Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n1p177
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 177-203
jan./abr.
2018
ISSN: 2525-4863
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O Ensino da Física na Educação do Campo:
descolonizadora, instrumentalizadora e participativa
Roberto Gonçalves Barbosa
1
1
Universidade Federal do Paraná - UFPR. Setor Litoral. Licenciatura em Educação do Campo. Rua Jaguariaíva,
512, Caiobá, Matinhos - PR. Brasil. robertobarbosa@ufpr.br
RESUMO. Este trabalho apresenta uma discussão teórico-
prática de caráter epistemológico crítico da Física sua história,
natureza e prática sob o viés do colonialismo a partir da qual
se apresenta as possíveis contribuições do ensino desta
disciplina no contexto da Educação do Campo. O artigo se
divide em três partes: na primeira faz-se a crítica à Física, sua
história, epistemologia e ensino, na qual se expõem os traços de
uma Contra-história da Ciência e também a diferenciação entre a
lógica formal e a lógica dialética fundamentada no filósofo
brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Em seguida, se destaca o caráter
linguístico e reprodutor do ensino da Física. Na segunda parte
discuti-se a Física na Educação do Campo, suas possíveis
contribuições em um ensino centrado no desenvolvimento de
práticas atitudinais, bem como na necessidade de integrar a
Física com outras disciplinas. Por fim, apresenta-se de maneira
sintética uma abordagem metodológica aplicada a duas turmas
de licenciandos do curso de Educação do Campo Ciências da
Natureza da Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral.
Palavras-chave: Ensino de Física, Educação do Campo,
Instrumentalização, Descolonização, Participação.
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The Physics Teaching at the Rural Education: decolonizer,
toolize and participative
ABSTRACT. This paper presents a theoretical and practical
discussion of the critical epistemological nature of physics - its
history, nature and practice - under the bias of colonialism, from
which the possible contributions of the teaching of this
discipline in the context of the Rural Education are presented.
The paper is divided into three parts: in the first is did the
critique of the physics, its history, epistemology and teaching,
which exposes traces of a counter-history of science and also the
differentiation between formal logic and dialectical logic
grounded on the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto, then
the linguistic and reproductive nature of the teaching of Physics
is highlighted. In the second part, it is thought that physics in the
Rural Education its possible contributions in a teaching centered
on the development of attitudinal practices, as well as in the
need to integrate physics with other disciplines. Finally, a
methodological approach applied to two under graduating
classes of the Rural Education course - Natural Sciences is
presented in a summarizing way.
Keywords: Physics Teaching, Rural Education,
Instrumentalization, Decolonization, Participation.
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La Enseñanza de la Física en la Education Rural:
descolonizadora, instrumentalizadora y participativa
RESUMEN. Este trabajo expone una discusión teórico-práctica
de carácter epistemológico crítico de la Física-su historia,
naturaleza y práctica- bajo el sesgo del colonialismo a partir del
cual se presentan las posibles contribuciones de la enseñanza de
esta disciplina en el contexto de la Educación Rural El artículo
se divide en tres partes: en la primera se hace la crítica a la
Física, su historia, epistemología y enseñanza, en el que se
expone traces de una contra-historia de la ciencia y también la
diferenciación entre la lógica formal y la lógica dialéctica
fundamentada en el filósofo brasileño Álvaro Vieira Pinto, a
continuación se destaca el carácter lingüístico y reproductivo de
la enseñanza de la Física. En la segunda parte, se piensa la
Física en la Educación Rural sus posibles contribuciones en una
enseñanza centrada en el desarrollo de prácticas actitudinales,
así como en la necesidad de integrar la Física con otras
disciplinas. Por último, se presenta de manera sintética un
enfoque metodológico aplicado a dos clases licenciandos del
curso de Educación Rural - Ciencias de la Naturaleza.
Palabras clave: Enseñanza de la Física, Educación Rural,
Instrumentalización, Descolonización, Participación.
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Introdução
Neste artigo é apresentada uma
leitura crítica da Física e do seu ensino no
contexto da Educação do Campo,
sobretudo com um viés discursivo focado
no colonialismo e/ou imperialismo
europeu, que foi responsável pela
subjugação dos povos dos continentes
asiático, americano e africano. O termo
descolonização é emprestado do médico
psiquiatra de Martinica, Franz Fanon, que
teorizou e denunciou os efeitos
psicológicos do colonialismo sobre os
negros e também se debruçou sobre os
processos para libertação e revolução dos
povos africanos. Ideias que influenciaram
também o educador brasileiro Paulo Freire
principalmente em sua obra “Pedagogia do
Oprimido”, de onde extraímos a ideia de
participação.
Na concepção de Freire (1967), a
palavra participação está relacionada a uma
ação humana consciente, crítica e criativa e
que pode levar à transformação da situação
concreta de opressão. Opressão que
também foi e é causada pela Ciência
moderna, que se constituiu a partir da
apropriação dos conhecimentos de povos
invadidos. Hoje, a Ciência está a serviço
do capital sob as mais diferentes
expressões do desenvolvimento
tecnológico, sobretudo o agronegócio, que
se ampara na biotecnologia, engenharia
genética, mecatrônica e robótica para
manter uma lógica necrófila. Portanto, é
neste contexto que discutimos a Física, sua
história, epistemologia e linguagem um
trabalho que está dividido em três partes.
Primeiro apresenta-se uma contra-
história da Ciência no que tange à natureza
e à origem da Ciência moderna”,
destacando aspectos e personagens antes
omitidos pela literatura tradicional sob a
perspectiva do colonialismo europeu nos
países Sul Asiáticos, na África e nas
Américas. Em seguida, realiza-se uma
discussão epistemológica da Ciência/Física
de modo particular diferenciando a lógica
formal da lógica dialética a partir do
filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto
i
. E
ao final trata-se de algumas das
características da Física que interferem no
processo de ensino e aprendizagem: a
natureza cultural/representacional, a sua
linguagem e os seus objetivos.
Na segunda parte discute-se a Física
na Educação do Campo e suas possíveis
contribuições em um ensino centrado no
desenvolvimento de práticas atitudinais.
Aqui também se destaca a necessidade
interdisciplinar que a Física deve manter
com outras disciplinas para uma formação
mais holística dos sujeitos do campo.
E por fim, são apresentados os
resultados de uma abordagem
metodológica dialógica realizada com
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estudantes do curso de licenciatura em
Educação do Campo Ciências da
Natureza da Universidade Federal do
Paraná Setor Litoral, abordagem esta
inspirada na frase “o diálogo começa na
busca do conteúdo programático”, do
educador brasileiro Paulo Freire.
Crítica à Física, a sua história,
epistemologia e ao seu Ensino
Contra-história da Ciência/Física
A Física é uma disciplina científica
de grande destaque dentro e fora da
academia, é uma Ciência que reúne
instrumentos técnicos e/ou tecnológicos,
processos e saberes relacionados as
diferentes formas de energia, aos
movimentos das coisas e as interações
entre objetos. A Física busca explicações a
respeito do mundo observando
regularidades e padrões que ocorrem no
meio natural como as fases da Lua, o
movimento do Sol e as mudanças
climáticas. Muitos saberes da Física
advieram de civilizações milenares como
os babilônios, os chineses, indianos,
árabes, sul-africanos e norte-africanos
como os egípcios sem considerar os
conhecimentos advindos dos povos tribais
e/ou indígenas.
Os conhecimentos que geralmente
são creditados aos gregos tiveram a sua
origem no Sul da Ásia e também no Egito.
Segundo Goonatilake (1982), quase todas
as teorias, religiões, filosofias e a
matemática ensinadas pelos pitagóricos
eram conhecidas na Índia no século VI
a.C. isto é, antes de Pitágoras, inclusive o
célebre teorema de Pitágoras era
conhecido no Sul da Ásia, assim como o
conceito de números irracionais.
