Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1345
Tocantinópolis
v. 3
n. 4
p. 1345-1371
set./dez.
2018
ISSN: 2525-4863
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Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de
professoras primárias no meio rural sergipano (1930-1950)
Rony Rei do Nascimento Silva
1
, Ilka Miglio de Mesquita
2
1
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP. Programa de Pós-Graduação em Educação. Avenida Hygino
Muzzi Filho, 737, Mirante. Marília - SP. Brasil.
2
Universidade Tiradentes - UNIT.
Autor para correspondência/Author for correspondence: ronysocial@hotmail.com
RESUMO. O presente texto tem como objetivo compreender a
história de vida de professoras aposentadas, tendo em vista o
trabalho, a escola e a trajetória no magistério. Analisamos as
narrativas de dezesseis professoras entrevistadas e consideramos
que no início do século XX houve uma política de feminização
do magistério e, consequentemente, o abandono das populações
rurais, que permaneceram desassistidas, afastadas das melhorias
educacionais, uma vez que os investimentos púbicos
concentraram-se no modelo de urbanização que emergia no país,
naquele período. Contudo, as escolas no meio rural e as
professoras desempenharam, neste aspecto, em que pese à
precariedade de suas instalações e da formação de seus
professores, importante papel na institucionalização do ensino
primário em Sergipe.
Palavras-chave: História de Vida de Professoras, Feminização
do Magistério, Sergipe.
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio rural
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Women with hoe and pencils in hand: stories of primary
teachers in the rural scope sergipano (1930-1950)
ABSTRACT. The following text seeks to understand the life
stories of retired school teachers, according to their work,
school, and teaching experiences. In order to do so, we analyzed
stories collected from sixteen previously-interviewed teachers,
considering the early-twentieth century policy of feminization in
this profession and, subsequently, the abandonment of the
countryside populace, which in turn left them to their own
devices, keeping them away from educational improvements,
this being the product of heavy investment on the urbanization
model going on in the country at the time. However, schools in
the countryside and their teachers played, in this regard, and in
spite of the precariousness of its facilities and of the overall
training of its teachers, an important role in institutionalizing of
Sergipe’s primary school.
Keywords: Life Stories of Teachers, Feminization of Professor
Ship, Sergipe.
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Mujeres con azada y lápiz en la mano: historias de
profesoras primarias en medio rural sergipano (1930-1950)
RESUMEN. El presente texto tiene como objetivo comprender
la historia de vida de profesoras jubiladas, con miras al trabajo,
la escuela y la trayectoria en el magisterio. Así, movilizamos las
narrativas de dieciséis profesoras entrevistadas y, por fin,
consideramos que en el inicio del siglo XX hubo una política de
feminización del magisterio y, consecuentemente, lo abandono
de las poblaciones rurales, que permanecieron sin ayuda, aparte
de las mejorías educacionales, una vez que las inversiones
públicos se concentraron en el modelo de urbanización que
emergía en el país, en aquel periodo. Pero, las escuelas en
medios rurales y las profesoras desempeñaron, en este aspecto,
en que pese a la precariedad de sus instalaciones y de la
formación de sus profesores, importante papel en la
institucionalización de la enseñanza primaria en Sergipe.
Palabras clave: Historia de Vida de Profesoras, Feminización
del Magisterio, Sergipe.
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Introdução
O presente texto tem como objetivo
compreender a história de vida de
professoras aposentadas, tendo em vista o
trabalho, a escola e a trajetória no
magistério. Este texto origina-se na
dissertação de mestrado Memórias
caleidoscópicas: configurações das
escolas rurais no estado de Sergipe,
apresentada, em 2016, ao Programa de
Pós-graduação em Educação da
Universidade Tiradentes (PPED-Unit). É
igualmente parte de projeto nacional de
pesquisa liderado pela Prof.ª Dr.ª Rosa
Fátima de Souza, intitulado Formação e
Trabalho de Professoras e Professores
Rurais no Brasil: PR, SP, MG, RJ, MS,
MT, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a
70 do século XX).
Tomamos como fonte os relatos orais
de dezesseis professoras aposentadas, de
oito regiões sergipanas. Chegamos até elas
por intermédio do projeto de pesquisa
Memória oral da Educação Sergipana.
Para realizar as entrevistas, utilizamos a
metodologia da História Oral
i
, seguindo as
experiências realizadas por Alberti (2012).
Também tomamos como fontes o discurso
do educador sergipano Nunes Mendonça,
Mensagens de Governadores, letras de
músicas, fotografias, entrevistas, entre
outras. Operamos no sentido de analisar os
elementos prescritivo-normativos dos
regulamentos educacionais que refletem
aspectos da história de vida de professoras
aposentadas. Para o delinear dessa
narrativa histórica, perguntamos: Qual e
como se constituiu o trabalho, a escola e a
trajetória de professoras primárias rurais do
estado de Sergipe?
Para responder a essa questão
norteadora, este artigo está organizado em
duas seções: a primeira, intitulada ... filha
mulher aprende a escrever para o
namorado”: o trabalho, a escola e o
feminino no meio rural sergipano, na qual
delineamos o quadro social sergipano, a
partir do trabalho e da escola primária rural
marcados pelo descaso do Poder Público
em relação ao “homem pobre rural”
ii
. Os
instrumentos ultrapassados no trabalho
agrícola; as condições impróprias de
salubridade das moradias; o êxodo; a
escassez de recursos médicos, sanitários e
higiênicos; a carência de rodovias e
estradas; os poucos meios de transporte e
comunicação são elementos que
colaboraram para o diminuto nível de
produtividade no meio rural sergipano,
como consequência do despreparo técnico
dos trabalhadores rurais e abandono do
campo no país.
Na segunda seção, intitulada “... eu
vivia com meu marido e era uma vida
muito sofrida”: a feminização do
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magistério no meio rural sergipano,
analisamos algumas experiências vividas
pelas professoras quando alunas,
experiências essas marcadas pelo
abandono, machismo, isolamento e
esquecimento dos Poderes Públicos. As
iniciativas do Estado traduziam-se em
ações que, de modo geral, não atenderam
ao conjunto de necessidades do meio rural,
pois, pelas narrativas, podemos conjecturar
que no início do século XX houve
abandono dessas populações rurais, que
permaneceram desassistidas, afastadas das
melhorias educacionais, pois efetivamente
os investimentos púbicos concentraram-se
no modelo de urbanização que emergia no
país, naquele período.
“... filha mulher aprende a escrever
para o namorado”: o trabalho, a escola e
o feminino no meio rural sergipano
No recenseamento de 1950, Sergipe
contava com 644.361 habitantes, dos quais
488.792 residiam no meio rural
(Mendonça, 1958, p. 21). A maior parte da
população sergipana dedicava-se aos
labores agropastoris, inclusive crianças em
idade escolar, como conta Raimunda Alves
dos Santos, de 83 anos, sobre suas
experiências vividas no povoado São
Domingos, município de Simão Dias,
localizado no Centro-Sul sergipano: “Na
nossa região, toda moça trabalhava de
enxada. Todo mundo ficava sapecado do
sol, as moças botavam um chapéu na
cabeça, aquela mangona comprida, e iam
pra roça.” (Santos, 2012). A narrativa é
complementada com a de outra professora,
Raimunda Maria de Jesus, 83 anos. Em
suas memórias de infância, ressurgiram o
trabalho na roça, no povoado Maria
Angola, município de Tobias Barreto, por
volta de 1940:
... meu pai era lavrador, minha mãe
também. Nasci em um lugar
chamado Maria Angola, município
de Tobias Barreto, mas Maria Angola
é roça. Depois dos sete anos de idade,
ia para roça trabalhar. ... Chegavam
lá, eles [os pais] faziam uma
continha
iii
para a gente trabalhar.
Naquele tempo era diferente. As
brincadeiras era um cavador, uma
foice para trabalhar na roça. A
brincadeira era essa. Sete anos ia para
roça, mas eu com sete anos fui para
escola. Meus irmãos não foram de
jeito nenhum. Não tem um que se
salvou, não tem um. (Jesus, 2011).
