Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1221
Tocantinópolis
v. 3
n. 4
p. 1221-1248
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2018
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Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
permanências e descontinuidades
Deiviani de Oliveira
1
, Luan Eudair Bridi
2
, Miriã Lúcia Luiz
3
, Regina Godinho de Alcântara
4
1, 2, 3, 4
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Departamento de Educação, Política e Sociedade / Departamento de
Linguagens, Cultura e Educação. Avenida Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras. Vitória - ES. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: deivianioliveira@gmail.com
RESUMO. Este texto visa compreender a trajetória de mulheres
camponesas no Espírito Santo no período de 1930 a 2017, na
busca pela compreensão dos modos como viveram/vivem e
perceberam/percebem sua infância, trajetórias pessoais,
processos de inserção como trabalhadoras e partícipes dos
espaços sociais de suas comunidades, bem como os sentidos que
a escolarização assume ao longo de suas vidas. Privilegia como
aporte teórico-metodológico o pensamento de Carlo Ginzburg
(1988, 1989, 2002, 2007), com os pressupostos da micro-
história e do paradigma indiciário, e o de Mikhail Bakhtin
(2003, 2004), tomando as narrativas como enunciados
concretos. Como fonte, analisa os discursos/narrativas de quatro
mulheres camponesas capixabas materializadas nos Cadernos da
Realidade dos estudantes da Licenciatura em Educação do
Campo/UFES. As análises indiciam permanências e
descontinuidades nas trajetórias das mulheres capixabas no
período investigado. Como permanências, destaca-se a mulher
ocupando os espaços domésticos, sobretudo, exercendo
atividades hercúleas, desprovidas de valor econômico. Ademais,
o modelo patriarcal de família/sociedade presentifica-se nas
narrativas e nos registros de mulheres de diferentes tempos
geracionais. Emana dos documentos indícios de
descontinuidades, tais como: a inserção ainda criança no
processo de escolarização, o protagonismo das mulheres no
âmbito doméstico, comunitário e nos espaços mais amplos da
sociedade, como a Universidade.
Palavras-chave: Mulheres Camponesas, Caderno da Realidade,
Espírito Santo, Permanências, Descontinuidades.
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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Trajectories of peasant women in Espírito Santo:
permanence’s and discontinuities
ABSTRACT. This article aims to understand the trajectory of
peasant women in Espírito Santo from the period of 1930 to
2017, in the search for an understanding of the ways in which
they lived/live and perceived/perceive their childhood, personal
trajectories, insertion processes as workers and participants in
the social spaces of their communities, as well as the meanings
that schooling assumes throughout their lives. It uses as
theoretical and methodological support Carlo Ginzburg's (1988,
1989, 2002, 2007) thinking, based on the assumptions of
microhistory and the indicial paradigm, in cooperation with
Mikhail Bakhtin's (2003, 2004) work, taking the narratives as
concrete statements. As a source, it analyzes the narratives of
four peasant women, born in Espírito Santo, materialized in the
Cadernos da Realidade (Notebooks of Reality) of graduation
students in Countryside Education/UFES. The analysis indicates
continuities and discontinuities in the trajectories of these
women in the period of investigation. As permanencies, it stands
out that women still occupy domestic spaces, mainly exerting
herculean activities, devoid of economic value. In addition, the
patriarchal model of family/society is presented in the narratives
and in the records of women from different generations.
Evidence of discontinuities also emanate from the documents,
such as: insertion as a child in the schooling process, the role of
women in domestic services, community and wider spaces in
society, such as the University.
Keywords: Peasant Women, Notebook of Reality, Espírito
Santo, Permanence’s, Discontinuities.
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Trayectoria de las mujeres campesinas en Espírito Santo:
permanencias y discontinuidades
RESUMEN. Este texto pretende entender la trayectoria de las
mujeres campesinas en Espíritu Santo, durante el período de
1930 a 2017, con el objetivo de comprender los modos como
vivieron/viven y percibieron/perciben su infancia. Así como las
trayectorias personales, procesos de inserción en el trabajo y
participación en los espacios sociales de sus comunidades, al
igual que el sentido que la escolarización asume a lo largo de
sus vidas. Se privilegian los aportes del pensador Carlo
Ginzburg (1988, 1989, 2002, 2007), en relación a la micro-
historia y el paradigma indiciario, además de los referentes de
Mikhail Bakhtin (2003, 2004), donde se toman las narrativas
como enunciados concretos. Como objeto de estudio, se
analizan los discursos/narrativas de cuatro mujeres campesinas
nacidas en Espírito Santo materializados en los Cuadernos de la
Realidad de los estudiantes de Licenciatura en Educación del
Campo/UFES. Los análisis indican permanencias y
discontinuidades en las trayectorias de las mujeres nacidas en
esta provincia, durante el periodo investigado. Como
permanencias, se destaca a la mujer ocupando espacios
domésticos, sobre todo, ejerciendo actividades hercúleas,
desprovistas de valor económico. Además, el modelo patriarcal
de familia/sociedad se exterioriza en las narrativas y en los
registros de las mujeres de diferentes tiempos generacionales. Se
derivan de los documentos, indicios de discontinuidades, como:
la inserción infantil en el proceso de escolarización, el
protagonismo de las mujeres en el ámbito doméstico,
comunitario y en los espacios más amplios de la sociedad, como
la Universidad.
Palabras-clave: Mujeres Campesinas, Cuaderno de la Realidad.
Espírito Santo, Permanencias, Discontinuidades.
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Introdução
A Licenciatura em Educação do
Campo da Universidade Federal do
Espírito Santo (doravante LEC/UFES),
com habilitação em Ciências Humanas e
Sociais e Linguagens, destina-se à
formação de professores cujas funções de
magistério deverão ser exercidas nos anos
finais do Ensino Fundamental e Ensino
Médio, como também em outros
espaçostempos em que a diplomação dos
licenciandos seja reconhecida. A
LEC/UFES é um curso presencial, que
assume a Pedagogia da Alternância como
referência metodológica, destacando-se,
nesse sentido, de acordo com o PPC do
Curso, a pretensão de “... contribuir, na
diversidade de ações pedagógicas, para a
concretização da educação do campo como
direito humano e como ferramenta de
desenvolvimento social” (PPC/LEC/UFES,
2015, p. 04).
Logo, o referido Curso, tendo em
vista a interlocução do conhecimento
científico com os conhecimentos advindos
das comunidades campesinas, intenta o
aprofundamento das questões relativas à
educação do campo pela via da reflexão
conjunta, dialógica e dialética com a
produção acadêmica, na perspectiva da
emergência da complexidade que, nos dias
atuais, tangenciam o campesinato.
Destacamos o pioneirismo do Estado
do Espírito Santo na introdução da
Pedagogia da Alternância no Brasil, pelo
Movimento Promocional do Espírito Santo
(MEPES), no Município de Anchieta. Essa
pedagogia assume lugar de destaque no
que se refere às problematizações a serem
tecidas nos espaços formativos dos
licenciandos, pois, como explicita Caliari
et. al. (2013, p. 38-39, grifos do autor),
“estamos convencidos de que a Pedagogia
da Alternância, ao conversar com a sua
realidade, as atividades desenvolvidas e o
papel dela na tessitura do conhecimento,
devem possuir uma afinidade e uma
expressão nítida de atividades dessa
própria realidade ...”.
Destarte, compreendemos que
salientar e problematizar os saberes e
fazeres produzidos com/pelas mulheres do
campo pela via da Pedagogia da
Alternância torna-se efetivamente
pertinente, tendo em vista que a
materialização dos discursos por elas
produzidos por meio dos Cadernos da
Realidade nos possibilita o alcance não
somente linguístico, mas principalmente
dos aspectos histórico, social, cultural e
ideológico que os perpassam.
Como recurso didático-
metodológico, o Caderno da Realidade
constitui a Pedagogia da Alternância como
a materialização da mediação direta da
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realidade em diálogo com os aportes
teóricos acessados. Logo, sua existência e
seu uso possibilitam o acesso direto da
teoria na prática, facilitando a realização da
práxis em um dado contexto. A partir
dessa concepção, trazemos, novamente,
Caliari et al. (2013, p. 50-51) ao evidenciar
o Caderno da Realidade como uma “...
oportunidade de o aluno refletir sobre seu
cotidiano e o quanto se encontra vinculado
em seu meio...” e, para além, retratar “... a
história de sua família, seu contexto social,
a compreensão geofísica e econômica do
meio onde vive ...”.