Conhecimentos que chegaram
posteriormente à Europa graças a
participação dos Árabes.
... Em geral, enquanto a Europa
medieval estava na escuridão
científica, o conhecimento
continuava a crescer rapidamente e
era acumulado no Sul da Ásia. O
estribo para cavalo, o arco de violino
javanês de formato chinês, o arco
pontudo e o dome (cúpula) da
arquitetura budista, a agulha
magnética e o papel, e possivelmente
a pólvora que era conhecida na China
pelo menos dois séculos antes de
ser conhecida na Europa são algumas
invenções tecnológicas que foram
levadas da Ásia para Europa no
período medieval. No início da
renascença a crença que tomou conta
da Europa de que o progresso
tecnológico era desejável e possível,
associado às grandes jornadas
marítimas, os Europeus tiveram ao
seu comando um amplo conjunto de
dispositivos e habilidades...
(Goonatilake, 1982, p. 423).
Para o físico brasileiro Mário
Schenberg (2001, p. 52),
parece que o grande impulso de
desenvolvimento cultural na Europa
surgiu com as cruzadas que não
tinham um objetivo propriamente
religioso, mas também finalidades
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econômicas de conquistar e saquear,
pois aquelas regiões do Oriente
Médio eram muito mais adiantadas.
Os cruzados entraram em contato
com civilizações adiantadas e de
trouxeram para Europa cristã
conhecimentos e tecnologias
ignorados. Parece que a a própria
arquitetura gótica não foi uma
criação europeia, o princípio dessa
arquitetura foi certamente importado
do Oriente. Assim como o emprego
da energia pluvial (moinho d’água).
Nos séculos XV e XVI, com ajuda
da cartografia e da geografia já bastante
desenvolvidas, os europeus rumaram em
direção as Américas refazendo rotas
percorridas por povos indígenas
americanos. Nas Américas e também no
continente africano, eles invadiram,
escravizaram e saquearam objetos, plantas
e conhecimentos dos povos originais.
Conhecimentos que na Europa foram
reorganizados em disciplinas como
Botânica, Física, Química, Biologia,
Astronomia, Medicina, Arqueologia, entre
outras. Conhecimentos que foram
reelaborados e reeditados no contexto
europeu, sobretudo apagando as suas
origens, o que transformou o conhecimento
científico universal e plural em algo
particular e de domínio de uma única
sociedade a europeia. Segundo
Feyerabend (1977),
o surgimento da Ciência moderna
coincide com a supressão das tribos
não ocidentais pelos invasores
ocidentais. As tribos não são apenas
fisicamente suprimidas, mas perdem
a independência intelectual e se vêem
forçadas a adotar a sanguinária
religião do amor fraternal o
Cristianismo. Os membros mais
inteligentes conseguem uma
vantagem adicional: são iniciados
nos mistérios do Racionalismo
Ocidental e no que é sua culminância
a Ciência ocidental (Feyerabend,
1977, p. 453).
Este período foi também chamado de
iluminista, para Smith (1999) o iluminismo
proveu o espírito, o ímpeto, a confiança e a
estrutura econômica e política que facilitou
a busca por novos conhecimentos. Em
outros termos,
Os povos indígenas foram
classificados do mesmo modo que a
flora e a fauna; tipologias
hierárquicas dos humanos e sistemas
de representação foram elaborados e
objetivados por novas descobertas;
mapas culturais foram traçados e
territórios reivindicados e
contestados pelos principais poderes
europeus. Ao mesmo tempo alguns
povos indígenas foram ranqueados e
comparados a outros em termos de
coisas como as crenças nas quais eles
eram considerados ‘próximos aos
humanos’, ‘quase humanos’ ou ‘sub-
humanos’ (Smith, 1999, p. 59).
Adicionalmente a isto, a ideia de
superioridade (Fanon, 2004; Said, 1979)
que povoava o imaginário dos europeus
neste período legitimou o domínio e a
violência sobre homens, mulheres e
crianças indígenas, denominados de
selvagens, bárbaros e não civilizados. Para
o historiador estadunidense Howard Zinn
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(1997), a desumanização do “inimigo” tem
em si um recurso necessário para as
guerras de conquista. É muito fácil
explicar atrocidades se elas são cometidas
contra infiéis (não cristãos) ou contra
pessoas de raça inferior. Um contexto em
que a Ciência ‘moderna’ (e inclui-se a
Física) é reescrita na Europa e
posteriormente disseminada nas colônias,
tal qual o Brasil e toda a América Latina
na qual surgiriam as escolas e
universidades. Nessas instituições os
conhecimentos científicos produzidos em
diversas partes do mundo são difundidos
com nomes de homens brancos e europeus,
Galileu Galilei, Isaac Newton, Descartes e
Francis Bacon, por exemplo, ocultando as
fontes de tais ideias e omitindo a
contribuição anterior de povos como os
chineses, indianos, árabes, norte e sul-
africanos e também dos povos indígenas.
Tais práticas levaram a
consequências nocivas para os povos não
europeus, pois isto legitimou discursos
negativos e racistas vinculados a
humanidade e a capacidade intelectual de
tais povos, que perduram até os dias de
hoje. Neste sentido, para contrapor tais
discursos são apresentados a seguir alguns
exemplos de conhecimentos físicos que
ainda são estudados e cuja origem étnica
foi omitida.
Quadro 1. Conhecimentos físicos e suas origens
étnicas.
Tipo de conhecimento
Origem história
observacional e/ou
explicativa
Lei da gravitação, leis
dos movimentos dos
corpos, movimento das
marés e o cálculo
diferencial.
Babilônios, Povos
indígenas pré-históricos
Maori (4 mil anos a.C.),
Indianos (Varahamihira
- 505 e 587 d.C.,
Brahma Gupta - 628
d.C. e Bhaskara II -
1114 d.C.) e os povos
indígenas brasileiros
os Tupinambás 1614
(Prasad, 1999; Afonso,
2009; Conner, 2005).
Refração e reflexão da
luz e pressão
atmosférica.
Árabes físico
Iraquiano (Al Hazen ou
Ibn Al-Haitham) 1039
d.C. (Sarton, 1927).
Explosão da supernova,
nebulosa de caranguejo
e a bússola.
Chineses e Egípcios
(1054 d.C) (Reeves,
1986).
Estrela Sirius, sistema
solar, anéis de saturno,
estrutura espiral da via
láctea, a aridez da Lua .
Povos Sul-africanos ‘Os
Dogons’
conhecimento milenar
(Adams, 2007).
Caráter não uniforme da
aceleração e
consideração que
velocidade da luz é
muito mais rápida que a
velocidade do som.
Persa e/ou mulçumano
(Al-Biruni - 1021)
(Pappademos, 2007).
Fonte: Pesquisa do autor.
Como se pode notar, os
conhecimentos e os sujeitos citados
expõem uma pluralidade geográfica,
cultural e temporal da Ciência ainda
estudada, que não advém dos europeus.
Diversidade que foi omitida em nome da
dominação e da exploração europeia sobre
os outros povos do mundo, prática que
ocorreu por meio de uma limpeza ou
apagamento étnico-cultural que gerou
rótulos e legitimou ações violentas sobre
indígenas, indianos, chineses e africanos.
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Segundo Fanon (2004), a opulência
europeia foi fundada sobre a escravidão. O
bem-estar e o progresso da Europa foram
construídos com o suor e os cadáveres de
negros, árabes, índios e raças amarelas.
Epistemologia crítica da Ciência/Física
A discussão epistemológica que aqui
se apresenta refere-se basicamente a tratar
da relação dialética entre sujeito e objeto,
homem/mulher e o mundo natural e é nesta
relação que a Física/Ciência é produzida.