Cavadores, enxadas e foices, eram
esses os instrumentos usados pelas
entrevistadas no cultivo da terra. As
narrativas da infância de ambas descrevem
um trabalho precário, com ausência de
instrumentos e técnicas agrícolas,
consideradas avançadas para a época.
Segundo Mendonça (1958): “A enxada é
ainda o instrumento de trabalho. Domina, o
chamado sistema de meação do trabalho.
Êste sistema de relações econômicas da
produção enriquece o proprietário da terra
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mantém em miséria o meeiro-plantador.”
(Mendonça, 1958, p. 47). Vale ressaltar
que as práticas de agricultura também se
constituíam no âmbito familiar, como
conta Maria Odete Vieira dos Santos, 83
anos, no povoado Sítios Novos, município
de Canhoba, localizado no Médio Sertão
sergipano, no final da década de 1930: “O
meu pai era muito pobre, minha mãe ainda
ajudava ele. Tomava conta dos filhinhos, ia
numa roça catar um feijão.” (Santos,
2013). As práticas de agricultura para
subsistência da família também foram
lembradas pela professora Maria Alaíde de
Meneses, 100 anos, no povoado Salgado,
atualmente município de Ribeirópolis:
... eu nasci em um lugar chamado
Salgado. Meu pai trabalhava na roça,
mas às vezes ele caçava. Era para o
nosso sustento. Ele matava os veados
que iam para dentro da roça e
comiam o algodão, comia as favas. ...
Mamãe apenas tomava conta da casa,
criava os filhos e fazia renda de
almofada. Ela fez uma almofada para
mim. Lá tinha um riacho salgado. No
tempo de seca, a minha avó deixava
o povo dar água aos gados lá. Dizem
que as vacas bebiam a água e saíam
fazendo careta, de tão salgada que
era. (Meneses, 2013).
Os trabalhos com a renda, o corte e a
costura pertenciam às mulheres. Tais
atividades inspiraram o sergipano Antonio
Alves de Souza
iv
, vulgo “Volta Seca”, a
compor a conhecida canção Olê mulher
rendeira, olê mulher renda. As nossas
entrevistadas, desde a mais tenra idade,
se familiarizavam com o trabalho na roça:
geralmente, as crianças primeiro
conheciam foices e enxadas para depois
serem apresentados ao lápis e ao papel. No
entanto, este vínculo das crianças
sergipanas com a terra constitui-se como
matriz geradora de saberes, conhecimentos
e práticas sociais. Assim, a ligação com a
terra, para os sujeitos que vivem no meio
rural, é constitutiva e constituinte de uma
cultura própria do rural, por vezes marcada
por privações materiais, culturais e sociais.
Essa realidade levou Mendonça
(1958) a considerar que a vida do homem
do campo era a mais primitiva, estreita e
miserável, somada à miséria física, mental
e social. Segundo ele, os sergipanos do
meio rural: “... desconhecem as vantagens
e benefícios da civilização, e estão
entregues [sic] a sub-nutrição, os processos
obsoletos e os instrumentos rudimentares
de trabalho, as formas primitivas de
relações econômicas da produção”
(Mendonça, 1958, p. 61). Tal quadro social
apresentado sobre Sergipe leva-nos a
pensar o meio rural brasileiro. Segundo
Peixoto e Andrade (2007), nos anos de
1940, o campo estava muito distante da
vida na cidade, uma vez que as “... práticas
de cultivo da terra, baseadas em técnicas
rudimentares, estavam próximas do
sistema pré-capitalista.” (Peixoto &
Andrade, 2007, p. 117). As crianças e
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mesmo seus pais não tinham na educação
escolar uma referência “salvadora”, talvez
por considerarem os saberes amealhados
ao logo das próprias experiências vividas.
Por certo a escola rural foi concebida
assim, no dizer de Souza e Ávila (2014a, p.
24): “Ora para instruir, civilizar, moralizar,
higienizar e nacionalizar, ora como
instrumento de modernização e fixação do
homem no campo e, ainda, como elemento
de estabilidade e segurança nacional.” A
educação deveria ser capaz de modernizar
o homem, de modo que transformasse o
“Jeca Tatu”
v
em um brasileiro trabalhador,
saudável, disciplinado e produtivo, pois era
preciso manter “... o homem do campo no
campo, mas em condições de tornar o
homem moderno, de modo a implantar a
economia associada ao rural.” (Schelbauer,
2014, p. 79-80). Nesse sentido, a escola no
meio rural foi projetada para ensinar não só
a ler, escrever e contar, mas também
hábitos de higiene e a valorização da vida
no campo.
Mendonça (1958) e toda uma
geração de educadores apostavam na
escola como transformadora da estrutura
mental e social da população rural. Em sua
concepção, fazia-se necessário que o
homem do meio rural abandonasse as
técnicas obsoletas de cultivo da terra e
incorporasse ao seu trabalho agrícola os
conhecimentos científicos. Em 1955, no
estado de Sergipe, as massas rurais
atingiam 69,5% do efetivo demográfico
estadual. Nas palavras de Mendonça
(1958), a agricultura se destacava pela
plantação de algodão, orizicultura
vi
,
plantação de cana-de-açúcar, pecuária,
pesca arcaica e riquezas do subsolo. Vale
ressaltar a relativa industrialização, que se
encontrava em fase embrionária. Sobre as
atividades econômicas relacionadas ao
cultivo da terra, narrou Maria Odete Vieira
dos Santos: “A gente plantava batata,
mandioca. Pai não era rico, tinham muitos
filhos. Então, padre Lima, que era daqui,
criou uma fábrica de descaroçar algodão,
que aqui a lavoura era algodão.” (Santos,
2013).
Segundo Mendonça (1958), o
sergipano do meio rural necessitava de
uma reforma social e mental profunda, por
intermédio da instrução, pois um dos
motivos para o atraso econômico do estado
era a “... ausência de escolas que
proporcionassem, além de conhecimento
sobre o ambiente, educação técnica e
econômica para a conquista de novas e
mais vantajosas formas de relações como
meio geográfico.” (p. 29). Para tanto,
fazia-se necessário uma escola que, “sem
fugir [sic] as diretrizes gerais do ensino,
sem prejuízo das finalidades essenciais da
educação de base, indiferenciada, comum a
todos, não perca de vista a necessidade da
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vida rural e contribua eficazmente para
urbanizar o campo.” (p. 21).
A escola rural foi concebida como
uma agência modernizadora do homem e
do seu trabalho, e, mais do que isso,
propunha-se a formar alunos e professores
dentro de uma nova mentalidade. No
entanto, parte da população rural sergipana
desacreditava a escola, como conta a
professora Raimunda Maria de Jesus:
“Meu pai é daqueles pessoal ignorante.
Não quis botar na escola, porque dizia que
na escola preguiça, não podia ir para
escola que dava preguiça.” (Jesus, 2011).
De fato, um dos problemas é que havia
preconceito da população rural em relação
à escola, uma vez que a população
entendia que a criança deveria passar
rapidamente pela escola e, posteriormente,
ir para a roça. Nesse sentido, os pais de
algumas professoras alegaram que as filhas
na escola aprenderiam a escrever cartas
para os namorados:
... meu pai deixou os homens, porque
diz que os homens eram pra aprender
e as mulheres eram pra trabalhar,
porque senão, ele dizia que era pra
namorado. Esse povo ignorante, não
é, meu filho? Daquela época. ele
não deixava todos estudar, mas
mesmo assim, nós conseguimos
através da nossa mãe. (Bispo, 2012).
Sobre o mesmo aspecto, narraram
Maria Lita Silveira e Maria Dagmar
Menezes:
... quando eu fui para a escola,
madrinha Maurita [a professora] ela
andava em casa. ela chegou e
disse: Por que não bota Lita para
estudar?’ meu pai disse assim:
‘Não, porque filha mulher só aprende
a escrever para o namorado’. Não
tinha essa mania de dizer assim, esse
pessoal antigo, do século passado?