Por conseguinte, dada a sua
especificidade de desvelar a realidade
paradoxalmente estranha e/ou recém-
descoberta que constitui o cotidiano do
estudante, o Caderno da Realidade torna-
se, nesse sentido, um documento, uma
espécie de dossiê de informações precisas
ou, por vezes, indiciárias, nos permitindo,
portanto, perseguir vestígios, fios e rastros
que auxiliam a visão/ação sobre a
existência detectada, na possibilidade da
reflexão e do agir com e diante dela, nos
aproximando do verossímil, por meio de
um conhecimento indireto, indiciário e
conjectural (Ginzburg, 2002). Nessa
perspectiva, entendemos que se torna
evidente a ligação primordial dos
conteúdos escolares com a realidade social
do estudante por meio da mediação
fornecida e materializada no e pelo
Caderno da Realidade.
Mediante as considerações tecidas,
entendemos que investigar a trajetória de
mulheres camponesas
i
no/do estado do
Espírito Santo entre 1930 e 2017, na
perspectiva de verificar permanências e
rupturas no que tange aos aspectos sociais,
familiares, educacionais (escolarização),
pela via do Caderno da Realidade e de
narrativas dessas mulheres, torna-se não
somente procedente como profícuo, uma
vez que a materialidade dos discursos ali
engendrados remontam a um olhar
específico e, consequentemente, a uma já
problematização e/ou reflexão no que
tange ao diálogo entre teoria e contexto
cio-histórico.
Com esse entendimento, ao encontro
do propósito maior deste trabalho
ii
, acima
explicitado, este texto objetiva, mais
especificamente: a) compreender modos
como mulheres camponesas capixabas
viveram/vivem e perceberam/percebem sua
infância e suas trajetórias pessoais; b)
investigar os processos de inserção dessas
mulheres no trabalho e nos espaços sociais
de suas comunidades no período
investigado; e c) entender os sentidos que a
escolarização assume para essas mulheres,
ao longo de suas trajetórias de vida.
Visando aos objetivos propostos e no
sentido de balizar nossas análises, cujo
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corpus constitui-se dos discursos/narrativas
de quatro mulheres materializados nos
Cadernos da Realidade, trouxemos como
referencial teórico-metodológico os
estudos de Ginzburg (1988, 1989, 2002,
2007) e Bakhtin (2003, 2004), ao encontro
da necessidade do olhar para a
multiplicidade de fontes e da interrogação
dos documentos para a produção da
narrativa historiográfica, bem como da
consideração dos Cadernos da Realidade
como enunciados concretos e, nesse
sentido, como gêneros discursivos.
Evidenciamos também as contribuições de
Cordeiro (2007), Paulilo (2009) e Neves e
Medeiros (2013) tendo em vista à temática
principal de nosso trabalho, as trajetórias
vivenciadas por mulheres camponesas.
Pensamos também que tais documentos
constituem vestígios, fios e rastros
(Ginzburg, 2007) para a compreensão das
singularidades que caracterizam as
trajetórias das mulheres capixabas, no
período em análise.
Para organização do texto,
elencamos três eixos/categorias as quais
emergiram das fontes citadas e que
guiaram nossa pesquisa, quais sejam:
- Mulheres camponesas capixabas:
memórias da infância e de suas trajetórias
pessoais;
- O trabalho, os desafios e inserção
social das mulheres camponesas no
Espírito Santo;
- Os processos de escolarização das
mulheres camponesas capixabas.
Tais eixos/categorias seguem ao
encontro dos objetivos de pesquisa. Logo,
aspirando à organização, clareza e
objetividade de nosso estudo,
seguidamente, evidenciamos alguns
estudos que trouxeram a mulher campesina
como foco; em seção posterior, buscamos a
potencialidade da temática de pesquisa,
mediante um aprofundamento quanto ao
referencial teórico-metodológico
anunciado; e, posteriormente, damos
mostras do corpus discursivo composto
pelos textos materializados nos e pelos
Cadernos da Realidade, os quais são
analisados e discutidos como enunciados,
imersos na dinâmica discursiva à qual
foram produzidos.
Mulheres campesinas na literatura: o
campo temático da articulação entre
gênero e campesinato
Historicamente, a concepção de
mulher, no contexto brasileiro, passou por
diferentes modos de compreensão e
idealização, tanto no âmbito doméstico,
como na vida social. No Brasil colônia “...
o indígena considerava a mulher uma
companheira, não encontrando razão para
as diferenças de oportunidades
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educacionais. Não viam, como os brancos
os preveniam, o perigo que pudesse
representar o fato de suas mulheres serem
alfabetizadas...”, além disso, “... o trabalho
e o prazer do homem, como os da mulher
indígena, eram considerados equitativos e
socialmente úteis...” (Ribeiro, 2011, p.
80).
iii
A exploração sexual à época da
colônia era intensa e abundante. Os
portugueses, sustentados pelo
patriarcalismo evidente e vigente, vinham
para o Brasil sem suas famílias e abusavam
das indígenas e das negras escravizadas.
No Brasil Colônia do século XVI, o
homem dominava e decidia os rumos da
vida doméstica e social da família.
Segundo Holanda (1995), a palavra família
origina-se da expressão famulus, de origem
latina, que significa: escravos domésticos
de um mesmo senhor. Logo, entende-se
que essa palavra e/ou expressão remete-se
à obediência a um senhor patriarcal, senhor
meu marido, senhor meu pai.
Nesse contexto, quando as mulheres
tinham sua primeira menstruação, por volta
dos 11 ou 12 anos, estavam preparadas
para se casarem. Essas moças eram
vigiadas o tempo todo pelo pai e os irmãos
para resguardar a virgindade. A mulher
era descrita como dependente e
subordinada, a qual se sujeitava à
dominação do pai ou do marido, tendo os
afazeres domésticos como obrigação única
e afastada das decisões econômicas
importantes. A mulher desta época,
portanto, sempre se dedicou ao espaço
privado. O trabalho para ela estava
relacionado aos afazeres domésticos
(Ribeiro, 2011).
Refletir sobre a história das mulheres
no Brasil é, inevitavelmente, abordar os
modos como viveram no campo, pois, até o
início do século XIX o Brasil constituía-se
em um enorme país rural. O estilo de vida
da elite dominante na sociedade brasileira
era marcado por influências do imaginário
da aristocracia portuguesa, do cotidiano de
fazendeiros plebeus e das diferenças e
interações sociais definidas pelo sistema
escravista e determinada pelo total
patriarcalismo. A chamada família
patriarcal brasileira, comandada pelo pai
detentor de enorme poder sobre seus
dependentes, agregados e escravos,
habitava a casa-grande e dominava a
senzala (D'incao, 2004).
Sabemos dos desafios da escrita
sobre a História das mulheres, tanto pelo
forte machismo que predomina em nossa
sociedade, como pelo lugar social
secundário que a mulher ocupou e, não
raro, ainda ocupa em muitas comunidades.
Desse modo, tratar da história de mulheres
se constitui em um esforço necessário e,
por se tratar de mulheres camponesas
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capixabas, essa tarefa é ainda mais
profícua, pois a historiografia deste estado
tem sido foco de pesquisas atuais, mas
ainda demanda de muitos esforços
historiográficos no sentido de tatearmos as
semi-invisibilidade da História do Espírito
Santo (Simões & Franco, 2004).
Somamos a esses desafios o fato de
abarcarmos a trajetória de mulheres
camponesas, tema que tem ocupado o lugar
da invisibilidade social em pesquisas
(Neves & Motta-Maués, 2013). De acordo
com Neves e Motta-Maués (2013), dentre
os lugares-comuns nas interpretações de
muitos autores que se ocupam de formas
de ação das mulheres no campesinato, a
exaltação de que elas realizam tarefas
hercúleas, desempenham papel
fundamental na posição de defesa da posse
da terra ou até mesmo em movimentos
diante da sua expropriação, no entanto,
muitas vezes, não têm essas tarefas
reconhecidas por seus respectivos valores
sociais e econômicos.
Desse modo, corroborando o
pensamento de Del Priori (2004),
interrogamos: teria então chegado o tempo
de falarmos, sem preconceitos, sobre as
mulheres? Teria chegado o tempo de
lermos, sobre elas, sem tantos a priori?
Muito se escreveu sobre a dificuldade de se
construir a história das mulheres,
mascaradas que eram pela fala dos homens
e ausentes que estavam do cenário
histórico. Acreditando que essa discussão
não está superada, o presente estudo
constitui-se em ponto de partida para
investigações que tenham como foco as
mulheres camponesas no Espírito Santo.
Portanto, temos como objetivo visibilizar,
pela via dos registros e discursos dos
Cadernos da Realidade, trajetórias das
mulheres camponesas de comunidades
capixabas.
O que os estudos sobre mulheres
camponesas no Brasil apontam?
