Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1156
Tocantinópolis
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n. 4
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Feminismo camponês e popular: uma história de
construções coletivas
Michela Calaça
1
,
Isaura Isabel Conte
2
,
Catiane Cinelli
3
1
Universidade Federal Rural do semiárido - UFERSA. Centro de Sociais Aplicadas e Humanas. Av. Francisco Mota, 572, Costa
e Silva. Mossoró - RN. Brasil.
2
Universidade Federal de Rondônia - UNIR.
3
Universidade Federal de Rondônia - UNIR.
Autor para correspondência/Author for correspondence: michela.calaca@gmail.com
RESUMO. O artigo descreve e analisa o processo de construção
do Feminismo Camponês e Popular no Movimento de Mulheres
Camponesas (MMC), sendo esse um assunto novo nos estudos
acadêmicos. A metodologia utilizada é a pesquisa participante e
a pesquisa-ação devido à inserção direta das autoras nesse
movimento mais de quinze anos. Como parte dos resultados
dessa inserção, temos três dissertações de mestrado (Conte,
2011; Cinelli, 2012; Santos, 2012) e duas teses de doutorado
(Conte, 2014; Cinelli, 2016). Além disso, houve a participação
das autoras no processo de debate sobre o Feminismo Camponês
e Popular no MMC nos últimos três anos. Destacamos como
aspecto relevante o fato de que o Feminismo Camponês e
Popular é fruto da identidade coletiva das mulheres do MMC em
luta. Sobretudo, ele é construído na articulação com outras
organizações camponesas de mulheres e feministas, ancoradas
no universo de trabalho, na defesa da agroecologia e na
liberdade/libertação, almejando a construção de uma sociedade
justa e solidária, ou seja, socialista.
Palavras-chave: Feminismo Camponês e Popular; Movimento
de Mulheres Camponesas; Lutas.
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Peasant and popular feminism: a history of collective
constructions
ABSTRACT. The following article describes and analyses the
process of construction of the Peasant Popular Feminism in the
Peasant Women's Movement (MMC), a new subject of
academic studies. The methodology used is participatory action
research, given the direct immersion of the authors in said
movement for more than fifteen years. As part of the results of
this immersion, we have three Master's dissertations (Conte,
2011; Cinelli, 2012; Santos, 2012) and two Doctorate's theses
(Conte, 2014; Cinelli, 2016). Furthermore, the authors were
involved in the process of debating the Peasant Popular
Feminism in MMC for the past three years. We highlight the
relevance of the fact that the Peasant Popular Feminism is fruit
of the collective identity of the fighting MMC women. Above
all, it is constructed in dialogue with other peasant's
organisations of working women and feminists, in the defense of
agroecology and freedom/liberation, and hoping to build a fair
and solidary, that is to say, socialist society.
keywords: Peasant Popular Feminism; Peasant Women's
Movement; Fights.
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Feminismo campesino y popular: una historia de
construcciones colectivas
RESUMEN. El presente artículo describe y analiza el proceso
de construcción del Feminismo Campesino y Popular en el
Movimiento de Mujeres Campesinas (MMC), siendo este un
tema nuevo en los estudios académicos. La metodología
utilizada es la investigación participante y la investigación-
acción debido a la inserción directa de las autoras en ese
movimiento desde hace más de quince años. Como parte de los
resultados de esta inserción, tenemos tres disertaciones de
maestría (Conte, 2011; Cinelli, 2012; Santos, 2012) y dos tesis
de doctorado (Conte, 2014; Cinelli, 2016). Además, hubo la
participación de las autoras en el proceso de debate sobre el
Feminismo Campesino y Popular en lo MMC en los últimos tres
años. Destacamos como aspecto relevante el hecho de que el
Feminismo Campesino y Popular es fruto de la identidad
colectiva de las mujeres del MMC en lucha. Sobre todo, se
construye en la articulación con otras organizaciones
campesinas de mujeres y feministas, ancladas en el universo de
trabajo, en la defensa de la agroecología y en la libertad /
liberación, buscando la construcción de una sociedad justa y
solidaria, o sea, socialista.
Palabras clave: Feminismo Campesino y Popular; Movimiento
de Mujeres Campesinas; Luchas.
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Introdução
Por meio deste texto, como
militantes e intelectuais orgânicas
i
, em
termos gramscianos (Duriguetto, 2014),
propomo-nos a evidenciar como tem
acontecido a construção do Feminismo
Camponês e Popular no Brasil, a partir do
processo desenvolvido pelo e no
Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC) dos anos 2000 aos dias atuais. Para
tanto, partimos das nossas vivências e
experiências no MMC nesse período, bem
como da pesquisa participante e da
pesquisa-ação desenvolvidas em nossas
dissertações de mestrado (Conte, 2011;
Cinelli, 2012; Santos, 2012) e teses de
doutorado (Conte, 2014; Cinelli, 2016).
Tomamos como base os anos 2000,
porque, desde esse período, fazemos parte
do MMC e também porque nessa década
foram iniciadas mais consistentemente as
discussões do feminismo na Organização.
Essas discussões ocorreram em vista do
processo de constituição do Movimento em
parâmetro nacional, que aconteceu em
2004 e será melhor detalhado mais adiante.
Este texto evidencia as vozes de
mulheres do MMC, a partir de nossos
trabalhos e pesquisas e de nós mesmas,
pois duas das autoras compõem atualmente
a direção nacional do referido movimento.
O artigo está organizado da seguinte
maneira: começamos, no primeiro item,
com a apresentação da caminhada do
MMC e de um feminismo específico,
discutindo como as camponesas, a partir do
seu cotidiano, foram construindo suas lutas
e se constituindo feministas. Como pano de
fundo das discussões, temos o modelo
agrário e agrícola brasileiro e latino, desse
modo buscamos apresentar a construção do
Feminismo Camponês e Popular a partir de
sínteses realizadas não apenas no MMC,
mas também em organizações
internacionais que partilham resistências e
lutas semelhantes e que se relacionam com
o MMC.
O segundo item aponta algumas
sínteses desse feminismo e, na sequência,
nos amparando em uma metáfora a do rio
caudaloso , descrevemos em alíneas os
seus elementos fundantes: a centralidade
do trabalho; a característica de ser um
processo coletivo e individual; a unidade
na diversidade; a importância da auto-
organização; o enfrentamento às
violências; as fontes de que bebemos no
“leito histórico”; a perspectiva de outra
sociedade e de outros valores; e a
agroecologia como modo de vida.
A caminhada do MMC e do Feminismo
Camponês e Popular
O MMC surge de lutas anteriores.
Sua nacionalização aconteceu em 2004,
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por ocasião do I Congresso Nacional do
Movimento, ocorrido de 05 a 08 de março,
em Brasília. Pontuamos que nessa ocasião
houve a união de muitas organizações
estaduais e locais de camponesas que
desenvolviam lutas autônomas enquanto
mulheres empobrecidas do campo, das
florestas e das águas. Esse fato congregou
mais de vinte anos de caminhada de
organização em alguns estados. Nesse
congresso, estavam presentes camponesas
de pelo menos quatorze unidades
federativas do país, representadas com suas
delegações, que naquele momento haviam
amadurecido a ideia de se tornarem uma
organização única, o MMC.
O MMC herdou uma trajetória de
diversos movimentos que se juntaram a
partir do congresso. Assim, temos como
exemplos-chave de nossas pesquisas, nas
duas dissertações e nas duas teses
mencionadas (Conte, 2011, 2014; Cinelli,
2012, 2016), a trajetória dos estados de
Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, nos
quais as camponesas estavam
organizadas desde os idos de 1983. As
mulheres da roça ou agricultoras, como se
denominavam, se colocaram em luta,
criando organizações específicas de
mulheres, nas quais reivindicavam
basicamente seus direitos, querendo
entender o porquê elas não tinham os
direitos reconhecidos pelas leis.