Baseado nas suas condições de existência,
a humanidade em contato com o mundo o
interpreta e o representa, por esta razão
pode-se dizer que a Ciência faz parte da
cultura humana que envolve entre outras
atividades o estudo das plantas: suas
propriedades medicinais, físicas, químicas
e biológicas; o estudo do Sol: como fonte
de luz, calor e vida; o estudo do mar: sua
natureza, movimento e energia; o estudo
do céu: sua beleza, seus astros, a chuva e
os ventos; o estudo do fogo: seu poder e
calor; o estudo dos animais: sua natureza,
velocidade e fisiologia; etc.
Conhecimentos que estão vinculados
diretamente com a criação e o
aperfeiçoamento de instrumentos técnicos
ou tecnológicos originados historicamente
em seus primórdios da experiência
cotidiana de pessoas comuns tais como,
parteiras, cozinheiras, pescadores,
caçadores, marinheiros, mineradores,
curandeiros, artesãos, agricultores e
comerciantes (Conner, 2005) e que foram
registrados e acumulados durante os
séculos por diferentes povos, ao mesmo
tempo em que a sociedade foi se
modificando e adotando cada vez mais
produtos da Ciência na fabricação da vida,
seus modos de agir e pensar.
Sob regimes imperialistas,
colonialistas e capitalistas os
conhecimentos científicos tornaram-se
instrumentos para fins econômicos e de
domínio de certos grupos sobre outros,
sendo que os grupos dominadores se
apropriaram dos saberes científicos e dos
modos de produção de outros povos para
então produzir mercadorias para compra e
venda. São eles, por exemplo, que
patrocinam os grandes laboratórios de
pesquisa genética-alimentícia, informática,
bélica, das comunicações, e da química
medicinal, estética e industrial. São essas
organizações as quais os cientistas estão
submetidos e que influem em suas
elaborações teórico-metodológicas de
pesquisa e que, portanto, não são formas
neutras nem ‘puras’ de se fazer Ciência.
Na visão de Pinto (1979, p. 152),
A ingênua equiparação da Ciência
“pura” ao trabalho de formulação
teórica, em qualquer ramo do
conhecimento não passa de um
sofisma forjado pelos autores de
Ciência “pura” com o propósito de
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parecerem, eles próprios, puros.
Trata-se de uma racionalização
destinada a fazer crer que tais
homens de Ciência não servem a
interesses subalternos. Trata-se de
uma ocultação da realidade
existencial do cientista, que este
acolhe e propala com o propósito de
pacificar a própria consciência e
descarregar a responsabilidade pelos
serviços que presta a finalidades às
quais, de outro modo, teria
possivelmente, escrúpulos em servir.
Os pesquisadores que não têm
consciência do seu papel enquanto agente
submisso a um sistema de interesses
econômicos e políticos, pode - se dizer que
estão com a sua consciência alienada. “A
consciência alienada é fundamentalmente
consumidora de ideias ... O homem
alienado não pode ser produtor, limita-se a
ser depredador e repetidor de ideias
alheias, é incapaz de ter um pensamento
original” (Pinto, 1979, p. 52)
ii
. Neste
panorama, para nos ajudar a compreender
melhor o fazer Ciência e sua representação
realiza-se, a seguir, uma diferenciação
entre a lógica formal e a lógica dialética.
Lógica formal ou Epistemologia
positivista e Lógica dialética ou
Epistemologia crítica
A alienação referida anteriormente se
deve muitas vezes a ênfase na
consideração da Ciência da perspectiva da
lógica formal, pois como o próprio nome
diz tal lógica foca sobre as normas e
padrões de pensamento formalizados a
partir de recortes da realidade objetiva. A
grande ingenuidade desta corrente de
pensamento é que ela busca, a partir de
premissas específicas, explicar o mundo
por meio de postulados ou leis
supostamente gerais, uma perspectiva cujo
foco está na linguagem, quer dizer no
discurso, no mundo das ideias. Tal
condição muitas vezes leva a uma
confusão que é identificar a Ciência com
sua linguagem, isto é, com sua expressão
formal. Segundo Pinto (1979, p. 79-80),
A linguagem não representa um
ingrediente fundamental para a
constituição da Ciência, como
querem as escolas analistas e
semânticas, que confundem a
transmissão do saber científico com a
formulação dele na relação
existencial entre o homem e a
realidade .... A linguagem, como
modo social de comunicação, se
constitui em tema de estudo
relacionado com o problema da
Ciência, porque os métodos de
descobrimento da realidade são de tal
maneira complexos e refinados, que
impõe a exigência de que seus
resultados sejam expressos em
manifestações convencionais tão
rigorosas quanto possível, pois se
trata de ‘transmitir’ a outro indivíduo
o que o criador do conhecimento, o
cientista, elaborou ou descobriu.
Logo a Ciência não é linguagem
iii
e
considerar isso, é negar o mundo sensível,
é permitir que o discurso construa o mundo
real objetivo e este torne-se verdadeiro e
inquestionável, independentemente se os
sentidos dizem outra coisa. Além disso, tal
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visão desconsidera a complexidade do
fazer Ciência, sua riqueza imagética,
lógica, metodológica, prática e filosófica.
Por esta razão a epistemologia positivista é
considerada ingênua ou acrítica, pois ela
não questiona suas afirmações e nem seus
métodos. Um exemplo disso foi a
explicação equivocada dada por Galilei ao
movimento das marés, que se baseou nas
descrições aristotélicas, ptolomaicas e
copernicanas e não em dados
observacionais e empíricos disponíveis na
época. Segundo Afonso (2009, p. 63),
Galileu demonstrou que da
composição desses dois movimentos
circulares uniformes, diurno e anual,
resulta um movimento disforme,
acelerado e retardado, para partes da
superfície terrestre. Para ele, essa
variação na velocidade resultante
provocaria o fluxo e o repuxo das
marés, ou seja, a subida e a descida
do vel médio das águas dos
oceanos, sem necessidade de
participação da Lua.
Os indígenas brasileiros, os
tupinambás que obviamente não
dominavam todas essas nomenclaturas
muito menos o latim, segundo o relato de
um padre capuchinho francês, sabiam de
sua experiência vivencial próxima à costa
brasileira, que a elevação e o abaixamento
do nível do mar se deviam à atração
gravitacional da Lua, uma explicação
conhecida por eles por pelo menos 18 anos
antes de Galileu e 73 anos antes de Newton
(D’Abbeville, 2008).
Diante disso, tal fato expõe a
limitação da lógica formal para conhecer o
mundo, pois esta não adota a prática social
como critério de verdade, quer dizer, a
prática enquanto confirmação do conteúdo
da ideia imaginada (Pinto, 1979). A
experiência científica serve como exemplo
desse tipo de confirmação, porém a sua
validade não está nesta prática em si, mas
em um conjunto de evidências que
pertencem ao contexto sociocultural no
qual os instrumentos e os sujeitos se
inserem. Neste sentido a coerência e a
fidedignidade dessas evidências devem
considerar pelos menos dois aspectos a
finalidade social da pesquisa (para quê? e
para quem?) e a possibilidade de observar
regularidades e padrões por outros sujeitos
sob condições similares. Podemos dizer
que estes dois aspectos são as bases da
epistemologia crítica, pois diferentemente
da epistemologia positivista, que foca ora
nas ideias (idealismo, metafísica) ora na
experiência (empirismo), a lógica dialética
considera a relação inseparável do sujeito-
mundo ou do mundo-sujeito, pois
não é legítimo conceber qualquer
teoria científica, nem examinar o
valor lógico das que compõe a
Ciência atual, em qualquer domínio,
sem mencionar a presença do homem
(ou mulher). ... A necessidade de
tratar os dados das Ciências no seu
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conteúdo imediato pode fazer-nos
esquecer que tais dados se de um
lado são dados da realidade, do
mundo exterior ou do universo de
abstrações inteligíveis, como nas
matemáticas, por outro lado são
dados do homem ... não ao indivíduo
isolado, mas ao ser social que se
constitui em criador da Ciência
(Pinto, 1979, p. 115).