Ao inventariar o campo temático da
articulação entre gênero e campesinato,
Neves, Santos e Cruz (2013) apontam para
a invisibilidade social das mulheres em
produções acadêmicas
iv
. Tal ocorrência é
geralmente explicada pela dominação
masculina, por vezes em absoluto, dada a
referência à tão hegemônica influência
masculinizante de regras e organização
institucionais; ou defendida por filiações e
cumplicidades políticas dos pesquisadores
com o repúdio à submissão de mulheres;
ou por investimentos fundamentados em
construção de denúncias como parte dos
procedimentos políticos de mudança nas
respectivas relações de poder. A respeito
dessa invisibilidade social e os riscos de
considerá-la nas interpretações e análises,
os autores asseveram:
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Se a invisibilidade social pode ser
entendida pela impossibilidade de
participação na vida pública ou pelo
irreconhecimento do papel ativo das
mulheres no processo de elaboração
da vida social, aceitá-la como
princípio de interpretação é se
colocar diante da exigência de, no
mínimo, explicar, em cada situação,
como se define a vida pública e a
respectiva organização social (Neves,
Santos & Cruz, 2013, p. 351-352).
Ao analisar o conjunto de estudos a
respeito de gênero no espaço rural, Neves,
Santos e Cruz (2013) alertam para a
escassez de pesquisas preocupadas com as
mudanças recentemente vividas na
organização social e ideológica do mundo
ocidental que vieram a interferir na vida
familiar e nos papéis até então atribuídos
às mulheres, no caso, camponesas.
Constatam, portanto, significativa “...
ausência de interpretações sobre a
metafórica transformação qualificada como
revolução social, em face das alterações
provocadas nas relações entre os sexos,
bem como pelos deslocamentos sociais
nesses termos operados” (Neves, Santos &
Cruz, 2013, p. 352).
Em termos quantitativos, Neves
(2013) faz o levantamento de 12 estudos,
entre dissertações e teses defendidas em
programas de Pós-Graduação no país, entre
1995 e 2007, tematizando analiticamente
relações de gênero no mundo rural. Desse
total, 3 trabalhos interessam-nos
especialmente (Oliveira, 2007; Janata,
2004; & Brochado, 1998 apud Neves,
2013) por tratarem da mulher no espaço
rural.
Neves (2013) analisa a dissertação de
mestrado em Educação da Universidade
Federal da Paraíba, defendida em 2007 por
Maria Lucia Lopes de Oliveira, que toma
como espaço físico e social de análise um
assentamento no Cariri Paraibano. A
pesquisa teve como objetivo principal
identificar as transformações ocorridas no
cotidiano das mulheres em assentamentos
rurais. Abarca relações pessoais e
coletivas, consideradas mediante o
reconhecimento da vivência de mulheres
em processos de empoderamento e sob um
trabalho interventivo, pautado na formação
feminista proposta pelo Coletivo Feminista
e pelo Centro da Mulher 8 de Março.
Os resultados mais evidentes
destacados pela autora foram: elevação da
autoestima; exercício da fala nos espaços
públicos; reconhecimento social de saberes
que dominam; e respectivo enriquecimento
decorrente de novos conhecimentos no
desenvolvimento de suas habilidades
práticas. Tais aquisições materiais, mas
principalmente de símbolos de prestígio,
segundo a autora, facilitaram: o acesso às
políticas de crédito; o reconhecimento da
identidade de trabalhadora rural; a
consciência crítica das desigualdades de
poder que referenciam relações entre
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mulheres e homens e os padrões de
organização social (Neves, 2013).
Outro estudo analisado por Neves
(2013) intitula-se Fuxicando sobre a
cultura do trabalho e do lúdico das
meninas-jovens-mulheres de
assentamentos do MST. Trata-se de
dissertação de mestrado em Educação
Física da Universidade Federal de Santa
Catarina, defendida em 2004 por Natacha
Eugênia Janata.
Neves (2013) aponta que a
investigação se circunscreveu ao estudo da
articulação entre a atividade de educação
física e a produção de engajamentos em
Movimentos Sociais, particularmente no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). Partindo da problemática da
migração da juventude rural para a cidade,
o objetivo de Janata (2004) foi
compreender as relações e contradições
entre a cultura do trabalho e a cultura
lúdica, vividas e construídas pelas jovens
dos Assentamentos 30 de Outubro e São
José. Ambos são representantes de
mobilizações coordenadas por lideranças
do MST e estão situados no município de
Campos Novos-SC.
Janata (2004), ao valorizar a
participação das mulheres nas atividades
de pesquisa participativa, traz ao
conhecimento do leitor a explicitação
situacional de sonhos. Por essa reflexão
coletiva, as mulheres adquiriram um novo
significado diante dos engajamentos no
projeto político do MST (Neves, 2013).
No contexto de estudos agrários, com
enfoque em questões vinculadas às
condições de trabalho e a reprodução da
vida de seres humanos, Ofélia Cerinéia
Brochado, mestre em Geografia (Humana)
em 1998 pela Universidade de São Paulo,
no texto Trabalho, Saúde e Reprodução da
Vida: A mulher boia-fria no mundo
cindido de Paraguaçu Paulista, considera
o trabalho volante feminino em áreas
agrícolas canavieiras do país. Ao enfatizar
a participação das mulheres, a autora
reivindica sua afiliação aos estudos de
gênero, dimensionando as condições de
existência da mulher cortadora de cana,
sujeito de dupla exploração: como mulher
e como trabalhadora (Neves, 2013).
Além dos 3 trabalhos selecionados a
partir do levantamento de Neves (2013),
localizamos e analisamos 2 estudos que
nos permitem uma aproximação do
cotidiano de mulheres camponesas e dos
desafios enfrentados pelas mesmas nos
espaços domésticos e sociais, considerando
as relações assimétricas que se estabelecem
nesses espaços. Trata-se do artigo
Movimento das Mulheres Agricultoras e os
muitos sentidos da “igualdade de gênero”,
publicado por Paulilo em 2009, e do artigo
intitulado: Gênero em contextos rurais: a
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liberdade de ir e vir e o controle da
sexualidade das mulheres no Sertão de
Pernambuco, de autoria de Cordeiro
(2007).
Paulilo (2009) partiu do pressuposto
de que as mulheres, ao participar de
movimentos coletivos, sejam elas
feministas ou não, tendem a questionar sua
posição social subordinada. Para tanto, a
autora entrevistou mulheres militantes e
não militantes e procurou perceber se esses
questionamentos de gênero estavam pondo
em xeque a identidade entre os interesses
femininos e os dos outros membros da
família.
O interesse da autora remeteu-se
principalmente à busca pelas diferenças
entre o discurso das mulheres do
Movimento de Mulheres Camponesas e o
das líderes de outros movimentos, tendo
como contraponto o discurso das não
militantes de três estados do Sul,
especialmente em Santa Catarina.
Os resultados do estudo de Paulilo
(2009) apontam para o fato de que somente
quando as mulheres começarem a
questionar o casamento tradicional é que
questionarão o fato de ele ser a única via
para a profissão de agricultora. A questão
da não-herança da terra é ainda um tabu
entre as mulheres rurais. Segundo essa
autora, pedir igualdade de gênero nas
políticas públicas parece ser mais fácil que
enfrentar a questão dentro da família. Sem
dúvida, a oposição a grupos que não são
próximos afetivamente e que, portanto,
podem ser caracterizados como
“inimigos”, traz menos desgaste emocional
que se oporem a maridos, pais, sogros,
irmãos e filhos homens.
O estudo de Cordeiro (2007)
objetivou compreender as restrições e os
obstáculos de gênero à liberdade de ir e vir
das lideranças e participantes do
Movimento de Mulheres Trabalhadoras
Rurais do Sertão Central de Pernambuco
(MMTR), tendo como hipótese norteadora
que na restrição ao ir e vir das mulheres
também se consubstancia o controle da
sexualidade feminina. A autora dialogou
com as ideias de Foucault (2004) sobre
moral e sexualidade, com as reflexões
feministas sobre gênero (Scott, 1991) e o
referencial das práticas discursivas e
produção de sentidos no cotidiano (Spink,
1999).
Cordeiro (2007) destaca que as
pesquisas sobre a agricultura familiar
tendem a assinalar o padrão gido e
assimétrico das relações de gênero na área
rural, ressaltando que, muitas vezes, as
mulheres são confinadas ao espaço da casa,
do roçado e da comunidade onde moram,
defrontando-se com ordens morais de
gênero que impõem duras restrições ao ir e
vir.
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
permanências e descontinuidades...
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A autora destaca que apesar das
transformações na área rural e da
superação do debate sobre o mundo rural e
o mundo urbano como instâncias isoladas,
o controle e a regulação das condutas e dos
corpos das mulheres constituem elementos
importantes nas ordens morais de gênero.
