Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n3p763
Tocantinópolis
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O educar-se no campo: caneta, enxada e botânica
camponesa
Matias Köhler
1
, Estela Santos
2
, Cristiane Giaretta
3
, Gilmar Gomes
4
, Sebastião Pinheiro
5
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Programa de s-Graduação em Botânica, Instituto de Biociências.
Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP). Avenida Bento Gonçalves, 9500. Porto Alegre - RS. Brasil.
2,3,4,5
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP).
Autor para correspondência/Author for correspondence: matias.k@ufrgs.br
RESUMO. Neste trabalho, apresentamos e discutimos as
experiências da execução do projeto “Troca de Saberes sobre
Botânica Camponesa”, realizado ao longo do ano de 2014 no
Assentamento Filhos de Sepé (Viamão, RS) com o Grupo
Mulheres da Terra e a Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares. Guardiãs de saberes e práticas ancestrais, o Grupo se
faz atuante em todas as esferas de produção do assentamento.
Ao longo de 12 encontros, diversos temas relacionados às
práticas agroecológicas junto à vida camponesa foram tratados
utilizando-se diferentes abordagens: teóricas, práticas e
reflexivas. Partindo-se de pressupostos educativos que
valorizam os saberes populares, assim como a horizontalidade
dos processos de ensino/aprendizagem, os encontros
contribuíram com o reconhecimento e o fortalecimento da
identidade de resistência no Grupo.
Palavras-chave: Agricultura Camponesa, Educação do Campo,
Educação Ambiental, Educação Popular, Desenvolvimento
Rural.
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Learning in the countryside: pen, hoe and the peasant
botany
ABSTRACT. In this paper, we present and discuss experiences
of the execution of the project “Exchange of Knowledge on
Peasant Botany”, carried out during 2014 at the Assentamento
Filhos de Sepé (Viamão, RS) with the group “Mulheres da
Terra” and the Technological Incubator of Popular
Cooperatives. An important characteristic of the Group is the
role of women. Maintainers of knowledge and ancestral
practices. They become active in all spheres of agriculture
production of the settlement. Throughout 12 meetings, several
themes related with agroecological practices with peasant life
were addressed using different approaches: theoretical, practical
and reflexive. Based on educational assumptions that value
popular knowledge, as well as the horizontality of
teaching/learning processes, the meetings contributed to the
recognition and strengthening of the group’s identity of
resistance against the current globalized agriculture. Likewise,
the progress was made in the construction of autonomy in the
face of techniques and knowledge applied to agroecological
production.
Keywords: Environmental Education, Peasant Agriculture,
Popular Education, Rural Development, Rural Education.
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El educarse en el campo: lápiz, azada y botánica
campesina
RESUMEN. En este trabajo, presentamos y discutimos las
experiencias de la ejecución del proyecto Intercambio de
Saberes sobre Botánica Campesina”, realizado a lo largo del año
2014 en el Asentamiento Hijos de Sepé (Viamão, RS) con el
Grupo Mujeres de la Tierra y la Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares. Guardianes de saberes y prácticas
ancestrales, el Grupo se hace actuante en todas las esferas de
producción del asentamiento. A lo largo de 12 encuentros,
diversos temas relacionados a las prácticas agroecológicas junto
a la vida campesina fueron tratados utilizando diferentes
abordajes: teóricas, prácticas y reflexivas. A partir de
presupuestos educativos que valoran los saberes populares, así
como la horizontalidad de los procesos de
enseñanza/aprendizaje, los encuentros contribuyeron con el
reconocimiento y el fortalecimiento de la identidad de
resistencia en el Grupo.
Palabras-clave: Agricultura Campesina, Educación del Campo,
Educación Ambiental, Educación Popular, Desarrollo Rural.
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Introdução
Falar e agir em educação pressupõe
refletir sobre o próprio conceito de
educação. Isso porque diferentes formas
de compreendê-lo e, assim, de o praticar.
muito tempo se discute concepções e
métodos de educação, com o objetivo de
torná-la mais humana, democrática e
ampla em termos de conhecimento.
Entretanto, o que vivenciamos comumente
ainda nos dias de hoje seja como
alunos ou professores, são práticas que
remontam a conceitos estreitos, do século
passado. De acordo com Gallo (2012), as
teorias pedagógicas do século XX
centraram-se no vínculo entre o ensinar e o
aprender, de maneira que se aprende
aquilo que é ensinado e não se pode
aprender sem que alguém ensine. Esta
visão caminha na direção da
homogeneização do aprendizado, ou seja,
no sentido de buscar que todos aprendam a
mesma coisa, da mesma forma e na mesma
quantidade. Afinal, se é possível
aprender se alguém ensina, é possível
controlar o que, como e o quanto se
aprende.
Embora tais premissas tenham o
objetivo de dinamizar a educação,
tornando-a mais eficiente dentro de uma
perspectiva científica, há que se observar a
sua decadência em termos de resultados.
Talvez porque a ciência também seja um
conceito a ser revisto. A educação é uma
ciência humana e como tal, dinâmica e em
constante transformação, assim como os
processos naturais, que se distanciam e
se opõem aos métodos da ciência
tradicional. Segundo Boaventura de Souza
Santos (1988), o determinismo mecanicista
uma das bases da ciência tradicional é
o horizonte certo de uma forma de
conhecimento que se pretende utilitário e
funcional, reconhecido menos pela
capacidade de compreender
profundamente o real do que pela
capacidade de o dominar e transformar.