Por esta razão a epistemologia crítica
contraditória por natureza é mais avançada
em termos de análise, pois encara o mundo
dialeticamente e organiza e disponibiliza
suas ideias formalmente, isto é, engloba a
lógica formal. Sobretudo, considera a
prática social como critério de verdade,
ora, não se prende a discursos para
observar a realidade, mas observa o mundo
e confronta o que e sente com o que é
dito. Por exemplo, não se pode acreditar
que a Ciência começou na Grécia, ou que
Descartes, Galileu e Newton são os
grandes precursores da forma de
pensamento a respeito dos objetos
científicos e tecnológicos que levaria ao
tipo de sociedade em que vivemos hoje.
Isso é uma grande ingenuidade que por
séculos tem sido difundida e reforçada em
nossas mentes principalmente nas escolas e
universidades. Segundo Pinto (1979, p.
56),
O mundo do pensar formal,
metafísico, apresenta-se a si mesmo
autossuficiente, sem desvelar as
próprias imperfeições. É preciso ser
objeto do exame por parte de um
pensamento que o envolve e o
particulariza para que venha
reconhecer sua validade menor. Tal
atitude dificilmente será esperada dos
homens de Ciência, educados no
estilo de pensar formal, geralmente
distantes e desinteressados do que
chamam especulações filosóficas,
que quase nunca encontram
ressonância no seu espírito,
parecendo-lhe perda de precioso
tempo que deveria ser dedicado ao
trabalho efetivo. Contra tal postura
não cremos que haja remédio senão
na formação adequada de novas
gerações de pesquisadores.
Em face dessas considerações é
possível afirmar que a adoção de uma
epistemologia crítica é uma necessidade
premente, pois ela possibilita uma
compreensão mais totalizante da realidade
cujo sujeito é parte. Neste quadro um
elemento indispensável é a sociologia da
Ciência, o estudo das condições materiais e
sociais em que se realiza esse produto
cultural, na ausência desses elementos,
fatos e condições de produção dos
conhecimentos científicos são omitidos, o
que impossibilita uma compreensão mais
holística dos saberes ensinados. Do ponto
de vista da lógica dialética a
impessoalidade, a atemporalidade e a
suposta rigidez das ideias científicas
servem para ocultar a sua verdadeira
natureza política e ideológica. Foi isso que
os defensores da chamada Ciência
moderna fizeram, ocultaram as fontes de
saber indiana, chinesa, africana e indígena
de suas supostas ‘descobertas’.
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Ensino de Física - reprodução, alienação
e expulsão
A Física de modo geral é tratada
como uma linguagem, símbolos,
terminologias, expressões matemáticas,
que devem ser ensinadas. Neste sentido,
aprender os conceitos e ideias desta
disciplina se refere a dominar palavras e
processos matemáticos. O problema desta
consideração é que esta concepção é
reducionista
iv
, pois despreza um grande
grupo de objetos, práticas e motivações
que levaram a este ou aquele conceito ou
ideia.
Tal condição provavelmente
contribui para que a grande maioria dos
estudantes não a compreenda, pois como
foi dito anteriormente a linguagem é
apenas o aspecto formal da atividade
científica. Quadro que pode ser observado
nas práticas avaliativas que demonstram o
quão reprodutor, no sentido vygotskyano
v
do termo, este processo tem sido, pois é
durante as avaliações que os alunos são
solicitados a repetirem palavras-ideias e/ou
palavras-conceitos e a resolverem
problemas, que raramente o fazem de
maneira estrita.
Um quadro que possivelmente está
vinculado ao foco academicista que subjaz
os objetivos e os processos de ensino e
aprendizagem da Física. Estes de modo
geral são pensados e planejados para um
contexto escolar ou universitário, sem
levar em conta a finalidade social, política
e econômica da formação dos sujeitos.
Além disso, embora as instituições
educacionais tenham um vínculo e um
papel com o todo social, muitas de suas
práticas se voltam para a formação de um
sujeito repetidor ou imitador de ideias, o
que pode levá-lo a ser um sujeito incapaz
de um pensamento original e que produza
ou devolva algo útil ou benéfico para a
sociedade, e não sirva apenas para
ascensão individual em uma carreira
profissional, quando esta ocorre (Schiff,
1993; Tragtenberg, 2004; Alencar, 2004).
Neste contexto, ao considerar que
vivemos em uma sociedade em que
diferenças e divisões de classe, pode-se
dizer que a Física, enquanto um
conhecimento difundido a partir do
pensamento-linguagem euro-estadunidense
e que no Brasil e em outros países é
ensinada em escolas blicas seja na área
urbana ou rural, quando se trata dos filhos
da classe trabalhadora, é possível notar
pelo menos três papéis
vi
que ela cumpre:
a) ajudar na expulsão desses
estudantes das instituições de ensino e dos
possíveis benefícios sociais que eles
poderiam, quiçá um dia ter. Entre outras
razões, isto se pela dificuldade de
apreensão deste conhecimento.
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b) contribuir na formação de um
sujeito individualista, alienado, sem
criticidade e reprodutor de ideias alheias,
geralmente conservadoras
vii
(Freire, 1987).
c) formar sujeitos incapazes de criar
algo autêntico ou original e que possam ir
além do que eles aprenderam (Schiff,
1993; Alencar, 2004).
Essas consequências se devem à
insistência em um ensino focado na
memorização de conceitos abstratos
desvinculados da realidade concreta dos
estudantes, bem como da desconsideração
da natureza técnica de sua linguagem e do
desconhecimento do seu escopo. Nesta
direção, a seguir apresentam-se outras
dimensões desse mesmo processo, que
podem contribuir na ou na não
compreensão desta disciplina.
A Física não é a expressão da verdade a
respeito do mundo
É muito comum docentes e
estudantes considerarem que aprender
Física se refere a aprender a verdade sobre
o mundo. Porém, esta visão é equivocada,
pois a Física apenas traduz uma forma
específica de ver e representar a realidade,
que não é a mais correta, nem a mais
verdadeira ou real do que as ideias que os
alunos trazem de casa. Pode-se dizer que
esta confusão ocorre por pelos menos duas
razões: primeiro, às explicações Físicas
que às vezes se aproximam da realidade
dos estudantes (força de atrito, calor,
temperatura, velocidade) e às vezes se
afastam (carga elétrica, campo elétrico e
interações atômicas), e segundo, à ideia de
que aprender Física implica em substituir
os saberes espontâneos dos estudantes por
suas noções e conceitos. Tais concepções
podem confundir os estudantes quanto à
natureza do conhecimento científico. Por
exemplo,
Alunas .... parecem sentir que tópicos
“exóticos” como relatividade e
astrofísica são mais próximos da sua
vida cotidiana que mecânica e
eletricidade, etc. (Angell et al., 2004,
p. 701).
Em uma das minhas turmas de
engenharia Física, eu propus uma
questão sobre a terceira lei de
Newton no exame final. Uma de
minhas melhores alunas após o
exame veio à minha sala muito
chateada. Ela expressou sua confusão
sobre qual dos dois carros após
colidirem ia sentir a maior força, um
carro pequeno, ou um grande
caminhão, e ela reportou que ela
tinha alterado inúmeras vezes a sua
resposta durante a prova. Eu sei, ela
disse, que a Terceira lei de Newton
diz que deve ser igual, mas não pode
estar certo, ou pode. O contexto da
sala de aula a levou a criar um
modelo de Física da sala de aula da
terceira lei de Newton, mas a redação
do discurso comum da questão levou
a trazer a resposta dela ao senso
comum, os objetos maiores exercem
uma força maior. Aprender com
sucesso a terceira lei de Newton não
foi o suficiente para ela se sentir
confortável com as situações em que
deve ser utilizada (Redish &
Steinberg, 1999, p. 13).
