Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1249
Tocantinópolis
v. 3
n. 4
p. 1249-1267
set./dez.
2018
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Educação de mulheres ribeirinhas no município de Breves
Cleide Carvalho de Matos
1
, Manuelle Espíndola dos Reis
2
1
Universidade Federal do Pará - UFPA. Faculdade de Educação e Ciências Humanas. Alameda IV, Parque Universitário.
Breves - PA. Brasil.
2
Universidade Federal do Pará - UFPA
Autor para correspondência/Author for correspondence: cleidematos@ufpa.br
RESUMO. Este artigo analisa a abordagem de gênero que
permeia a proposta curricular do ensino fundamental das escolas
do campo do município de Breves. Tal análise busca identificar
o que se afirma sobre a mulher ribeirinha na referida proposta
curricular e avalia quais conhecimentos sobre a mulher
ribeirinha estão incluídos no documento. O estudo foi realizado
por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental. O
documento analisado foi a proposta curricular das escolas do
campo do município de Breves elaborada em 2012 e revisada
em 2014. Os principais teóricos que fundamentam esta análise
são: Scott (2005), Louro (2007, 2005), Meyer (2007), Oliveira
(2004) e (Pinto, 2001). A proposta curricular das escolas do
campo apresenta uma discussão frágil sobre gênero, pautada em
uma concepção biológica que, ao dissimular a presença das
diferentes identidades presentes na escola, as silencia. No
documento analisado não se identifica referência alguma à
mulher ribeirinha, suas histórias de luta e resistência ficam à
margem das discussões de um documento que legitima o que
deve ser ensinado e aprendido nas escolas do campo.
Palavras-chave: Educação, Gênero, Currículo, Mulher
Ribeirinha.
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Education of women riverside in the municipality of
Breves
ABSTRACT. This work aims to understand the gender
approach that permeates the curricular proposal of the
elementary schools of the countryside of the municipality of
Breves, to identify what is affirmed about the riverside woman
in the mentioned curricular proposal and evaluates what
knowledge about the riverside woman is included in the
document. The study was realized through bibliographical and
documentary research. The document analyzed was the
curricular proposal of the schools of the countryside of the
municipality of Breves, elaborated in 2012 and revised in 2014.
The main theorists who foundation this work were Scott (2005),
Louro (2007, 2005), Meyer (2007), Oliveira 2004), (Pinto,
2001). The curricular proposal of the countryside schools
presents a fragile discussion about gender, based on a biological
conception, in which we do not perceive the presence of the
different identities, which, although silenced, are present in the
school. In the document we did not identify any reference to the
riverside woman, her stories of struggle and resistance were left
aside from the discussions of a document that legitimizes what
should be taught and learned in the countryside schools.
Keywords: Education, Genre, Curriculum, Riverside Woman.
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Educación de las mujeres ribereñas en el municipio de
Breves
RESUMEN. Esto trabajo pretende comprender el abordaje de
género que permea la propuesta curricular de la enseñanza
fundamental de las escuelas del campo del municipio de Breves,
identificar lo que se afirma o se supone sobre la mujer ribereña
en la referida propuesta curricular así como, evaluar qué
conocimientos sobre la mujer se incluyen y de qué forma se
insertan en el documento. El estudio fue realizado por medio de
la investigación bibliográfica y documental. El documento
analizado fue la propuesta curricular de las escuelas del campo
del municipio de Breves elaborada en 2012 y revisada en 2014.
Los principales teóricos que fundamentaron este trabajo fueron
Scott (2005), Louro (2007, 2005), Meyer (2007), Oliveira
(2007), (2004), (Pinto, 2001). La propuesta curricular de las
escuelas del campo presenta una frágil discusión sobre género,
pautada en una concepción biológica, en la cual no percibimos
la presencia de las diferentes identidades, que aunque
silenciadas, están presentes en la escuela. En el documento no
identificamos ninguna referencia a la mujer ribereña, sus
historias de lucha y resistencia quedaron al margen de las
discusiones de un documento que legitima lo que debe ser
enseñado y aprendido en las escuelas del campo.
Palabras clave: Educación, Género, Currículo, Mujer Ribereña.
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Introdução
Nas sociedades e grupos tradicionais
da Amazônia, a afirmação da identidade
feminina, no decorrer da história, apresenta
papéis sociais multifacetados. Destes,
segundo Amorim (1997, p. 39) é possível
destacar dois aspectos fundamentais que
constituem a imagem feminina da mulher
camponesa: “a suposta ‘passividade’ das
suas ações e os seus espaços políticos
quase invisíveis”. As perspectivas
representam imagens femininas que
transmitem a impressão de uma mulher
completamente submissa que depende do
homem para sobreviver nos espaços
econômicos, políticos e sociais. E apesar
de desenvolverem as mesmas atividades
que os homens, apresentarem força física
igual à deles em atividades coletivas como
no cunvidado
i
, o poder masculino ainda
está impregnado (D’Incao; Cotta 2001).
Neste artigo, buscamos responder aos
seguintes questionamentos: Qual abordagem
de gênero permeia a proposta curricular do
ensino fundamental das escolas do campo do
município de Breves? O que se afirma ou se
supõe sobre a mulher ribeirinha no projeto
curricular do ensino fundamental das escolas
do campo do município de Breves? Quais
conhecimentos sobre a mulher ribeirinha
estão incluídos no currículo escolar?