(Silveira, 2012).
... fiquei mocinha e pra estudar era
um sofrimento. Meu pai nunca
aceitava eu estudar, como não
aceitava eu ser professora. Meu pai
com ignorância coitado, ele dizia:
‘uma professora tem intimidade com
todo mundo, conversa com todo
mundo... Não, uma professora não
podia ser uma moça.’ Professora
dava para a vida do mundo, mas
mesmo assim, eu desobedeci o meu
pai, consegui o meu desejo de
criança: ser professora. (Menezes,
2012).
No início do século XX, era comum
que meninas do interior do estado de
Sergipe quisessem frequentar a escola
primária. No entanto, a ideia de que mulher
deveria aprender a cuidar de uma casa, de
seu marido e de seus filhos era parte da
mentalidade da população, sobretudo a do
meio rural. A mudança da mentalidade da
população rural era o principal objetivo da
escola. Segundo Mendonça (1958), as
utensilagens mentais do homem rural
sergipano valiam a roupa que vestia. Assim
descreveu a indumentária do homem rural
sergipano: “... O vestuário consiste em
calças e camisa de pano grosseiro,
alpargatas rústicas e chapéu de couro ou de
palha entrançada.” (Mendonça, 1958, p.
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61). O estado de pobreza e privação do
sergipano se fazia sentir em seu vestuário,
segundo a professora Helena Guilherme da
Silva Santos: “Eu conheci uma ‘muier’,
que a roupa dela tinha tanto remendo, tanto
remendo, tanto remendo, que você não
sabia qual era a cor do pano e, muitos
viviam remendado e de descalço.”
(Santos, 2013). Para além das roupas, a
miséria do sergipano se mostrava pelo
casebre que habitava. Mendonça (1958)
fez uso da expressão de Monteiro Lobato
“faz rir aos bichos de toca”
vii
para
descrever o tipo de habitação própria do
meio rural sergipano. As construções
típicas eram casas de taipa
viii
, mantidas
mais pela condição da pobreza do que
como alternativa arquitetônica,
expressavam uma intensa relação entre o
homem rural e o ambiente que o cercava.
Segundo Mendonça (1958, p. 59), nas
áreas rurais,
... o ‘mobiliário cerebral’, recorrendo
novamente a Lobato, vale o do
casebre em que habita’ ... o tipo
predominante de habitação é a casa
de taipa, de chão batido, coberta de
palha de coqueiro, com janela e porta
na frente, escura e pouco arejada,
sem instalações sanitárias e
desamparada das condições mínimas
de habitabilidade e saúde. Nos
subúrbios e nos meios rurais de
outras zonas, predomina o mesmo
tipo de casa, com a cobertura de
telha.
A construção de um lar feito de terra
amalgamada por água e sustentado por
varas constituía-se em momento de
solidariedade da comunidade rural. A
professora Maria Luiza Barbosa da Silva
descreveu o modo comunitário de construir
casas de taipa no povoado Sebastião
Marques, município de Poço Redondo,
território do Alto Sertão sergipano:
... era casa de taipa, não tinha casa de
alvenaria, de bloco, não. Era de taipa.
Nessa época o povo gostava muito de
fazer batalhão. o povo juntava pra
trabalhar junto, né? o dono do
trabalho fazia a comida e convidada
o povo e o povo vinha pra trabalhar.
quando foi no dia de tapar a casa,
comecei a fazer a tapagem com todo
mundo. Bem assim, foi quando eu
construí a minha casa. (Silva, 2011).
Não podemos entender as histórias
de vida de professoras aposentadas
divorciadas dessas interações sociais e
culturais que constituíam a escola primária
rural. Por certo, a escola também é a
expressão das condições materiais e
intelectuais de cada tempo e lugar.
Segundo Schelbauer e Gonçalves Neto
(2013), o trabalho sobre as escolas
primárias rurais diz respeito ao
conhecimento da relação entre as
instituições educativas e os contextos
geográfico e sociocultural que as envolvem
a região, a comunidade e o público-alvo. A
Figura 1 retrata o lado externo da casa de
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taipa
ix
, e nos a ver uma família composta por dez membros.
Figura 1 Acrísio Cruz com uma família da zona rural sergipana (1950).
Fonte: Acervo fotográfico do historiador Luiz Antônio Barreto.
Eis a fotografia de uma família no
meio rural sergipano! Parece ter sido eleita
por Acrísio Cruz
x
para retratar a
configuração familiar do interior do estado,
marcado pela pobreza e privação do
sergipano. Os membros da família
transpareceram um ar de apreensão e
desajustamento gerado pela presença de
estranhos: a máquina e o fotógrafo; ao
contrário de Acrísio Cruz que, no canto
direito, deixou transparecer um ar de
confiança e tranquilidade. O semblante
abatido do homem pode nos revelar seu
cotidiano no trabalho da roça; sua
companheira cercada por oito filhos nos
indica o papel social da mulher na família
e a inexistência de iniciativas
governamentais relativas a controle de
natalidade, pois o efeito “escadinha de
meninos” revela o curto intervalo entre as
gestações.
De acordo com Rezende (2014), a
vida no meio rural sergipano não se
restringia apenas à miséria, pois se
mesclava com alegrias, uma vez que
também dançavam e se congratulavam em
festividades. As festas prediletas, em sua
maioria as religiosas, e os forrós que
ocorriam com mais intensidade no período
do mês de julho, em louvor às colheitas.
Assim narrou a professora Elienalda Sousa
Reis: “Comemorava o São João lá em casa,
acendia a fogueira, todas as casas. Aí a
gente comemorava as plantações depois da
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio rural
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chuva.” (Reis, 2011). Nesse período,
consumiam os alimentos provenientes do
milho, como a canjica, a pamonha, o
munguzá e o cuscuz de milho verde, além
do milho cozido e assado. As fogueiras,
retribuição a um desejo ou a uma graça,
espalhadas nos terreiros das fazendas,
tinham um caráter religioso, pois eram
acesas nos dias dedicados a Santo Antônio,
a São João e a São Pedro e, por isso, as
famílias se reuniam para celebrar a colheita
em volta da fogueira, enquanto assavam
milho, contavam histórias e soltavam
foguetes. (Rezende, 2014). A professora
Maria José de Carvalho Eleotério também
rememorou as festas na roça:
... a gente não vive somente de
tristeza. A festa que eu fazia era o
Baile Pastoril, o Reisado. O Baile
Pastoril é o nascimento de nosso
Senhor. A gente tinha que botar as
personagens, as pastoras, os três Reis
Magos. Tinha que botar uma pessoa
com o menino no braço para encenar
o ato. No braço que era para mostrar
que era Nossa Senhora e fazer a
lapinha. O Baile Pastoril eu tinha
prática de fazer. E assim organizava
uma festinha muito bonita toda vida.
(Eleotério, 2013).
As festividades mostram as
expressões culturais de um povo, bem
como seus modos de perceber e lidar com
o transcendente, seu passado, sua
identidade, seu povo. As narrativas trazidas
por nossas entrevistadas atravessam um
determinado tipo de sociedade, quadros
sociais, políticos, econômicos e culturais.
Na percepção de Bosi (1995), é no estudo
da memória dos velhos que podemos
verificar uma história social diferenciada
daquela vigente, pois eles organizam sua
narrativa seguindo um ordenamento
próprio a partir de suas experiências
vividas, o que faz aflorar fatos, nomes,
datas, que podem o estar no
ordenamento histórico oficial. Deste modo,
a professora Raimunda Alves dos Santos,
ao narrar suas experiências vividas no
povoado São Domingos, município de
Simão Dias, localizado no Centro-Sul
sergipano, remonta o quadro social de um
tempo e lugar:
... da escola eu não gostava, mas de
cantar... Cantava novenas nas roças.