Esta perspectiva de ciência é
especialmente nociva quando tratamos de
conhecimentos ligados à natureza e ao
meio ambiente, uma vez que seu
embasamento contribui significativamente
com as lógicas de distanciamento entre o
homem e a natureza. Os caminhos do
desenvolvimento tecnológico, que visam à
manipulação do ambiente, dissociam
culturalmente a humanidade do restante da
natureza, colocando o ser humano em uma
posição de sujeito e a natureza de objeto.
Como consequência, vivemos o
distanciamento moderno e a terceirização
do saber-fazer agrícola, bem como a
hegemonia da mecanização, das
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monoculturas, dos herbicidas, das
sementes compradas. Cenário no qual a
educação ambiental que deveria ser uma
área transversal de conhecimento
encontra sérios obstáculos e se torna uma
disciplina de menor importância,
frequentemente relegada ao status de
entretenimento e/ou de mera curiosidade.
Contudo, o entendimento sobre
ciência vem sendo amplamente discutido,
colocando em cheque as formas de
aquisição de conhecimento e trazendo à
tona a necessidade de se atentar para as
reações envolvidas na construção do saber:
Estamos de novo regressados à
necessidade de perguntar pelas
relações entre a ciência e a virtude,
pelo valor do conhecimento dito
ordinário ou vulgar que nós, sujeitos
individuais ou coletivos, criamos e
usamos para dar sentido às nossas
práticas e que a ciência teima em
considerar irrelevante, ilusório e
falso; e temos finalmente de
perguntar pelo papel de todo o
conhecimento científico acumulado
no enriquecimento ou no
empobrecimento prático das nossas
vidas, ou seja, pelo contributo
positivo ou negativo da ciência para a
nossa felicidade (Santos, 1988, p.
47).
Neste contexto, em que se reflete
sobre a transição paradigmática vivida pela
ciência, de padrões impositivos de
legitimação do conhecimento ao
desenvolvimento que inclui saberes
variados, a educação pode ser
compreendida como um processo de
construção, heterogêneo e diverso. Ao
considerarmos o aprendizado um
acontecimento singular, na medida em que
cada um aprende a seu próprio modo, nem
sempre conduzidos por um professor,
abrimos nossos olhos para a importância
dos saberes oriundos da experiência. Estes,
indissociáveis do ambiente como um todo,
como a vida camponesa, que conhece o
tempo, o clima e os ciclos naturais muito
mais pela própria relação com a natureza
do que por relógios, previsões
meteorológicas ou livros de ciências.
Estes conceitos não pretendem
diminuir a relevância de todo o
conhecimento constituído por meio da
ciência até então, tampouco desvalorizar a
instituição educativa, no entanto, reduzem
o foco dos currículos e das avaliações
unificadas e voltam o nosso olhar para algo
belo e fundamental na educação: a
produção de sentidos. Pode parecer óbvio
que a educação deva produzir sentido, pois
em suma, este é o próprio sentido da
educação. Afinal, o que aprendemos de
algo se não nos fizer sentido? De fato, é
possível produzir sentidos em educação
por meio de relações. E como
aprender/ensinar algo sobre
natureza/ambiente sem relacionar-se com
os mesmos?
Do desejo de transitar dos
tradicionais conceitos de educação para
frutíferos caminhos de construção de
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saberes relacionados com a natureza, com
a produção agroecológica e com a vida
camponesa, surgiu o projeto Troca de
Saberes sobre Botânica Camponesa,
realizado entre os meses de março e
dezembro de 2014, no Assentamento de
Reforma Agrária Filhos de Sepé. A ação
foi construída conjuntamente pela
Incubadora Tecnológica de Cooperativas
Populares (ITCP) da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pelo
grupo Mulheres da Terra, um coletivo do
assentamento protagonizado por mulheres
que atua na produção agroecológica e na
economia solidária. Neste artigo, trazemos
reflexões e relatos deste acontecimento,
que promoveu o encontro entre famílias
camponesas, estudantes, professores e
técnicos universitários, com seus saberes,
por meio da troca e da experiência, bem
como discussões que revelam uma nova
maneira de compreender amplamente a
ideia de desenvolvimento em suas mais
variadas dimensões.
Contextualização
Os atores
O Assentamento Filhos de Sepé fica
localizado no município de Viamão, Rio
Grande do Sul (RS), na Região
Metropolitana de Porto Alegre, e foi criado
em 1998 após conquista por militantes do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). É o maior assentamento do
Estado, com 9.500 hectares, acolhendo
cerca de 376 famílias de distintas
trajetórias pessoais no que diz respeito a
história de vida, originárias de 115
diferentes municípios do estado, com
diferentes modos de vida e relações com a
agricultura.
Uma particularidade do
Assentamento é que está localizado dentro
do perímetro da Área de Proteção
Ambiental do Banhado Grande. Além
disso, tem parte de seu terreno dentro de
uma Unidade de Conservação de Proteção
Integral, o Refúgio da Vida Silvestre
Banhado dos Pachecos. Ambas Unidades
de Conservação pertencem à Secretaria de
Meio Ambiente do RS, e m a finalidade
de conservação e preservação ambiental.