Problematizar as relações
estabelecidas nos espaços escolares com
referência à educação das mulheres
ribeirinhas, sobre o conhecimento
considerado válido para ser aprendido por
homens e mulheres, envolve decisões
sobre o que, o como, os porquês e o para
quê conhecer. Por isso, é pertinente
compreender a abordagem de gênero que
permeia a proposta curricular do ensino
fundamental das escolas do campo do
município de Breves e identificar as
afirmações ou suposições a respeito da
mulher ribeirinha no interior da proposta
da educação básica dessas escolas,
abalizando os conhecimentos relativos ao
feminino e de que forma estão incluídos no
contexto.
A pesquisa se caracteriza como
bibliográfica e documental. Para Lakatos e
Marconi (1992, p. 44) a pesquisa
bibliográfica é o “primeiro passo de toda
pesquisa científica” [e tem como
finalidade] colocar o pesquisador em
contato com tudo aquilo que foi escrito
sobre determinado assunto”. Esse modelo
de pesquisa possibilita o levantamento das
produções desenvolvidas sobre o tema e
“oferece meios para definir, resolver, o
somente problemas conhecidos, como
também explorar novas áreas, onde os
problemas ainda não se cristalizaram”
(Manzo, 1971, p. 32).
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A pesquisa documental foi
fundamental para explicitar o problema
levantado, pois, “engloba todos os
materiais ainda não elaborados escritos ou
não, que podem servir como fonte de
informação para a pesquisa científica.
Podem ser encontrados em arquivos
públicos ou particulares, assim como em
fontes estatísticas copiladas por órgãos
oficiais e particulares” (Lakatos &
Marconi, 1992, p. 43).
Analisamos a proposta curricular das
escolas do campo do município de Breves
elaborada em 2012 e revisada em 2014
pelos técnicos da Secretaria de Educação
(SEMED) e professores das escolas do
campo. A mesma estrutura-se de forma
unificada do ao ano do ensino
fundamental e organiza-se nos seguintes
eixos temáticos: Diversidade; Educação
ambiental e sustentabilidade; Relação
escola comunidade e Educação em direitos
humanos. Consequentemente, cabe
destacar que os eixos são antecedidos por
um texto que apresenta os principais
conceitos que envolvem o tema.
Para sistematizar o conhecimento,
este trabalho foi organizado em cinco
seções. A primeira, a introdução; a
segunda apresenta o aporte teórico que
subsidiou a análise realizada e situa o
objeto no contexto histórico de luta das
mulheres por direitos sociais; a terceira
aborda o tema gênero e diversidade na
Amazônia; a quarta discute a concepção de
gênero presente na proposta curricular do
ensino fundamental das escolas do campo
do município de Breves e a quinta, a
conclusão.
Discussão sobre gênero no contexto
histórico de lutas por direitos sociais
Para o desenvolvimento da pesquisa
aqui consubstanciada, utilizamos Scott
(2005), Louro (2007, 2005), Meyer (2007),
Oliveira (2004), (Pinto, 2001), entre
outros, como referências teóricas que
subsidiaram, de forma consistente, a
análise e sistematização dos dados teóricos
e documentais referentes ao objeto
delimitado.
Scott (2005) afirma que a discussão
sobre a adoção da categoria gênero esteve
ausente das teorias sociais desde o século
XVIII até o começo do século XX.
Algumas teorias construídas nesse período
apresentam análises fundamentadas na
oposição masculino/feminino, mas o
gênero como meio de falar de sistemas de
relações sociais começa a ser discutido
no final do século XX.
No seu uso mais recente, o gênero
parece ter aparecido primeiro entre as
feministas americanas que queriam
insistir na qualidade
fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo. A
palavra indicava uma rejeição ao
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determinismo biológico implícito no
uso de termos como ‘sexo’. O gênero
sublinhava também o aspecto
relacional das definições normativas
de feminilidade. (Scott, 1995, p. 72).
Scott (1995, p. 73), destaca que “as
pesquisadoras feministas assinalaram
muito cedo que o estudo das mulheres
acrescentaria não novos temas, como
também iriam impor uma reavaliação
crítica das premissas e critérios do trabalho
científico existente”.
Para Meyer (2007), os estudos
feministas no Brasil estão ligados ao
movimento feminista. A autora define duas
ondas do movimento feminista. A primeira
está ligada ao movimento sufragista,
praticamente iniciado com a proclamação
da república em 1890 e finalizado em 1934
quando o direito ao voto foi estendido às
mulheres. O segundo começou nos anos
1960 e 1970 em oposição aos governos da
ditadura militar estendendo-se até o
movimento de redemocratização do país,
no início dos anos 1980. Esse segundo
movimento objetivava discutir
teoricamente o papel da mulher nos
espaços de poder, bem como colocar em
evidência a subordinação social e a
invisibilidade política a que,
historicamente, as mulheres são
submetidas. Segundo a autora,
Tal subordinação e invisibilidade
vinham sendo confrontadas,
centenas de anos, por mulheres
camponesas e de classe trabalhadora
que, movidas pela necessidade
cotidiana de assegurar sua
subsistência, desempenhavam
atividades fora do lar, na lavoura, nas
oficinas de manufatura e, depois, nas
primeiras fábricas que se instalaram
com o processo de industrialização.