Essa luta, por sua vez, segundo
trazem as pesquisas (Conte, Martins,
Daron & 2009; Santos, 2012; Cinelli &
Mezadri, 2014; Cisne, 2014), mostra que
as mulheres começaram a sair de casa em
busca de direitos e assim aprenderam a
amplitude do mundo e a complexidade da
sociedade capitalista, patriarcal e racista
que até então lhes era apresentada como
natural. Elas se deram conta de que não
tinham direito de sair de casa ou do
ambiente restrito de suas comunidades,
ainda que isso não estivesse escrito. Era a
força patriarcal que predominava como
sistema expresso na vida das camponesas,
no cotidiano vivenciado em suas
comunidades, sítios, assentamentos e
florestas.
O Movimento de Mulheres
Camponesas surgiu pontuando as questões
das mulheres da roça, que não se viam
incluídas em setores como sindicatos de
trabalhadoras rurais, movimentos
populares mistos (com homens e mulheres)
e mesmo nas pastorais sociais, das quais
elas faziam parte. Por esse motivo, sentiam
que havia questões que as atingiam e não
eram tratadas com a devida importância
nesses coletivos mistos. Nos sindicatos,
nas igrejas, em setores progressistas como
a Comissão Pastoral da Terra (CPT), nas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
nos partidos de esquerda, embora
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fomentassem a “libertação” da opressão e
exploração, também as demandas das
mulheres estavam “fora do lugar”, como se
não coubessem. Desse modo, era preciso
um espaço próprio para as discussões que
estavam surgindo (Conte, 2011). Essa era a
realidade encontrada em todas as
organizações populares, que, mesmo tendo
muitas mulheres em suas bases, não
conseguiam visualizar a pauta delas como
importante e estratégica para as mudanças
sociais.
Estava em questão a velha
argumentação de que pautas específicas
dividiriam a luta “geral”
ii
, como aponta
Souza-Lobo (2011) ao tratar da questão
feminina na luta sindical brasileira. Essa
crítica reflete o momento em que a
sociedade brasileira redescobria e
reconstruía a democracia depois do Golpe
Militar de 1964, na qual pairava a ideia de
redemocratização como “causa maior”,
como se as mulheres, negras e negros,
indígenas, LGBTs etc. devessem esperar o
momento certo e suas demandas não
fizessem parte da luta por democracia.
Assim, uma parcela das pessoas inseridas
nas lutas chamadas “gerais” tinha
dificuldades para perceber a invisibilidade
das mulheres e suas dificuldades
cotidianas. Mas é importante ressaltar que
nos espaços de lutas populares também
havia apoio aos movimentos de mulheres
e, em alguns casos, muito apoio, mesmo
que, de modo geral, prevalecesse a
concepção de que os homens dirigiriam
“naturalmente” as lutas e que, desse modo,
as mulheres estariam representadas.
Contudo, as camponesas do MMC
sempre souberam que suas lutas não
poderiam estar desvinculadas da luta de
classes e, por isso, na caminhada dos
movimentos autônomos, mantiveram-se
em alianças importantes com as diversas
organizações populares. Entretanto, estava
evidente a necessidade de construir lutas
protagonizadas pelas mulheres. Desse
modo, as mulheres organizadas foram
rompendo as barreiras que dificultavam
sua auto-organização e caminharam rumo à
autonomia, por mais embates que tivessem.
A auto-organização era a parte que as
lideranças masculinas, às vezes, tinham
dificuldade de “entender”, considerando
que a organização das mulheres poderia
dividir a classe. Esse debate não é novo na
esquerda mundial, mas nos parece que
ainda não foi totalmente superado. O
MMC, como também as autoras deste
artigo, entendem que a luta e a auto-
organização das mulheres fortalecem a luta
de classe, pois sem as especificidades a
luta classista seria de poucos.
Partimos, nós autoras e o MMC, de
uma concepção de feminismo classista,
entendendo que a libertação das mulheres
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é possível com a superação do
capitalismo, do patriarcado e do racismo.
Isso não significa ter que esperar a
superação das classes para, posteriormente,
lutar pela liberdade das mulheres e de
tantos outros setores oprimidos. Nesse
debate, nossas referências são Heleieth
Saffioti (1969, 2004), Angela Davis (2016)
e Clara Zetkin (1896), entre outras que
buscam discutir o feminismo a partir da
imbricação entre capitalismo, racismo e
patriarcado.
Ao criarem organizações próprias,
com várias denominações, pelos estados do
país, sob a bandeira da luta por direitos, em
especial direitos à seguridade social (que é
representada por previdência, assistência e
saúde pública), mas também por preço
justo para os seus produtos, educação no
campo, políticas públicas para o meio rural
para homens e mulheres etc., as militantes
foram dando corpo a organizações
populares, trocando ideias entre lideranças
de outros estados e de outros setores de
lutas, como sindicatos, movimento
feminista e movimentos sociais do campo,
com o entendimento da especificidade das
mulheres camponesas.
Em síntese, o surgimento do MMC
está relacionado a demandas por direitos,
historicamente negados às camponesas e
ao povo da roça. As mulheres, desde então
lideranças, aprendiam a participar e se
organizar, nas discussões das lutas pela
redemocratização do país no processo que
elaborou a Constituição Federal de 1988
(CF/88). Elas foram se forjando militantes
e dirigentes, aprendendo na condução dos
movimentos, praticando a luta política,
somando-se também aos demais espaços
nos quais era fomentada a democracia, ao
passo que denunciavam o regime militar e
lutavam pela ampliação dos direitos
iii
.
Nesse fazer-se delas mesmas e do
movimento, percebiam também a exclusão
de suas vozes e demandas e, diante disso, o
quão importante eram os espaços e as
organizações específicas de mulheres.
Desde os anos de 1980, nos diversos
movimentos de mulheres trabalhadoras
rurais/camponesas, as discussões giravam
em torno da necessidade de novas relações
de gênero e classe, com o sonho da
construção de uma sociedade justa e
igualitária (MMC, 2008). Era a expressão
do que as mulheres da roça almejavam,
uma vez que o contexto em que estavam
inseridas era desigual. Nessa mesma pauta,
estava a percepção de outras relações entre
os seres humanos e a natureza, pois as
mulheres organizadas, ao começarem a
perceber a sua situação de vida (falta de
acesso e negação a tantas coisas), logo se
deram conta de que o modelo baseado na
Revolução Verde
iv
era um desastre
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enquanto perspectiva para as famílias
camponesas.
Assim, ao formarem os movimentos,
denunciavam o “modelo” agrícola, tanto
do ponto de vista da dependência de
insumos químicos e do sistema bancário,
quanto em relação ao que ele estava
ocasionando com os recursos naturais. É
importante destacar que o sistema de
produção baseado na Revolução Verde é
majoritariamente feito por homens e para
homens, pois sua lógica comercial,
v
baseada no lucro de corporações, não
consegue perceber a importância das
estratégias produtivas desenvolvidas pelas
mulheres. Durante a implantação desse
sistema devastador, a produção das
mulheres foi negada, invisibilizada e até
mesmo proibida em nome do
“desenvolvimento”. Esses elementos ficam
nítidos nas pesquisas apresentadas nas
dissertações de Cinelli (2012) e Conte
(2011) ao analisarem falas de mulheres,
que foram coletadas na pesquisa
participante.
Ao reunirem-se em vista da
discussão de direitos e das estratégias para
alcançá-los, foi havendo uma participação
crescente das mulheres camponesas em
comunidades, nas sedes dos municípios e
nas regionais, formando assim
coordenações estaduais. De início, segundo
mostram depoimentos de nossas pesquisas,
as mulheres precursoras afirmam que não
sabiam direito aonde “isso ia dar”,
sabiam que queriam seus direitos para
serem gente. Ao juntarem-se e irem
construindo as organizações locais de
mulheres camponesas, compreendiam a
dominação masculina e como o modo de
produção capitalista afetava as suas vidas,
passando então a entender e repudiar as
diversas formas de exploração e opressão
que as mulheres vivenciavam.