No inverno eu ia, a lama dando aqui
[aponta para o joelho]. As novenas de
Bom Jesus da Lapa no mês de
agosto. Teve uma vez que eu fui pela
beira do velado. Pegava nas palhas de
macambira, me segurava assim pra
não pisar na lama. Aí, escorreguei,
quando escorreguei, pisei na lama
que o sapato ficou. Quando chegou
no rio eu lavei meus pés e calcei
meus sapatos. O rio não tinha ponte.
Botava uma pedra doida assim,
quando você pisava, ela rolava. Uma
vez eu vinha, arremataram um pão
assim e me deram. Eu com aquele
pão no maior gosto do mundo. Aí,
quando eu cheguei que pisei na pedra
que a pedra rolou eu caí dentro do rio
assim. O pão a água carregou.
(Santos, 2012).
A narrativa da professora nos faz
pensar sobre as condições das estradas no
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meio rural sergipano. A lama que se
formava nas estradas de chão de terra
batida dificultava a locomoção das
pessoas. Vale ressaltar que os principais
meios de transporte no meio rural eram os
cavalos, os burros e os carros de boi
xi
.
“Mais de quatro mil dêsses veículos
primitivos gemem nas estradas carroçáveis
do interior sergipense...”, segundo
Mendonça (1958, p. 37) Por sua vez, o
cavalo e o burro eram igualmente
empregados para o transporte de pessoas.
Sobre tal aspecto, recordou a professora
Maria Lima Santos Aragão: “Eu trabalhava
na roça também. E tinha os filhos, de
manhã eu saía daqui, colocava... Tinha um
animal, colocava os caçoares, uma do lado,
outro de outro na garupa levava na casa
de minha mãe.” (Aragão, 2012):
Aqui estas multiplicidades de
memórias se somam para contar a história
de vida de mulheres professoras e suas
experiências na escola primária rural em
Sergipe. Maria Lurdes Barreto, 77 anos,
narrou suas memórias de quando era aluna
no povoado Maniçoba, atualmente
município de Nossa Senhora de Aparecida,
localizado no Agreste Central sergipano:
... não tinha escola por perto.
Ninguém estudava, que não tinha
escola. Eu e minha irmã mais nova,
quando a gente cresceu um
pouquinho, de oito para nove anos, a
gente ia para a escola no povoado
Tanque Novo .... Saía de casa de
manhã, voltava meio-dia. Sol quente,
chovendo, do jeito que fosse a gente
ia. Levava um caderninho, um lápis,
uma borracha. Levava qualquer coisa
para comer quando viesse, para o
morrer de fome, não cair na estrada.
Não era para mim, era para todos.
Assim a gente aprendeu as primeiras
letras, depois o -á-bá, depois a
cartilha. ... Nesse tempo, as escolas
eram pagas, não tinham escolas.
(Barreto, 2013).
Ao “ouvir contar” estas narrativas,
nos deparamos com um quadro social de
privação, em decorrência da restrição
alimentar. É precário o nível de vida do
sergipano. A grande maioria da população
vive em situação infra-humana. Domina,
no Estado, o nível de pobreza. Situação na
área da fome endêmica...”, segundo
Mendonça (1958, p. 58). A situação
apresentada era de uma população que
padecia de inferioridades e desequilíbrios
fisiológicos, em decorrência da fome
crônica. Ainda segundo o autor, a maioria
dos sergipanos vivia com o estômago
semivazio ou falsamente cheio. A
subnutrição ou mesmo a miséria absoluta
atravessou a trajetória de vida de muitos
professores entrevistados.
No vai e vem da memória
encontramos evidências de uma sociedade
que vivia em um contexto de privações e
precariedade, não pela ausência de
escolas, mas pelo domínio político,
econômico e social precário. Mesmo em
tempos em que o Brasil era considerado
um país eminentemente agrícola e seu
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maior contingente populacional residiam
no meio rural, o número de escolas não
correspondia ao número da população em
idade escolar. A professora Rosalina
Venceslau dos Santos também falou sobre
a escassez de escolas no povoado Tapera,
município de Macambira, localizado no
Agreste Central sergipano, no final da
década de 1930: “Em Tapera, não tinha
escola, naquele tempo não tinha escola por
perto, nem transporte para levar a gente.
Eu vinha pra Macambira andando,
andando, meu filho!” (Santos, 2013). Tais
narrativas nos fazem refletir e interrogar
sobre as políticas educacionais que se
destinavam à escola primária rural.
Outro aspecto trazido pelas
narrativas das professoras foi a dupla
jornada dos alunos trabalhar e estudar ,
de acordo com a mentalidade dos pais em
relação à permanência dos filhos na escola.
A professora Maria Lima Santos Aragão
evocou, em suas memórias, que alternavam
entre o trabalhar na roça e o cotidiano
escolar, quando aluna na escola isolada no
povoado Várzea Nova, município de
Gararu, localizado no Alto Sertão
sergipano: “Na terceira série, pai dizia
assim: ‘olhe, eu não tenho filho pra ser
professor nem professora. Então agora
chegou a fase de vocês nos ajudar com o
trabalho da roça’”. E continuou: “Aí, ‘nós
ficava’ trabalhando, plantando, fazendo as
plantações. Trabalhava, colhia algodão e
tudo. Então, saímos da escola para
trabalhar na roça.” (Aragão, 2012).
As memórias escolares da professora
Maria Lima apontam para as condições do
sistema escolar nas zonas mais afastadas
do país, caracterizadas pelo alto índice de
alunos evadidos, em decorrência do
trabalho na roça. Sabemos que a difusão do
ensino primário nas zonas rurais enfrentou
diversos problemas de natureza pedagógica
e administrativa, dentre eles a baixa
frequência dos alunos em tempos de
plantio. Desse modo, colocava-se um
desafio para o Estado brasileiro, que
deveria fazer expandir a escola primária
rural em um contexto marcado pela “...
precariedade dos locais de funcionamento
das escolas, a baixa frequência dos alunos
e o abandono escolar, devido ao trabalho
nas lavouras.” (Souza & Ávila, 2014b, p.
11). Outra dificuldade apontada nas
narrativas era a falta de provimento de
professores para as escolas criadas.
Parafraseando Berger (2011), até então as
escolas rurais constituíam-se de espaços
cedidos pelos grandes proprietários de terra
e encontravam-se em completa condição
de abandono, além de estarem sujeitas aos
desmandos da política dos coronéis. A
professora Raimunda Alves dos Santos, 83
anos, testemunhou tais aspectos no
povoado São Domingos, município de
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio rural
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Simão Dias, localizado no Centro-Sul
sergipano:
... a gente ficava sem ir para a escola
no tempo do plantio e quando
Lampião
xii
andava neste mundo,
sabe? E nós corremos muito e se
escondemos no mato. ... A escola era
assim... Era uma casa que meu avô
fazendeiro fez pra ensinar os netos e
os vizinhos. Era muita criança. Tinha
uns cinquenta. Não tinha professora
formada, era uma irmã de meu avô,
Ana Alves da Conceição. Ela
ensinou, como se diz... particular.
Naquele tempo não existia não, meu
filho! A tarefa era saber ler e,
sabendo fazer conta, ‘tava’ bom!
(Santos, 2012).
A narrativa trazida por Raimunda
nos levou a fazer a reflexão sobre as
iniciativas dos fazendeiros que, muitas
vezes, assumiam as despesas com as
edificações das escolas e/ou liberação de
espaço físico nas construções instaladas
em sua propriedade. Responsabilizavam-
se, também, pela oferta de alojamento para
os professores e demais recursos
necessários não assumidos pelo Estado
(Lima, 2013). O testemunho de Raimunda
é revelador das formas de contratação dos
professores numa época em que, à revelia
do concurso público
xiii
, se ocupavam os
cargos.