(Meyer, 2007, p. 13).
Ainda neste artigo, a autora também
trabalha o conceito de gênero e os
desdobramentos de sua utilização. Meyer
afirma que o termo gênero foi traduzido
para o português somente no início da
década de 1970 do século passado.
Destacando que o mesmo agrega a noção
de homem e mulher, ou seja, ambos
passam a serem definidos, em termos
conceituais, pelo mesmo vocábulo.
O conceito de gênero foi utilizado
“para argumentar que diferenças e
desigualdades entre mulheres e homens
eram social e culturalmente construídas e
não biologicamente determinadas”.
(Meyer, 2007, p. 15). Neste sentido, o
gênero como construção social e cultural,
“aponta para a noção de que, ao longo da
vida, através das mais diversas instituições
e práticas sociais, nos construímos como
homens e mulheres, num processo que não
é linear, progressivo ou harmônico e que
também nunca está finalizado ou
completo”. (Meyer, 2007, p. 17).
Assim, a articulação entre gênero e
educação se torna intrínseca, pois a escola
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é uma das instituições na qual as pessoas
aprendem a se reconhecer como homens
ou mulheres. Por isso, esse processo
educativo precisa ser problematizado. Para
Louro (2007, p. 57), a escola entende
muito bem quando se fala na construção
das diferenças.
Na verdade, a escola produz isso.
Desde seus inícios, a instituição
escolar exerceu uma ação distintiva.
Ela se incumbiu de separar os
sujeitos tornando aqueles que nela
entravam distintos dos outros, os que
a ela não tinham acesso... A escola
que nos foi legada pela sociedade
ocidental moderna começou por
separar adultos de criança, católicos
de protestante. Ela também se fez
diferente para ricos e para os pobres e
ela imediatamente separou os
meninos das meninas.
A escola que nos foi legada pela
sociedade moderna ocidental é
fundamentada nos binarismos que se
manifestam das mais diferentes formas.
Segundo Louro (2007), na escola existem
alguns instrumentos que podem contribuir
para a construção e/ou manutenção desses
binarismos que são traduzidos em
desigualdades nos espaços escolares, tais
como:
...currículos, normas, procedimentos
de ensino, teorias, linguagem,
materiais didáticos, processos de
avaliação são, seguramente, loci das
diferenças de gênero, sexualidade,
etnia, classe são constituídos por
essas distinções e ao mesmo tempo
seus produtores. Todas essas
questões precisam, pois, ser
colocadas em questão. (Louro, 2007,
p. 64).
Se nós reconhecemos que a escola
não apenas produz e/ou transmite
conhecimento, mas que ela é um lugar em
que se produzem identidades sociais,
culturais, de gênero, de raça, de classe, por
meio de relações desiguais e etc. “Então,
certamente, encontramos justificativas, não
apenas para observar, mas, especialmente,
para tentar interferir na continuidade
dessas desigualdades” (Louro, 2007, p.
86).
A construção ou manutenção de
identidades por meio do currículo escolar,
no caso específico deste estudo tal como
contida na proposta curricular do ensino
fundamental das escolas do campo do
município de Breves precisa ser
analisada para compreendermos a
abordagem de gênero que permeia a
referida proposta, dado o termo mulher
representar uma diversidade de
identidades, marcada por fatores sociais,
econômicos, de classe, de raça, de etnia, de
sexualidade.
Para a discussão sobre o conceito de
identidade, ancoramo-nos no trabalho de
Woodward (2000), intitulado “Identidade e
diferença: uma introdução teórica e
conceitual”. Nele, a autora apresenta as
identidades como construções históricas e
socioculturais, questionando a forma como
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as identidades são formadas e os processos
envolvidos nessa formação e
problematizando, também, em que medida
as identidades são fixas ou fluidas e
cambiantes. Do mesmo modo, o trabalho
de Buarque e Vainsencher (2001) sobre a
questão de “gênero e identidade” foi
importante para essa discussão. Nessa
produção, as autoras definem a
socialização como elemento primordial
para a constituição do homem e da mulher
e, igualmente, para a construção das
identidades de gênero. O estudo esboça
que essas identidades foram construídas ao
longo da formação cultural do ocidente,
fundamentadas na e nas suposições
científicas.
Dessa forma, organizou-se o
feminino, referido na fêmea, a quem
caberia a condição de um ser
aprisionado à natureza, inferior em
espírito, mais fraco fisicamente,
submisso e dependente da
inteligência e da força do outro para
sobreviver, cujo campo de atividade
principal, segundo as luzes da
Modernidade, estaria restrito ao
espaço doméstico, e o masculino
referido no macho, a quem caberia a
condição de um ser cultural, portanto
transcendente aos limites naturais,
superior, mais forte, que deveria ser
protetor, o provedor e o controlador
dos demais seres humanos, dono
exclusivo do espaço público e
regulador do espaço privado.
(Buarque & Vainsencher, 2001, p.