Cinelli e Mezadri (2014), ambas
dirigentes nacionais do MMC, comentam o
movimento em seu nascedouro: “Nesse
período, não se dizia feminista, mas um
debate colado à construção do movimento
autônomo e novas relações de gênero”.
Desse modo, desde a sua origem, o MMC
primava por outras relações de gênero, que
por sua vez não se dariam em separado da
luta de classes, pelo fato de as mulheres se
entenderem exploradas pelo sistema
capitalista.
A luta por direitos, que se estendeu
da década de 1980 até o início dos anos de
1990, na qual foram conquistados direitos
fundamentais, como o reconhecimento da
profissão de trabalhador(a) rural na
CF/1988, foi de suma importância para o
reconhecimento e visibilidade política das
mulheres como “uma nova categoria”, mas
que sempre existiu. Após a promulgação
da CF/1988, as lutas seguiram durante os
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anos subsequentes, pautando a
regulamentação de cada direito
conquistado, como: a aposentadoria na
condição de segurados(as) especiais, que
ocorreria apenas em 1991; o auxílio
acidente de trabalho para camponeses e
camponesas, que foi conquistado em 1992;
e o salário maternidade, no ano de 1994.
Isso nos mostra que a organização das
camponesas possibilitou, em pleno
processo de implementação do
neoliberalismo no país, a ampliação de
direitos
vi
.
Com a conquista de direitos, as
mulheres organizadas foram descobrindo
ou redescobrindo o seu papel na História e
não eram as mesmas: elas queriam
protagonismo fora e dentro de casa, na
unidade de produção e para além dela.
Esse fato mexia profundamente com
concepções machistas e discriminatórias
nas famílias, nos sindicatos, nas
cooperativas, nas comunidades e nos
demais movimentos sociais. Era quase um
“Deus nos acuda”, pois agora essas
mulheres agricultoras, ribeirinhas e das
florestas estão querendo espaços políticos!
(Conte, 2011; Cinelli, 2012).
O movimento estava abalando as
relações estabelecidas entre homens e
mulheres, junto ao questionamento da
sociedade capitalista. Estavam
estabelecidas as reflexões e as lutas contra
as desigualdades de nero e de classe,
conforme o que é possível encontrar em
documentos internos, como atas, cartilhas e
panfletos, da organização do início dos
anos da década de 1980. As mulheres
camponesas estavam visíveis em marchas,
acampamentos e passeatas que faziam de
modo independente, em especial após o
ano 2000, em articulação com mulheres de
organizações que formaram a Via
Campesina do Brasil, cujo surgimento
aconteceu oficialmente em 2001, por
ocasião do Fórum Social Mundial ocorrido
em Porto Alegre/RS (Conte, 2014).
Antes da constituição da Via
Campesina do Brasil, o MMC buscou se
articular com outros movimentos sociais
que ocorriam no Brasil e na América
Latina, pois visava fortalecer-se junto a
outras organizações populares que
compunham a Coordinación
Latinoamericana de Organizaciones del
Campo (Cloc)
vii
, por exemplo. A Cloc é
uma articulação de movimentos sociais
ligados à pauta rural e é composta por 84
organizações de 21 países da América
Latina e Caribe (Cloc, 2016). Atualmente,
é a principal e maior organização de
camponeses da América Latina e Caribe e
faz parte de La Via Campesina
Internacional
viii
. No Brasil, os movimentos
sociais que compõem La Via Campesina
Brasil
ix
estão também organizados
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internacionalmente na Cloc. O MMC foi o
primeiro movimento da Cloc a se afirmar
feminista, trazendo o debate feminista para
essa articulação. Foi na Cloc que a
categoria Feminismo Camponês e Popular
foi proposta pela primeira vez como
síntese da construção do feminismo das
mulheres do campo, segundo informações
da direção nacional do MMC.
O MMC, para definir-se e buscar
construir-se como movimento nacional,
durante pelo menos dois anos, realizou
intensos debates internos e articulações,
entre 2002 e 2004, e junto com a
nacionalização definiu-se feminista,
reafirmando que o seu feminismo tem um
caráter popular classista. Essa declaração
causou impacto na Via Campesina e
também repercutiu junto a um conjunto de
organizações feministas. Duas reações
foram as mais sentidas: 1) parecia que seria
necessário dar explicações sobre o motivo
de se declarar feminista e classista, mas,
junto a isso, houve também acolhida, pois
éramos mais uma organização feminista
para fortalecer a luta das mulheres; 2) era e
é necessário ampliar os debates nas bases,
reforçar nossa compreensão do que é
feminismo e de como nossas lutas
feministas contribuem para a derrota do
sistema capitalista, patriarcal e racista que
explora toda a classe trabalhadora, em
especial as mulheres. Afinal, a cada dia,
novas mulheres passam a fazer parte do
movimento e esse debate precisa ser
compreendido.
A relação com o feminismo se
colocava como mais um desafio na
construção do MMC, pois, no meio rural, o
feminismo nem sempre foi bem
compreendido (como também acontece em
setores populares urbanos), pois o
preconceito criado no imaginário popular
contra as feministas sempre foi muito forte.
Nesse sentido, constatamos que mesmo as
lideranças do MMC tendo certeza de que
eram feministas e, mais ainda, mesmo que
as lutas por elas travadas tivessem um
caráter feminista, era necessário tratar o
tema com bastante cuidado e, por isso, não
se declaravam feministas nas décadas de
1980 e 1990.
O debate em si, de ser feminista ou
não, é polêmico entre as camponesas de
modo geral até os dias atuais, quando se
têm mulheres que se mobilizam por pautas
que não se restringem à luta considerada
específica. É importante destacar que o
debate sobre o que é feminismo está em
aberto, são muitas perspectivas teóricas
travando esse debate, mas nos
perguntamos a quem cabe julgar a pauta ou
a ação das mulheres como feministas ou
não feministas. Assim, concordamos com
Carmen Silva quando discute os
movimentos ambientais e aponta: “A
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questão que se faz é: o que distingue essa
luta como luta feminista? A resposta
simples é a capacidade que esses
movimentos adquiriram de falar,
reivindicar e propor a partir da análise da
situação das mulheres” (Silva, 2011, p.
101).
Neste artigo, a nossa análise a partir
do MMC mostra que o feminismo é a luta
pela autonomia e liberdade das mulheres e
muitas lutas diferentes podem contribuir
para essa conquista. O importante é que o
protagonismo dessa construção seja das
mulheres e em defesa das mulheres. Para
tanto, buscamos um alinhamento com
Alves e Pitanguy na compreensão de que o
feminismo não se constrói apenas no
espaço público ou somente com uma
autodeclaração, pois
... o feminismo não é apenas o
movimento organizado,
publicamente visível. Revela-se
também na esfera doméstica, no
trabalho, em todas as esferas em
que mulheres buscam recriar as
relações interpessoais sob um
prisma onde o feminino não seja o
menos, o desvalorizado (2003, p.
9).
Os elementos trabalhados por Santos
(2012)
x
em sua pesquisa, na qual analisa se
a agroecologia, via Programa Uma Terra e
Duas Águas (P1+2), contribuía para a
autonomia das camponesas, podem nos
ajudar a perceber a dificuldade das
próprias camponesas de se verem como
feministas, como também do movimento
feminista de reconhecê-las como tal.
Santos (2012) encontrou formas bastante
diferenciadas de organização das
camponesas, citando casos em que as
mulheres se organizaram a partir de
coletivos de produção para fabricar doces,
queijos, biscoitos e outros produtos com o
objetivo de comercialização, sendo esse o
primeiro passo delas em direção ao
feminismo. Em outros lugares, o trabalho
com mulheres era realizado a partir dos
intercâmbios, que retiram as mulheres da
propriedade para visitar outras
comunidades, mas também valorizam seu
trabalho levando outros camponeses e
camponesas a conhecê-lo. Outra origem da
organização de mulheres, encontrada na
pesquisa, tem início no trabalho de
incentivo à sua participação na Pastoral da
Criança e na discussão sobre plantas
medicinais.