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Estes exemplos evidenciam que há
uma falta de esclarecimento por parte dos
estudantes a respeito da Física e da sua
relação com a realidade que sob a
perspectiva dialética, trata-se dentre outras
coisas, de uma representação,
interpretação, nominalização de partes da
realidade sensível, aspecto considerado
também por Lemke (1990), ao afirmar que
o que deveria ser ensinado aos estudantes é
que a Ciência é simplesmente uma
maneira, entre outras, de falar a respeito do
mundo, que é importante e útil, mas não é
a melhor, a mais verdadeira, ou ainda, a
mais completa e suficiente (Lemke, 1990,
p. 176). Além disso, o conhecimento físico
é muitas vezes contra-intuitivo, quer dizer,
não se revela de imediato, pois a sua
existência está condicionada a pré-
condições que precisam ser conhecidas.
Segundo Robilotta (1988, p. 12),
O acesso a esse mundo é feito por
meio de sensações, palavras, imagens
e intuição, e a mente busca a
intimidade do objeto a ser conhecido.
Nesse tipo de conhecimento não
existe a clareza fria da razão.
Entretanto, como afirma Schenberg,
coisas que pela sua própria
natureza não podem ser vistas com
muita clareza. São coisas
corpusculares, e se quiser -las com
clareza, elas somem. E têm que ser
vistas mesmo assim. O
conhecimento está associado ao
enriquecimento do conteúdo da
realidade dos símbolos empregados
no tratamento formal dos problemas
teóricos.
Tais aspectos nos leva a segunda
razão pela qual docentes e estudantes
consideram a Física como expressão da
verdade sobre o mundo. Como é
notoriamente conhecido, as pesquisas em
mudança conceitual provaram que
aprender Física envolve adicionar ao
cabedal de conhecimento dos sujeitos
novas formas de pensar que convivem com
as velhas formas de pensar, portanto não
uma substituição de um conhecimento
pelo outro. Esta ideia se aproxima do que
Mortimer (1996) denominou de perfil
conceitual. Em suas palavras,
A noção de perfil conceitual nos
fornece elementos para entender a
permanência das ideias prévias entre
estudantes que passaram por um
processo de ensino de noções
científicas. Ao mesmo tempo, muda-
se a expectativa em relação ao
destino dessas ideias, que se
reconhece que elas podem
permanecer e conviver com as ideias
científicas, cada qual sendo usada em
contextos apropriados (Mortimer,
1996, p. 34).
Nesta perspectiva é prudente aos
docentes que durante suas avaliações
solicitem aos estudantes que interpretem
um certo aspecto da realidade do ponto de
vista da Física, isto é, que adotem seus
referenciais e representações, ao contrário
de pedirem que opinem sobre determinado
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assunto, o que permitiria aos estudantes o
uso de um referencial não científico.
Características gramaticais e semânticas
da linguagem científica
Como foi citada anteriormente, a
Física representa uma forma específica de
ver e pensar o mundo material, que possui
uma linguagem particular que se diferencia
da linguagem utilizada em conversas
informais. Roth e Lawless (2002)
salientam que a Ciência é, de fato, “uma
forma de cultura que possui os seus
próprios credos, linguagem, práticas
materiais, percepções, teorias e crenças”
(Roth e Lowless, 2002, p. 369). Nesta
perspectiva, Fang (2004, p. 337) salienta
que,
Diferentemente da linguagem
espontânea do dia-a-dia, que é
funcional para construir o
conhecimento de senso comum em
um contexto da vida cotidiana, a
linguagem científica é funcional para
construir um domínio de crenças e
conhecimento científico. A gramática
especializada da linguagem científica
torna possível ao cientista construir
uma interpretação alternativa do
mundo sico a aquela fornecida pelo
discurso espontâneo da linguagem de
senso comum (Halliday & Martin,
1993; Martin & Veel, 1998).
Desse modo e compreendendo que a
linguagem científica tem características
específicas que influem na aprendizagem
da Física, destacamos algumas
características gramaticais e semânticas
que pertencem a esta disciplina que
dificultam a sua apreensão em nível
linguístico. Fang (2004) aponta 4
características da linguagem científica
escrita: densidade informacional,
abstração, tecnicalidade e autoridade.
A densidade informacional se refere
à quantidade de conceitos e ideias
presentes em uma frase, geralmente
representada por substantivos. Por
exemplo: A luz branca é uma onda
eletromagnética policromática que é
detectada pela retina de nossos olhos.
Se um professor apresentar esta
definição para os estudantes que não
conhecem estes termos dificilmente eles
irão compreendê-la. Portanto, é importante
que os docentes tenham consciência da
complexidade que a definição de um
conceito pode ter para os estudantes.
A segunda característica da escrita
científica relacionada à anterior é a
abstração. Diferentemente da linguagem
adquirida espontaneamente e usada para
representar a experiência cotidiana, a
linguagem científica teoriza as
experiências concretas de vida em
entidades abstratas, que podem então ser
examinadas e criticadas. De acordo com
Christie (2001, p. 66), a nominalização das
frases “afasta do contexto imediato da
experiência de vida dos sujeitos e constrói
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verdades, abstrações, generalizações e
argumentos”. A nominalização permite ao
autor criar termos técnicos ou novas
entidades, para estabelecer relações de
causa e efeito entre diferentes fenômenos,
e para sintetizar e sistematizar informações
previamente enunciadas (Veel, 1997, p.
184). Como exemplo, observem a
diferença entre as duas frases a seguir:
A primeira, em linguagem menos
técnica, pode expressar-se da seguinte
maneira: O Sol é uma esfera brilhante que
fica sobre nossas cabeças que nos aquece
que vida as plantas e aos animais. Na
linguagem científica eu poderia dizer: O
Sol é uma estrela de quinta grandeza que
emite radiação infravermelha que eleva a
temperatura do planeta terra e faz com
que as plantas realizem a fotossíntese.
Como se podem notar, os termos
estrela, radiação infravermelha, energia,
temperatura, planeta terra e fotossíntese
são expressões que traduzem ideias e
significações sobre a realidade concreta,
elas são consideradas abstratas porque não
podem ser concebidas de modo imediato,
quer dizer, pelos sentidos, elas são criações
da mente humana condicionadas a um
contexto histórico cultural.
Essas terminologias levam ao
terceiro aspecto gramatical da linguagem
científica, que é o seu caráter técnico, pois
como se pode observar anteriormente trata-
se de termos especializados, ou seja, que
quem domina são pessoas que tiveram
uma formação específica. Segundo
Possenti (1997, p. 20), “o domínio da
linguagem técnica é parte importante da
aprendizagem do cientista. Um estudante
de medicina não fala mais em derrame,
mas em acidente vascular cerebral ou,
simplesmente, em AVC”. Logo, aprender
Física também se refere a dominar o jargão
desta área de conhecimento. Contudo, o
que não pode ocorrer é focar quase que
exclusivamente o ensino da Física na sua
terminologia, sua linguagem e jargão,
como se estivesse ensinando a Física em
toda a sua complexidade.
Este caráter técnico aliado a outras
práticas sociais da Ciência e da tecnologia
levam ao último aspecto aqui destacado da
linguagem científica, que é a sua
autoridade. Obviamente não é somente
pela expressão da linguagem cnica que a
Ciência tem um status de autoridade, os
seus resultados eficazes como prever a
chuva, produzir um comprimido, fazer um
avião voar, tudo isso concede à Ciência e à
tecnologia uma autoridade quase
inquestionável em nossa sociedade.