231).
O gênero representa importante papel
na legitimação das relações de poder,
imprimindo no homem a condição de ser
superior, que pode transitar nos espaços
público e privado. Nesse sentido, as
atividades produtivas das mulheres são
consideradas extensão de suas tarefas
domésticas e, o homem é, por sua vez,
considerado o agricultor e a mulher sua
ajudante. Dessa forma, as limitações
referentes ao gênero feminino restringem a
ação da mulher no espaço público e,
portanto, no mercado de trabalho e nas
instâncias do poder.
Gênero e diversidade na Amazônia
Falar de educação no contexto
amazônico implica penetrar no interior de
uma realidade complexa do ponto de vista
social, econômico, político, ambiental,
cultural e educacional, caracterizado pelas
diferentes formas de ocupação desse
espaço. Segundo Oliveira (2004, p. 23),
Muitas vezes se analisa o amazônico
de forma homogênea,
desconsiderando-se a sua
multiculturalidade e sócio-
biodiversidade, desconsiderando-se,
inclusive a identidade de cada povo
que vive e convive nesse espaço
amplo e diverso, que pode ser
caracterizado não como Amazônia,
mas como Amazônias. Cada uma
dessas “Amazônias” representa um
lugar de determinados atores e
grupos sociais, que produzem e
reproduzem suas práticas sociais
cotidianas, imprimindo assim
características próprias a cada um
desses lugares.
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Ainda, segundo Oliveira (2004), as
comunidades rurais ribeirinhas apresentam
traços identitários que se evidenciam pela
heterogeneidade e pela semelhança,
caracterizando as sociedades rurais
amazônicas pela diversidade e
multiculturalidade. Dentre esses traços
comuns dessas comunidades, destacam-se:
Inexiste saneamento básico; água
tratada; unidades de água; energia
elétrica (a energia, quando existe, é
transmitida por meio de geradores a
óleo ou a bateria) ... A habitação
também é precária; a educação
escolar, quando existe, vai da a
séries somente, realizada por meio de
escolas multisseriadas. (Oliveira,
2004, p. 34).
Em Espaços Femininos: gêneros e
identidade em comunidades rurais da
Amazônia, Amorim (1987) aborda os
papéis sociais assumidos pelas mulheres
rurais da Amazônia, contrapondo-se à
imagem de mulher submissa, passiva,
doméstica do lar, afirmando que “as
mulheres têm domínio social, econômico e
cultural sobre determinadas atividades”.
(Amorin, 1987, p. 40). Dessa forma, ainda
que indispensáveis ao desenvolvimento da
economia camponesa, muitas mulheres não
se conformam com o trabalho doméstico e
ocupam outros espaços. “No trabalho das
roças, as mulheres, além de garantirem a
sobrevivência, obtém o lucro do trabalho,
o que reforça sua contribuição na renda
familiar na produção local, abrindo
espaços para novas conquistas”. (Amorim,
1987, p. 40, grifos da autora).
A pesquisa realizada por Pinto
(2001), em O fazer-se das mulheres rurais:
a construção da memória e de símbolos de
poder feminino em comunidades rurais
negras do Tocantins, problematiza as
relações de poder que se estabelecem a
partir das relações de gênero. Segundo
Pinto, “o poder feminino encontra-se
oculto, envolvido até mesmo nos discursos
ideológicos, posto que a mulher, na
maioria das vezes, é desenhada como uma
serva da família” (Pinto, 2001, p. 467,
grifo da autora). Neste artigo, a autora
analisa as diversas formas de poder
exercido e simbolizado pelas mulheres
pesquisadas e seus espaços de poder.
Considerando-se todas as atividades
exercidas pelas mulheres, desde a
manutenção da roça até a fabricação
da farinha, e comparando com as
atividades masculinas é possível
verificar que é equivocada a
classificação das tarefas entre aquelas
leves ou mais pesadas. Todas são
tarefas que exigem esforços físicos
vigorosos. Embora no plano
ideológico, as atividades masculinas
passam a assumir papel de destaque e
importância, a que associa-se força
do homem e o mando que este exerce
sobre o chamado sexo frágil...
Felizmente são ideias que aos poucos
vão transformando-se, pois se
analisarmos numa outra perspectiva
percebemos uma trajetória de luta,
força e poder das mulheres rurais.
(Pinto, 2001, p. 471, grifos da
autora).
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Desse modo, o poder exercido pelas
mulheres de forma velada transforma-se
em instrumento de afirmação social, de
construção de uma identidade que afirma a
força das mulheres rurais, da sua inserção
em espaços, historicamente, tidos como
predominantemente masculinos, mas que
sempre contaram com o trabalho feminino.
A pesquisa realizada por Santos
(1997) exposta em A Mulher na
Agricultura: contribuições, implicações e
quereres ilustra as diferentes formas de
inserção de homens e mulheres na área
rural maranhense, ao discutir a divisão
social do trabalho. Segundo a autora, “no
roçado, por exemplo, as mulheres
participam da coivara, queima, capina,
colheita e processamento, e não participam
da broca, da derrubada e da
comercialização”. (Santos, 1997, p. 113).
