, mas debaixo de um
de árvore, em uma palestra que a
gente tem ali... na busca pela
educação, o movimento ele se
preocupa muito, em primeira
instância ele se preocupa em montar
num acampamento, o segundo
objetivo dele é a escola, ali junto com
a saúde ... ele procura buscar cada dia
mais cursos: às vezes a gente vai está
em uma reunião, em uma assembleia,
por exemplo, ali nós achamos que
é uma discussão que está no
assentamento, muitos não conseguem
compreender que aquela assembleia
sendo uma escola, porque aquela
assembleia ali, ela tá direcionando,
então isso que é interessante, que a
cada dia me passa a cativar mais pelo
movimento, porque você sem
perceber acaba, a cada instante,
aprendendo, como diz, somos eternos
aprendizes né, a cada momento a
gente ali buscando ... (Aricuri,
excerto extraído do Grupo Focal nº4,
realizado em maio de 2015).
Evidencia-se neste discurso a
relevância da educação não formal dentro
do MST, uma educação para além dos
muros da escola; uma educação que se
na práxis da vida cotidiana, no exercício da
cidadania e na participação social; uma
educação que se oportuniza na luta por
direitos, no enfrentamento às estruturas de
poder e opressão; o que Kant (1996, p. 30)
bem defende quando diz que a educação
não deve ser puramente mecânica e nem se
fundar no raciocínio puro, mas deve
apoiar-se em princípios e guiar-se pela
experiência, por aquilo que nos toca, como
bem traduz Aricuri: uma aprendizagem
infinita com os pares, nas reuniões, nas
assembleias, nas conversas, nas ocupações,
nos conflitos, na luta.
Formar para a autonomia, tornar
consciente e reflexivo este processo de
aprendizagem que se dá na trajetória de
luta, é, para Caldart (2009), um dos
grandes desafios pedagógicos do MST e
uma das principais razões de se valorizar
cada vez as estratégias e práticas
pedagógicas desencadeadas no interior dos
assentamentos e acampamentos do
movimento.
Neste sentido, somente nos
assumindo como seres sócio-histórico-
culturais, como recomenda Freire (2007),
nos reconhecendo como sujeitos de ação e
ressignificação na/da história, poderemos
avançar nesta expansão de capacidades e
liberdades fundamentais, neste estado de
consciência crítica e reflexão a que
chamamos de autonomia. Sem isto,
conforme Caldart (2009, p. 6), “os novos
sujeitos sociais não conseguirão se tornar
sujeitos políticos, capazes de efetivamente
fazer diferença no desenrolar da luta de
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classes, e na reconstrução de nosso projeto
de humanidade”.
Na visão da autora, os sem-terra se
educam, se formam, se libertam e, enfim,
se humanizam como sujeitos sociais na
medida em que participam do próprio
movimento da luta pela terra e por direitos,
ou seja, como já dizia Freire “a libertação a
que não chegarão pelo acaso, mas pela
práxis de sua busca; pelo conhecimento e
reconhecimento da necessidade de lutar
por ela”. (Freire, 1983, p.32).
Os relatos dos sujeitos dessa
pesquisa evidenciam, a todo o momento, o
quão educativo é a vivência dos processos
de luta pela terra e manutenção e
desenvolvimento das áreas de
assentamento. A escola se configura como
mais uma ferramenta de formação para
autonomia dos sujeitos que ali vivem,
dentre tantas outras que se desenvolvem na
dinâmica da vida em comunidade. A
educação, seja formal ou não, tem especial
relevância e influência no desenvolvimento
sócio-econômico-cultural e ambiental do
Assentamento, destacando-se o princípio
educativo do próprio MST, como agente
promotor da expansão das liberdades e
capacidades dos sem-terra, formando-os
para a autonomia e para o exercício da
cidadania.
Desenvolvimento Comunitário Rural:
um desenvolvimento medido a partir da
autonomia, participação e liberdades
dos sujeitos
Segundo Silva e Arns (2002), a ideia
de desenvolvimento comunitário como
uma ação governamental surgiu no pós-
guerra, período da história em que se deu a
divisão do mundo nos blocos de
capitalistas e socialistas. Conforme os
autores, surgiu também no início da
guerra-fria, como uma estratégia dos países
capitalistas para assegurar a ordem social.
A ação prática proposta para o
desenvolvimento comunitário, ainda
segundo os referidos autores,
fundamentou-se na ideia de que “a pobreza
tornava os povos receptivos à propaganda
comunista e de que a ajuda aos povos
subdesenvolvidos reverteria em benefícios
econômicos aos Estados Unidos” (Silva &
Arns, 2002, p. 6).