Esta situação coloca as famílias em um
contexto de adequação às exigências e
normas previstas nos Planos de Manejo das
referidas Unidades, com restrições frente
ao uso de recursos naturais e preservação
de recursos hídricos, impondo a
necessidade de toda produção agrícola ser
orgânica, sem o uso de agrotóxicos. Essa
característica vai ao encontro dos
princípios que norteiam as atividades do
grupo enquanto Movimento Social,
fortalecendo a organização do trabalho
qualitativamente diferente do padrão
hegemônico do agronegócio.
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Dentro desse contexto, diversas
iniciativas emergiram para melhor
organização entre as famílias e suas
atividades, com destaque para
cooperativas, associações e coletivos.
Desses, destaca-se o Grupo Mulheres da
Terra. O grupo surgiu do reconhecimento
da importância e relevância do
protagonismo feminino nas atividades
produtivas do assentamento, sejam
trabalhos domésticos ou do campo. Assim,
por meio de princípios da autogestão,
autonomia e agroecologia, mulheres de 15
famílias começaram a se organizar e, com
apoio mútuo e autoestima, estabeleceram
encontros periódicos para diversas
atividades, como formação e capacitação
na área da saúde, agricultura, gênero,
artesanato, panificação, saboaria, dentre
outras. O grupo avançou e estabeleceu-se a
partir de 2000, tendo como principal
atuação a viabilização da comercialização
de produtos oriundos de artesanatos
(bolsas, tapetes, toalhas, lã), da panificação
(pães, bolos, cucas, geleias) e da
agricultura (fruticultura e horticultura).
Nesta trajetória, os caminhos do
Grupo Mulheres da Terra e da
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) se encontraram,
especificamente, por meio da Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares
(ITCP). A ITCP é um programa de
extensão universitária, lotado na Faculdade
de Ciências Econômicas, que visa à
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão atendendo demandas populares e
camponesas do mundo do trabalho. É
formado por um grupo interdisciplinar,
incluindo estudantes de variados cursos de
graduação, além de professores e
servidores técnicos da Faculdade de
Economia da UFRGS. Na ocasião, a
equipe era composta de estudantes de
biologia, ciências sociais, artes visuais,
geografia, agronomia e economia. No
quadro de orientadores, o grupo contava
com o engenheiro agrônomo Sebastião
Pinheiro, que atua desde a década de 1970
com agricultura ecológica. Sebastião,
conhecido como Tião, possui diversos
livros e cartilhas publicadas relacionados à
temática da agricultura, além de dispor de
um magnífico arcabouço teórico
indissociável das práticas que ele domina,
sempre dotado de uma contagiante
animação e positividade que toca todos a
sua volta.
As ações
O projeto “Troca de Saberes sobre
Botânica Camponesa” aconteceu ao longo
do ano de 2014, com encontros mensais
realizados aos sábados, em diferentes
locais do Assentamento. No total, foram
realizados 12 encontros durante os meses
de março e dezembro. O Grupo Mulheres
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da Terra e a ITCP idealizaram tais ações a
partir de reuniões prévias, em que o Grupo
apresentou demandas para as quais
buscava apoio. Estas, em sua maioria,
eram de ordem prática: como evitar os
danos das formigas à horta, como
aumentar a produção, como reconhecer e
manter um solo fértil, como armazenar
sementes, dentre outras. Tais demandas
originaram os temas a serem
desenvolvidos, bem como o cronograma
que melhor as contemplasse.
Como metodologia, cada encontro
foi dividido em três momentos: o primeiro
com uma abordagem teórica-expositiva, o
segundo de maneira teórica-prática, e o
terceiro momento reflexivo/avaliativo. No
primeiro, os assuntos eram apresentados
utilizando exposição oral, roda de
conversas, bem como recursos
audiovisuais (com projeções de vídeos,
fotos e apresentações). O segundo
momento envolvia atividades práticas que
de alguma forma estavam relacionadas
com o tema anteriormente visto, mas
destacava-se pelo fazer e pela “mão na
massa”. Por fim, no último momento,
buscava-se refletir sobre o processo
experienciado por meio de conversas e
discussões, tentando materializar em
registros escritos com cartazes, palavras-
chave, fluxogramas ou resumos o que
havia sido apreendido nas atividades do dia
(Figura 1B-D).
Os temas foram abordados de acordo
com um eixo histórico-temporal,
construído com base em uma perspectiva
evolutiva dos fenômenos da natureza.
Assim, iniciamos falando sobre a origem
do universo e da vida, passando pelas
diversas formas de organismos até
chegarmos no surgimento da agricultura,
na evolução da agricultura, e, por fim,
questões contemporâneas da natureza, da
terra, da ciência e da agricultura
i
.
Plantio de Esperanças
Para marcar simbolicamente o
primeiro encontro, realizou-se uma
atividade de abertura, uma mística, na qual
cada participante escolheu uma semente
para plantar (dentre várias opções
disponíveis) em um recipiente preparado
para a atividade (Figura 1A). Ao plantar,
cada pessoa se apresentou e manifestou os
motivos da escolha da sua semente,
relacionando-os com seus desejos e
expectativas acerca do projeto que estava
sendo iniciado. Embora os participantes
tenham revelado uma grande diversidade
de origens, trajetórias pessoais e
motivações, destacou-se em comum o
sentimento de partilha e cooperativismo
expressos em suas escolhas. As sementes
de leguminosas, como crotalária, feijão e
guandu muito utilizadas para adubar o
solo foram plantadas como homenagem à
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ligação próspera com a terra, bem como
pela simbologia de nutrir o projeto, com os
melhores sentimentos de positividade. O
desejo de produzir frutos e gerar
conhecimentos foi relacionado a sementes
de abóbora, batata e melancia, devido à
opulência, magnitude e sabor dos
alimentos. O fortalecimento de estruturas e
a geração de continuidade e permanência,
foi significado com sementes de milho
cujas verticalidade e força servem de e
apoio para outras espécies - e propágulos
de mandioca cuja raiz, que
vigorosamente descompacta o solo, é um
versátil alimento que garante subsistência.