A mulher participa praticamente de
todas as etapas da produção da farinha de
mandioca, inclusive da torragem, trabalho
considerado pesado, desmistificando o dito
que as atividades femininas são mais leves,
mesmo assim, “o trabalho que fazem
dentro do sistema produtivo não é
valorizado, não tem status de produtora”.
(Santos, 1997, p. 115).
Chama atenção o fato de a mulher
não participar da comercialização da
produção. Essa tarefa é atribuída ao
homem, considerado o provedor da
família. É ele quem realiza as trocas
comerciais, participando, assim, do espaço
público. O trabalho da mulher na
produção, embora já tenha alcançado
importância social, ainda é considerado
trabalho doméstico e, portanto, sem valor
social. Esta visão decorre justamente da
crença de que as mulheres são inferiores e
dominadas pela “limitação” de sua
capacidade produtiva. Nesse sentido, o seu
trabalho é considerado de menor valor
social.
Saffioti (1987 como citado em
Amorim, 1997, p. 44, grifos da autora)
afirma que:
A força dessa ideologia da
inferioridade da mulher é tão grande
que até as mulheres que trabalham na
enxada apresentando maior
produtividade que os homens,
admitem fraqueza. Estão de tal
maneira imbuídas desta idéia de sua
inferioridade, que se assumem como
seres inferiores aos homens.
Essas representações e concepções
de gênero fazem parte de um contexto mais
amplo: inserem-se na divisão sexual do
trabalho no interior do sistema capitalista.
Por isso, ao analisamos as relações de
gênero no mundo do trabalho não podemos
desvinculá-las das relações de classes.
Segundo Antunes (2009, p. 109):
As relações entre gênero e classe nos
permitem constatar que, no universo
do mundo produtivo e reprodutivo,
vivenciamos também a efetivação de
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uma construção social sexuada, onde
os homens e as mulheres que
trabalham são, desde a família e a
escola, diferentemente qualificados e
capacitados para o ingresso no
mercado de trabalho. E o capitalismo
tem sabido apropriar-se
desigualmente dessa divisão sexual
do trabalho.
Ainda de acordo com Antunes (2009,
p. 105), no sistema capitalista, geralmente,
as atividades de concepção ou aquelas
baseadas em capital intensivo são
preenchidas pelo trabalho masculino,
enquanto aquelas dotadas de menor
qualificação, mais elementares e, muitas
vezes, fundadas em trabalho intensivo são
destinadas às mulheres trabalhadoras. Ou
seja, o trabalho feminino está,
frequentemente, relacionado a áreas mais
rotineiras, intensivas, que requerem menos
qualificação e mais tempo de dedicação.
Quando o nosso olhar focaliza a
dimensão de gênero nas relações de
trabalho nos diferentes espaços de
produção da vida material e cultural,
observamos que a incorporação do trabalho
feminino se de forma desigual e
precarizada, traduzida por baixos salários,
pela negação de direitos e pelas condições
de trabalho.
As relações de poder estabelecidas
no sistema de produção capitalista
reverberam no contexto familiar da classe
trabalhadora, de forma mais evidente, na
divisão sexual do trabalho no espaço
doméstico, pois, neste recinto, as
atividades desempenhadas pelos gêneros
diferem completamente.
A mulher trabalhadora, em geral,
realiza sua atividade de trabalho
duplamente, dentro e fora de casa,
ou, se quisermos, dentro e fora da
fábrica. E, ao fazê-lo, além da
duplicidade do ato do trabalho, ela é
duplamente explorada pelo capital:
desde logo por exercer, no espaço
público, seu trabalho produtivo no
âmbito fabril. Mas, no universo da
vida privada, ela consome horas
decisivas no trabalho doméstico, com
o que possibilita (ao mesmo capital)
a sua reprodução, nessa esfera do
trabalho não diretamente mercantil,
em que se criam as condições
indispensáveis para a reprodução da
força de trabalho de seus maridos,
filhos/as e de si própria. (Antunes,
2009, p. 108).
Nas comunidades ribeirinhas o
trabalho doméstico tem sido sinônimo de
trabalho feminino, uma extensão da
condição de ser mulher. É uma rotina
intensa de trabalho que exige tempo e
dedicação, considerando, ainda, a dupla
jornada de trabalho.
Pinto (2001) ressalta que, em
comunidades rurais negras, do Baixo
Tocantins, a mulher, por meio do trabalho,
consegue ultrapassar os espaços
domésticos, libertando-se da dominação
masculina, participando, inclusive, como
liderança na sua comunidade. Desse modo,
o trabalho contribui para a afirmação da
mulher no espaço social.
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Convivemos, na Amazônia, com uma
realidade social bastante diversificada em
termos de gênero
ii
, realidade que não pode
ser desconsiderada ou deixada à margem
pelas instituições educacionais, como por
exemplo, o trabalho realizado por homens
e mulheres nesse ambiente tão diverso e
singular. Consideramos que a compreensão
do trabalho desenvolvido pelos diferentes
gêneros nas comunidades ribeirinhas é
condição fundamental para a valorização
do papel da mulher nesse espaço, além de
instituir o trabalho como um eixo
fundamental no currículo escolar.