Foi somente a partir dos anos 50 que
a Organização das Nações Unidas [ONU]
se empenhou em divulgar mais
sistematicamente o desenvolvimento
comunitário como um
processo através do qual cada povo
participa do planejamento e da
realização de programas que se
destinam a elevar o padrão de suas
vidas. Isso implica na colaboração
indispensável entre os governos e o
povo para tornar eficazes os
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esquemas de desenvolvimento
viáveis e equilibrados (Ammann,
1981, p. 148).
Silva e Arns (2002, p. 6) ainda
revelam que o conceito de
desenvolvimento começou a ganhar
destaque no Brasil a partir da década de 40,
com os primeiros projetos voltados ao
“incremento da produção de alimentos e a
educação rural e industrial”, e com a
criação de algumas instituições
governamentais, com destaque para a
Associação de Crédito e Assistência Social
[ACAR], em 1948, e as Campanhas de
Educação Rural [CNER] e o Serviço
Social Rural, nas décadas de 40 e 50.
no início da década de 60, ainda
conforme os autores, a prática do
desenvolvimento comunitário avançou,
notadamente com o fortalecimento do
Movimento de Educação de Base [MEB],
originado da Igreja de Natal (RN), órgão
do Estado responsável por ministrar a
educação nas comunidades e organizá-las
socialmente.
A partir de 1964, com as mudanças
no rumo político do país, em virtude do
golpe militar, que reprimiu os movimentos
sociais, é que o desenvolvimento
comunitário seguiu outros caminhos,
“passando ao contexto de ‘integração
social’ que via a participação popular
como meio de ‘ajustar, cooptar, colaborar’
com as diretrizes traçadas pelo Estado em
programas que passaram a privilegiar os
aspectos quantitativos do
desenvolvimento”. (Silva & Arns, 2002, p.
6)
Foi a partir de então, de acordo com
o II Plano Nacional de Desenvolvimento,
que o desenvolvimento comunitário passou
a ser visto como um “processo pelo qual os
responsáveis locais o induzidos, por
equipe técnica, a escolherem alternativas
de desenvolvimento mutuamente coerentes
e que se integrem nas diretrizes emanadas
das instâncias superiores do governo
(Silva & Arns, 2002, p. 6).
Como retratam os autores, o processo
de mudança nos objetivos do
desenvolvimento comunitário, dando aos
seus programas nova orientação política,
não se deu, entretanto, de forma pacífica.
Ocorreram muitos conflitos nesta
transição, principalmente devido ao fato do
Serviço Social Rural não ter aceitado
muito bem esta reestruturação do
desenvolvimento comunitário em bases
diferentes daquelas preconizadas pelo
órgão, o qual concebia o desenvolvimento
comunitário como uma pedagogia de
participação. Diferentemente, o que
predominou foi “uma concepção prática de
participação e articulação que tinha como
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objetivo resultados estabelecidos que
deixavam de fora questões estruturais do
desenvolvimento” (Silva & Arns, 2002, p.
7).
Mais adiante, na década de 1970,
segundo os mesmos autores, foi que os
programas de desenvolvimento
comunitário foram substituídos pelo
Programa Nacional de Centros Sociais
Urbanos, “consolidando sua estratégia de
transformar as ações de comunidades em
atividades comunitárias de integração
social como lazer, treinamento
profissional, previdência e assistência
jurídica” (Silva & Arns, 2002, p.7).
Seguindo esta trajetória, continuam
os autores, foi que a noção de
desenvolvimento comunitário ficou
carregada de preconceitos, uma vez que
este passou a ser entendido como
encobridor de “diferenças de classe e das
desigualdades sociais” (Silva & Arns,
2002, p.7). Em resumo, o desenvolvimento
comunitário foi considerado pelo governo
da época como uma “estratégia
governamental de cooptação e
desarticulação nos movimentos sociais.
o serviço social passou a ser compreendido
como conjunto de práticas assistencialistas,
de caráter paliativo com o objetivo de
encobrir as questões estruturais da
dinâmica social. (Silva & Arns, 2002, p.
7).
Por isso, pela trajetória equivocada
do desenvolvimento comunitário,
particularmente no meio rural, é que, para
resolver as desigualdades sociais existentes
neste meio, sobretudo erradicar o problema
da pobreza, o desenvolvimento rural deve
ser uma prioridade, segundo Weigand
Junior et al. (2003, p. 8-9). Na visão dos
autores,
A experiência nacional e
internacional dos organismos de
promoção do desenvolvimento em
áreas rurais tem mostrado apenas
insucessos e sucessos limitados.