E a família, parentes, vizinhos e a
comunidade exercem vigilância para que
assim continue. Ficar ‘falada’, ‘mal-
falada’, ser alvo dos ‘olhares’ ‘de alguém
reparando’ são algumas das artimanhas a
que homens e mulheres recorrem para
impor sanções, coerções ou dificultar as
“escapadas” e “piscadelas” das mulheres.
Os estudos acessados permitem-nos
uma aproximação do que se tem
produzido, em âmbito nacional, a respeito
das mulheres camponesas, ao apontar para
a invisibilidade das mulheres na produção
de estudos sobre seus próprios contextos
de vida, a pouca representatividade no que
tange seu papel econômico e social nas
comunidades em que vivem. Ademais,
destacaram desafios na busca por
igualdade de gênero nas políticas públicas
e nos espaços domésticos e a constatação
de que o controle e a regulação das
condutas e dos corpos das mulheres
constituem-se elementos importantes nas
ordens morais de gênero.
Na busca por estudos desenvolvidos
no Espírito Santo, acessamos o banco de
dados do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE) e em História (PPGHIS)
da Universidade Federal do Espírito Santo.
Localizamos 5 estudos que tomam como
temática a mulher (Siqueira, 2008; Rangel,
2011; Suanno Neto, 2014; Silveira, 2015; e
Rocha, 2016), porém, nenhuma das
pesquisas localizadas tematiza mulheres
camponesas. Tal constatação indicia a
importância dessa reflexão inicial,
constituindo-se como ponto de partida para
estudos que focalizem a mulher camponesa
capixaba e suas trajetórias de vida.
Discursos e memórias de mulheres
campesinas do Espírito Santo: os
enunciados concretos materializados nos
Cadernos da Realidade
Neste momento de nosso estudo,
damos a conhecer narrativas de mulheres
campesinas do Espírito Santo, transcritos
dos Cadernos da Realidade de estudantes
da LEDOC/UFES, objetivando a
problematização de tais discursos tendo em
vista nosso principal objetivo de pesquisa:
refletir acerca da trajetória de mulheres
camponesas
v
no/do Espírito Santo na
perspectiva de verificar permanências e
descontinuidades no que tange aos
aspectos sociais, familiares, educacionais
(escolarização) no período de 1930 a 2017.
Torna-se importante explicitar que os
discursos foram elencados tendo em vista o
delineamento da temática e objetivos de
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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pesquisa e, mediante tal direcionamento, a
possibilidade de abrangência do recorte
temporal explicitado. Nessa perspectiva,
entendemos com Ginzburg (2007, p. 287)
que “... devemos aprender a desembaraçar
os fios multicores que constituem o
emaranhado do contexto investigado”.
Logo, a seleção de Helena, Vanilda,
Dória e Karina contando,
consecutivamente, com 92, 85, 81 e 21
anos, elencadas pela possibilidade de
representar as continuidades e
descontinuidades existentes neste processo
histórico: a mulher do presente - 21 anos e
a mulher do passado, em diferente
fases/momentos - 92, 85 e 81, visou
traduzir a potência da narrativa da mulher
campesina, com vistas à potencialidade do
período investigado.
Nessa perspectiva, prosseguimos
com o estudo dando a conhecer as
narrativas das referidas mulheres, com
vistas aos três eixos/categorias elencados:
- Mulheres camponesas capixabas:
memórias da infância e de suas trajetórias
pessoais;
- O trabalho, os desafios e inserção
social das mulheres camponesas no
Espírito Santo;
- Os processos de escolarização das
mulheres camponesas capixabas.
Mulheres camponesas capixabas:
memórias da infância e de suas
trajetórias pessoais
A princípio, dedicamos este texto às
memórias de infância narradas por
mulheres capixabas e, também,
reminiscências de suas trajetórias
particulares desencadeadas em seus
processos sociais, levando em conta que
compreendemos, conforme explicita
Bakhtin (2004, p. 58 grifos do autor), que
... o conteúdo do psiquismo
individual é, por natureza, tão social
quanto a ideologia e, por sua vez, a
própria etapa em que o indivíduo se
conscientiza de sua individualidade e
dos direitos que lhe pertencem é
ideológica, histórica, e internamente
condicionada por fatores
sociológicos...
Logo, ao narrar às memórias de
infância, as mulheres campesinas trazem à
tona os contornos históricos e sociais
imanentes à sua época.
Paralelamente ao pensamento de
Mikhail Bakhtin (2003, 2004), buscando os
indícios por meio de detalhes quase
invisíveis e, por vezes, negligenciados,
Ginzburg (2007) sustenta seu método
historiográfico ao retirar o véu macro-
histórico que esconde detalhes importantes
das minorias.
O que dizer de indivíduos
pouquíssimo estudados? Como narrar
histórias de reclusão e repressão
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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historicamente negligenciadas? O que
pensar destas mulheres na atualidade em
comunidades capixabas? Nesse ínterim,
deve-se levar em conta “... que o acúmulo
do conhecimento sempre ocorre assim: por
linhas quebradas em vez de contínuas; por
meio de falsas largadas, correções,
esquecimentos, redescobertas; graças a
filtros e esquemas que ofuscam e fazem
ver ao mesmo tempo” (Ginzburg, 2007, p.
111).
Nesse caminho, Bakhtin (2004)
acredita que nossa consciência surge e se
afirma por meio dos contextos vividos, de
modo que emergem, nos discursos das
mulheres aqui visibilizadas, modos de
pensar, viver e de rememorar suas
experiências nos espaços/tempos
domésticos, sociais, políticos, econômicos
e culturais.
Narrativas a respeito das
reminiscências de infância das mulheres
camponesas revelam diferentes facetas,
permeadas por desafios, superações e
dificuldades que impactam na constituição
de suas famílias e em suas singularidades.
É o que se indicia nas narrativas de Dória,
que viveu a infância nas décadas de 1930 e
1940:
Eu nasci em uma casa muito ruim.
morei em tantas casas ... mais
de 20 casas .... Eram casas muito
ruins, paiol mesmo. Nós éramos
muito pobres. Éramos em 11
irmãos e precisávamos trabalhar
muito. Meu pai bebia muito. Uma
vez ficamos todos doentes com
sarampo e minha avó trazia um
pouco de leite com arroz para nós
comermos. Éramos muito pobres.
Eu tinha dois vestidos, que eu
vestia dia de quarta-feira e
sábado. Meu pai não trabalhava,
só bebia (Dória, 81 anos)
vi
.
Vivendo a infância na década de
1920, Helena destaca condições materiais
que marcaram seu cotidiano. Em suas
palavras: “O colchão era feito de palha de
milho, o travesseiro de pena de galinha e o
cobertor de pendão de taboa. Era uma
época muito difícil, mas eu daria tudo pra
voltar lá ...” (Helena, 92 anos).
Helena prossegue seu relato
acionando suas memórias lúdicas. Detalha
brincadeiras e modos de produzir artefatos
para os momentos de diversão,
compartilhados com seus irmãos:
... as brincadeiras que a gente fazia
eram durante o dia, porque à noite
não tinha energia, era uma escuridão
medonha. Tinha um terreiro enorme
que era para secar o café e ali a
‘gente’ brincava... brincava de
chicotinho queimado e de ‘roda’. Nós
éramos em 4 irmãos, onde
brincávamos nós quatro, porque
morávamos numa casa isolada. Tinha
uma cachoeira muito bonita, hoje não
tem mais nada porque secou. Os
brinquedos que tínhamos para brincar
na época era peteca que se fazia de
palha de milho e bola que nós
fazíamos de pano. A ‘gente’ pegava
pano velho, enrolava, enrolava e
amarrava com cordão de banana para
formar uma bola. Assim,
brincávamos de tarde (Helena, 92
anos).
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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Encontramos a presença de
brincadeiras e momentos de diversão na
infância de Karina, ao relatar suas
memórias dos anos 2000: “A ‘gente’
brincava muito de pique esconde, pique-
pega, pique-bandeira. Eu também gostava
muito de brincar de carrinho junto com
meus primos e vizinhos de perto. A
principal brincadeira era construir
estradinhas na ‘barreira’ e fazer caminhos,
fazer cerquinhas para carrinho” (Karina, 21
anos).
Ao compreendermos que “...
figuras do passado que o tempo aproxima
em vez de afastar” (Ginzburg, 2007, p.53),
interrogamos, a partir das narrativas das
mulheres aqui presentificadas: o que marca
a infância das mulheres camponesas no
Espírito Santo? Ao considerarmos as
depoentes que foram crianças nas décadas
de 1930 e 1940 e a que viveu a infância
nos anos 2000, quais permanências
marcam suas trajetórias? Que
descontinuidades observamos? Até aqui,
ouvimos relatos marcados pelas condições
econômicas desfavoráveis e os desafios de
uma vida familiar com a presença de um
pai alcoólatra, que certamente incumbia à
mãe o sustento da família. Por outro lado,
discursos permeados por momentos de
alegria e diversão, em que as experiências
lúdicas ganham espaço nas memórias e nas
narrativas das mulheres, que, ao acessar as
camadas do passado, retém objetos que
são, para elas, e para elas, significativos
dentro de um tesouro comum (Bosi, 1987).