Figura 1. A. Mística de abertura, com plantio de sementes. B. Momento expositivo teórico,
com falas de Sebastião Pinheiro. C. Atividade prática, na propriedade de uma integrante do
Grupo Mulheres da Terra, para queima da casca de arroz. D. Momento reflexivo, com
construção de fluxogramas e painéis, para fixação dos temas explorados.
Fonte: Pesquisa dos autores (2014).
A riqueza de significados contida nas
ações do grupo revelou uma profunda
relação com a natureza, por meio da qual
são construídos diariamente seus saberes.
Quando se escuta e valoriza a história de
alguém ou de um povo, com suas
memórias, percepções e relações com o
ambiente, percebe-se que o quão valioso é
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o saber da experiência, em que os
processos de aprendizagem independem da
transmissão vertical de conhecimento e,
tampouco, dos caminhos metodológicos
legitimados pela ciência - que valorizam o
distanciamento entre sujeitos e objetos de
estudo - tidos como únicos e
insubstituíveis. O saber que se constrói
com a vivência, por sua vez, é
indissociável da existência e da
subjetividade humanas, conforme explicita
Bondía:
A ciência moderna, a que se inicia
em Bacon e alcança sua formulação
mais elaborada em Descartes,
desconfia da experiência.... uma vez
vencido e abandonado o saber da
experiência e uma vez separado o
conhecimento da existência humana,
temos uma situação paradoxal. Uma
enorme inflação de conhecimentos
objetivos, uma enorme abundância
de artefatos técnicos e uma enorme
pobreza dessas formas de
conhecimento que atuavam na vida
humana, nela inserindo-se e
transformando-a. A vida humana se
fez pobre e necessitada, e o
conhecimento moderno não é o
saber ativo que alimentava,
iluminava e guiava a existência dos
homens, mas algo que flutua no ar,
estéril e desligado dessa vida em que
não pode encarnar-se (Bondía,
2002, p. 28).
Posteriormente, foi realizada uma
apresentação sobre a história da agricultura
e da botânica, destacando-se eventos que
marcaram ambas, com enfoque na
importância do conhecimento sobre as
plantas. Duas atividades práticas foram
realizadas: uma que consistia em fazer um
composto para combate de formigas (com
o uso de frutos cítricos “velhos”/fungados
misturados em água), e outro feitio
chamado “água de vidro” (com o uso de
cinza do fogão à lenha, cal hidratada e
água) que proporciona às plantas uma
maior resistência aos danos da geada, do
frio e até da predação por insetos. Tais
práticas, consideradas novidade pela maior
parte do Grupo, foram conduzidas pelo
Sebastião. Primeiramente, Tião
demonstrou e explicou o funcionamento de
cada um dos ingredientes para o
funcionamento dos compostos. O fungo
que faz apodrecer as laranjas ou demais
cítricos (Penicillium sp.) quando caídos ao
chão do pomar, são inimigos (antagonistas)
naturais dos fungos (Leucogaricus sp.) que
as formigas utilizam em seus ninhos para
se alimentar. Dessa forma, ao se inocular o
fungo dos cítricos nos ninhos de formigas,
mata-se o fungo da qual elas dependem,
diminui-se a população de formigas e,
consequentemente, os eventuais danos que
estas podem causar às hortas. Algumas
agricultoras que haviam feito uso deste
método associaram o conhecimento teórico
à sua prática, manifestando o sentimento
de reconhecimento, devido à confluência
entre os seus saberes e as informações
apresentadas por Tião. Diferentemente de
uma transmissão vertical de informações,
onde o aluno está como um receptáculo de
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conteúdos, houve uma troca de saberes: os
relatos e informações provenientes das
experiências prévias das agricultoras,
agregaram à construção de conhecimento
junto ao grande grupo, que participou das
atividades com grande entusiasmo.
O feitio da água de vidro foi recebido
com muita surpresa pelo grupo, ao
perceber a simplicidade da receita e o
grande potencial de uso. A cinza resultante
da queima da lenha é composta
basicamente de macro e micronutrientes
minerais que variam com a composição da
madeira queimada. Estes minerais exercem
papel fundamental na resistência das
plantas às pragas e às doenças, e quando
combinados com o silício proveniente da
cal, adquirem novas conformações,
atuando como excelente protetor para as
plantas, contra o desenvolvimento de
doenças fúngicas e bacterianas. Além
disso, a água de vidro enrijece e endurece
as plantas, aumentando a epiderme,
tornando as plantas mais resistentes às
geadas e secas, pois diminui a
evapotranspiração (Emater, 2001;
Pinheiro, 2011; 2015).