Todas essas formas de trabalho com
as mulheres, em um primeiro olhar,
parecem reforçar o lugar da mulher como
cuidadora e responsável pelo conjunto de
atividades domésticas. Em uma análise
mais apurada, conclui-se o contrário: as
camponesas se organizam a partir do seu
cotidiano, sem negar o que conhecem e o
que sabem fazer e o ressignificam.
Assim, vão saindo da invisibilidade e
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obtendo conquistas concretas, como
quando passam a ser responsáveis pela
gestão do dinheiro gerado pelo seu
trabalho, ou mesmo ao se tornarem
referências no que fazem. Outro aspecto
importante é o fato de passarem a sair de
casa para falar sobre o seu trabalho,
oportunidades que, assim como as visitas
que recebem através de intercâmbios,
alargam os seus horizontes. O sair de casa
gerado por essas razões, muitas vezes,
muda a vida dessas mulheres, como
concluiu o trabalho da autora, o que
também podemos confirmar com nossas
vivências e experiências no MMC.
Mesmo que as mulheres não se
afirmem feministas, estão a construir
concretamente espaços de maior liberdade,
autonomia e reconhecimento político e
familiar. Cinelli (2016) demonstra essa
realidade olhando especificamente para as
camponesas do MMC dos estados de Santa
Catarina e Bahia. A autora destaca que a
atitude feminista é importante para a
produção de sementes crioulas, para
decidir sobre a plantação e para enfrentar
as dificuldades da vida na roça, uma vez
que é preciso resistir, enfrentar os
“poderes” do marido e dos técnicos que
não reconhecem os saberes das mulheres.
Apenas com atitude feminista é possível se
colocar contrária ao sistema de produção
monocultural, que favorece os grandes
proprietários, tidos como “modelo de
produção” que dá certo.
Muitas vezes, por trabalharem com
hortas, sementes e plantas medicinais e por
defenderem a natureza, as camponesas são
acusadas de essencialistas, como se esse
tipo de trabalho o enfrentasse o
machismo e como se isso não fizesse parte
dos espaços de produção e de poder
(Cinelli & Mezadri, 2014). O espaço da
horta ou dos arredores da casa é o local de
onde surgiram exemplos concretos da
importância da diversidade, e isso
possibilitou muitas lutas e demandas por
agroecologia e melhor qualidade de vida,
incluindo a soberania alimentar, que para o
MMC é a possibilidade de os camponeses
e as camponesas terem o controle dos
alimentos, escolhendo o que e como
plantar (Stédile & Carvalho, 2012, p.716 -
725).
O Feminismo Camponês e Popular
implica o comando das mulheres e o
pensamento coletivo sobre o espaço da
unidade de produção, não sendo essa uma
tarefa fácil, devido ao patriarcado presente
nos costumes e tradições. É diante disso
que rompem com o lugar destinado às
mulheres como sendo privado e submetido.
Elas ousam e por isso se envolvem em
conflitos, mas a partir deles obtêm
avanços. Isso significa ser feminista na
prática, mesmo que o se conheça tão
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bem a história do feminismo, sua teoria,
seus escritos e, menos ainda, seu debate
acadêmico. As tarefas relativas aos
cuidados são politizadas e, por isso, um
dos primeiros aprendizados no movimento
é que precisam sair de casa para, inclusive,
dividir tarefas do ambiente doméstico,
tendo o seu trabalho reconhecido. A
discussão na esfera das questões que foram
historicamente colocadas às mulheres
ocorre em relação à ressignificação desse
lugar imposto a elas.
Trazer esses elementos nos ajuda a
compreender o porquê, no surgimento do
MMC, algumas organizações, movimentos
e coletivos feministas questionavam se o
movimento de mulheres camponesas
(ainda não com a nomenclatura de MMC)
era feminista ou não. O lema usado pelo
MMC: Fortalecer a luta em defesa da
vida”, desde a primeira vez que foi
colocado, gerou questionamentos, devido a
usos conservadores da ideia de defesa da
vida, mas o MMC sempre deixou evidente
o entendimento de que a luta pela
agroecologia e pelo socialismo é uma luta
em defesa da vida, que a luta pelo fim da
violência contra as mulheres é uma luta em
defesa da vida, de modo que é necessário
entender a vida de forma ampla, como a
defesa do planeta e da humanidade, com
mulheres no protagonismo.
Como afirmamos anteriormente,
nossa inserção nos mostra que as
lideranças do movimento, desde o início,
entendiam o feminismo e sabiam que
grande parte de suas ações era de cunho
feminista, mas por uma questão tática da
organização autônoma era melhor não
demonstrar. A forma como o MMC
enfrentou e enfrenta o debate do
feminismo é, para nós, uma construção
baseada na educação popular
xi
como
método de organização e luta feminista.
Não foi ninguém que buscou convencer as
camponesas de que sua luta era feminista,
foi a luta e a análise da sua própria
realidade que as levou a perceberem-se
como parte de um instrumento maior de
luta das mulheres, que é o feminismo. Na
tese de Cinelli (2016), uma das falas das
entrevistas com uma dirigente histórica
afirmava que muitas mulheres do
movimento eram feministas e não sabiam
e, com o passar do tempo e o
amadurecimento, vieram a expressar: “mas
então eu era feminista... eu sou uma
feminista”.
Mulheres camponesas e feministas?!
De fato, para alguns soava estranho, pois o
desenvolvimento capitalista colocou os
camponeses em um lugar sem prestígio,
sendo entendidos como atrasados, aqueles
que resistem aos avanços, ao progresso.
ser feminista é ser ousada e temida. Por
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mais preconceito que se tenha contra as
feministas, elas são consideradas uma
inovação, e inovações não combinariam
com o campesinato. Como é que pode essa
junção? Mesmo a esquerda cometeu erros
históricos com os camponeses
xii
, pois não
os viam como parte importante da
construção do processo revolucionário, o
que levou a muitas atitudes utilitaristas
com as populações e povos do campo.
Entretanto, é bom lembrar que nenhuma
revolução triunfante no mundo, em
especial na América Latina, ocorreu sem a
adesão das organizações campesinas ou
dos camponeses.
Diante dessa análise equivocada da
realidade camponesa, era difícil
compreender um movimento popular
camponês auto-organizado, ou seja,
composto e dirigido somente por mulheres
e que se nacionalizou, identificando-se
como feminista. Conte, Weschenfelder e
Cinelli (2010), em um artigo publicado
sobre o MMC, apontam que o debate do
campesinato e o do feminismo, que podem
ser vistos como divergentes, estabelece
relações fortalecidas no sentido de que as
mulheres defendem o espaço de
terra/território, mas nele não aceitam
relações patriarcais: na luta por
terra/território, elas passam a opinar e
também a decidir no ambiente produtivo,
tendo em vista que esse também é o lugar
delas. Além disso, aprenderam a
assenhorarem-se de si mesmas e isso
implica decidir sobre si e tomar decisões
sobre o que consideram relevante para as
suas vidas. Por isso, conflitos e nunca
conquistas definitivas, permanecendo
questionamentos e desafios.
Diante desses aspectos, que foram
aprendendo na luta, ao fazerem a história
do movimento e as suas próprias histórias,
expressadas nas palavras de ordem ainda
antes dos anos 1990: Nós não queremos
favores, nossa história a gente faz”,
podemos pontuar por onde tem caminhado
o feminismo camponês e popular no
MMC. Foi um aprendizado na prática que
impulsionava a teoria e, em alguns
momentos, teoria não escrita, mas vivida,
experimentada e partilhada. Trata-se, em
nosso entendimento, de um feminismo do
qual nem tudo se disse e talvez nem tudo
ainda se possa dizer, pois ele ainda está
sendo feito em muitos lugares diferentes,
com avanços largos em alguns e lentos em
outros. É um feminismo construído por
uma diversidade de mulheres que vivem
em diversos lugares, com questões étnico-
raciais distintas, com acessos diferenciados
a recursos naturais e materiais. Mas todas
as mulheres camponesas do MMC
possuem em comum a identidade de classe,
advinda de várias experiências populares
de luta.