Em muitos momentos, as narrativas
da infância confundem-se com a inserção
dessas mulheres nos espaços/tempos de
trabalho. É o que relatou Karina: “Eu
cresci indo pra roça, cresci tendo minha
peneirinha, tendo minha enxadinha, meu
rastelinho, molhando plantinhas. Cresci
junto no dia a dia da minha família, indo
pra lavoura. Eles têm café, banana, uma
propriedade muito diversificada, apesar de
ser pequena” (Karina, 21 anos). Nessa
mesma ótica, Vanilda, referindo-se a
experiências vividas mais de 50 anos,
revela:
... meu pai queria que s
trabalhássemos. Com 8 anos íamos
para a roça. Às vezes falávamos que
íamos embora porque tinha muito
mosquito, meu pai falava: ‘vocês
vão embora porcaria nenhuma!
Vocês não querem comer? Não
querem beber? Então vão trabalhar”
(Vanilda, 85 anos).
Notamos o pesar nas falas de Helena,
ao mencionar que o trabalho ocupou muito
espaço em sua vida, sobretudo na
adolescência:
Quase não aproveitei minha
adolescência, eu tive que trabalhar
muito, depois que chegava da escola
ia para casa de uma vizinha lavar
louças. Depois ia para minha casa
ajudar minha mãe a lavar roupas e
passar com o ferro à brasa, pois não
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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tinha energia ainda. Eu estava sempre
fazendo bordados e outros trabalhos
artesanais (Helena, 92 anos).
Emerge, por meio dos discursos
evidenciados, uma possível demarcação de
uma fase da adolescência da mulher do
campo, até aproximadamente os anos de
1940, marcada pelo trabalho doméstico e,
consequentemente, pelo preparo dessa
menina-mulher para o casamento,
estimado, em grande parte, como o único
destino possível e viável, sendo que a
possibilidade de educação formal e/ou
escolarização encontrava-se à margem de
suas expectativas. Vemos, assim, a
narrativa, em uma perspectiva bakhtiniana,
carregada de sentido ideológico ou
vivencial e capaz de trazer consigo a
realidade e a vida de seu locutor,
traduzindo suas diferentes matizes
(Bakhtin, 2004).
Portanto, o casamento precoce
parece-nos, parafraseando Ginzburg
(1989), um indício eloquente de
permanências nas trajetórias narradas pelas
mulheres camponesas aqui focalizadas. É o
que relatam Dória: Com 18 anos conheci
meu marido ele nos ajudou, pois meu pai
tinha morrido. Me casei e morei em vários
lugares... Ele não trabalhava na roça, nós
não tínhamos roça” (Dória, 81 anos), e
Vanilda:
Conheci meu marido em Venda
Nova. Ele trabalhava com tropa. Me
casei com 17 anos e vim morar em
Ponto Alto, Domingos Martins com
ele. Começaram a chegar os meninos,
então ele viu que trabalhar com tropa
não dava mais, pois eu ficava
sozinha. Então nos mudamos para
Perobas, onde estou até hoje
(Vanilda, 85 anos).
A narrativa de Karina aponta pistas a
respeito de práticas permanentes nas
trajetórias das mulheres camponesas: o
casamento precoce e, simultaneamente,
descontinuidades, como o acesso e
conclusão da escolarização básica:
Sobre namoros, tive algumas
paqueras, alguns relacionamentos,
mas namoro de verdade tive um,
que foi com meu colega de escola
que eu conheci lá em 2008 na 5ª série
e estudei com ele nesses 4 anos.
Depois estudamos mais 4 anos juntos
na Escola Família Agrícola de
Olivânia, mas no finalzinho do
ano do Ensino Médio que a gente
começou mesmo a se relacionar.
Então no final do ano do Ensino
Médio eu engravidei, tive o meu
filho, o A. V. Eu tinha 19 anos
quando eu ganhei o A. Mais tarde,
quando o A. já tinha 9 meses, a gente
se casou no civil e no religioso, a
gente está casado há 1 ano e meio
(Karina, 21 anos).
Ao compreendermos as narrativas
enquanto textos que, ao serem
interrogados, nos possibilitarão
conjecturarmos acerca dos modos como as
mulheres camponesas construíram suas
trajetórias, como Ginzburg (2007),
buscamos escavar os meandros dos textos,
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fazendo emergir vozes incontroladas.
Portanto, interrogamos: Quais seriam as
motivações que conduzem aos casamentos
precoces das mulheres aqui focalizadas?
Estariam relacionadas à constatação de
Paulilo (2009) de que o meio rural não
seria um bom lugar para as solteiras, tendo
em vista que a condição do celibato laico,
camponês e feminino, constitui-se por
“recusas, retenções e negações”
(Rodrigues, 1993 apud Paulilo, 2009, p.
192)? Mesmo com a ausência de respostas
nas narrativas encontradas, acreditamos
que a interrogação pode provocar outras
possíveis narrativas e escritas das próprias
mulheres em busca de respostas para estas
[e outras] indagações.
Marcas do machismo e da submissão
feminina presentificam-se nas narrativas de
Dória, quando relata momentos
conflituosos com o cônjuge: “Eu e meu
marido às vezes brigávamos. Quando ele
era novo andava com [outras mulheres] e
eu ficava em casa, mas eu não o xingava.
Não adiantava, né? Quanto mais briga pior
fica, né? Mas nunca deixou faltar nada em
casa” (Dória, 81 anos).
O relato de Dória, que reflete a
experiência vivida na década de 1950,
aponta para um modelo de família
patriarcal propagandeado e, em muitos
aspectos, observados nas famílias
brasileiras. O lugar da mulher e do homem
estava claramente demarcado, como
mostra Bassanezi (2004), ao discutir o
papel da mulher nos anos dourados (1950),
por meio de periódicos femininos do
período
vii
. A autora alerta que o conteúdo
veiculado nas revistas não revelava que
todas as mulheres pensavam e agiam de
acordo com o esperado, mas indicava as
expectativas sociais que faziam parte de
sua realidade, influenciando suas atitudes e
pesando em suas escolhas.
Desse modo, ao apontar como os
periódicos tratavam a infidelidade
feminina e masculina, observamos as
disparidades. Em relação à mulher, em
primeiro lugar, a autora destaca que esse
tema não era recorrente nas revistas do
período. Ademais, quando aparecia, as
mulheres “... eram aconselhadas a
controlarem suas frustrações, fugirem das
tentações e, dominando seus impulsos,
manterem-se fiéis aos maridos, mesmo que
eles não agissem do mesmo modo”. E
acrescenta: “O remorso, a vergonha moral
e os riscos de perder o marido, os filhos e o
respeito social não compensariam o prazer
enganoso e fortuito da aventura
extraconjugal” (Bassanezi, 2004, p. 530-
531). Por outro lado, a infidelidade
masculina assume tratamento distinto:
Se o marido infiel mantivesse
minimamente as aparências e
continuasse provendo sua família
com bens materiais, as esposas não
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deveriam se queixar. Afinal, a
infidelidade masculina justificava-se
pelo temperamento poligâmico dos
homens um fator natural que,
mesmo quando considerado uma
fraqueza, merecia a condescendência
social e a compreensão das mulheres.
Paciência e sacrifícios, integridade e
determinação para manter a
integridade da família (Bassanezi,
2004, p. 531).
Os apontamentos de Bassanezi
(2004) a respeito dos modos como se
pensava o comportamento das mulheres
nas famílias e na sociedade, nos anos de
1950, se aproximam de situações vividas
no mesmo período por Helena:
Em 1957 foi construída a igreja
católica na comunidade. Eu era
luterana e J. católico. um pastor
falou pra mim: duas religiões numa
casa não dá certo porque se o pai tem
uma religião e a mãe tem outra, os
filhos ficam perdidos, não sabem se
vão para ou se vão para lá. Então,
eu pensei bem, eu sou mulher eu
tenho que ceder. Aí passei para a
religião dele (Helena, 92 anos, grifos
nossos).
A partir da escuta e do diálogo com
as narrativas aqui privilegiadas,
reconhecemos, ainda hoje, traços nos
modos como as mulheres são pensadas e os
lugares que ocupam nos espaços
domésticos e sociais. Concordamos com o
pensamento de Bassanezi (2004, p. 533):
“Permanecem certos costumes e valores
que definem, unem ou separam e até
estabelecem hierarquias entre homens e
mulheres”. Por outro lado, muitas das
ideias e das práticas observadas nas
décadas de 1930 a 1950 foram contestadas
e superadas, podendo, nos dias atuais,
causar reações do estranhamento a repulsa.