Feyerabend expressa como a Ciência
constrói a sua autoridade em termos
linguísticos.
Não se diz, algumas pessoas
acreditam que a Terra se move em
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torno do Sol, enquanto outras
consideram que a Terra é uma esfera
oca, onde se contém o Sol, os
planetas, as estrelas fixas. Diz-se: a
Terra gira em torno do Sol e tudo
o mais é pura idiotice (Feyerabend,
1977, p. 456).
Esta autoridade, que muitas vezes é
autoritarismo, submete os cientistas e toda
a sociedade a suas afirmações imperativas
‘verdades parciais’ sobre outras formas de
considerar o mundo, inibindo a diversidade
de ideias, pensamento e práticas.
O conhecimento físico como meio e não
como fim a dualidade conteúdo-
objetivo
O ensino da Física de modo geral
ocorre com foco nos conhecimentos
contidos nos livros didáticos conceitos,
termos, unidades e símbolos, cálculos que
devem ser apreendidos durante as aulas e
embora pareça normal essa forma de
realizar o ensino, ela é reprodutora de
ideias e práticas. Na concepção de Paulo
Freire os conteúdos ou conhecimentos de
ensino devem ser utilizados como um meio
para compreensão da realidade e não como
um objetivo em si mesmo, sobretudo
porque apreender conceitos e ideias em um
campo específico do conhecimento sem
vínculo com o social, não permite
transcendê-lo nem questioná-lo. Ora, se os
docentes desejarem ensinar criticamente é
preciso pensar os objetivos educacionais
para além dos conteúdos, isto é, com foco
no desvelamento da realidade e suas
relações com a humanidade, para escapar
do que eu chamo dualidade conteúdo-
objetivo, na qual ensinar e aprender Física
se refere a memorizar conceitos,
terminologias e simbologias.
Neste sentido, não devemos ter como
objetivo de uma aula de Física aprender as
leis do movimento ou as diferentes formas
de transferir calor entre os corpos, mas sim
propor ou fomentar a busca do
desvelamento de um determinado aspecto
da realidade que exija esses
conhecimentos. Mas aprender esse ou
aquele conceito sem ser uma exigência do
tema em estudo torna a aprendizagem uma
prática vazia e sem sentido.
Assim, o conhecimento conceitual,
informacional é importante, mas quando
desvinculado de um contexto social ou
concreto perde valor e se limita a
compreender uma dimensão muito
particular da realidade que não se liga à
totalidade nem à realidade dos aprendizes.
A Física e a Educação do Campo: a
Física como um instrumento de luta dos
povos do campo
Paradoxalmente para se pensar o
ensino da Física no contexto da Educação
do Campo é preciso, em um primeiro
momento, não pensar na Física. É
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necessário pensar no sujeito da
aprendizagem, nas suas condições
materiais e sociais, pensar os sujeitos no
mundo e o mundo dos sujeitos, sua posição
dentro da estrutura social e suas condições
de existência de injustiça, desigualdade e
opressão. Segundo Caldart (2004, p. 152),
Os sujeitos do campo são aquelas
pessoas que sentem na própria pele
os efeitos desta realidade perversa,
mas que não se conformam com ela.
São sujeitos da resistência no e do
campo: sujeitos que lutam para
continuar sendo agricultores apesar
de uma modelo de agricultura cada
vez mais excludente; sujeitos da luta
pela terra e pela reforma agrária;
sujeitos da luta por melhores
condições de trabalho no campo;
sujeitos da resistência na terra dos
quilombos e pela identidade própria
desta herança; sujeitos da luta pelo
direito de continuar ser indígena e
brasileiro, em terras demarcadas e
identidades e direitos sociais
respeitados; e sujeitos de tantas
outras resistências culturais,
políticas, pedagógicas.
Neste sentido, se o sujeito que você
ensina é o explorado e o maltratado pelo
sistema capitalista é preciso pensar como
ajudá-lo a superar este estado, pois “não há
como verdadeiramente educar os sujeitos
do campo sem transformar as
circunstâncias sociais desumanizantes e
sem prepará-los para serem os sujeitos
dessas transformações” (Caldart, 2004, p.
155). Será que aprender Física pode ajudar
neste compromisso? Como? Perguntas
difíceis de responder, mas vou tentar expor
o meu ponto de vista. Primeiramente, para
saber como a Física pode nos ajudar a
ajudar os alunos, fazemos a seguinte
questão: Do que trata a Física?
a) Surge da relação dialética humanidade-
mundo da ação humana durante sua
experiência vivencial e/ou observacional
e/ou experimental. Experiência que foi se
alterando com a criação de laboratórios e
centros de pesquisa, com instrumentos
tecnológicos cada vez mais sofisticados. A
Física reúne um conjunto de
conhecimentos relacionados à forma como
algumas partes do mundo “funciona”, de
modo geral pertencentes ao mundo natural,
o Sol, os ventos, a Lua.
b) Elabora explicações sobre as coisas do
mundo A atmosfera existe, tem peso e
exerce pressão sobre os nossos corpos. As
marés abaixam e se elevam devido à
interação gravitacional com a Lua. A terra
gira em torno do Sol devido à ação de uma
força gravitacional e/ou da curvatura do
tempo-espaço, uma lente curvada desvia a
trajetória de um feixe de luz.
c) Descreve processos As chuvas
resultam da condensação de vapor d’água
acumulada nas nuvens que se formaram
em razão da evaporação da água dos mares
e rios aquecidos pela radiação solar. O
movimento de um ímã em direção ao
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centro de uma bobina de cobre produz uma
corrente elétrica induzida.
d) Utiliza a matemática na representação e
resolução de problemas geometria e
álgebra.
F = m.a, W = F. d. cos , Ep = m.g.h , P.V
= n.R.T, d = m/v
e) Adota representações gráficas e
simbólicas.
f) Constrói e utiliza instrumentos que
medem e ampliam sua ação lunetas,
termômetros, relógios, bússolas,
espectrômetros e réguas.
g) Imagina e cria universos, partículas,
fótons, buracos negros, elétrons.
Enfim, a Física vinculada a uma área
mais ampla da Ciência e da tecnologia é
uma construção humana a respeito de
certos aspectos que pertencem ao mundo
não artificial, elaborada em razão de
necessidades (sobrevivência, espiritual e
materiais), razões econômicas (comércio,
guerra) e também da curiosidade (saber em
que mundo vivo). Ela pode ser apresentada
por um sujeito individualmente, mas
resulta sempre de contexto histórico e
social que encontrará fundamento quando
confrontado com outros sujeitos de outras
nações. Talvez esteja a beleza da
Ciência/Física, no encontro das
consciências do mundo (Freire, 1987).
Desse modo, para que o ensino de Física
contribua para além da consolidação de um
discurso crítico a respeito da realidade faz
se necessário,
gestar no bojo dos contextos
concretos novas práticas, junto com
os sujeitos da comunidade, novas
relações, seja para com os sujeitos,
seja para com o conhecimento, com o
método. Ação e reflexão
comprometidas sobre a realidade
mutável, gerando ao mesmo tempo
emancipação humana, talvez seja o
grande prenúncio aos cursos de
Licenciatura por área de
conhecimento, munindo-se para isso
de alguns componentes da luta de
classe, ainda escassos na escola da
classe trabalhadora empobrecida do
campo (Ghedini; Von Oncay;
Debortoli, 2014, p. 108).
