Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1202
Tocantinópolis
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n. 4
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Mulheres, trabalhos e histórias: uma análise das
trajetórias de vida em uma Comunidade Teuto-Brasileira
do RS
Tatiana Souza de Camargo
1
, Muriel Closs Boeff
2
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Departamento de Ensino e Currículo, Faculdade de Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências. Campus ICH ISP FAE. Avenida Paulo Gama, 110. Farroupilha. Porto
Alegre - RS. Brasil.
2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Autor para correspondência/Author for correspondence: tatiana.camargo@ufrgs.br
RESUMO. Este artigo apresenta as intersecções entre duas
pesquisas realizadas em um mesmo município de colonização
alemã, localizado na Encosta da Serra Gaúcha/RS. Ambas
utilizaram ferramentas etnográficas de pesquisa, como
entrevistas e observação participante registrada na forma de
diário de campo, analisadas de maneira combinada. A primeira,
realizada em Grupos de Mulheres e com representantes das
Secretaria de Agricultura, Educação e do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais buscou investigar a sucessão geracional na
agricultura familiar do município, focalizando nas mulheres
jovens. A segunda realizou-se em uma Equipe de Estratégia de
Saúde da Família, com usuárias que possuem diagnóstico de
depressão, procurando compreender as experiências e
significados envolvidos no processo de construção deste
diagnóstico. Consideramos que as análises traçadas a partir
destes movimentos de pesquisa trazem preciosas contribuições
para que seja pensada a organização da comunidade,
principalmente em termos de alternativas de trabalho e
estratégias educativas em Educação do Campo que sejam
capazes de promover a sucessão geracional da agricultura
familiar no município e de incorporar a temática de gênero,
gerando assim um real incremento em termos de qualidade de
vida desta população.
Palavras-chave: Gênero, Educação, Trabalho, Qualidade de
Vida, Saúde Mental.
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Women, Works and Stories: An Analysis of Life
Trajectories in a Teuto-Brazilian Community of RS
ABSTRACT. This article presents the intersections between
two studies conducted in the same municipality of German
colonization, located in the Encosta da Serra Gaúcha / RS. Both
used ethnographic research tools, such as interviews and
participant observation recorded as a field diary, analyzed in a
combined manner. The first, held in Women's Groups and with
representatives of the Agriculture and Education Sector and the
Rural Workers' Union, sought to investigate the generational
succession in the family agriculture of the municipality,
focusing on young women. The second was carried out in a
Family Health Strategy Team, with users diagnosed with
depression, trying to understand the experiences and meanings
involved in the process of constructing this diagnosis. We
consider that the analyzes drawn from these research
movements bring valuable contributions so that the community
organization is considered, especially in terms of work
alternatives and educational strategies in Countryside Education
that are capable of promote the generational succession of
family agriculture in the municipality and to incorporate the
theme of gender, thus generating a real increase in terms of the
quality of life of this population.
Keywords: Gender, Education, Work, Quality of Life, Mental
Health.
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Mujeres, Trabajos e Historias: Un Análisis de las
Trayectorias de Vida en una Comunidad Teuto-Brasileña
del RS
RESUMEN. Este artículo presenta las intersecciones entre dos
investigaciones realizadas en un mismo municipio de
colonización alemana, ubicado en la Encosta da Serra Gaúcha /
RS. Ambos utilizaron herramientas etnográficas de
investigación, como entrevistas y observación participante
registrada en forma de diario de campo, analizadas de manera
combinada. La primera, realizada en Grupos de Mujeres y con
representantes de la Secretaría de Agricultura, Educación y del
Sindicato de los Trabajadores Rurales, buscó investigar la
sucesión generacional en la agricultura familiar del municipio,
enfocándose en las mujeres jóvenes. La segunda se realizó en un
Equipo de Estrategia de Salud de la Familia, con usuarias que
poseen diagnóstico de depresión, buscando comprender las
experiencias y significados involucrados en el proceso de
construcción de este diagnóstico. Consideramos que los análisis
trazados a partir de estos movimientos de investigación traen
preciosas contribuciones para que sea pensada la organización
de la comunidad, principalmente en términos de alternativas de
trabajo y estrategias educativas en Educación del Campo que
sean capaces de promover la sucesión generacional de la
agricultura familiar en el municipio y de incorporar la temática
de género, generando así un real incremento en términos de
calidad de vida de esta población.
Palabras-clave: Género, Educación, Trabajo, Calidad de Vida,
Salud Mental.