A inserção das mulheres camponesas
nos espaços sociais e no trabalho
Pela via das memórias de infância
narradas, evidenciamos que o trabalho
sempre fez parte da vida das mulheres
camponesas capixabas desde a infância.
Ora o trabalho em casa, nos afazeres
domésticos, ora o trabalho na lavoura,
auxiliando na subsistência familiar e, não
raro, a concomitância de ambas atividades
laborais faziam-se e, quiçá, fazem-se
presentes no(s) cotidiano(s) dessas
mulheres.
Ao encontro desse desvelamento,
encontramos Del Priore (2004, p. 54),
explicitando que:
As experiências de vida relatadas
pelas mulheres rurais mostram que
em seu cotidiano não uma clara
distinção entre os limites do lar e do
trabalho, entre as atividades
domésticas e as tarefas agrícolas,
entre as responsabilidades na
educação dos filhos e a vida
comunitária. No campo, a autoridade
do chefe de família do pai ou do
marido extrapola o espaço
doméstico e muitas vezes impõe-se,
negando a participação das mulheres
nas decisões nas cooperativas, nos
bancos, nas associações de
produtores e nos sindicatos.
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Acerca da dupla e/ou tripla jornada
de trabalho da mulher campesina capixaba,
a narrativa de Karina aponta que:
No ambiente de trabalho não sofri
nenhuma discriminação porque onde
a gente mora e trabalha a gente vive
de maneira bem igual de um para o
outro, apesar de que a mulher tem
uma dupla jornada de trabalho. Se ela
vai para a lavoura ainda tem que
cuidar da casa eu vejo isso, por
exemplo, na família da minha sogra e
também na família da minha mãe. Se
vai pra roça, ela ainda volta pra casa,
tem que dar conta da comida, tem
que dar conta da casa arrumada e é
muito cobrada por isso. na minha
relação com meu marido a gente não
tem isso, porque que se eu for ajudar,
ele também me ajuda. Em casa, é ele
que faz a janta e também me ajuda
com as roupas e com nosso filho, me
ajuda com tudo não tem esta
discriminação, esse preconceito
dentro de casa. Mas eu vejo isso
muito nos vizinhos, também na
minha família mesmo. Na
comunidade de modo geral o que eu
percebo é essa dupla jornada de
trabalho ou às vezes tripla que às
vezes a mulher tem, que é o homem
que quer que ela para a roça, quer
que ela ajude, mas quando volta, ela
que tem que arrumar a casa, ela que
tem que fazer todo o serviço de casa
e dar conta da alimentação ainda
(Karina, 21 anos).
Podemos considerar, a partir do que
indicia o discurso de Karina, a
continuidade de um período exaustivo de
trabalho diário da mulher camponesa
capixaba, no entanto, a narrativa também
evidencia uma possibilidade de ruptura no
que tange à participação masculina nas
tarefas domésticas e, nesse sentido, tanto
um reconhecimento do labor exaustivo da
mulher camponesa, como também de que
algumas tarefas não se restringem
unicamente ao universo feminino, na
direção, pois, de uma relação mais
igualitária e justa entre os pares.
Todavia, as narrativas também nos
permitem inquirir: até que ponto o trabalho
permitiu e/ou ensejou a inserção das
mulheres camponesas nos espaços sociais
do campo, com atuação significativa no
que tange às suas pautas reivindicatórias?
“Começamos a trabalhar com cana,
milho e feijão, trabalhávamos de manhã à
noite, naquela época não tinha energia,
ligava a lamparina e ia tratar de porco,
tínhamos muito porco” (Vanilda, 85 anos).
“Eu sou lavradora e tenho esta profissão
principalmente por causa da minha
família” (Karina, 21 anos). As duas
narrativas, de tempos geracionais diversos,
nos remetem, de certa forma, a uma
possibilidade de participação na vida social
da(s) comunidade(s) campesina(s) pelo
duto do trabalho agrícola. No entanto,
retomando a colocação de Del Priore
(2004) e trazendo o prosseguimento das
narrativas, compreendemos que tal
participação demandou enfrentamento e
disposição para sua efetivação,
principalmente tendo em vista a inserção
em diferentes frentes de trabalho, que o
a doméstica e na lavoura:
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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Comecei a trabalhar, trabalhei alguns
meses em Campinho, fui
convidada para dar aula aqui em
Perobas porque a professora que dava
aula aqui vinha 3 meses e ia
embora pois aqui era uma tapera, não
tinha nada, então vim. Chequei aqui
dia 28 de fevereiro de1945, uma
escuridão, se via a estrada quando
relampeava, meu pai me trouxe,
fiquei numa casa antiga com um
varandão. Quando acordei no outro
dia pensei assim, não vou ficar aqui
não! Isso aqui era um brejo, você
tinha que ter cuidado para andar, aqui
não tinha nada, tinha duas casas, a
do senhor T. que já foi demolida e do
P. T., meu sogro. falei com meu
pai que não ia ficar aqui, meu pai
falou: experimenta uma semana, se
você gostar você fica, se não gostar
você vai pra casa. Como eu já tinha
uma conversinha com J., eu fiquei de
uma semana já se vão 72 anos
(Helena, 92 anos).
A narrativa de Helena, destacando
sua trajetória como professora, revela as
questões que permearam sua inserção em
uma profissão marcada, até mesmo nos
dias atuais, pela presença feminina e, para
além, os aspectos que perpassam tal
atividade no contexto de uma comunidade
campesina:
Naquela época era muito difícil dar
aula, trabalhava com as quatro séries
juntas, eu passava o exercício pra
um, o outro conversava,
atrapalhava, eu fiz o seguinte,
dividi o e o de um lado e o e
o do outro lado. Coloquei um
quadro negro de cada lado, ai não
dava tempo deles conversarem e
brincarem. Não existia merenda
escolar, nem material escolar, tinha
um aluno que era muito pobre, não
tinha o que comer, ele vinha para a
escola e ficava de cabeça baixa na
carteira, de fraqueza. Aí eu pensei:
meu Deus, este menino desse jeito
não pode ficar. eu levava pra ele
de manhã uma merenda, às vezes eu
levava pão de casa com ovo, dava
para ele comer para poder estudar. O
recreio era meia hora, eu cantava
roda para eles, brincavam de jogar
lenço, chicotinho queimado umas
brincadeiras muito bonitas. (Helena,
92 anos).
Na compreensão do que nos expõe
Helena, entendemos com Bakhtin (2003, p.
312), que “a atitude humana é um texto em
potencial e pode ser compreendida (como
atividade humana e não ação física)
unicamente no contexto dialógico da
própria época (como réplica, como posição
semântica, como sistema de motivos)”.
Logo, podemos inferir que a atividade
humana, aqui traduzida pela atividade
laboral, evidencia-se como forma de
inserção das mulheres camponesas nos
espaços sociais, assim como a efetividade
de participação em tais espaços pode
ratificar e dar visibilidade ao trabalho
realizado.
É com essa perspectiva que
enfatizamos a narrativa de Vanilda (85
anos), no que tange, principalmente, ao
empenho no desenvolvimento de uma
atividade humana cuja realização
evidencia a relação direta e implicada com
o(s) espaço(s) sociais campesinos:
Meu pai me ensinou a benzer quando
tinha 15 anos e até hoje eu trabalho
com isso, vivi preconceito por ser
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G. (2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
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benzedeira pelo pessoal da igreja
católica, mas o que falo é a palavra
de Deus, mas eu faço de bom coração
e enquanto eu tiver viva eu não vou
desistir, pois com 85 anos hoje eu
não vou desistir, não vou mesmo,
pois se fosse palavra ruim, troço ruim
ai sim o pessoal podia falar mais é
tudo palavra de Deus. Todo dia tem
gente aqui, tem dia que tem 13, tem
15 até 20 pessoas e eu enfrento tudo
na Fé de Deus e graças a Deus tá
dando tudo certo, e eu não vou
desistir enquanto eu tiver vida, não
vou desistir porque não é palavra
ruim é palavra de Deus (Vanilda, 85
anos).
A narrativa de Vanilda traz um
homem (pai) e uma mulher (filha)
exercendo a mesma prática, no entanto
percebidas de modos distintos pela
comunidade campesina: para o homem, a
aceitação e o reconhecimento; para a
mulher, a despeito do usufruto de sua
atividade, o julgamento. Pensamos,
portanto, na perspectiva ginzburgniana
(1988), ao investigar processos
inquisitoriais, pois traz a mulher como um
dos sujeitos centrais, acusada de bruxaria.