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O feminismo camponês e popular
vem sendo construído por mulheres do
campo, da floresta e das águas, que
representam a diversidade do campesinato
brasileiro em oposição ao agronegócio. A
defesa do rural como espaço de vida, de
cultura e sobrevivência é um dos
elementos constituintes e fundamentais e,
ao mesmo tempo em que ele surge
questionando as relações patriarcais de
sexo negadoras do protagonismo das
mulheres , problematiza e rejeita práticas
do “modelo de agricultura” dominante,
neste momento expresso pelo agronegócio,
usurpador de terras e produtor de
commodities em vista da exportação e da
especulação financeira à custa da
exploração do trabalho de tantas pessoas.
A luta contra o agronegócio é a luta
popular travada por camponesas e
camponeses contra o capitalismo.
Ainda pensando o caráter popular
dessa luta cotidiana, entendemos o
Feminismo Camponês e Popular como
uma parte da luta travada pela classe
trabalhadora na construção de outra
sociedade. A nossa inserção no MMC e,
por conseguinte, nos debates de construção
do Feminismo Camponês e Popular,
permite afirmar que o caráter popular
coloca em pauta a unidade na diversidade
que compõe a classe trabalhadora (somos
campo e cidade) e a diversidade do próprio
campesinato. É um feminismo que se
apresenta a um debate teórico, mas que
surge no cotidiano, tendo a prática como
critério de validação. Esse feminismo não
se constrói a partir de conquistas
individuais (apesar de também existirem
muitas conquistas individuais), é uma
construção coletiva de uma parte do povo
brasileiro que é o campesinato em luta,
com a especificidade das mulheres.
Para as camponesas feministas do
MMC, isso significa lutar com, não lutar
por; lutar junto a tantos outros setores
explorados e oprimidos. Para isso, são
necessários espaços somente de mulheres,
onde não se estabeleçam relações de
dominação e superioridade, e sim relações
de complementação de saberes. É preciso
haver espaço de plena confiança entre si
mesmas, em que podem falar de tudo o que
sentem e como sentem, sem que os homens
as julguem. A auto-organização se
apresenta como um espaço privilegiado,
inclusive para que elas se deem conta dos
diversos tipos de violências que sofrem e
dos impedimentos cotidianos, como
também da sua falta de poder.
As percepções obtidas no MMC
apontam que o feminismo não é algo
individual e que pode ser desenvolvido
isoladamente. uma força no coletivo
das mulheres em luta que as impulsiona e
que as fez e faz aprender a todo momento.
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Essa força se traduz muito em
solidariedade umas com as outras, assim
como na compreensão e no
companheirismo com o processo da
companheira. E, assim, se uma mulher vai
avançando, leva as outras consigo e elas
vão se compreendendo em meio a crises,
ensaios e ousadias. Sem ousadia não
feminismo, e cada uma possui um jeito de
ousar, de romper com normas patriarcais a
partir de seu espaço familiar e comunitário,
mas esses modos individuais precisam
necessariamente se juntar em um coletivo.
As ousadias e rebeldias são apreendidas e
exercidas no coletivo, nas lutas
necessárias. Por isso, ser feminista do
MMC é assumir-se feminista diferente, que
não é melhor nem pior, só se constrói a
partir de diferentes realidades e embates,
como dizem as companheiras militantes.
O Feminismo Camponês e Popular:
algumas sínteses possíveis
Até aqui enfatizamos a história do
MMC como fio condutor dos debates
teóricos que o Feminismo Camponês e
Popular tem buscado sintetizar. Neste item,
focalizaremos esse tema como categoria de
análise, rebuscando questões quando
necessário, avançando e aprofundando
concepções.
É importante retomar que essa é uma
construção para dar um nome ao
feminismo das camponesas latino-
americanas, portanto, torna-se muito maior
que o MMC, pois se fundamenta nos
fazeres das mulheres dos diversos
movimentos que compõem a Cloc,
movimentos esses auto-organizados de
mulheres, mas também mistos (com
homens e mulheres). A diversidade de
camponesas que compõe a Cloc coloca,
desde o seu surgimento, o desafio de
caminhar rumo a sínteses que possam dar
conta dessa diversidade expressa na
construção da soberania popular e
alimentar, na agroecologia e inclusive no
socialismo latino e também no feminismo.
Assim, é relevante considerar a
diversidade de expressões do feminismo
que se manifesta na Cloc: comunitário,
indígena, negro, ecofeminismo, feminismo
camponês, que, a partir o ano 2010
xiii
,
parece caminhar para ter como síntese o
Feminismo Camponês e Popular. Essa
categoria não busca apagar, nem mesmo
suprimir as diferenças, ao contrário, busca
a unidade na diversidade.
O processo de discussão do
significado do Feminismo Camponês e
Popular para o MMC foi intensificado
ainda mais nos últimos anos (final de 2014
e começo de 2015), quando as camponesas
realizaram reuniões da direção nacional
para debater o tema. Houve também
oficinas com representações dos estados e
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da direção nacional para discutir as teorias
feminista e marxista. Além disso, foram
realizados três seminários internacionais
sobre o Feminismo Camponês e Popular,
com a participação de diversos
movimentos do campo popular do Brasil:
Movimentos que compõe a Via Campesina
do Brasil; Levante Popular da Juventude;
Marias; e Movimento das Trabalhadoras e
Trabalhadores por Direitos (MTD), como
também organizações do Paraguai, a
Coordinadora Nacional de Mujeres
Trabajadoras Rurales e Indígenas
(Conamuri); e do Chile, a Asociacn
Nacional de Mujeres Rurales e Indigenas
(Anamuri), com a presença de
pesquisadoras parceiras, sendo algumas
delas também pesquisadoras militantes do
MMC e duas representantes de todos os
estados onde o MMC está organizado.
Essa caminhada, segundo o
entendimento do MMC, está apenas no
começo pelo fato de ser uma construção
permanente, no entanto, algumas
constatações são visíveis. O Feminismo
Camponês e Popular é um feminismo que
entende que vivemos em uma sociedade
dividida em classes sociais e que apenas a
superação dessa sociedade pode nos levar a
uma realidade igualitária que, nas palavras
atribuídas a Rosa Luxemburgo, é
traduzida: Por um mundo onde sejamos
socialmente iguais, humanamente
diferentes e totalmente livres
xiv
. Isso não
significa que é preciso esperar a construção
dessa outra sociedade para lutar por
igualdade, pelo contrário, pois pressupõe
que a luta pela igualdade contribui
diretamente para a superação da sociedade
de classes.
A forma de organizar as camponesas
é parte importantíssima dessa construção,
por isso o MMC é um movimento que se
organiza a partir da base, tornando-se uma
estrutura organizativa de coordenação e
direção que contribui para que o avanço
seja coletivo. Nos espaços coletivos de
construção e deliberação, nossas diferenças
se expressam e podem ser ajustadas e
compreendidas. Podemos dizer que as
bases alimentam e se retroalimentam junto
com a direção em um movimento dialético,
em que uma instância não funciona sem a
outra. Essa forma dialogada de trabalhar
tem permitido que o MMC avance para
além da prática, no debate teórico, o que
buscaremos apresentar um pouco a seguir.
A centralidade do Feminismo Camponês
e Popular é um rio caudaloso
Nesta parte do texto, recorreremos a
uma metáfora para expressarmos, de forma
mais direta, os caminhos dos debates
teóricos centrais da construção do
Feminismo Camponês e Popular, que
envolvem questões que têm se apresentado
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no processo de discussão realizado pelo
MMC em busca de compreender e assumir
o que se tem chamado de Feminismo
Camponês e Popular, nos momentos
coletivos em todas suas instâncias.