“... eu vivia com meu marido e era uma
vida muito sofrida”: a feminização do
magistério no meio rural sergipano
As professoras primárias eram
escolhidas por prefeitos, vereadores,
fazendeiros e por outras figuras que
detinham poder localmente. A professora
Maria Lurdes Barreto narrou suas
memórias sobre a contratação de sua
primeira professora no povoado Maniçoba,
atualmente município de Nossa Senhora de
Aparecida, localizado no Agreste Central
sergipano:
Esse fazendeiro do Tanque Novo, ele
arranjava professores de fora. Botava
para ensinar para aquele povo,
ensinar o que sabia. Não tinha
ninguém formado, não tinha nada
disso. Era na base... ‘Na terra de cego
quem tem olho é rei’. (Barreto,
2013).
Sobre este mesmo aspecto, recordou
a professora Maria Lima Santos Aragão:
Aqui tinha uma professora, dona
‘Erozina’. Depois ela foi embora, o
povo ficou sem professora pra todo
esse pessoal dessa região colocar os
filhos. Aí, seu ‘Zé’ [fazendeiro] foi e
arranjou as primeiras professoras que
foram da cidade: Cassilda, depois
veio uma Janice. Eu já estudei com
elas. Elas não se acostumavam em
morar na roça. depois ele arranjou
uma professora, Maria da Conceição
Souza Pinto, que foi a minha terceira
professora em Várzea Nova. Nós
temos muito que agradecer e rezar
pela alma dela, pois ela dava conta de
todos os anos em uma sala só.
(Aragão, 2012).
Outra dificuldade para o trabalho dos
professores, comprometendo o rendimento
do ensino que ministravam, residia na
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existência de turmas multisseriadas
xiv
.
Também denominadas classes unidocentes
e/ou multigraduadas, esse amálgama de
alunos de níveis distintos em uma única
sala de aula foi um aspecto marcante no
ensino rural sergipano. Tal memória não se
restringiu apenas ao depoimento da
professora Maria Lima, pois a professora
Maria José Santos Freitas, 80 anos, ao
recordar suas memórias de aluna na escola
particular, no povoado São Mateus,
município de Telha, localizado no Baixo
São Francisco, também se reportou à turma
multisseriada: “A professora Antônia não
tinha título de professora. Era assim uma
pessoa que sabia um pouquinho e esse
pouquinho passava pra quem não sabia
nada. Todas as criancinhas em uma sala
só.” (Freitas, 2012). Possivelmente, a
professora Antônia teria se apropriado dos
rudimentos da leitura, escrita e cálculo, e
era considerada, naquele tempo e lugar,
uma pessoa de notório saber, mesmo não
tendo formação pela Escola Normal Rui
Barbosa
xv
, localizada na capital sergipana.
Outra narrativa que nos ajuda a
compreender melhor tais aspectos é a da
professora Maria Odete Vieira dos Santos,
83 anos, quando testemunhou sobre as
condições de trabalho da sua primeira
professora, Laudiceia”, no povoado Sítios
Novos, município de Canhoba, localizado
no Médio Sertão sergipano, no final da
década de 1930:
... nessa época, era uma professora
daqui chamada Laudiceia. Ela se
hospedava na minha casa. Era
amicíssima de minha mãe e de meu
pai ... era essa escola que tinha no
povoado. O nome da escola era
Isolada, nesse tempo ninguém era
formado aqui. Naquele tempo não
preparava aula não meu ‘fio’, no
tempo que eu estudei. Eram os livros,
porque os livros vinham com
respostas ... [A escola] era um salão
grande. Na dita escola tinha cozinha,
tinha tudo. E ela fazia comida pra ela
comer em casa, agora dormia na casa
de meu pai, que elas tinham medo de
dormir na escola ... Elas [as
professoras] iam daqui da cidade,
chegavam no interior e tinham medo
de dormir na casa. Aí, a casa de
meu pai tinha cinco quartos, papai
ia e dava um quarto pra elas, pra elas
dormirem ... Quando tinha um milho
verde papai dava. Elas eram tratadas
como uma princesa no interior.
Uma professora no interior tinha um
valor, hoje é que uma coisa séria,
mas eu acho que ainda tem muito
respeito. (Santos, 2013).
As memórias evocadas pelas
professoras Maria José e Maria Odete nos
dão a ver as condições de trabalho das
professoras no meio rural. Muitas vezes,
trabalham completamente sozinhas, em
localidades isoladas. Além disso, de se
considerar a precariedade da sua formação
pedagógica e a distância entre a escola e o
Departamento de Educação, que se
localizava nos perímetros urbanos.
Almeida (2001), em sua dissertação
intitulada Vozes esquecidas em horizontes
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rurais: histórias de professores, quando
estudou as professoras primárias no Rio
Grande do Sul, pensou “... em ‘vozes
esquecidas’, esquecidas no passado, talvez
esquecidas no presente.” (p. 230). Em seu
estudo, identificou que não é ao acaso que
muitas professoras, ao evocarem suas
memórias, referem-se à solidão e à
renúncia que as acompanhavam em seus
trabalhos nas escolas localizadas nos meios
rurais. Em decorrência das condições de
transporte, as professoras alojavam-se na
própria escola ou em casas das pessoas da
comunidade. É possível que o
estreitamento de laços com a comunidade
fosse reforçado, justamente considerando a
solidão em que viviam, como foi o caso da
professora Laudiceia e outras da sua época.
Não obstante essas condições
adversas, Moraes (2014) nos alerta que
devemos considerar a identidade cultural
do professor rural. Isso porque havia a
possibilidade de, dependendo das
condições, o professor estar privado do
ambiente cultural ao qual pertencia e,
consequentemente, ser levado a viver em
um ambiente cultural com o qual não tinha
identidade, quando não tinha aversão. O
professor deveria começar sua carreira pela
escola isolada rural, considerada como um
estágio inicial da carreira docente.
depois de cumprido um determinado
período, poderia ser ele removido para uma
escola urbana. No estado de Sergipe, o
governador Eronides Ferreira de Carvalho,
em mensagem datada em 1936, denunciou
tal situação:
As primeiras nomeações são para
povoados, sendo as segundas, por
promoções successivas, para as
villas, cidades e Capital. Os
povoados, na sua maioria, ficam em
logares onde a vida social é cheia as
asperezas, onde o conforto é cousa
desconhecida e onde, por vezes, não
faltam os pavores e perigos do
banditismo ... Se no interior o padrão
de vida é menos elevado no que se
refere aos gastos da alimentação,
acontece, por outro lado, que tudo o
mais conspira contra a educadora
neophyta que se descola para Capital,
para desempenhar a missão
melindrosa de desbravar para as
conquistas das letras as
intellingencias em méro
desabrochamento. Não se explica
diante da logica o facto de uma
professora de povoado, por vezes
preterida no seu direito ás promoções
e prestando serviço identico ao que
presta uma da Capital, tenha
vencimentos tão inferiores aos desta.
Em consequencia desse systema que
se me afigura errôneo, vem o
peditório de remoções em que
vantagens para a professora e males
para o ensino. Urge a procura de um
meio capaz de remover os males que
abatem os estimulos dignos de
fortalecimento e geram o desapreço á
carreira do magisterio. (Sergipe,
1936, p. 40).
As nomeações a que se referiu o
governador Eronides Ferreira de Carvalho
dizem respeito à “lei dos acessos”
xvi
, de
acordo com a qual a professora deveria
iniciar sua atuação no interior do estado.
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Com base na pesquisa realizada por Freitas
(2003), que analisou a trajetória de ex-
normalistas no período de 1920 a 1950, na
Escola Normal Rui Barbosa em Aracaju,
depois de formada, a normalista deveria
seguir: “Primeiramente em uma escola de
primeira entrância, situada em um
povoado. Passaria depois a lecionar em
uma vila considerada segunda entrância.