Neste espaço de pesquisa, Vanilda
assumiria o lugar da bruxa, que, por meio
dos inguentos, oferece a cura aos sujeitos
do campo, já o pai, tem sua integridade
moral preservada e sua atividade valorada
no contexto social mais amplo da
comunidade.
As narrativas destacadas podem
confirmar uma inserção e participação
gradativas e não facilitadas da mulher
camponesa capixaba nos espaços sociais e,
em uma via de mão dupla, em atividades
de trabalho que não sejam as domésticas e
agrícolas, transparecendo, pois, em um
exercício de afinco e de manifestação de
interesse e desejo de participação nesses
espaços. Como nos releva Karina (21
anos):
Eu participo muito da igreja e da vida
social da comunidade, vou à igreja
todos os domingos, mas também
participo de festas, outras coisas que
acontecem na comunidade, ajudo a
organizar, tenho minhas
responsabilidades. Nas escolas,
quando eu estudava, eu participava
também do ‘corpo’ da escola. Eu
conheci bastante o sindicato dos
trabalhadores rurais de Domingos
Martins, porque meu pai trabalhava
lá. Ele trabalhou 10 anos, então
quando trabalhava lá a gente sabia de
lá e tal, e participava das coisas que o
sindicato fazia. Hoje sou membro
sócia do sindicato... (Karina, 21
anos).
Cotejando as narrativas de Vanilda e
Karina, quanto à participação nos espaços
sociais das comunidades campesinas,
encontramos a permanência de um desejo
de atuação nesses espaços, os quais,
independentemente do teor/modos como se
materializam acabaram por trazer para si
diferentes matizes e formas de
materialização do preconceito:
E como eu me percebo como mulher
na sociedade: sofri preconceito na
família mesmo, tipo na geração do
meu avô. Ele é uma pessoa que é
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característica desta sociedade
machista, por exemplo, estes dias
mesmo, eu sou mulher e tenho um
irmão D. e uma irmã A. e a gente foi
para uma cavalgada e eu queria ir em
determinado animal. meu avô
disse: não, aquele você não sabe
montar, tem que ser homem para
montar naquele. foi assim, me
deixou constrangida, meio triste
também por ouvir isso dele. Mas,
em relação aos meus pais, eles são
de uma geração diferente eles sempre
me trataram e meus irmãos de
maneira muito igual. Se eu ia para a
roça, o D. também ia, a A. também
ia, é claro que cada um tem suas
limitações, mas eles sempre nos
viram como pessoas iguais,
independente do sexo de cada um
(Karina, 21 anos).
Na perspectiva das narrativas
destacadas, compreendemos que, a
despeito da(s) vicissitudes no que se refere
à inserção das mulheres camponesas
capixabas em espaços sociais e no
trabalho, encontramos a permanência de
uma dupla/tripla jornada de trabalho, no
entanto, possibilidade de rupturas,
principalmente no seio da família, tanto no
tratamento como no olhar para essa mulher
e na consideração de suas tarefas diárias.
Ao encontro do refletido por meio
dos discursos trazidos, corroboramos com
Bakhtin (2003, p. 294) que “em cada
época, em cada círculo social, em cada
micromundo familiar, de amigos e
conhecidos, de colegas, em que o homem
cresce e vive, sempre existem enunciados
investidos de autoridade que dão o tom, ...
nas quais as pessoas se baseiam, as quais
elas citam, imitam, seguem...”.
Logo, tais discursos investidos de
autoridade também perpassam as
instituições campesinas, fazendo nelas
refratar permanências ou possibilidades de
rupturas quanto à condição da mulher
nessa(s) comunidade(s), o que não poderia
ser diferente no contexto das comunidades
do campo no Espírito Santo.
Os processos de escolarização das
mulheres camponeses capixabas
“... Nós não sabemos ler nada”; “...
Terminei meus estudos com muita
dificuldade”; “... Meu pai não nos deixou
estudar. Eu queria muito estudar e ele não
deixou”; Depois de ter passado pela fase
de maternidade, casamento, construção da
própria família, ai comecei a ingressar na
faculdade”. Essas e outras narrativas nos
impulsionam a interrogar: Como as
mulheres camponesas capixabas se
inseriram/inserem nos processos de
escolarização? Qual o lugar ocupado pela
educação escolarizada nas trajetórias das
mulheres focalizadas neste estudo?
A partir dos indícios e pistas
deixados pelas mulheres camponesas ao
relatarem suas memórias a respeito de suas
trajetórias de vida e, especificamente,
sobre a inclusão/exclusão em processos de
escolarização, buscamos compreender e
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problematizar permanências e
descontinuidades em suas trajetórias,
considerando, com apoio em Ginzburg
(2007, p. 40), que “... nosso conhecimento
do passado é inevitavelmente incerto,
descontínuo, lacunar: baseado numa massa
de fragmentos e de ruínas”.
Tais fragmentos indiciam que os
processos de inserção ou a exclusão das
mulheres camponesas aqui visibilizadas
estão intrinsecamente relacionados aos
modos de organização das famílias, bem
como ao lugar ocupado pelas referidas
mulheres nos espaços domésticos e sociais.
Segundo pesquisas sobre a agricultura
familiar, “... as mulheres [camponesas] são
confinadas ao espaço da casa, do roçado e
da comunidade onde moram, defrontando-
se com ordens morais de gênero que
impõem duras restrições ao ir e vir”
(Cordeiro, 2007, p. 20). O relato de Dória
revela a preocupação do pai em preparar as
filhas para o trabalho e para a vida
matrimonial:
... Meu pai não trabalhava só bebia,
por causa disso, nós não sabemos ler
nada. A escola era pertinho da nossa
casa e a professora falava para ele nos
deixar estudar. Ele respondia que não e
indagava: ‘Para quê estudar?’ falava
que precisávamos trabalhar, porque
depois casava e não sabia trabalhar.
Ele era muito ruim (Dória, 81 anos).
Encontramos similitudes entre o
relato de ria e o verso declamado nas
casas de Portugal e do Brasil cerca de
cinco séculos: “mulher que sabe muito é
mulher atrapalhada, para ser mãe de
família, saiba pouco ou saiba nada” (Dias,
1984, apud Ribeiro, 2011, p. 79).
As mulheres camponesas são, por
diversos meios, deixadas à margem da
sociedade. É o que observamos na
narrativa de Dória, que foi destinada à
submissão. Submissa ao pai, enquanto filha
e submissa ao marido, enquanto esposa.
Vanilda narra situação similar: “Meu pai
não nos deixou estudar. Eu queria muito
estudar e ele não deixou” (85 anos).
Helena, ao contrário de Dória e de
Vanilda, conseguiu estudar. Porém sua
educação foi tardia, de modo que, os
desafios por ela encontrados neste longo
processo marcaram-na e são por ela
rememorados e registrados.
... Terminei meus estudos com muita
dificuldade, estudei à distância.
Naquela época não se conseguia
estudar, não tinha condição. Com a
ajuda de um juiz casado com uma
amiga minha que me ajudou,
preparou os documentos para eu
estudar. Aí eu consegui me formar no
magistério. Sempre fui uma boa
aluna, nunca tive nota vermelha,
tenho facilidade em aprender
(Helena, 92 anos).
Notamos que sua inserção no
processo de escolarização tornou-se
possível graças à mediação de um juiz,
casado com sua amiga. Desse modo, a
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mediação não apenas masculina, mas de
uma pessoa que ocupava uma profissão
privilegiada socialmente. Percebemos,
nessa ótica, o predomínio do modelo
patriarcal de sociedade, que fornece o
modelo no qual se calcava, na vida política
e social, por conseguinte, as relações
interpessoais. “Uma lei moral inflexível,
superior a todos os cálculos e vontades dos
homens, pode regular a boa harmonia do
corpo social, e, portanto deve ser
rigorosamente respeitada e cumprida”
(Holanda, 1995, p. 85).
Até mesmo Karina encontrou
dificuldades e obstáculos em sua formação
escolar. Todavia, ao narrar o início de sua
escolarização, a jovem destaca que as
escolas atendiam as necessidades de sua
realidade:
Sobre o processo de escolarização,
minha primeira escolinha foi escola
municipal unidocente ‘do Pena’,
escolinha aqui pertinho de casa, onde
estudei de a séries. Depois fui
para a Escola Família Agrícola de
São Bento do Chapéu, onde estudei
de 5ª a 8ª séries. Isso nos anos de
2008 a 2011. De 2012 a 2015 eu
cursei o Ensino Médio na Escola
Família Agrícola de Olivânia. Fui
para justamente para dar
continuidade a este segmento de
educação que estava tendo, que era
escola família agrícola, voltada para
nossa realidade, voltada para o
campo, voltada para isso que vivia e
vivo até hoje que é o trabalho na
agricultura, na lavoura, na roça
(Karina, 21 anos).