Nesse aspecto, considera-se a
relevância acadêmica e social da análise do
documento “Proposta curricular dos anos
iniciais do ensino fundamental para as
escolas do campo do município de Breves”
relativamente à abordagem de gênero, uma
vez que nos referimos a uma população
esquecida, tanto do ponto de vista
econômico, político e sociocultural, quanto
do da produção acadêmica atinente ao
assunto (Álvares; D’Incao, 1995, apud
Siqueira, 2006, p. 261).
Concepções de gênero presente na
proposta curricular do ensino
fundamental das escolas do campo do
município de Breves
Breves é o maior município do
arquipélago de Marajó, com uma
população de 99.896 habitantes, segundo a
estimativa do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2017). “A
economia do município baseia-se na pesca
artesanal do peixe e camarão, na
agricultura familiar de subsistência, na
pecuária (em pequena proporção), no
comércio, na extração do açaí e do
palmito”. (Cristo, 2005, p. 115).
Podemos afirmar que as condições
econômicas do município caracterizam a
realidade das comunidades que vivem no
campo de forma diversa, bem como pela
contradição entre o trabalho feminino e
masculino. Marx e Engels (1932), afirmam
que a divisão do trabalho leva à distinção
entre o trabalho do campo e da cidade e,
consequentemente, à distinção entre o
trabalho masculino e feminino,
considerando que, para os autores, são as
condições materiais que produzem o que
os indivíduos são. Logo, o trabalho e o
modo como o mesmo é exercido, bem
como a posição que a mulher ocupa na
divisão social do trabalho nas comunidades
ribeirinhas determinam o que é ser mulher
ribeirinha.
O Município de Breves possui
26.869 alunos matrículas na Educação
Básica. Destes 18.573 estão matriculados
nos anos iniciais do ensino fundamental e
8.296 nos anos finais. Do total de alunos
acima citados 17.182 estão matriculados
nas escolas do campo. (INEP, 2017). Os
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dados nos revelam um quantitativo
significativo de alunos e alunas que
frequentam essas escolas.
Por isso, é fundamental analisarmos
A proposta curricular do ensino
fundamental das escolas do campo do
município de Breves (SEMED, 2014) para
compreendermos a abordagem de gênero
que permeia tal proposta curricular.
Entendemos que no momento em que a
discussão sobre gênero engloba
problematizações para além da polaridade
homem/mulher, amplia-se o debate sobre
as diversidades e diferenças existentes nas
identidades de gênero. Louro (2005, p. 86)
afirma que homens e mulheres não se
constituem, apenas, por suas identidades de
gênero, mas também por suas identidades
de classe, de raça, de etnia, de sexualidade,
nacionalidade, idade... Homens e mulheres
são, ao mesmo tempo, muitas ‘coisas’”.
De acordo com Louro (2007), a
discussão sobre gênero precisa fazer parte
do currículo escolar, pois as identidades
são produzidas e reproduzidas a partir de
diferentes instâncias, espaços, instituições,
discursos, e a escola é uma dessas
importantes instituições que institui
identidades para meninos e meninas,
jovens, homens e mulheres por meio do
currículo, das normas, teorias, linguagem,
metodologias de ensino, avaliação escolar,
etc.
A abordagem numa perspectiva de
gênero no referido documento nos leva a
uma concepção curricular ocupada com as
relações entre saber, identidade e poder
que se estabelecem na escola, com a
necessidade de um currículo inclusivo em
termos de gênero, Silva (2004, p. 97)
destaca que,
O currículo é entre outras coisas um
artefato de gênero: um artefato que,
ao mesmo tempo, corporifica e
produz relações de gênero. Uma
perspectiva crítica de currículo que
deixasse de examinar essa dimensão
do currículo constituiria uma
perspectiva bastante parcial e
limitada desse artefato que é o
currículo.
Desse modo, não podemos ignorar as
conexões existentes entre o currículo e o
mundo social de mulheres e homens que
constroem sua existência por meio do
trabalho, do lazer, da educação, do
conhecimento, da cultura, da religiosidade,
etc., em comunidades ribeirinhas na
Amazônia.
A questão de gênero é tratada na
proposta curricular em tela no eixo
diversidade; destacamos, porém, que o
texto introdutório do referido eixo não
apresenta uma concepção de gênero e não
discorre sobre a questão, o que não
significa que a escola não tenha uma
concepção de gênero, pois, “currículos,
normas, procedimentos de ensino, teorias,
linguagem, materiais didáticos, processos
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de avaliação constituem-se em espaços da
construção das ‘diferenças’ de gênero,
sexualidade, de etnia, de classe. (Louro,
2005, p. 88).
Segundo Louro (2005), os processos
de constituição do gênero recebem atenção
e vigilância especial da escola, ou seja, as
normatizações das instituições escolares
disciplinam as identidades sexuais. “O
processo de ocultamento de determinados
sujeitos pode ser flagrantemente ilustrado
pelo silenciamento da escola em relação
aos/às homossexuais”. (Louro, 2005, p.
89).