Em seguida, para a terceira entrância, em
uma escola situada na cidade. Após
sucessivas promoções, poderia lecionar na
capital.” (Freitas, 2003, p. 148-149). Ainda
segundo essa autora, muitas eram as
dificuldades para se conseguir a fixação
dos professores formados no interior. Além
da distância da família e dos baixos
salários, alguns depoimentos evidenciavam
o medo de Lampião. Vale ressaltar que
algumas famílias não permitiam que as
filhas deixassem a cidade e fossem
sozinhas para o interior do estado de
Sergipe, sobretudo professoras
pertencentes às camadas mais elevadas da
sociedade.
As dificuldades para realizar o curso
normal rural, bem como os cursos
intensivos de treinamento, davam-se pelo
fato de se tratarem de professoras com
baixo poder aquisitivo e, em sua grande
maioria, de mulheres casadas e provedoras
de suas próprias famílias, fato que
dificultava o deslocamento para os locais
onde eram ministrados os cursos. A
presença da mulher no magistério primário
rural é predominante em relação a
professores. A presença feminina na zona
rural é justificada porque a profissão de
professor era considerada mais leve, daí o
fato de este trabalho ser assumido, na
maioria das vezes, por mulheres. “Ser
professora é o único trabalho existente no
campo que não exige a ‘força bruta’,
característica do trabalho rural ...”, de
acordo com Rodrigues (1999, p. 58). As
figuras 2 e 3, abaixo, mostram a
proeminência da figura feminina no
magistério primário rural:
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Figura 2 Professoras rurais em curso de treinamento realizado em 1950. Ao centro Acrísio Cruz e José
Rollemberg Leite.
Fonte: Sergipe. Relatório do Curso de formação de professores rurais (1950).
Figura 3 Acrísio Cruz (no centro) com estudantes e professora de uma escola rural, portando enxadas para os
trabalhos nas hortas (1950).
Fonte: Acervo fotográfico do historiador Luiz Antônio Barreto.
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A feminização do magistério
primário rural não foi um fenômeno que se
deu especificamente em Sergipe, pois é
recorrente em quase todo território
nacional, devido aos baixos salários pagos
a um professor do Ensino Primário.
Conforme Souza (1998), a substituição do
sexo masculino, na educação primária,
pelo feminino foi decorrente de um
processo que se iniciou no século XIX.
Desde aquele momento, a atuação da
mulher no campo educacional ganhava
protagonismo. Elas finalmente
encontraram um ofício que a “sociedade
patriarcal” consentia, uma vez que o ensino
primário tratava da educação elementar das
crianças, e as mulheres teriam,
pretensamente, mais paciência e
afabilidade com elas, devido à natureza
materna. Mesmo as educadoras recebendo
salário irrisório, era uma oportunidade para
a mulher despontar no mercado de
trabalho, mostrando suas competências.
Reforça esta análise Souza (1998, p. 51),
quando afirma:
A utilização do trabalho feminino no
campo da educação vinha ganhando
força em toda parte no final do século
XIX, tendo em vista a necessidade de
conciliar o recrutamento de um
grande número de profissionais, para
atender à difusão da educação
popular, mantendo-se salários pouco
atrativos para os homens. Em
compensação, viria a se constituir
num dos primeiros campos
profissionais ‘respeitáveis’ abertos à
atividade feminina para os padrões da
época. (Souza, 1998, p. 51).
O papel social da mulher abnegada
atravessou as narrativas das professoras
entrevistadas. A professora Raimunda
Alves dos Santos contou sobre tal aspecto:
“Eu era muito apegada à minha mãe e aos
alunos. A minha vocação era ficar com a
minha mãe. Eu nunca quis casar, marido de
professora tinha uma fama de
encostado.” (Santos, 2012). A narrativa da
professora nos faz pensar sobre a figura do
“Quincas”
xvii
, o típico marido da professora
que não trabalhava e vivia à custa dela. É
preciso levar em consideração que as
professoras possuíam um salário fixo,
embora baixo, se comparado ao do
homem, moradia gratuita e um relativo
prestígio social, entre outros benefícios,
talvez por isso atraindo a figura do
“Quincas”. A professora Maria Odete
Vieira dos Santos narrou com detalhes:
... olhe, quando eu lhe disse que eu
comecei a ensinar em minha casa, eu
vivia com meu marido e era uma vida
muito sofrida. Ele foi muito ruim
comigo, mas eu entrego ele a Deus
todos os dias em minhas orações,
porque talvez se ele num fosse tão
ruim comigo, eu não tivesse me
apegado mais a Deus, como eu me
apeguei. Então, eu ensinava a meus
alunos e quando eles chegavam de
sexta eu rezava o terço. Teve uma
vez, que ele vivia das minhas custas.
Então, teve uma vez que ele estava
em casa, estava no quarto deitado e
eu estava ensinando, que a escola era
dentro de casa. Arrodeei os meninos
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ao redor de mim e fomos rezar. E os
bichinhos tão inocentes. Minha
grima descendo, porque eu sabia
que quando os meninos fossem
embora ele vinha brigar e eu não
brigava. (Santos, 2013).
A narrativa da professora Maria
Odete Vieira dos Santos mostra a relação
entre a sua vida privada e a pública, uma
vez que as tramas entre a vida conjugal e
professoral se misturavam no cotidiano da
casa-escola. O fato de as professoras
morarem e atuarem no mesmo local
também nos leva a pensar sobre as
condições de trabalho. Além das tarefas
inerentes à docência, tais como a
preparação das aulas, o ensino e o controle
da disciplina dos alunos, segundo Lima e
Assis (2013, p. 315), o docente, no meio
rural, “... era responsável pela limpeza da
escola, pelas escriturações escolares e, em
alguns momentos, pela confecção do
lanche e outras atividades extraescolares”.
Raimunda Alves dos Santos narrou como
era a feitura da merenda escolar na escola
rural Cruzeiro, localizada no município de
Poço Verde, Centro-Sul sergipano:
... eu fazia a merenda. Mandava
assim, arroz, mandavam coisa assim
de leite. Fazer arroz de leite. Não
tinha Servente. A merendeira era eu
mesmo. A servente eu mesmo, ou
então minhas sobrinhas que varria,
não tinha nada não. Água, nem água.
Tinha buscar água no tanque pra os
meninos beber. Sofri. (Santos, 2012).
A professora Raimunda, além do
magistério, desempenhava outras funções,
como merendeira, zeladora, porteira,
dentre outras. Tais funções foram
apontadas também por Maria Luiza
Barbosa da Silva, quando foi professora da
Escola Rural Sebastião Marques,
município de Poço Redondo, Alto Sertão
sergipano: “... depois que chegou a
merenda escolar, a gente tinha que fazer a
gente mesmo.” (Silva, 2011). Desse modo,
podemos observar que o lugar ocupado
pelas professoras em suas escolas conferia
a elas representatividade local, pois eram
sujeitos polivalentes, cujas atividades
variavam entre as práticas professorais e
tantas outras atribuições. Sobre o cardápio
escolar típico do lugar, narrou a professora
Josefina Sotero Santos Teles: “Na escola
rural a professora ela mesma fazia a
merenda. Quando não tinha, eles levavam
a merenda de casa, bolachão, batata cozida,
o que tivesse que a mãe colocasse na
sacolinha.” (Teles, 2013). As narrativas
das professoras mais uma vez nos levam a
pensar sobre as condições de trabalho na
escola primária rural, em Sergipe. A
professora Maria Lita Silveira descreveu as
condições de trabalho no meio rural:
... era casa de taipa de vara de barro.
Eu comecei a dar aula não tinha
energia. Tinha que comprar candeia,
chama candeia né, para botar o pavio
de algodão e querosene. Eu dava aula
o dia todo e dava à noite. Dava aula
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aos adultos. Foi assim que eu
comecei a trabalhar. vinha a
cavalo, passar o rio cheio, teve uma
enchente, uma vez mesmo que o
cavalo deu um passo me levou com
cavalo e tudo. Eu saí porque Deus
não quis que eu morresse nesse dia.
Quase que eu morro. (Silveira, 2012).