Contudo, não é possível dizer que
apresentamos aqui um consenso
estabelecido, pois o debate está colocado e
buscamos neste estudo apresentá-lo como
o enxergamos. Consideramos oportuna a
metáfora do “rio caudaloso”, porque traz a
imagem de um caminho que é constituído
por muitos igarapés, riachos e rios maiores,
que percorrem diferentes territórios; que
está em movimento e, por vezes, em
tempos de cheia, avança ao revés, de modo
que apresenta grande semelhança com o
Feminismo Camponês e Popular.
a) A centralidade do trabalho
Nas últimas décadas, de forma
especial, as pautas coletivas têm sido
questionadas e a realidade tem sido
apresentada como fragmentada e “líquida”,
tornando difícil a compreensão da
necessidade de construções coletivas e a
ideia de totalidade na diversidade. Na
teoria, temos alguns representantes
expressivos desses discursos.
Apresentamos como exemplos: o
questionamento feito por Judith Butler à
utilização da categoria mulher (Butler,
1998; 2010); o “poder-discurso”, de
Foucault (1979; 1996; 2007); ou mesmo os
“jogos de linguagem” de Lyotard, que
defende o fim das metanarrativas (Lyotard,
1998), entre outros constructos teóricos
que, em nome das especificidades, negam
a exploração do trabalho como um dos
elementos fundantes das contradições e
desigualdades da sociedade capitalista,
buscando resolver os problemas a partir da
aparência do fenômeno.
O MMC tem se mantido na defesa da
centralidade do trabalho como gerador das
coisas, da riqueza e da possibilidade de
emancipação humana (Marx, 2011;
Mészaros, 2002), tendo-o como elemento
fundamental da nossa identidade de classe
trabalhadora, mesmo que não seja dito
dessa forma pelas camponesas. Pensar e
construir autonomia na vida das
camponesas são atitudes que estão
umbilicalmente ligadas à concepção de
trabalho. É a partir do trabalho nas
unidades de produção, nas águas e nas
florestas, que as camponesas se
reconhecem como trabalhadoras,
percebendo que elas não contribuem
para manutenção das famílias com as
tarefas de cuidados
xv
, mas também são
responsáveis por boa parte do trabalho
produtivo, tanto no roçado como nos
quintais, contabilizado ou não em horas
trabalhadas. É desse lugar que se deu a
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construção da agroecologia e da luta por
soberania alimentar, incidindo em lutas por
outros sistemas produtivos e por direitos.
O sistema vigente, capitalista,
patriarcal e racista, se ancora na exploração
do trabalho e na apropriação privada do
trabalho coletivo que possibilita o
aprofundamento das desigualdades. Nesse
sentido, pensamos a realidade das
mulheres e a divisão sexual do trabalho
que, segundo Kergoat (2009), o separa e
hierarquiza, dividindo-o em trabalho de
homens e de mulheres, valorizando o
primeiro em detrimento do segundo.
Assim, grande parte do que é realizado
pelas mulheres não é considerado trabalho,
é coisa de mulher (naturalmente de
mulher), como apontava a pesquisa de
Conte (2014). Assim, para que se consiga
explorar mais as mulheres, é importante
que elas não se reconheçam trabalhadoras
e seus trabalhos sejam diluídos em mil
tarefas invisibilizadas.
É nessa perspectiva que a luta por
direitos das camponesas, como o acesso a
terra com a titularidade em seus nomes,
acesso à água, a direitos trabalhistas e
previdenciários e políticas agrícolas não
são “lutinhas pequeno-burguesas”, mas um
enfrentamento direto ao sistema capitalista
explorador e usurpador da força de
trabalho feminina no campo e na cidade,
com recorte de classe, raça/etnia, geração e
orientação sexual. As mulheres, ao
reconhecerem-se trabalhadoras, se
percebem como sujeitos de um trabalho
que lhes possibilita dignidade ao menos
essa é a luta.
b) Ser Feminista é processo coletivo e
individual
Inúmeras teóricas do feminismo
reconhecem que o processo de se
identificar como feminista parte de
questões coletivas, mas também de
enfrentamentos que se dão internamente na
mulher (Alves & Pitanguy, 2003;
Beauvoir, 1980a, 1980b; Cisne, 2014).
O Movimento de Mulheres
Camponesas, como mencionamos, é “a
primeira das organizações da Via
Campesina Internacional que se assume
feminista” (Cinelli & Mezadri, 2014).
Entretanto, ainda não temos pesquisas
suficientes para falar sobre o tamanho do
impactado dessa definição, mas
percebemos, nas histórias contadas pelas
militantes mais antigas do MMC e também
na relação com as organizações
internacionais, que isso definiu o MMC
internamente e na relação com as outras
organizações. Outra importante questão
nesse debate, compreendida a partir da
militância do MMC, é que um desafio
colocado ao próprio movimento, assim
como por ele para outras organizações de
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mulheres: a discussão sobre como é esse
feminismo e como se deve agir para que
ele seja fortalecido.
A compreensão sobre o feminismo
do MMC mostra que o movimento foi
construindo um feminismo no dia a dia das
mulheres que vivem no campo, muitas
delas com pouco acesso à escolarização,
que vivem em comunidades,
assentamentos e florestas, entre outros
lugares, que geralmente são caracterizados
pela precariedade do acesso a bens e
direitos. Diante disso, a necessidade de
nomear o feminismo do MMC de
Feminismo Camponês e Popular não surge
de uma lógica divisionista, pelo contrário,
tenta fortalecer o poder das mulheres em
luta na Cloc e na Via Campesina.
Isso não significa que todas as
camponesas organizadas no MMC
tivessem certeza sobre o que significava
ser feminista quando ingressaram na
militância do movimento, mas o papel da
direção política é trazer debates
estratégicos para o conjunto do
movimento. Cada mulher vai se fazendo e
se descobrindo feminista nas lutas de que
vai participando e nas quais vai
empreendendo no plano coletivo e
individual, e isso depende de formação
política, no processo de participação no
movimento e nos enfrentamentos em vista
da “formação de uma consciência
feminista”, que vai sendo adquirida (Cisne,
2014).
c) A luta feminista é necessariamente
unitária
O MMC tem se fortalecido com os
coletivos de mulheres de outras
organizações populares mistas do campo e
da cidade e com movimentos auto-
organizados de mulheres, pois, para o
movimento, a libertação das mulheres é
uma luta maior do que ele próprio. Uma
das percepções é de que, em espaços
amplos de lutas, vai se criando força para
enfrentar as dificuldades que se apresentam
no cotidiano. Atualmente, uma das
palavras de ordem do movimento feminista
na cidade sintetiza essa posição: Mexeu
com uma, mexeu com todas”, pois
nenhuma mulher estará livre enquanto
outra sofrer violência. A luta feminista é
necessariamente uma luta unitária, pois
dividir as mulheres é a grande estratégia do
patriarcado para nos derrotar. A
solidariedade feminista deve ser uma
premissa, mesmo que isso seja uma tarefa
árdua em tempos de individualismos
exacerbados. Esse é um ponto forte do
Feminismo Camponês e Popular, pois ele
surge construindo a unidade na
diversidade.
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d) A unidade não pode invisibilizar a
diversidade
O Feminismo Camponês e Popular,
como já mencionamos, surge a partir da
construção de uma diversidade de sujeitos.