A Proposta curricular das escolas do
campo trata a questão de gênero no
primeiro ano do ensino fundamental
restringindo-a à questão biológica, visto
requerer como aprendizagem a
identificação das diferenças de gêneros por
meio de atividades que envolvem meninos
e meninas. Nesse sentido, Louro (2005),
enfatiza que a concepção vem sendo
problematizada, principalmente, pelos
estudos das feministas que acentuam o
caráter essencialmente social na distinção
entre os gêneros buscando demonstrar que
“não são propriamente as características
sexuais, mas tudo que se diz ou pensa
sobre elas, tudo o que se representa,
valoriza ou desvaloriza em relação aos
sexos que, efetivamente constitui o
masculino e o feminino numa dada
sociedade e num dado momento histórico”
(Louro, 2005, p. 86).
No que tange à discussão sobre
gênero, a proposta pedagógica aponta os
seguintes conteúdos a serem trabalhados
no primeiro ano do ensino fundamental:
“O respeito a meninas e meninos; A
amizade entre meninas e meninos; Cores
para meninos e meninas, por quê? Os
brinquedos de meninos e meninas”.
(SEMED, 2014, p. 38).
Ao trabalhar o conteúdo a respeito
das especificidades de meninas e meninos
é necessário muito cuidado, considerando
que Pupo (2009) acredita que a escola
reflete o sexismo que transpassa a
sociedade, assim como as estruturas
sociais, reforçando, desse modo, os
preconceitos e privilégios de um sexo
sobre outro contribuindo para a construção
da identidade sexual de meninos e
meninas.
A amizade entre meninas e meninos
é outro conteúdo abordado na proposta
pedagógica. Meyer (2007) destaca que a
noção de gênero que sustenta o currículo
escolar é singular dada a existência de
diferentes formas de viver o gênero e a
sexualidade, Entretanto, que as instituições
escolares têm suas ações pautadas em um
único modo considerado legítimo, normal
de feminilidade e masculinidade, assim
como uma única forma de vivenciar a
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sexualidade, qual seja, o da
heterossexualidade. Assim, aquele que
foge a esse “padrão” é considerado
desviante, subversivo.
Ao discutir gênero na escola é de
fundamental importância compreender que
a educação é uma prática social e histórica
que se define no conjunto das relações
sociais, determinadas, por sua vez, pelo
modo de apropriação dos meios de
produção. Desse modo, é necessário
considerar que dado as contradições do
sistema capitalista fazerem-se presentes na
escola e, portanto, no currículo escolar, os
conhecimentos selecionados enquanto
objetos da ação educativa vinculam-se a
determinada classe social representando,
pois, a visão de mundo dessa classe.
Considerando que em uma sociedade
capitalista a escola se torna produtora de
mão de obra para atender às demandas do
capital, as práticas sociais são
subordinadas aos interesses do capital.
Nesse sentido, a construção da concepção
de gênero precisar ser debatida na escola
como uma construção social para que a
escola não aprofunde ainda mais as
desigualdades de gênero.
A proposta apresenta conteúdos que
precisam ser debatidos como: cores para
meninos e meninas, por quê? De acordo
com Lopes (2005), essa é uma das muitas
situações que poderiam ser mencionadas,
pois, muito embora pareçam naturais, cabe
à escola combater atitudes sexistas e
estereotipadas são aprendidas
cotidianamente. Cabe destacar que
...na era pré-cristã, quando se
acreditava que algumas cores podiam
expulsar os espíritos nefastos que
rondavam os recém-nascidos. Como
bebês do sexo masculino eram mais
valiosos, passaram a ser vestidos com
roupas azuis, cor associada aos
espíritos do bem (por ser a mesma do
céu). As meninas, quando recebiam
alguma atenção, ganhavam roupas
pretas, cor símbolo da fertilidade na
cultura oriental. Foi só no século XIX
que o rosa ganhou alguma ligação
com a feminilidade, influenciado por
uma lenda europeia que diz que as
meninas nascem de rosas e os
meninos de repolhos azuis. Esse
padrão, no entanto, não se
disseminou por todo o mundo. Por
um bom tempo, na França, as
meninas se vestiam de azul, por
causa da tradição católica, que
associa a cor à pureza da Virgem
Maria. (Feijó, 2005, p. 01).
Nesse sentido, podemos perceber que
a constituição de gênero é um processo
histórico e não linear que se modifica de
acordo com o tempo e o lugar em que
nascemos, existindo, assim, diferentes
formas de definir e viver a masculinidade e
a feminilidade.
Os brinquedos de meninos e meninas
é, também, um conteúdo presente na
proposta curricular das escolas do campo e,
assim como as cores, os mesmos também
aparecem relacionados ao gênero. Do
mesmo modo, o comportamento, o
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trabalho, as brincadeiras, etc. As
brincadeiras de menina (casinha, cuidar da
boneca) são, de certo modo, representação
de suas atribuições para a vida adulta,
assim, aprendemos, desde cedo, por meio
do grupo social “o que é de menino e o que
é de menina”, considerando que “o modo
como homens e mulheres se comportam
em sociedade corresponde a um intenso
aprendizado sociocultural que nos ensina a
agir conforme as prescrições de cada
gênero”. (Carrara, 2009, p. 40).