Ambas as técnicas passaram a ser
adotadas pelo Grupo, que nos encontros
seguintes já deram retorno sobre o uso e os
resultados. A utilização do composto, antes
considerada pelas agricultoras uma
“tentativa” e realizada de maneira
esporádica, ganhou status de um efetivo
método no manejo com as formigas,
podendo ser incorporado às rotinas
agroecológicas. O contentamento também
foi unânime junto à equipe da ITCP, que
por sua vez, pôde contribuir com a
legitimação dos saberes do grupo, pois
saber nenhum deve ser desperdiçado e sim,
ampliado. Em pleno acordo com a
afirmação de Santos (2002, p, 232), a
equipe está certa de que “em primeiro
lugar: a experiência social em todo o
mundo é muito mais ampla e variada do
que o que a tradição científica ou filosófica
ocidental conhece e considera importante.
Em segundo lugar: esta riqueza social está
a ser desperdiçada”.
O reconhecimento de práticas
simples como um meio de alcançar o
manejo da propriedade, motivou as
famílias campesinas, trabalhando a
autoestima do Grupo, repleto de
esperanças. À medida que as famílias
possuem meios para solucionar os
problemas inerentes à prática campesina
sem se tornar refém de agentes externos,
como técnicos especializados, grandes
empresas do agronegócio ou
agropecuárias, o Grupo fortalece a sua
autonomia construída a partir de uma
identidade de resistência (Campos, 2006),
em uma forma mais ampla, trabalhando o
seu Biopoder Camponês (Pinheiro, 2015).
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Do Micro ao Macro
No encontro seguinte, explorou-se
teoricamente a formação do universo e as
origens da vida. Origens, no plural, pois
embora tenha sido apresentada a visão
atualmente aceita pela ciência, o grupo foi
instigado a refletir sobre diferentes
cosmovisões para o assunto, com
contações de histórias indígenas, africanas
e cristãs. A proposta foi bem recebida e
gerou um proveitoso debate acerca das
diferentes hipóteses. Variados níveis de
tolerância à diversidade foram
manifestados, tendo em vista algumas
opiniões marcadas por orientações
religiosas, o que possibilitou trabalhar
questões referentes ao respeito mútuo e à
diversidade da vida como um todo.
A atividade seguinte contemplou
perfeitamente tais discussões, com a
observação de micro-organismos presentes
no cotidiano. Utilizou-se uma técnica
simples e de baixo custo, chamada garrafa
de Winogradsky (Figura 2C). Trata-se de
uma garrafa plástica, na qual se inocula
matéria orgânica proveniente de solo,
lama, areia ou terra juntamente à água. Ao
longo do tempo, é possível verificar a
estratificação de diferentes camadas,
distinguíveis por diferentes colorações, que
correspondem às colônias de micro-
organismos, que de acordo com as
características de cada uma (maior ou
menor afinidade com oxigênio ou outro
nutriente, temperatura preferida para
crescimento, etc.), adquirem diferentes
posições na garrafa. A prática gerou
curiosidade, pois de fato, o universo
microscópico, palpável, pode ser
compreendido como distante de nosso
cotidiano, tendo em vista sua invisibilidade
ao olho nu. A possibilidade de tornar
visível e compreensível a presença de
tantos seres no ambiente, manteve a
atenção voltada para a amplitude da
diversidade que nos cerca.
Entrando de vez nos microcosmos, o
encontro seguinte focou na unidade básica
dos organismos vivos: a célula. O assunto
foi introduzido com foco no papel destas
microestruturas (normalmente invisíveis a
“olho nu”) na formação das
macroestruturas que estamos habituados a
enxergar, tocar, plantar e comer. Após um
momento expositivo, foi proporcionada a
experiência de observar, no microscópio e
na lupa, células de algumas plantas, como
cebola e flores silvestres, e também micro-
organismos que habitam poças d’água e
açudes.
A prática com lupas e microscópio
foi extremamente marcante. Para muitas,
foi a primeira experiência que tiveram em
visualizar as flores e demais plantas do dia
a dia em detalhes tão minuciosos e
somente assim, foi possível visualizar
pequenos insetos que habitam as flores e
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suas pequenas estruturas (Figura 2A). Mais
fascinante, foi ao ver no microscópio com
material extraído do açude do
Assentamento, organismos até então nunca
vistos, que se mexiam, e manifestavam a
vida em tão pequena forma. Exclamações
como “Eu to vendo!” trouxeram a
lembrança das palavras de Paulo Freire
(1988, p. 26): “educar-se é impregnar de
sentido cada momento da vida, cada ato
cotidiano”. Nesse momento, o sentido
completou-se naquelas percepções. O que
era até então abstrato, apenas imaginável,
tornou-se visível, concreto. O que era
obscuro, reconhecido.
Dando sequência, o quarto, o quinto
e o sexto encontro foram centrados nos
micro-organismos e no reconhecimento de
sua presença em elementos do dia a dia. O
queijo, o vinho, o vinagre, a cerveja e o
pão produzidos por meio da fermentação
de fungos e bactérias ou como processos
de saúde e doença do corpo humano -
todos dependentes de micro-organismos
microscópicos. A saúde do solo,
igualmente depende deles para a nutrição
das plantas, reciclagem de nutrientes, e
consequentemente, para a fertilidade da
terra. Desta forma, o desenvolvimento de
hortas, pomares e roças está
intrinsecamente relacionado com os micro-
organismos neles presentes.