Apesar de mais de 50 anos de ações
de organismos internacionais de
promoção do desenvolvimento em
áreas rurais, o número de pobres
rurais ainda cresce, e a proporção de
pobres nas áreas rurais é maior que
nas áreas urbanas. A diferença de
renda entre populações rurais e
urbanas é agravada ainda pela falta
de oportunidades e de acesso a
educação e saúde.
Todavia, ainda de acordo com os
autores, apesar de todas as dificuldades
enfrentadas na tentativa de promoção do
desenvolvimento comunitário rural, com
seus sucessos e insucessos, as estratégias
adotadas no sentido de promover o
desenvolvimento em territórios
fragilizados “têm mostrado que a
participação das populações locais no
diagnóstico dos problemas, e no
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planejamento e implementação de soluções
torna as políticas e programas de
desenvolvimento mais eficazes” (Weigand
Junior et al., 2003, p. 9). Segundo os
autores, “programas de desenvolvimento
em que as populações locais participam
encontram melhor aceitação, utilizam
melhor os recursos locais e lidam mais
frequentemente com os problemas mais
importantes para as populações locais” (p.
9). Nesta perspectiva, Silva e Arns (2002,
p. 8), utilizando-se da metáfora do
“casulo”, definem o desenvolvimento
comunitário como
... o processo através do qual a
comunidade amadurece em relação a
si mesma e a seus potenciais, rompe
seus casulos e se transforma em
novas possibilidades de ser. A
comunidade pré-existe ao técnico ou
ao programa. Para o bem e para o
mal, sua história, sua trajetória, seus
significados, nos precedem,
configurando cada uma delas como
ser único.
Neste contexto de transformação, os
autores destacam que, assim como a
borboleta rompe seu casulo e alça voo, da
mesma forma a comunidade tem a
capacidade de amadurecer, de definir e
controlar suas próprias prioridades para a
mudança rumo a um modelo de
desenvolvimento real, sustentável, justo e
igualitário.
O sentido de comunidade a que nos
referimos, trata-se de “uma relação social
quando e na medida em que a atitude na
ação social repousa no sentimento
subjetivo dos participantes de pertencer
(afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo
grupo” (Weber, 1972, p. 25). Segundo
Bauman (2003, p. 15-16), “é um
sentimento recíproco e vinculante - a
vontade real e própria daqueles que se
unem; e é graças a esse entendimento e
somente a esse entendimento, que na
comunidade as pessoas permanecem
essencialmente unidas a despeito de todos
os fatores que as separam”. Essa ideia é
corroborada por Areca:
Não é que o líder vai interferir assim
no que a comunidade quer fazer, não
é uma interferência, sim uma
orientação, agora você pode, a sua
vida é a sua vida, se nós buscamos
pela independência, né, (++) ... agora
depende também do que você vai
atrapalhar ... (Areca, excerto extraído
do Grupo Focal 01, realizado em
maio de 2016, p. 9-10).
Ainda conforme Bauman (2003, p.
19), este tipo de comunidade, constituída a
partir de um pacto social, como o que
caracteriza as áreas de assentamento,
“nunca será imune à reflexão, contestação
e discussão” permanentes. Vimos, na
pesquisa, que esse pacto social é selado
entre assentados e lideranças, na forma de
regimento, após ampla discussão em
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assembleia, como destacado nos relatos
abaixo:
... porque aqui tem tipo um papel, o
que deve e o que não pode, tipo
assim, um documento de regimento
falando tudo o que pode e não pode,
você entra nas normas daquele
documento e faz só o certo, porque se
você sai fora da norma, você
desrespeitando a nossa coordenação
(Macaúba, excerto extraído do Grupo
Focal nº 02, realizado em maio de
2016, p. 8).
Em assembleia (++) tem algumas
coisas que tem atas registradas que
tudo que não pode aqui, por exemplo,
quem mora aqui, pegar sua casa e
alugar pra outra pessoa que vem de
fora, que a gente nem conhece, aí não
pode, porque vai trazer um monte de
problema pra gente, trazer filhos com
problemas com drogas, com roubo,
com uma série de coisas, a gente
não aceita (Guariroba, excerto
extraído do Grupo Focal 01,
realizado em maio de 2016, p. 10).
Bauman (2003) também afirma que a
comunidade de entendimento comum,
mesmo que alcançada, permanecerá
sempre frágil, suscetível e vulnerável,
exigindo a constância de forças atuantes no
sentido de vigiar, reforçar e defender sua
ordem e organicidade.