Sujeitos esses que guardam inúmeras
diferenças entre si: são mulheres negras,
indígenas, sem terra, assentadas da reforma
agrária, extrativistas, reassentadas,
mulheres muito pobres, outras nem tanto e
mulheres lésbicas, entre outras
características. Essa realidade enriquece o
Feminismo Camponês e Popular, mas
coloca a ele um grande desafio, pois não é
porque esses sujeitos estão representados
nessa construção que os debates e práticas
de enfrentamento ao racismo, à lesbofobia,
às questões de sexualidade e mesmo ao
reconhecimento do corpo estejam acabados
ou tranquilos. É necessário tê-los sempre
presentes, permanentemente no MMC
devido às questões que vão surgindo, dos
sujeitos e da sociedade. É possível dizer,
no que se refere ao corpo e aos direitos
reprodutivos das mulheres, que o MMC
trata os temas um longo tempo, assim
como ocorre com o enfrentamento ao
racismo, mas a questão da diversidade
sexual é algo mais recente.
e) A importância da auto-organização
A garantia do espaço específico para
mulheres em movimentos mistos e a
existência de movimentos de mulheres
são premissas do Feminismo Camponês e
Popular, pois ele nasce justamente em um
espaço assim. Na Cloc, por exemplo, as
mulheres das diversas organizações
reúnem-se antes das assembleias para
discutirem e se articularem em vista de
suas pautas específicas, o que também
ocorre na Via Campesina. Essa, por sua
vez, não é a única importância da auto-
organização, pois, além de construir lutas
coletivas, é um espaço de compreensão da
teoria e da prática feminista; um espaço de
superação de medos e inseguranças; espaço
de fortalecimento político, no qual, sem a
presença dos homens, é mais fácil se
colocar e falar sobre suas necessidades; é
um espaço de criação de possibilidades
reais para obter o reconhecimento como
liderança, fazendo ensaios e tendo a força
das companheiras; é também um espaço de
autocuidado e de cuidado umas com as
outras.
Na auto-organização, elas vão
gerando novas relações na família, na
comunidade e na sociedade, se valorizando
e exigindo a sua valorização enquanto
mulheres camponesas por parte dos
companheiros de luta e dos membros de
suas famílias. Somente com as mulheres
saindo de casa, se reunindo, se
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organizando, discutindo e lutando, é
possível a construção do feminismo e de
uma sociedade justa. A auto-organização
contribui diretamente para o enfrentamento
da violência cometida contra as mulheres,
próxima pauta que trataremos como
elemento fundante do Feminismo
Camponês e Popular.
f) O enfrentamento às violências contra
as mulheres
As camponesas das comunidades
rurais, das florestas, das águas e dos
assentamentos e reassentamentos rurais são
as mulheres menos assistidas pelo Estado
no que tange ao enfrentamento à violência
doméstica e às violências diversas no
espaço privado. A Via Campesina
Internacional na sua VI Conferência
Internacional, que ocorreu em 2013, lançou
a campanha Basta de Violência Contra as
Mulheres, campanha que a sétima
Conferência, ocorrida em 2017, ratificou,
lançando o desafio para que ela seja
assumida por toda a organização e não
apenas pelas mulheres. Nesse aspecto,
percebemos o avanço desse debate de
cunho feminista sendo incorporado pelos
homens, entre resistências e aceitação. Isso
demonstra que as mulheres conseguiram
pautá-lo com força, caso contrário ele não
teria essa importância no conjunto das
organizações.
O MMC tem realizado encontros,
discussões e campanhas sobre o tema e
entende que essa é uma pauta em que
pouco se avançou, quando analisada em
termos de políticas públicas para o campo,
o que coloca a tarefa de ampliar a auto-
organização e a construção do feminismo
como forma de enfrentamento dessa
dolorosa realidade.
g) Parte de um leito histórico
O Feminismo Camponês e Popular
no MMC tem como leito histórico a luta de
mulheres socialistas, comunistas, indígenas
(que lutaram contra os colonizadores),
negras (que se rebelaram) e de todas
aquelas que, mesmo não tendo conseguido
se rebelar, resistiram no seu cotidiano. As
camponesas bascas dizem “somos netas
das bruxas que não conseguiram queimar”
e no Brasil se diz: somos filhas de
Dandara”. No Paraguai, nossas irmãs de
luta afirmam: Somos filhas da Índia
Juliana
xvi
”. As companheiras do MMC na
construção do Feminismo Camponês e
Popular têm buscado estudar a história das
lutadoras e seus escritos, como Rosa
Luxemburgo, Clara Zetkin, Saffioti,
Krupskaya, Zilda Xavier, Rose Marie
Muraro, Ivone Gebara e Nancy Cardoso,
entre outras, as quais consideramos parte
do nosso leito histórico. Essa trajetória é
composta por mulheres que construíram e
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constroem o MMC desde a sua origem e
por tantas de nós que fomos nos fazendo e
nos descobrindo feministas: tantas Loivas,
Margaridas, Luzias, Marias, Teresas,
Franciscas, que se espalham por este país
afora, que tornam o leito do rio caudaloso e
rebelde, que fazem um mar quando se
agitam.
h) É necessário construir outra
sociedade e outros valores
A luta de classes é o fundamento do
feminismo que o MMC constrói. Assim, os
novos valores são pauta para agora e não
para depois da construção do socialismo.
Desse modo, busca-se desnaturalizar
espaços e concepções a respeito do mundo
e do funcionamento da sociedade. As
militantes vivem a contradição e a dialética
no seu dia a dia: elas rezam, mas fazem
luta contra o sistema religioso que
aprisiona e menospreza a mulher,
buscando e redescobrindo outras lógicas de
espiritualidade; são pacatas, mas
desobedecem e contrariam as regras que as
oprimem; são tidas como frágeis, mas
lutam contra o sistema e contra os que
violentam suas vidas, seus corpos e o
planeta.
Também são consideradas pessoas
com pouco conhecimento, mas seus
saberes preservados são hoje importantes
para a vida do planeta. São simples, mas
têm muita sabedoria e a descobriram como
poder e, por isso, compartilham-na umas
com as outras, almejando que suas filhas,
netas e vizinhas, entre outras mulheres,
sigam o caminho que elas ousaram trilhar.
Não aceitam a submissão, a passividade e
as violências e, por isso, denunciam e
forçam o Estado a assumir sua
responsabilidade.
i) Agroecologia como modo de vida
A agroecologia é para o MMC um
modo de vida, pois é a base das relações
menos agressivas entre as pessoas e a
natureza e sustenta o modo camponês de
viver. Ela também faz parte do socialismo,
no qual acredita e busca construir.
Constitui-se de experimentos, de misturas
altamente complexas, diria Ploeg (2008),
feita especialmente por mulheres nos mais
variados biomas, encontrando, em cada
lugar, a forma mais adequada de
preservação, recuperação e disseminação
de espécies. Romper com o monocultivo e
com as práticas produtivas advindas da
Revolução Verde significa dar lugar à
construção de uma agricultura que precisa
ser reconectada com a natureza e com
todos e todas que vivem no lugar; é uma
construção que tem um olhar mais atento e
holístico, pois se baseia na inter-relação e
na complementariedade dos seres da
natureza.
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Percebemos, a partir de Cinelli
(2016), que as dificuldades encontradas na
agricultura pelas camponesas são tanto
externas quanto internas à família, mas a
agroecologia é um elemento essencial para
contribuir na superação dessa realidade. A
pesquisa relata que as mulheres
conseguiram construir relações
diferenciadas no trabalho doméstico e nas
suas diferentes tarefas. Nesse sentido,
a agroecologia contribuiu para as
mudanças nas relações. Esse é um
elemento chave quando trabalhamos
o conceito de feminismo camponês e
popular, porque é um feminismo que
se promove juntamente com a
construção de uma agricultura sem
transgênicos, sem agrotóxicos e pela
vida (Cinelli, 2016, p. 106).
O Feminismo Camponês e Popular
está presente na luta e na construção diária
de atitudes em prol da libertação e da
mudança nas relações entre as pessoas e
destas com a natureza, assim como está na
resistência e no enfrentamento ao
agronegócio, cotidianamente desafiando a
prática e a socialização do cuidado. Esse
cuidado não deve recair somente sobre as
mulheres “cuidadoras”, ele é tarefa e valor
de todas as pessoas.