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Figura 2. A. Prática de visualização em lupa. B. Consulta a livros para reconhecimento de
plantas, verificando o conhecimento científico e a correlação com o conhecimento popular. C.
Garrafa de Winogradsky construída em atividade prática com o Grupo, para demonstrar a
estruturação dos solos de acordo com a microbiota. D. Roda de conversa sobre plantas
alimentícias, medicinais e ornamentais com o Grupo, após caminhada e coleta de plantas.
Fonte: Pesquisa dos autores (2014).
Durante esses encontros foram
trabalhadas várias percepções sobre o
mundo microscópico quem são esses
organismos, como e onde vivem, como
crescem e do que se alimentam. As
atividades práticas exploraram a
compostagem (processo microbiológico no
qual a matéria orgânica bruta cascas de
frutas, restos de comidas, esterco são
reciclados em adubo para uso na
agricultura) em diferentes ocasiões e
escalas no Assentamento, bem como o
feitio de vinagre a partir de frutas
produzidas no Assentamento e não
comercializadas em feiras. Todo o
processo da compostagem foi
acompanhado e realizado conjuntamente
com o grupo. E, novamente, Paulo Freire
(1992) nos instiga:
O primeiro é o saber que a gente
chama de saber prático sem o qual a
gente não realiza as coisas. O outro
saber é o saber que a gente chama de
saber teórico sem o qual a gente
também se perde. O povo tem o
direito de saber a teoria da prática do
povo. Quer dizer: a prática do povo é
absolutamente fundamental, mas a
prática não é a teoria dela mesma. É
preciso que o povo domine porque
tem esse direito, domine a prática, ou
a teoria da prática, ou o saber teórico.
Por que os intelectuais têm esse
direito? Por que os intelectuais, os
chamados intelectuais, quando o
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povo também é intelectual? Por que
só os que trabalham aparentemente
apenas com a cabeça, com a mente e
não com as mãos? Por que os
primeiros têm o direito à linguagem
difícil, têm o direito à teoria e o povo
não? (Freire, 1992).
Também vinculando à temática dos
micro-organismos, realizamos atividades
de carbonização de casca de arroz. O
Assentamento Filhos de Sepé é um dos
maiores produtores de arroz ecológico do
Estado do RS. Contudo, a casca do arroz é
uma matéria majoritariamente descartada,
tendo em vista que parte da produção do
grão é polido para venda como arroz
branco, e, quando bruta, a casca de arroz é
de difícil decomposição, devido seu alto
nível de lignina e celulose. Entretanto,
quando carbonizada (queimada
incompletamente) a casca de arroz torna-se
uma importante matéria-prima para ser
utilizada no solo, como cobertura,
mantendo a umidade, a temperatura do
solo, e disponibilizando importantes
nutrientes para os cultivos. Dessa maneira,
dedicamos alguns de nossos encontros com
esta prática, visando seu uso nas áreas de
produção das famílias.
Cuidado com a vida
No sétimo e oitavo encontros,
reforçou-se o trabalho do Grupo Mulheres
da Terra com as sementes. Este vem
qualificando-se nos últimos anos para
construir um Banco de Sementes Crioulas,
uma iniciativa inovadora, que se por
meio do cultivo, multiplicação e
armazenamento locais e também por meio
de trocas com outros grupos, com o
objetivo de suprir a necessidade de acesso
às sementes saudáveis para plantios.
As sementes crioulas assumiram
significativa importância nos últimos 50
anos, quando tem imperado o acelerado
processo de submissão da agricultura aos
grandes complexos agroindustriais,
substituindo os métodos tradicionais
agrícolas por novidades mercadológicas,
como sementes híbridas de multinacionais,
pacotes agroquímicos, etc. Contudo, as
famílias camponesas reconhecem que suas
próprias sementes carregam no seu interior
a história de uma herança genética plena
de diversidade social, adaptadas às
características locais (Alves et al. 2013).
Abordou-se de maneira teórica e prática
aspectos relacionados ao cuidado para
armazenamento de sementes, reforçando
conhecimentos prévios do Grupo: a
importância de armazenar as sementes bem
secas para minimizar as chances de
avarias; o uso de cinzas para eliminar
pragas que se alimentam das sementes; e o
armazenamento em recipientes bem
vedados e em local fresco e escuro, para
não estimular processos de germinação, e
aumentar a durabilidade das sementes.
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Cabe ressaltar aqui o protagonismo
feminino no trato com as sementes. A
relação entre a ação feminina e a história
da agricultura é um aspecto que tem sido
abordado recorrentemente na literatura.
Historicamente, no sistema patriarcal, os
homens foram aqueles que mais facilmente
foram seduzidos pela intensa adição de
insumos à agricultura. Período em que
muitos dos saberes tradicionais aos quais
a agricultura moderna tentou se sobrepor
ficaram sob a guarda das mulheres, sendo
cuidados em pequenas plantações de chás e
hortaliças nos quintais de suas casas. Com
o empoderamento da mulher camponesa,
muito o que ser resgatado e valorizado,
reconhecendo as Mulheres da Terra como
verdadeiras guardiãs, tanto das sementes
quantos dos conhecimentos de suas
ancestrais (Pelwing et al., 2008).