Ademais, com base nos dados e
informações coletados no Assentamento
“Lulão”, constatamos que no
Assentamento existe uma clara
diferenciação entre os objetivos das
produções individual e coletiva dentro da
área, sem, contudo, ser atribuído qualquer
grau de superioridade a um ou a outro,
apenas de função. Enquanto a primeira
produção está relacionada à composição da
renda pessoal e familiar, necessária ao
provento das necessidades da família e à
busca por uma melhor qualidade de vida, a
segunda tem uma função mais social,
formativa, voltada à manutenção da cultura
do associativismo.
Percebemos, ainda, que existe uma
grande defesa dos processos coletivos de
produção e de articulação, e mobilização
social na reivindicação por políticas
públicas, destacando-se a importância da
união para a comunidade, a qual é
atribuída à maioria dos indicadores de
desenvolvimento percebidos: escola, posto
de saúde, agroindústria etc. Assim, se
tomarmos a oferta de serviços públicos na
localidade, como indicador de
desenvolvimento local, podemos inferir
que o Assentamento Lulão” é
desenvolvido, se comparado a outros
assentamentos rurais da região,
corroborando o desiderato da comunidade,
em torná-lo em referência.
Considerações finais
Neste artigo, partimos do
pressuposto de que não se pode alcançar o
desenvolvimento à custa da privação do
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outro, mas a partir do reconhecimento de
que o desenvolvimento é influenciado
positivamente pelo acesso às
oportunidades econômicas, liberdades
políticas, poderes sociais e por condições
habilitadoras, a exemplo da educação e da
participação social.
Defendemos que é através de uma
participação consciente, decisória e
integrada de amplos contingentes da
população local, que é possível aproveitar
o saber-fazer tradicional, o conhecimento
detalhado da realidade e a vontade de agir
dos atores sociais. No que diz respeito à
educação, nossa defesa aqui, para além
desta como um direito humano que deve
ser emergencialmente efetivado, é que não
é mais possível conceber e aceitar o
desenvolvimento sem pensá-lo atrelado à
ideia de promoção da autonomia dos
sujeitos e à ampliação de suas capacidades
e liberdades fundamentais; sem dar-lhes
condições para a conquista do poder como
o conhecimento que possibilita a percepção
crítica da realidade e a reação frente às
injustiças e desigualdades sociais; sem
destacar a diversidade cultural e o respeito
à diferença como importantes medidas de
avaliação no processo desenvolvimentista;
sem possibilitar que as populações
historicamente excluídas consigam se
descobrir e se assumir como capazes de
traçarem suas trajetórias de
desenvolvimento.
Em linhas gerais, seja no sentido da
autonomia para os sujeitos, seja na
dimensão social desta, constatamos que os
indicadores de desenvolvimento do
Assentamento Lulão têm relação direta
com o elevado grau de autonomia de seus
moradores. Uma autonomia forjada no
próprio espaço de vivência, construída na
práxis da luta por direitos e por uma vida
digna, utilizada a favor da coletividade, da
vida comum.
Por fim, fica clara neste artigo a
intenção de ressoar a voz dos
companheiros coautores deste trabalho,
repercutindo o desejo de um grupo que
brada um pedido de respeito a uma
população historicamente subjugada. Um
discurso a favor dessa educação que
denuncia, de forma contundente, as
heteronomias do sistema, e que nos
encoraja, homens e mulheres que
vivenciam a ética universal do ser humano,
a nos unirmos a este movimento social e
político, a promovermos e reivindicarmos
essa educação que liberta e transforma.
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Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 24/07/2017
Aprovado em: 23/10/2017
Publicado em: 07/05/2018
Received on July 24th, 2017
Accepted on October 23th, 2017
Published on May 7th 2018
Contribuições no artigo: Os autores, conjuntamente,
foram os responsáveis por todas as etapas e resultados
da pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação
dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version to be published.
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Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Altemar Felberg
http://orcid.org/0000-0001-8795-3768
Geovani de Jesus Silva
http://orcid.org/0000-0003-4180-4534
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Felberg, A., & Silva, G. J. (2018). Educação do Campo e
Autonomia: desenvolvimento comunitário e pedagogia de
participação no Assentamento do Movimento Sem Terra.
Rev. Bras. Educ. Camp., 3(2), 381-410. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n2p381
ABNT
FELBERG, A.; SILVA, G. J. Educação do Campo e
Autonomia: desenvolvimento comunitário e pedagogia de
participação no Assentamento do Movimento Sem Terra.
Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 2,
mai./ago., p. 381-410, 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n2p381