Diferentemente de ria e Helena,
Karina conseguiu ingressar em um curso
superior. Em suas palavras: “Depois de ter
passado pela fase de maternidade,
casamento, construção da própria família,
eu ingressei em 2016 na faculdade. Hoje
estou no período do Curso de
Licenciatura em Educação do Campo, na
área de Ciências Humanas e Sociais”
(Karina, 21 anos).
Mesmo considerando que a
escolarização de Karina represente indícios
de descontinuidades em relação aos
processos excludentes, permanências
em sua trajetória: o casamento e a
maternidade precoces.
De acordo com Bakhtin (2004, p. 42,
grifo do autor) a psicologia do corpo
social não se situa em nenhum lugar
interior... ela é, pelo contrário,
inteiramente exteriorizada: na palavra, no
gesto, no ato...”, sendo que, as ... formas
de interação verbal acham-se muito
estritamente vinculadas às condições de
uma situação social dada e reagem... a
todas as flutuações da atmosfera social
(2004, p. 42).”. Nesse caminho, os
discursos aqui analisados representam uma
realidade específica e suas implicações
sócio-históricas desvelam situações sociais
impostas à mulher e todos os seus efeitos
que permanecem na atualidade, de modo
mais ou menos perceptível.
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Ressaltamos a importância dos
discursos aqui visibilizados, pois nos
remete aos contextos sociais em que as
mulheres capixabas estavam/estão
inseridos. De fato, os discursos revelam o
que se encontrava escondido ou
negligenciado historicamente.
Dessa forma, a mulher camponesa
capixaba encontrou/encontra significativos
obstáculos em seus processos de
escolarização, tendo em vista a tradição
patriarcal e os desdobramentos desta, que
marcam as relações familiares e sociais
mais amplas. Contudo, as descontinuidades
são presentificadas em suas narrativas.
Como exemplo, encontramos a inserção
das mulheres camponesas em cursos
superiores, em especial, na Licenciatura
em Educação do Campo (LEDOC), que
busca reconhecê-las como protagonistas e,
portanto, sujeitos históricos, ao considerar
a realidade do campo como ponto de
partida para os processos educativos.
Algumas considerações
Na perspectiva de que um texto
(gênero discursivo) reflete e refreta a
realidade concreta e, nesse sentido, os
aspectos sociais, históricos, culturais e
ideológicos que lhe são inerentes,
compreendemos que as narrativas das
mulheres camponesas capixabas
evidenciadas neste estudo espelham uma
condição em constante mudança, a
despeito das permanências encontradas.
Logo, a (in)conclusão da pesquisa torna-se
potência na perspectiva de sua própria
inconclusibilidade demandar novos
movimentos dialógicos e a abertura das
fronteiras para outros dizeres e
possibilidades.
Com esse entendimento, a
visibilidade de recorrências materializadas
nas narrativas instiga-nos a refletir acerca
de algumas questões específicas, dentre as
quais a continuidade de uma jornada dupla
e/ou tripla de trabalho da mulher
camponesa capixaba, ainda para muitos
naturalizada e desvalorizada, retratando,
portanto, um modelo patriarcal de
família/sociedade ainda marcadamente
forte no campo. Logo, como assevera
Paulilo (2009, p. 192), “... o trabalho fora
de casa não torna as mulheres
automaticamente mais independentes de
seus maridos e atuantes politicamente”,
tampouco, não leva a uma preocupação
semelhante com a desigualdade entre os
gêneros. Portanto, a entrada dessa mulher
em outras frentes de trabalho, dentre elas a
docência, em grande parte não repercutiu
em um olhar para as suas condições de
vida e as atividades laborais que necessita
desempenhar.
Em contrapartida, mesmo que esse
olhar não seja abrangente, podemos
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distinguir que o desejo de efetiva
participação na/da comunidade campesina
deu visibilidade a essa mulher e a colocou
em condição de importância nessa
comunidade, haja vista que as posições de
agricultora, dona de casa, mãe, mulher,
professora, benzedeira... transparecem sua
valoração e influência.
Entendemos que a partir desses
deslocamentos, marcados pela atividade
intensa da mulher camponesa capixaba em
sua(s) comunidade(s), encontramos, hoje, a
sua inserção ainda criança no processo de
escolarização, bem como um protagonismo
no âmbito doméstico e comunitário, haja
vista diferentes entradas nesse espaços e,
nesse sentido, a visibilidade e deferência
por parte da sociedade local e mais ampla.
Ademais, traduzimos que a inserção
da mulher camponesa capixaba no Ensino
Superior e, mais especificamente, na
Universidade Pública, possibilita o diálogo
entre diferentes culturas e a visibilidade da
atividade campesina como legítima e
imprescindível, a qual enseja processos de
rupturas não dantes pensados. Logo, a
Licenciatura em Educação do
Campo/UFES evidencia essa possibilidade
no sentido desse olhar e desse
deslocamento e da relevância que lhe é
inerente.
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de Mestrado). Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória.
i
Ao longo do texto, utilizamos os termos
“campensina” e “camponesa para nos referir à
mulher do campo, assumindo ambos o mesmo
sentido.
ii
Este artigo apresenta reflexões parciais de
pesquisa em andamento vinculada aos Projetos de
Pesquisa Os processos formativos dos estudantes
do curso de LEC/UFES: um olhar com e pelos
Cadernos da Realidade e de extensão O Caderno
da Realidade como instrumento de interlocução e
intervenção na comunidade dos estudantes de
Licenciatura em Educação do Campo cujos
desdobramentos efetivam-se, dentre outros, por
meio de produção de artigos e Trabalho de
Conclusão de Curso produzido por uma estudante
da Licenciatura em Educação do Campo/UFES.
iii
Para aprofundamento sobre a diversidade dos
grupos indígenas que povoavam a região de
Piratininga à época da colonização do Brasil,
mencionada por Ribeiro (2011) ao tratar da
compressão a respeito das mulheres indígenas, ver:
Moreau, Felipe Eduardo (2003). Os índios nas
cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo:
Anablume.
iv
Esse levantamento foi realizado pelos autores e
autoras considerando todos os títulos de
dissertações e teses disponibilizados no Banco de
Teses da CAPES, até o final do primeiro semestre
de 2009, que tivessem como referência ou palavra-
chave não o termo gênero (independentemente
de ser tomado como conceito ou senso comum),
mas também a distinção sexual homem e mulher,
ênfase no estudo de condições de vida de mulheres
e de homens, formas de produção de
masculinidade, feminilidade e sexualidade (2013).
v
Ao evidenciar cada enunciado/discurso,
utilizaremos nomes-fantasias, no sentido da
preservação identitária das mulheres co-produtoras
de nossa pesquisa.
vi
As narrativas foram, primeiramente gravadas em
áudio e, posteriormente transcritas para os
Cadernos da Realidade, buscando a garantia de
fidedignidade dos discursos.
vii
A autora analisa revistas femininas que
circularam no período: Jornal das Moças e O
Cruzeiro.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 30/05/2018
Aprovado em: 14/08/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 30th, 2018
Accepted on August 14th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: O primeiro autor participou da
coleta, transcrição e análise dos dados; o segundo autor
participou da análise dos dados, redação e revisão final do
artigo; o terceiro e o quarto autor orientaram todas as
etapas do trabalho, participaram da análise dos dados,
redação do artigo e da revisão final do artigo. Todos
aprovaram a versão final do artigo publicado.
Author Contributions: The first author participated in the
collection, transcription and analysis of the data; the
second author participated in the data analysis, writing and
final revision of the article; the third and fourth author
guided all the stages of the work, participated in the
analysis of the data, writing of the article and the final
revision of the article. All authors approval of the final
version published.
Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Deiviani de Oliveira
http://orcid.org/0000-0002-1732-1308
Luan Eudair Bridi
http://orcid.org/0000-0002-1008-5103
Miriã Lúcia Luiz
http://orcid.org/0000-0001-6825-1541
Regina Godinho de Alcântara
http://orcid.org/0000-0002-5748-3918
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Oliveira, D., Bridi, L. E., Luiz, M. L., & Alcântara, R. G.
(2018). Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito
Santo: permanências e descontinuidades. Rev. Bras.
Educ. Camp., 3(4), 1221-1248. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1221
ABNT
OLIVEIRA, D.; BRIDI, L. E.; LUIZ, M. L.; ALCÂNTARA, R.
G. Trajetórias de mulheres camponesas no Espírito Santo:
permanências e descontinuidades. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 4, set./dez., p. 1221-1248,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1221