De acordo com as depoentes, no
período em que iniciaram o magistério, era
muito difícil designar professores para a
zona rural, primeiro, por causa das
condições precárias de trabalho existentes
naquele meio e, depois, pelos baixos
salários que lhes eram oferecidos.
Contudo, elas mencionaram que a
comunidade tinha respeito e grande
consideração pelo docente, mesmo sendo,
em sua maioria, professoras leigas, com
apenas o ano primário concluído. A
professora Etemízia Ramos Batista de
Andrade mencionou a receptividade da
comunidade rural Pita, município de São
Cristóvão, região da Grande Aracaju:
... era um povo maravilhoso, um
povo ordeiro, um povo amigo. Eles
diziam: ‘A senhora aqui é a
presidente do lugar. Uma ordem da
senhora vele tudo.’ Morei na escola
com minha mãe ... Os alunos
choraram quando eu saí, choraram
muito, eu também chorei. Pela noite
eles chegavam lá, aquele pessoal com
cachimbo na boca. Os tabaréus, eles
diziam: ‘Vamos fazer companhia
para professora que ela está sozinha
com a mãe’. Chegavam lá, contavam
histórias de trancoso para distrair.
Recebia muito presente. Eu não
comprava nada de verdura. Na Pita, o
povo plantava muito, era tomate,
cebola, alface, ovos. Pela manhã, o
povo me levava um prato de mingau.
(Andrade, 2013).
A professora Josefa de Andrade
Fontes também se referiu ao respeito e à
receptividade da comunidade rural no
povoado Botequim, município de Santa
Luzia Itanhy, Centro-Sul sergipano:
... lá era um lugar de cachaceiro,
nenhum tocava em mim. Na minha
escola nunca nenhum chegou perto,
porque eles respeitavam. Eu ia para
escola rural, eles me davam cavalo.
Eu me acostumei muito com as
minhas alunas, uma dormia comigo
de noite. Eu não tinha medo, o
pessoal era bom comigo. (Fontes,
2015).
A professora Maria José de Carvalho
Eleotério também ressaltou esse mesmo
aspecto:
... eu deixava os meus filhos e ia
receber o dinheiro, quando chegava
em casa, sem nenhum tostão, que não
tinha verba. Passei assim dois anos.
Não recebia um centavo. me
deram um conselho para cobrar dos
pais. eu disse: ‘Olhe eu não quero
cobrar, porque seis, oito, quinze,
pode, têm a possibilidade de pagar e
os outros que não tiverem?’ Então, é
quando eu for cobrar de um, vou ter
que cobrar de todos e eu não quero
inimizade. É melhor eu ensinar de
graça e vocês fazem o que bem achar
de acordo. Oxente! não me faltava
farinha, não me faltava feijão.
Levavam o que tinham. Era peixe por
toda parte, era camarão, era siri, era
feijão. Eu quando trazia para dava
a uma amiga que tinha uma
moreninha. Era macaxeira, era
inhame. Não me faltava nada e eu
criava inúmeras galinhas, não me
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio rural
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faltava, mas dinheiro na minha mão
eu nunca vi. (Eleotério, 2013).
Nos depoimentos, percebemos que,
em alguns casos, quando havia adaptação,
esta situação tornava-se prazerosa pelo
carinho dos anfitriões e pela disputa
travada pelos alunos para terem o professor
em sua casa, evidenciando o quanto aquela
professora era importante nas comunidades
rurais. No tocante ao trajeto e ao
transporte, as entrevistadas relataram que
para chegarem à escola tinham que
percorrer a ou a cavalo longas
distâncias; havia também aquelas que
residiam temporariamente na casa de
alunos ou na casa reservada ao professor.
Quando a escola dispunha desta
acomodação, ora estava localizada no
mesmo prédio escolar, ora em uma casa
próxima, o que evitava o desgaste da
extensa caminhada até o trabalho. A
professora Maria Odete Vieira dos Santos
citou esse aspecto: “Eu morava dentro da
escola. Tinha um salão de morar e outro de
ensinar. Quando eu vinha em casa, eu
voltava de cavalo, porque não tinha carro
pra lá. Eu levei duas companhias, duas
irmãs.” (Santos, 2013). A professora
Laudicéia Rodrigues Cerqueira descreveu
sua caminhada até chegar à escola rural
Lagoa de Dentro, município de Arauá,
localizado no Sul sergipano:
... quando eu fui para escola rural do
povoado Lagoa de Dentro eu saía
doze e meia para uma hora eu está lá.
A aula começava uma hora, às vezes
saía antes de doze. Depois eu fiquei
grávida caminhando aqui grávida.
Depois o prefeito me mandou que eu
ficasse aqui na cidade mesmo,
compadre da gente ‘Comadre não
vai mais para aquela caminhada. Ela
vai ficar aqui no grupo da cidade.’
(Cerqueira, 2011).
A professora Maria José de Carvalho
Eleotério também contou sobre sua
extenuante caminhada até chegar à escola
rural Sapé, município de Itaporanga
D’Ajuda, território da Grande Aracaju:
... eu me mudei para a Escola Rural
Rita Cacete com meus filhos e o
marido. Depois fui para o Grupo
Escolar Felisbelo Freire. É um grupo
daqui. eu pedi transferência. No
Sapé [povoado da escola rural] eu
pedi transferência, porque ficava
distante daqui da minha casa. Você
sabe se a pessoa quer o melhor tem
que ir procurar. Eu trabalhava, não
ganhava. Minha mãe pobre, como era
que eu ia viver a vida toda sem ver
um tostão na minha mão? Dois anos
sem receber. Todo mês eu ia para
São Cristóvão e chegava e dizia:
‘Não tenho!’ Aí, voltava de pé. Ia de
pé e voltava de pé, não tinha dinheiro
para pegar o suburbano. (Eleotério,
2013).
A falta de transporte aliada às
condições de formação pedagógica,
trabalho e condições salariais formam um
conjunto de características que também
configuram a escola primária rural em
Sergipe. O fazer-se professor rural não está
dissociado, portanto, das condições sociais,
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materiais, intelectuais e do tempo e lugar,
uma vez que os professores são
possuidores de histórias, individualidades,
experiências, nomes, identidades. Assim,
não é possível falar em um professor rural
genérico, é preciso compreender a história
de vida de mulheres como a Maria, a
Odete, a Josefa, a Raimunda, entre tantas
outras esquecidas na história.
Considerações finais
Com efeito, acreditamos que a
entrada na história de vida das professoras
aposentadas, tendo em vista o trabalho, a
escola e a trajetória no magistério pelos
interstícios abertos através das narrativas,
proporcionou um encontro do leitor com
diversas mulheres e cotidianos. Desse
modo, é pelas peculiaridades encontradas
na história de vida das professoras que
destacamos as diferenças regionais, as
particularidades do estado, evitando, assim,
o uso da palavra Brasil para nos referir a
um todo homogêneo.
Queremos deixar aqui nossas
percepções. Dentre as primeiras,
visualizamos a feminização do magistério
primário rural como um fenômeno presente
no Brasil, pois é recorrente em quase todo
o território nacional, devido aos baixos
salários pagos a um professor do ensino
primário. Também podemos apreender um
quadro social sergipano marcado pelo
descaso do Poder Público em relação ao
“homem pobre rural”, com instrumentos
ultrapassados no trabalho agrícola e
condições impróprias de salubridade das
moradias. Com isso, se aglutinaram outros
problemas sociais, a exemplo, o êxodo
rural, a escassez de recursos médicos,
sanitários e higiênicos, a carência de
rodovias e estradas, entre outras expressões
da precariedade econômica, política e
social.