O conhecimento sobre plantas foi o
tema abordado nos encontros seguintes
(Figura 2B, D). Foram enfatizadas as
diferentes maneiras de classificar os
vegetais de acordo com sua forma de vida
(herbácea, trepadeira, arbustiva, arbórea),
bem como por afinidades morfológicas e
categorias taxonômicas. Historicamente, a
Botânica, estudo científico do reino
vegetal, assumiu uma característica elitista,
onde demonstrar conhecimentos sobre
plantas mostrava erudição. Contudo, o
conhecimento sobre plantas é inerente à
vida humana e a vários outros animais. De
fato, a etimologia da palavra remonta
estritamente a um dos motivadores
elementares sobre o conhecimento de
plantas: botané, do grego, planta, que
deriva do verbo boskein, alimentar, logo,
alimento (Gordh & Headrick, 2001).
Assim, o conhecimento botânico sempre
esteve associado a um saber prático: quais
plantas utilizar para comer, e quais não
comer; quais utilizar para determinadas
enfermidades, para tingir tecidos, para
construir artefatos, etc. Atualmente, muitos
camponeses se sentem desempoderados,
devido à histórica desvalorização de seus
conhecimentos. Consequentemente, creem
que estudantes ou professores
universitários têm maior propriedade
intelectual. No entanto, a presença da
extensão universitária no Assentamento,
disposta a conhecer os agricultores e seus
saberes, causa impactos em ambos.
Promovendo a autonomia entre os
agricultores e também o aprendizado com
eles, os estudantes e professores puderam
experienciar, para além de suas
expectativas, novas possibilidades de
relacionar o ensino com os saberes e sua
relevância social.
Foram realizadas longas caminhadas
para trabalhar o reconhecimento de plantas
de jardins, hortas e matas do
Assentamento, durante as quais foram
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feitas coletas de plantas, para posterior
estudo e práticas de herborização. Nas
caminhadas, as mulheres do Grupo
reconheceram diversas espécies,
associando-as ao seu uso, enquanto
espécies de uso medicinal, alimentícias ou
tóxicas. Da mesma maneira, o Grupo
apontou espécies utilizadas como
indicadoras ecológicas: plantas
características de solos compactados ou
férteis, ou ligadas à riqueza de
determinados nutrientes. Mais uma vez, a
autonomia e a autoestima do Grupo foram
fortalecidas. Assim, as agricultoras
banharam a todos com os seus saberes e
deram uma boa demonstração de como
conviver harmoniosamente com a
natureza! Conhecer, alimentar-se dela e a
cuidar, com simplicidade.
Desta forma, imersos no clima de
trocas e cooperação que se estabeleceu,
desenrolou-se o último encontro, com uma
roda de conversa, em uma roda de amigos
e amigas. As avaliações e impressões de
todo o processo - indizíveis - foram
manifestadas com gratidão e com o desejo
de continuidade dos encontros. A entrega
de certificados de participação foi uma
mera formalidade, diante da magnitude de
tudo o que se passou, e ainda assim, ele - o
certificado - foi muito bem recebido pelas
pessoas, como uma honraria. Como um
símbolo de reconhecimento mútuo. As
trocas de saberes, de objetos, de sementes,
de experiências ou mesmo sorrisos e
abraços, produziram muito mais do que
resultados objetivos, mas passaram a fazer
parte da história de vida das pessoas e do
mundo que elas estão a construir.
Considerações finais
As vivências do projeto “Trocas de
Saberes Sobre Botânica Camponesa”
representaram importantes acontecimentos
para os sujeitos envolvidos, agregando em
suas trajetórias profissionais e pessoais a
rica experiência de viver seus sonhos de
desenvolvimento. O aparente desafio de
interligar conhecimentos científicos e
saberes tradicionais camponeses, setores
comumente considerados distantes pela
sociedade moderna, manifestou-se, na
realidade, como um fluido caminho de
aprendizados. Especialmente para a equipe
da ITCP, foi gratificante se propor a estar
em comunicação/extensão com os
movimentos sociais do campo. Com o
desejo de contribuir no processo de
formação mútua de agricultores/as e
estudantes de diversas áreas como
biologia, agronomia, antropologia,
nutrição, economia, artes e geografia,
foram aprimoradas também visões
holísticas sobre o espaço rural e seus
sujeitos. o se limitando a áreas de saber
estritamente técnicas, mas ao incluir a
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dimensão cultural do ser agricultor/a, se
fizeram presentes questões relacionadas
com o histórico-cultural e sociopolítico do
movimento da luta pela Reforma Agrária.
Outro relevante fator contribuiu para
o sucesso das atividades: o olhar que
emerge das realidades locais para a
satisfação das demandas. A partir de cada
encontro foram construídos coletivamente
os saberes necessários para contemplá-las,
como no caso da adubação do solo. Com
aprendizados biológicos e culturais sobre a
composição do solo, a partir das ofertas da
natureza local foi possível pensar soluções
igualmente locais. Estas, muito mais
satisfatórias do que possíveis ofertas
oriundas do mercado do agronegócio.