Por esta razão acredita-se que pensar
uma Educação do Campo que responda os
anseios destacados anteriormente faz
necessário desenvolver em nossos
estudantes de licenciatura práticas que os
capacitem a agir sobre o mundo para
transformá-lo. Nesta perspectiva os
conteúdos e/ou conhecimentos da Física
devem ser utilizados como um meio e não
como um fim (Freire, 1987). Logo, mais
do que ensinar conteúdos, conceitos e
ideias da Física deve-se primar pelo
desenvolvimento de práticas atitudinais,
que serão instrumentos de ação. Os
conhecimentos devem se submeter à
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necessidade de compreensão deste ou
daquele aspecto da realidade. Tais saberes
passam a ser condicionados à exigência do
desenvolvimento de práticas que são
elencadas a seguir.
Quadro 2 Práticas atitudinais e formalização.
Práticas atitudinais
Ação-reflexão
Práticas atitudinais
formais Ação-reflexão
I. Curiosear - observar,
tocar, experimentar.
II. Pensar (mundo -
nós, nós mundo)
pensar dialeticamente.
III. Imaginar e Criar
(ideias e objetos).
IV. Ler e pesquisar.
V. Explicar e descrever
processos.
VI. Projetar, construir,
utilizar instrumentos e
experimentos.
VII. Realizar testes.
VIII. Confrontar,
questionar ideias,
práticas e afirmações.
I. Anotar e/ou escrever.
II. Desenhar e
esquematizar.
III. Representar
graficamente.
IV. Representar
simbolicamente.
IV. Representar
matematicamente e
calcular.
V. Registrar explicações.
VI. Descrever processos.
Fonte: Pesquisa do autor.
Práticas que devem ser
desenvolvidas simultaneamente e a partir
de temas significativos para os sujeitos do
campo, suas relações de vida, trabalho e
condições de existência. Práticas relativas
às ações dos sujeitos tanto no fazer quando
no representar o mundo por meio da
formalização.
Nesta direção a abordagem temática
freiriana tem dois propósitos: aproximar os
estudantes dos conhecimentos científicos a
partir de objetos e práticas que eles
conhecem e ao mesmo tempo, permitir que
se conheça o mundo de uma maneira mais
totalizante. Assim, os conhecimentos e
práticas científicas tornam-se um meio
para o desvelamento da realidade e ao
mesmo tempo um objeto de
instrumentalização dos sujeitos que devem
contribuir para:
a) Ajudar os sujeitos do campo a conhecer
o mundo suas relações com os objetos e
fenômenos naturais, imateriais e
inanimados, terrenos ou extraterrenos, sem
desconsiderar sua natureza histórica e
social.
b) Combater a situação de opressão
apresentar provas científicas de ações
nocivas do agronegócio à sobrevivência
dos sujeitos do campo, construir meios
alternativos para diminuir sua situação de
exploração econômica (aquecedores de
água e geradores alternativos de energia
elétrica).
c) Produzir conhecimento novo novas
relações com o meio ambiente, novas
relações econômicas e novas formas de ver
o mundo.
A Física e a necessidade interdisciplinar
Totalidade do mundo
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Como foi destacada anteriormente, a
Física trata de certos aspectos da realidade
e por isso ela é limitada e limitante, assim
como é qualquer outra disciplina científica,
pois tais disciplinas são constituídas na
especialização embora tenham diálogo e
influência do todo social. E fatalmente um
processo de ensino e aprendizagem
centrado em uma disciplina tende a levar o
aluno à alienação e consequentemente a
uma visão de mundo muito restrita, que
poderá levá-los a aderirem a mensagens
propaladas por quem tem maior poder de
divulgação ou propaganda de
ideias/ideologias como a mídia televisiva,
radiofônica e jornalística que são
patrocinadas, de modo geral, por grandes
grupos econômicos como o do
Agronegócio.
Por isso, pensar a Educação do
Campo no âmbito das Ciências da natureza
e da Física de modo particular, refere-se a
uma leitura de mundo mais abrangente,
mais complexa e menos reducionista. Por
exemplo, falar a respeito da construção de
uma usina hidrelétrica de produção de
energia não se trata apenas de conhecer os
processos e transformações de energia que
ocorrem na produção da eletricidade.
Implica, sobretudo, em conhecer o lugar,
as pessoas que vivem lá, suas famílias,
seus modos de vida, suas raízes e heranças
materiais e imateriais além dos interesses
políticos e econômicos ocultos por traz de
sua implantação.
Neste âmbito faz necessário estudar e
compreender as dimensões sociais,
históricas, políticas e econômicas que
permeiam tais objetivos e temas, pois a
Física difundida de modo geral é
apresentada de maneira que simplifica e
reduz a realidade. Por isso, os livros
didáticos o podem ser usados como
diretrizes das práticas de ensino, pois estes
apenas fornecem recortes de
conhecimentos conceituais e por esta razão
impedem uma visão mais totalizante ou
crítica da realidade.
O diálogo começa na busca pelo
conteúdo programático uma
abordagem metodológica
Inspirado na frase do educador
brasileiro Paulo Freire o diálogo começa
na busca pelo conteúdo programático”, foi
elaborada uma abordagem metodológica
aplicada a duas turmas, uma do primeiro
semestre e outra do quinto, do curso de
Educação do Campo Ciências da
Natureza da Universidade Federal do
Paraná, Setor litoral, com o objetivo de
extrair dos estudantes problemas que os
afetam e que poderiam estar vinculados à
Física. Para além da dimensão dialógica
considerou-se também a necessidade de
escapar dos exercícios prontos que os
livros didáticos trazem, que de modo geral
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não refletem a realidade dos sujeitos do
campo.
Diante disso, procedeu-se com o
seguinte questionamento: Quais são os
nossos problemas físicos? Quais os seus
problemas físicos? Por exemplo; Qual a
velocidade...? Quanto tempo...?, Que
força..., pressão..., energia..., posição...,
espaço..., temperatura..., calor...,
deslocamento. A partir desta
problematização os alunos fizeram as
seguintes questões que são apresentadas no
Quadro 3:
Quadro 3 Questões elaboradas pelos estudantes.
Discussão e Análise
Para analisar as questões elaboradas
pelos estudantes será considerado o
pensamento freireano. Entretanto, em
primeiro lugar será realizada uma análise
da abordagem metodológica empregada.
O método
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Esta abordagem metodológica trata-
se de uma abordagem dialógica, temática e
problematizadora no estrito sentido
freireano, isto porque ela abre espaço para
que os estudantes se pronunciem e
apontem temas ou questões sobre as quais
eles têm algum interesse ou curiosidade, ao
mesmo tempo em que se estabelece o
diálogo entre educador e educandos. Neste
caso em particular, o educador
corresponsável pelo processo de ensino e
aprendizagem traz os elementos que
provocam a ação, a voz dos educandos,
que por sua vez, dão o primeiro passo em
direção à participação no seu próprio
processo de formação, os quais
problematizam a sua própria realidade.
Esta abordagem pode ser considerada
também uma forma de ensinar os futuros
docentes a escapar do condicionamento
dos livros didáticos que não apresentam
problemas de interesse da classe
trabalhadora, além de que, permite
delimitar os tópicos da Física a serem
estudados de acordo com cada contexto.
As questões dos estudantes
Descrição: Na amostra acima são
apresentadas seis questões, que podem ser
classificadas segundo a sua natureza
curiosa ou de necessidade social. As que se
referem ao terrário e ao voo do pássaro
denominamos de curiosas. As outras,
embora reflitam uma curiosidade pessoal,
vinculam-se a uma situação cotidiana, a
uma necessidade social, isto é, à falta de
água na ilha, à deficiência na rede elétrica,
ao deslocamento dos barcos no oceano, e
ao tempo para que uma ostra se
desenvolva. Neste último exemplo, embora
o problema da maturidade de uma ostra
não seja propriamente um problema que a
Física geralmente se debruce, em um curso
como a licenciatura em Educação do
Campo, que adota a área de conhecimento
como foco de ensino, responder esta
questão não deve ser um problema.