As experiências das professoras nos
deixam ver marcas do abandono,
isolamento e esquecimento pelos Poderes
Públicos. Uma vez que as iniciativas do
Estado se traduziam em ações que não
atenderam ao conjunto de necessidades do
meio rural, pois, pelas narrativas, podemos
conjecturar que, no início do século XX,
houve abandono dessas populações rurais,
que permaneceram desassistidas, afastadas
das melhorias educacionais, uma vez que
os investimentos púbicos concentraram-se
no modelo de urbanização que emergia no
país, naquele período. Contudo, as escolas
rurais desempenharam, neste aspecto, em
que pese à precariedade de suas instalações
e da formação de seus professores,
importante papel na institucionalização do
ensino primário em Sergipe.
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sua história de vida. Rosário do Catete. 24
abr.
i
Entrevistas cedidas pelas professoras, a partir da
Carta de Cessão de Direitos, dispondo sobre os
direitos e deveres do entrevistado, bem como o
esclarecimento sobre uso das entrevistas para fins
de pesquisa acadêmica. As entrevistas foram
gravadas em áudio e vídeo e devidamente
transcritas em Microsoft Word 2010, sua duração
somando, aproximadamente, 32 horas. Encontram-
se armazenadas no acervo digital que constituirá o
Centro de Memória da Educação Sergipana,
somadas a outras 129 entrevistas audiovisuais
decorrentes dos demais subprojetos.
ii
Termo usado por Moraes (2014), ao analisar as
ausências, exclusões e diferenciações que
caracterizaram o ensino primário rural em São
Paulo (1933-1968).
iii
Pequena área de terra cultivável.
iv
Antonio Alves de Souza, nascido em Saco
Torto, povoado de Itabaiana, estado de Sergipe.
Tornou-se um dos mais conhecidos e destacados
cangaceiros do bando de Lampião. Volta Seca,
como era chamado, compôs, entre os anos de 1950
e 1957, diversas músicas que estão ligadas ao ciclo
dos cangaceiros, como Se eu soubesse, Sabino e
Lampião, Mulher rendeira, Acorda Maria Bonita e
outras. A esse respeito, ver Barreto (2009).
v
No início do século XX, esta imagem seria
cristalizada no conhecido personagem de Monteiro
Lobato, o Jeca Tatu. No artigo Velha praga, escrito
para o Jornal Estado de São Paulo, em 1914, e mais
tarde publicado no livro Urupês, Lobato acusa o
caboclo de parasita, de destruidor, de piolho da
terra. Jeca é representado na literatura infanto-
juvenil como um caipira desolado no arcaico meio
rural brasileiro. Isso porque ele é a imagem do ser à
mercê de enfermidades típicas dos países atrasados,
da miséria e do atraso econômico. Ver Zarth
(2007).
vi
Cultivo de arroz.
vii
As ideias de Monteiro Lobato traziam a
discussão sobre a necessidade de imprimir no
brasileiro roto, imundo, desnutrido, grotesco, um
senso de pertença à sua pátria e civilidade. Segundo
ele: “O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o
suculento recheio de superstições, vale o do
casebre. O banquinho de três pés, as cuias, o
gancho de toucinho, as gamelas, tudo se reedita
dentro de seus miolos sob a forma de idéias.
(Lobato, 2007, p. 174). A partir do final da década
de 1950, o caipira pôde ser representado em ficção.
A partir desse momento, uma releitura de Jeca Tatu,
personagem criado por Monteiro Lobato, passou a
ser mostrada no cinema brasileiro, principalmente
pelos filmes de Mazzaropi. A esse respeito, ver
Moraes (2014).
viii
Construção típica de casas populares no
Nordeste brasileiro, consiste em paredes feitas de
barro sustentadas por paus entrelaçados.
ix
Identificado na legenda da fotografia original.
x
Então Diretor da Instrução Pública do Estado de
Sergipe.
xi
O carro de boi, transporte típico do Nordeste,
constitui-se de uma estrutura puxada por uma junta
de quatro ou seis bovinos e dirigido por um
carreiro. Os animais são espicaçados por um
chamador, geralmente uma criança, que, à frente do
carro, chama os bois pelos seus nomes. O carro de
boi transportava as safras para os paióis das
fazendas ou para os armazéns de compra, e as
matérias-primas para o local das indústrias.
xii
De acordo com Camelo (1992), Sergipe recebeu
inúmeras visitas de Lampião e seu bando,
principalmente na década de 1930. Lampião foi
acusado de ter cometido as maiores atrocidades de
sua vida no cangaço em Sergipe. Ainda de acordo
com o autor, Lampião foi recebido com festas nas
cidades sergipanas de Aquidabã e Capela, em 1929.
Lampião faleceu em Sergipe, em 1938, próximo ao
munícipio de Piranhas, estado de Alagoas, mais
precisamente na gruta de Angicos.
xiii
A Lei de 5 de março de 1835 instituiu concurso
público para o magistério. Ver Mendonça (1958).
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio rural
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xiv
As classes mutisseriadas caracterizam-se por
reunir em um mesmo espaço físico diferentes séries
que são gerenciadas por um mesmo professor. São,
na maioria das vezes, única opção de acesso de
moradores de comunidades rurais ao sistema
escolar. As classes multisseriadas funcionam em
escolas construídas pelo Poder Público ou pelas
próprias comunidades, ou ainda em igrejas,
barracões comunitários, sedes de clubes, casas dos
professores, entre outros espaços menos adequados
para um efetivo processo de ensino-aprendizagem.
Ver Ximenes-Rocha e Colares (2013); Pinho e
Souza (2010).
xv
No estado de Sergipe, a formação de professores
para o Ensino Primário, durante muito tempo, ficou
sob a responsabilidade da Escola Normal Rui
Barbosa, situada em Aracaju, capital do estado.
Esta instituição estadual foi fundada em 1870,
tendo uma existência provisória. A instituição só
ganhou identidade e regularidade de funcionamento
a partir de 1911, quando o Governo Rodrigues
Dórea criou o prédio na Praça Olímpio Campos,
onde o curso permaneceu até 1957, ocasião em que
foi transferido para outro prédio, localizado na Rua
Laranjeiras, bairro periférico de Aracaju. Outras
instituições passam a ofertar o curso normal,
mantidos por ordens religiosas que vão surgindo em
Aracaju (1925) e municípios interioranos (Propriá,
Estância), atendendo, sobretudo, a moças da elite e
da classe média. Ver Freitas (2003).
xvi
“Lei de acessos”: normatização do ingresso do
professor primário no exercício do magistério
público estadual em Sergipe. De acordo com essa
lei, deveriam iniciar a carreira no interior e passar
por promoções sucessivas até a transferência para a
Capital. Ver Freitas (2003).
xvii
A literatura machadiana traz a figura do
“Quincas” como o marido da professora que vive
desocupado, sem profissão.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 08/05/2018
Aprovado em: 19/06/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 8th, 2018
Accepted on June 19th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: O autor Rony Rei do
Nascimento Silva foi responsável pela elaboração, análise
e interpretação dos dados; A autora Ilka Miglio de
Mesquita foi responsável pela escrita e revisão do
conteúdo do manuscrito. Os autores também foram
responsáveis pela aprovação da versão final a ser
publicada.
Author Contributions: The author Rony Rei do
Nascimento Silva was responsible for the elaboration,
analysis and interpretation of the data; The author Ilka
Miglio de Mesquita was responsible for writing and
reviewing the contents of the manuscript. The authors
were also responsible for approving the final version
published.
Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Rony Rei do Nascimento Silva
http://orcid.org/0000-0003-2195-9459
Ilka Miglio de Mesquita
http://orcid.org/0000-0002-5071-2415
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Silva, R. R. N., & Mesquita, I. M. (2018). Mulheres com
enxadas e lápis na mão: histórias de professoras primárias
no meio rural sergipano (1930-1950). Rev. Bras. Educ.
Camp., 3(4), 1345-1371. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1345
ABNT
SILVA, R. R. N.; MESQUITA, I. M. Mulheres com enxadas
e lápis na mão: histórias de professoras primárias no meio
rural sergipano (1930-1950). Rev. Bras. Educ. Camp.,
Tocantinópolis, v. 3, n. 4, set./dez., p. 1345-1371, 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1345