Nesse contexto, em meio à práxis, o
estudo da botânica pôde ser elevado à sua
máxima potência enquanto área de
conhecimento/saber. Ao contribuir com
processos agroecológicos, para a melhoria
da produção e também da qualidade de
vida no campo, o aprendizado dos livros e
dos laboratórios se tornou vivo. O estudo
da vida que constrói e não destrói a
vida. Da tarefa de aplicar os saberes sobre
a natureza com o objetivo de manipulá-la,
emergem as relações entre o homem e a
natureza, que por sua vez, podem ser
benéficas para todos. Esta afirmativa pode
parecer óbvia e um tanto superficial, por
ser recorrente em discursos ambientais,
mas ela carrega um grande sentido quando
vivenciada. Para quem pôde, ainda que por
breves momentos, presenciar resíduos da
produção de casca de arroz sendo
aproveitados, transformando-se em
nutrientes para o solo, em nutrientes para a
esperança de pessoas que dedicam suas
vidas a produzir alimentos, tal afirmativa
se tornou uma profunda verdade. E assim,
em meio a pequenos acontecimentos, a
cada passo, foram plantadas novas
sementes, pequenas sementes dotadas de
grandes sonhos e aspirações de um
presente afortunado para todos os seres.
Assim constatamos urgente a
necessidade de democratizarmos os
saberes, torná-los acessíveis para as
resoluções dos diversos problemas que nos
afligem social e ambientalmente. Afinal,
para que(m) servem os conhecimentos? A
educação como uma ação cultural, a qual
permeia todas as esferas de organização é
um caminho para uma perspectiva
emancipadora, democrática e cidadã.
Entretanto, as constantes disputas
ideológicas, sobretudo em detrimento às
lógicas de mercado, conduzem à elitização
do conhecimento e dos meios de produção,
bem como à inferiorização de
conhecimentos não reconhecidos
academicamente. O desenvolvimento de
ações semelhantes à deste projeto, que
primam pela educação intimamente
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relacionada com os saberes ambientais,
ainda é uma realidade distante para a
maioria dos ambientes formais de
educação no Brasil. Embora haja
iniciativas neste sentido por parte de
diversos grupos e projetos, não são
prioridades junto às políticas públicas.
A atual conjuntura sociopolítica nos
indicativos de que áreas de
conhecimento e os conceitos educativos
que estimulam o saber ambiental, a
criticidade e a democratização do
conhecimento não interessam aos planos
para a educação dos atuais governantes.
Áreas estas, onde o desenvolvimento se
encontra de maneira potente com a
educação. Todavia, estes fatos não
diminuem o ímpeto de criação de quem
está a atuar, tampouco ofuscam o brilho
das realizações que estão a ocorrer por aí,
em pequenos grupos, em algumas escolas,
em bairros periféricos, zonas rurais ou
cidades remotas… De onde menos se
espera, insurge a vida. Brotam novas
sementes. Os processos reais de
ensino/aprendizagem são assim, orgânicos.
Emergem de pequenos movimentos, criam
fissuras na estrutura, irrompem…. E são….
Como o próprio desejo de viver. E contra o
desejo não luta vitoriosa, pois sempre
continuará se manifestando e agindo
micropoliticamente.
Agradecimentos
A realização do projeto “Troca de
Saberes sobre Botânica Camponesa” foi
possível apenas com a dedicação e
envolvimento de muitas pessoas.
Agradecemos aos demais colegas da ITCP
que também participaram de alguns
encontros e de discussões ao longo da
realização do Projeto: Gládis, Artur,
Tábata, Rafael, Marília, Schimitão. Da
mesma maneira, agradecemos aos demais
colegas do Grupo Viveiros Comunitários
que também participaram de alguns
encontros e contribuíram nas atividades.
Por fim, de maneira mais importante,
agradecemos ao Grupo Mulheres da Terra,
por meio de todos e todas participantes que
dedicaram rios momentos para os
encontros e as trocas de saberes, nos
acolhendo em suas casas e demais espaços
comunitários: Cristinona, Jussi, Boca,
Lúcia, Geni, Tereza, Fred, Teka, Eneli,
Rosane, Dayane, Sônia, Rian, Sérgio,
Josiane, Neila, Seleni, Eneli, Cleusa, sem
as quais nada disso faria sentido. Nosso
sincero agradecimento.
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i
Os temas abordados, em ordem trabalhada, foram
os seguintes: origens do universo, da Terra e da
vida, origens da agricultura, estrutura da vida
(células, organismos), micro-organismos e sua
importância, compostagem e fermentações,
morfologia e taxonomia vegetal, plantas
indicadoras, alimentícias e medicinais, sementes
crioulas e banco de sementes.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 13/12/2017
Aprovado em: 23/01/2018
Publicado em: 12/09/2018
Received on December 13th, 2017
Accepted on January 23th, 2018
Published on September, 12th, 2018
Contribuições no artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version to be published.
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Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Matias Köhler
http://orcid.org/0000-0003-1863-6309
Estela Santos
http://orcid.org/0000-0003-0039-4858
Cristiane Giaretta
http://orcid.org/0000-0003-2246-2954
Gilmar Gomes
http://orcid.org/0000-0002-0232-3909
Sebastião Pinheiro
http://orcid.org/0000-0003-3306-6260
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Köhler, M., Santos, E., Giaretta, C., Gomes, G., &
Pinheiro, S. (2018). O educar-se no campo: caneta,
enxada e botânica camponesa. Rev. Bras. Educ. Camp.,
3(3), 763-783. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n2p763
ABNT
KÖHLER, M.; SANTOS, E.; GIARETTA, C.; GOMES, G.;
PINHEIRO, S. O educar-se no campo: caneta, enxada e
botânica camponesa. Rev. Bras. Educ. Camp.,
Tocantinópolis, v. 3, n. 3, set./dez., p. 763-783, 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n2p763