Como exposto por Calaça e Seibert
(2017), em artigo apresentado no
Congresso Brasileiro de Agroecologia:
É possível perceber que as
camponesas organizadas no MMC
fundam o seu feminismo camponês e
popular em três elementos: a luta de
classes (pois entendem que a
superação da sociedade capitalista é a
única forma possível de construir real
liberdade para todas as pessoas, em
especial para as mulheres), a luta
feminista pelos direitos e autonomia
política das mulheres e a luta por um
projeto de agricultura camponesa e
agroecológica (2017, p. 4).
Para concluir, podemos destacar, em
síntese, o que as camponesas organizadas
no MMC disseram, no seu último
Seminário Internacional sobre o
Feminismo Camponês e Popular realizado
em Brasília em 2017: que esse feminismo
representa e nomeia as lutas que elas já
travam muito tempo. É como se
perceber dentro do rio, se encharcando
nele, teoricamente, ao mesmo tempo em
que se dão conta de que beberam dessa
água há bem mais tempo. O Feminismo
Camponês e Popular, na metáfora do rio, é
que ajuda a descrever o que é ainda difícil
de registrar. É a água que mata a sede e
pode ser bebida, porque não está
contaminada, mas ao matar a sede do
corpo, causa sede de conhecimento e a
libertação de todas mulheres. É um rio que
precisa de mais igarapés para se fazer cada
vez mais forte contra o patriarcado, contra
o capitalismo e os reacionarismos
antidemocráticos deste momento que
estamos atravessando, no Brasil e em parte
das Américas.
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1896/10/16.htm
i
Ao mencionar que somos militantes e intelectuais
orgânicas do MMC, queremos evidenciar que os
elementos trazidos neste artigo são oriundos de
pesquisas realizadas pelas autoras em três
dissertações e duas teses. Valemo-nos também da
vivência e das experiências na construção dos
debates e práticas do Feminismo Camponês e
Popular no âmbito do MMC.
ii
Elisabeth Souza-Lobo (2011) trabalha a questão
da luta geral como sendo aquela dos trabalhadores
entendida como a luta de todos, ou por todos, sem,
no entanto, considerar as especificidades das
mulheres trabalhadoras nas fábricas. Existe amplo
debate no feminismo sobre a luta geral e a luta
específica.
iii
É importante salientar que, mesmo o regime
militar, não ousou retirar os direitos trabalhistas
conquistados pelos trabalhadores no Estado Novo
(1943), mas esses direitos se restringiram, em sua
maioria, a trabalhadores urbanos.
iv
De acordo com Santos (2012, p. 37), a “Revolução
Verde foi um amplo programa, iniciado nos meados
do século 20, idealizado para aumentar a produção
agrícola no mundo por meio de melhorias genéticas
em sementes, uso intensivo de insumos industriais,
mecanização e redução do custo de manejo ,
ferramenta ideal para a transformação da
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agricultura em uma atividade capitalista e geradora
de lucro e mais-valia”.
v
Os estudos realizados sobre a história da extensão
rural no Brasil, a exemplo de Maria Tereza Lousa
Fonseca, em A extensão Rural no Brasil, um
projeto educativo para o capital, demonstram que
praticamente toda a extensão rural brasileira era
feita por homens, pelo menos no que se refere à
produção. Outra referência importante nesse debate
é a pesquisa realizada no âmbito da reunião
Especializada da Agricultura Familiar do Mercosul
(REAF) que consta em nossa bibliografia; como
também o estudo qualitativo sobre a implantação da
Política Nacional de Assistência Técnica e
Extensão Rural (PNATER) a partir da vigência da
lei 12.188/2010 (Lei de ATER) e seus
instrumentos, realizado no período de agosto de
2013 a outubro de 2014, sobre as chamadas
públicas executadas em 2010 e 2011, feito pelo
NEAD/MDA/FAO.
vi
Essa é uma importante reflexão para pensar a
conjuntura atual (2017/2018), pois em tempos de
golpe e retrocessos de direitos, só as trabalhadoras e
os trabalhadores organizados e em luta podem
reverter esse quadro de derrota vivenciado no Brasil
e na América Latina.
vii
A Cloc surgiu entre 1989 e 1992 por ocasião das
manifestações dos 500 anos de resistências
indígena, negra e popular na América Latina, cujo I
Congresso ocorreu em Lima/Peru em 1994. O
segundo Congresso aconteceu no Brasil, em 1997, e
nessa ocasião as mulheres da Cloc realizaram a sua
Primeira Conferência de Mulheres do Campo.
Fonte:
http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/c/cloc.
viii
Via Campesina é um movimento internacional
que reúne organizações locais e nacionais em 73
países da África, Ásia, Europa e das Américas. É
uma articulação autônoma, pluralista e
multicultural, independente de qualquer vinculação
política, econômica ou de outro tipo (Via
Campesina, 2016).
ix
La Via Campesina Brasil é composta pelos
seguintes movimentos: Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB),
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC),
Movimento de Pequenos Agricultores (MPA),
Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
Articulação dos Povos Indígenas (APIB),
Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil
(FEAB), Associação dos Estudantes de Engenharia
Florestal (ABEEF), Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Coordenação Nacional das Comunidades
Quilombolas (CONAQ), Associação de
Assalariados Rurais (ADERE), Movimento dos
Atingidos pela Mineração (MAM). Consta
também, segundo uma circular da Via Campesina,
referente ao seu último congresso ocorrido em
Jacarta/Indonésia no ano de 2013, o Movimento de
Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).
x
Pesquisa realizada no estado da Paraíba, nos três
territórios de atuação do Programa P1+2, em 2010 e
2011: o território da Borborema, o Sertão central e
o Cariri (oriental e ocidental). Foram entrevistadas
11 camponesas de cada território.
xi
A educação popular pensada por Freire e
Nogueira (1993, p. 19) enfatiza: “Entendo a
educação popular como o esforço de mobilização,
organização e capacitação das classes populares;
capacitação científica e técnica ... Em uma primeira
‘definição’, eu a aprendo desse jeito. Há estreita
relação entre escola e vida política”.
xii
Usamos aqui apenas o termo “camponeses”, pois
a relação da esquerda era, de fato, com homens,
desconsiderando as mulheres.
xiii
2010 é considerado um marco na discussão do
Feminismo Camponês e Popular, pois foi realizada
a IV Assembleia de Mulheres da Cloc no Equador
e, nela, esse tema apareceu com mais força.
xiv
Essas palavras são atribuídas a Rosa
Luxemburgo, como parte de um discurso realizado
pela militante no Congresso do Partido Social
Democrata Russo (POSDR), realizado em Londres
no ano de 1907. Nós encontramos muitas
referências a essa tradução, mas não conseguimos
os relatos do congresso nem em português, nem em
espanhol e nem mesmo em inglês.
xv
Não temos dúvidas da importância do trabalho
considerado reprodutivo e de cuidados para a
manutenção econômica, social e psicológica da
humanidade. Contudo, deixar evidente que as
camponesas nunca fizeram apenas esse trabalho é
importante para compreender as diferenças da
construção do Feminismo Camponês e Popular.
xvi
Sobre a sua história, ler:
http://siemprelatina.com/latinas_destacadas/la-
india-juliana/
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ISSN: 2525-4863
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Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 19/02/2018
Aprovado em: 10/05/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on February 19th, 2018
Accepted on May 10th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: As autoras foram responsáveis
pela elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do artigo, e aprovação
da versão final publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Michela Calaça
http://orcid.org/0000-0003-3694-4129
Isaura Isabel Conte
http://orcid.org/0000-0002-5600-6984
Catiane Cinelli
http://orcid.org/0000-0002-7006-0098
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Calaça, M., Conte, I. I., & Cinelli, C. (2018). Feminismo
camponês e popular: uma história de construções
coletivas. Rev. Bras. Educ. Camp., 3(4), 1156-1183. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1156
ABNT
CALAÇA, M.; CONTE, I. I.; CINELLI, C. Feminismo
camponês e popular: uma história de construções
coletivas. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 3,
n. 4, set./dez., p. 1156-1183, 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1156