A proposta curricular das escolas do
campo ainda discute gênero no ano no
eixo diversidade e no ano, no eixo
direitos humanos, tratando das atividades
laborais desenvolvidas por homens e
mulheres e a diferença entre sexo e
sexualidade. No entanto, não esses
conteúdos não são problematizados. A
discussão sobre gênero não permeia todos
os eixos da proposta, nem todos os anos,
limitando-se aos 1º, e anos do ensino
fundamental.
Cabe ainda destacar que, conforme o
avançar nos anos do ensino fundamental,
as aprendizagens requeridas e conteúdos se
distanciam do eixo. Destarte, a articulação
entre os eixos, a aprendizagem requerida e
os conteúdos acontecem apenas nos três
primeiros anos do ensino fundamental, não
constituindo a discussão das disciplinas,
menos ainda, de eixos como direitos
humanos que discute as diferentes formas
de violação de direitos, sem referir a
violação de direitos sofrida pelas mulheres
ao longo da história.
A proposta apresenta eixos
importantes, porém, em nenhum deles o
reconhecimento das diferentes identidades
de gênero como homossexuais, bissexuais,
travestis, transexuais, etc. Louro (2005)
entende que a invisibilidade dessas
diferentes identidades pode se constituir
em uma forma de afirmação das diferenças
na busca de manter a norma, legitimando a
identidade de homem e mulher.
Conclusão
A proposta curricular das escolas
do campo é um documento fundamental,
pois constitui a primeira proposta
específica para as escolas do campo e
contou com a participação dos
profissionais destas escolas. Os eixos
presentes na proposta também são
relevantes por tratarem questões que
inquietam a comunidade. No entanto, ao
discutir sobre gênero, a proposta
apresenta rias fragilidades, pois, ainda
que a questão esteja anunciada no eixo
diversidade, percebe-se que a discussão,
no referido eixo, se apenas nos e
anos do ensino fundamental e somente
será retomada no ano do ensino
fundamental no eixo direitos humanos.
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A concepção de gênero apresentada
na proposta curricular é a biológica, não
concebendo a constituição de gênero
como um processo cultural e social em
que a escola tem importante participação.
Cabe ainda destacar o ocultamento das
diferentes identidades de gênero na
proposta, de modo que não se reconhece
os homossexuais, bissexuais, travestis,
transexuais, etc. na proposta curricular
das escolas do campo.
A proposta curricular traz questões
relevantes sobre gênero, porém não
apresenta a problematização sobre os
temas abordados o que pode contribuir
para a manutenção das desigualdades
entre homens, mulheres, haja vista a
proposta não indicar como tais assuntos
serão abordados em sala de aula. No eixo
direitos humanos é dada atenção especial
às diferentes violações de direitos,
inclusive do povo ribeirinho, sem se
abordar a violação de direitos das
mulheres ribeirinhas, a exemplo da
violência doméstica, exploração sexual,
emprego, renda, acesso à educação,
saúde, etc.
A proposta curricular das escolas do
campo apresenta, portanto, uma discussão
frágil acerca das questões que envolvem
gênero ao afirmar uma concepção
biológica, em que não percebemos a
presença das diferentes identidades que,
embora silenciadas, estão presentes na
escola. No documento não identificamos
também nenhuma referência à mulher
ribeirinha, embora o mesmo apresente, no
eixo direitos humanos, vários conteúdos
relacionados à realidade ribeirinha. A
mulher ribeirinha/marajoara e seu papel na
comunidade, na agricultura, na pesca
artesanal, seus saberes, seus
conhecimentos, sua história de luta e
resistência fica à margem das discussões
de um documento que legitima o que deve
ser ensinado e prendido nas escolas do
campo.
Dessa forma, o gênero feminino é
retratado de forma superficial, sem
relevância social. Reforça o papel que
Amorim (1997) caracteriza como mulheres
passivas com espaços políticos quase
invisíveis. Ao não problematizar a
realidade social das mulheres ribeirinhas, a
proposta mantém a concepção de gênero
pautada na diferença entre os sexos, não
contribuindo para a reflexão acerca das
desigualdades sociais, econômicas,
regionais, etc, produzidas pelo sistema
capitalista que se amplificam ao
relacionarmos as categorias gênero e
classe social.
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i
Mutirão realizado por comunidades do campo para
desenvolver atividades de capina, plantação,
colheita, etc. envolvendo a comunidade num
sistema de rodízio. (D’Incao; Cotta 2001).
ii
Importa destacar que a categoria analítica gênero
possibilita a busca dos significados, das
representações e das concepções tanto do gênero
feminino, quanto do gênero masculino.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 30/05/2018
Aprovado em: 18/07/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 30th, 2018
Accepted on July 18th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: As autoras foram responsáveis
pela elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do artigo, e aprovação
da versão final publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Cleide Carvalho de Matos
http://orcid.org/0000-0003-3229-9441
Manuelle Espíndola dos Reis
http://orcid.org/0000-0001-5211-3689
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Matos, C. C., & Reis, M. E. (2018). Educação de mulheres
ribeirinhas no município de Breves. Rev. Bras. Educ.
Camp., 3(4), 1249-1267. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1249
ABNT
MATOS, C. C.; REIS, M. E. Educação de mulheres
ribeirinhas no município de Breves. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 4, set./dez., p. 1249-1267,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1249