Inferência: Como se podem observar,
as questões produzidas pelos estudantes
são autênticas, vinculadas as suas
curiosidades, bem como ao seu cotidiano.
Questões que foram elaboradas a partir de
termos/conceitos físicos para os quais eles
possuíam uma concepção prévia
coincidente ou não com as significações
dadas pela Física. Diferentemente do
caráter abstrato do ensino conceitual da
Física, esta abordagem metodológica
permite estudar diversos temas vinculados
a um contexto. Enfim, não é a Física pela
Física, mas a Física voltada à compreensão
da realidade e quiçá para resolução prática
do problema da falta d’água ou de energia
elétrica que atinge um determinado grupo
social.
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Considerações finais
Por que um ensino de Física
descolonizador? Primeiro, considera-se
assim como Smith (1999) que o sistema
capitalista atual que também recai sobre o
Brasil e outros países do mundo é uma
extensão da política econômica e social
colonialista e imperialista implantada pelos
países europeus nos continentes
americano, asiático e africano por volta do
século XV. Fruto deste período histórico, a
Física se reestrutura segundo a lógica do
pensamento-linguagem europeu, sua
cultura, valores e símbolos.
Tal disciplina inserida em outros
cenários culturais, como o Brasil, torna-se
um conhecimento estranho. Que exige um
grande esforço para ser apreendido,
contudo atrás dessa dificuldade há uma
trapaça, ou seja, sua apresentação que se dá
de forma fragmentada e desvinculada do
seu contexto de produção. Logo, poucos
estudantes irão compreendê-la e os que
assim fizerem correm um grande risco de
alienar-se do mundo objetivo, pois entram
em um mundo conceitual fechado. Os
estudantes filhos da classe trabalhadora, ao
invés disso, são excluídos do sistema
educacional e dos postos de prestígio que
ele supostamente garante. Enfim, esta
dinâmica faz parte de um processo de
domínio que intencionalmente tenta
mostrar aos colonizados que eles são
incapazes de aprender.
Logo, para reverter tal quadro é
preciso escapar desde círculo vicioso do
conteúdo como fim, para o conteúdo como
um meio para compreender, agir e
transformar a realidade. Não apenas isso;
faz-se necessário ajudar os estudantes a ter
o domínio de instrumentos intelectuais, tais
como, classificar, analisar, descrever e
recriar a realidade; e também de
instrumentos técnicos, isto é, projetar,
construir objetos que melhorem suas
condições de vida e de suas comunidades.
Essas práticas, vinculadas a outras
discussões como as questões agrárias e os
fundamentos agroecológicos, permitem
pensar outra abordagem de ensino da
Física para e com os sujeitos do campo que
seja crítica e descolonizadora e portanto
participativa.
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i
Pensador brasileiro nascido no Rio de Janeiro em
1909. Foi chefe do Departamento de Filosofia do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB
fundado em 1955 e extinto em 1964 com o golpe
militar. Exilado na Iugoslávia, aceita o convite do
educador Paulo Freire para trabalhar no Chile.
Álvaro Vieira Pinto é considerado por muitos o
primeiro e universalmente importante filosofo
brasileiro (Cortês, 2003).
ii
As elites dominantes, em sociedades como as
nossas, normalmente alienadas, comportam-se
como animais irracionais: estes depredam a
natureza para subsistir; o homem alienado depreda
a cultura. Toma desta os bens, as ideias, que
armazena no espírito, mas é incapaz de produzir
com elas qualquer coisa de original, ou seja, de
criar a cultura emergente autêntica, com o auxílio
da que absorveu (Pinto, 1979, p. 52).
iii
Se a Ciência tende agora para a formalização dos
seus enunciados, esta inclinação não deve ser
considerada nem geral nem necessária. É um fato
histórico, representa a etapa atual do
desenvolvimento da criação científica. A
comunicação da técnica de produção do fogo pelos
indivíduos das espécies pré-sapiens poderia ter se
dado apenas mediante gestos ou simples imitação, o
que correspondia, para o grau de desenvolvimento
das forças produtivas de então e do ser em processo
de humanização que as dominava, à “formalização
possível em tal época (Pinto, 1979, p. 82).
iv
(Michel) Serres condena a própria escrita,
recusando que a história tenha que ser definida pelo
seu aparecimento. O grafocentrismo, para ele, é
mais uma forma de racismo contra as culturas não
letradas. Mas a crítica é um pouco mais ampla e
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engloba, em realidade, todo o verbo, a palavra, o
discurso: nada insensibiliza mais a carne do que a
palavra, diz ele em Os cinco sentidos. Ou seja, seu
foco implica globalmente tanto a linguagem escrita
quanto a falada, isto é, a própria noção de
representação linguística que faz com que a coisa se
reduza a seus suportes. E tal reducionismo atingiu,
na época atual, graças ao consumo, o cume de seus
desdobramentos, constituindo uma cultura
inteiramente ascética. A administração usa-se da
linguagem para dominar (verborragia vazia dos
políticos), os meios de comunicação seduzem
comunicando, a Ciência impõe seu componente de
verdade pela palavra. Deriva daí uma classe
dominante ébria de códigos, produtora de mundos.
A química social, mais forte que os narcóticos, logo
pior, é dos mass media, das modas. E, em meio a
esse barulho geral da comunicação, ninguém presta
atenção, ninguém aprofunda-se em nada. Theodor
W. Adorno dizia que trabalhar em equipe é
desastroso, pois tudo que é atribuído ao indivíduo
pensante evapora-se na abstração que reduz várias
pessoas à fórmula de uma “consciência comum”.
Serres, como Adorno, acha que quando vários
cientistas se reúnem para realizar uma pesquisa, a
pesquisa lhes escapa, pois somente o verbo domina.
O grupo científico, constituído como torre de
marfim, fecha-se num muro linguístico, prestando
atenção unicamente às palavras (Marcondes Filho,
2005, p. 10).
v
Explicação Reprodutora (não criativa) ou
imitação - expressa a linguagem e/ou o pensamento
constante(s) nos materiais didáticos de Física.
Trata-se especificamente de uma das funções da
imitação, que implica, segundo Pino (1993, p.19),
em uma dupla operação semiótica, em que a
reprodução do modelo se constitui em significante
desse modelo, o qual, por sua vez, refere-se à
pessoa imitada. Nesse caso, ocorre um tipo de
alienação de si mesmo pelo próprio sujeito,
processo em que a voz do “eu” expressa o
pensamento do “outro” (Wertsch, 1991); (Barbosa,
2014, p. 92).
vi
Estas afirmações são extraídas da tese de
doutorado intitulada “Educação Científica e
Tecnológica para Participação: Paulo Freire e a
criatividade” (Barbosa, 2014).
vii
Ideias adotadas pela classe burguesa que visam
manter (conservar) o status quo (Carvalho, 2005,
n.p.).
Recebido em: 29/08/2017
Aprovado em: 12/09/2017
Publicado em: 28/03/2018
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Barbosa, R. G. (2018). O Ensino da Física na
Educação do Campo: descolonizadora,
instrumentalizadora e participativa. Rev. Bras. Educ.
Camp., 3(1), 177-203.
ABNT:
Barbosa, R. G. (2018). O Ensino da Física na
Educação do Campo: descolonizadora,
instrumentalizadora e participativa. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 1, p. 177-203, 2018.
ORCID
Roberto Gonçalves Barbosa
http://orcid.org/0000-0002-0397-4754
http://orcid.org/0000-0002-0397-4754
O autor foi responsável pela elaboração, análise e
interpretação dos dados; escrita e revisão do
conteúdo do manuscrito, bem como pela aprovação
da versão final a ser publicada.