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Introdução
Buscamos apresentar, neste artigo, o
resultado da intersecção entre duas
pesquisas realizadas por mulheres e com
mulheres que residem em uma mesma
comunidade: o município de Santa Maria
do Herval/RS. Localizado na região da
Encosta da Serra Gaúcha, o pequeno
município de paisagens montanhosas e
vegetação abundante se localiza cerca
de 80 km de Porto Alegre, possui uma área
de 139,6 km
2
e uma população estimada de
6.295 habitantes para o ano de 2013
(IBGE, 2014). Sua história é fortemente
marcada pela colonização alemã, iniciada
na região em meados do século XIX. Por
volta de 1844, chegaram os primeiros
colonos à linha Herval, onde hoje se situa a
sede do município, que apresentava um
solo mais propício para o cultivo. Daí
originou-se o nome atual do município,
conhecido como Teewald por seus
habitantes (Braun et al., 2009; Woortmann,
2000).
Desenvolvida por famílias de origem
alemã, para os quais o pertencimento
étnico, o aprendizado do hunsrik
i
como
língua materna, a forte religiosidade, os
laços comunitários e de vizinhança são
notoriamente presentes, a agricultura
familiar hervalense guarda algumas
singularidades, partilhadas com outros
municípios vizinhos da chamada Colônia
Velha alemã
ii
.
Para este trabalho, a singularidade
que merece destaque é a pluriatividade
observada na produção rural do município.
Nesse sentido, é comum observar
propriedades nas quais além das atividades
agrícolas tipicamente desenvolvidas no
município como a olericultura, a pequena
produção de leite, a lavoura de milho e
feijão, a silvicultura de acácia, a
piscicultura em pequena escala, a
avicultura, a fruticultura, a lavoura de
batata estarem combinadas entre si, elas
também, na maioria dos casos, se articulam
a um elemento externo: o trabalho de
algum(ns) membro(s) da família em
atividades industriais urbanas,
notadamente nas empresas de calçados.
A pluriatividade é um conceito
desenvolvido por estudiosos dos campos
do Desenvolvimento Rural e Agricultura,
voltados ao trabalho com pequenos
produtores familiares, e designa as
unidades produtivas multidimensionais,
nas quais são praticadas a agricultura e
outras atividades, tanto dentro como fora
da propriedade, pelas quais são recebidos
diferentes tipos de remuneração e receitas
(Fuller, 1990 como citado em Schneider,
2004).
Esse caráter pluriativo e
multidimensional parece ser uma
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característica desta região, na qual o
desenvolvimento da indústria calçadista,
ocorrido ao longo da década de 1980 e
marcado pela instalação de sedes em
localidades rurais, esteve organicamente
ligado à estrutura produtiva local seja
relacionando-se dinamicamente com as
formas de trabalho na agricultura familiar,
através do assalariamento dos colonos, seja
pela externalização de partes do processo
produtivo para serem confeccionados fora
da fábrica, em pequenos ateliês (para os
quais as empresas terceirizam certos
serviços), ou até mesmo em casa
(Schneider, 2004).
Esse fenômeno de incorporação de
atividades da indústria calçadista ao modo
de vida do agricultor familiar da Região da
Encosta da Serra operando sua
ressignificação e atuando, de certa
maneira, na sua manutenção é bastante
interessante e nos mostra a complexidade
do cenário investigado. Nos trabalhos
desenvolvidos por Schneider (2004) na
região do Vale dos Sinos na década de
1990, uma das principais constatações foi a
de que:
O desenvolvimento da indústria
calçadista articulou-se com a
agricultura familiar e que as
transformações das atividades
agrícolas, sobretudo mudanças
ocasionadas no processo de produção
podem ser atribuídas ao seu
assalariamento nas fábricas de
calçados e curtumes. O que parece
singular nesse processo é o tipo de
relação de trabalho que se
estabeleceu Os efeitos da
industrialização sobre a agricultura
familiar não chegam a provocar, de
fato, o êxodo das populações rurais
para as cidades. O assalariamento
constituiu-se, neste caso, numa
alternativa estratégica às dificuldades
enfrentadas pelos colonos Os
empregos fora da propriedade [se
tornaram, assim] uma opção com
dupla vantagem: obter rendas e
ganhos econômicos para garantir a
subsistência familiar e ter a
possibilidade de permanecer
residindo na propriedade agrícola
(Schneider, 2004, p. 111, entre
chaves comentários meus).
Nesse sentido, o autor conclui que a
peculiar forma de inter-relação entre as
formas de trabalho e de produção das
indústrias de calçados e dos agricultores
familiares está entre as principais razões
que explicam o vigoroso crescimento
econômico e as profundas transformações
sociais que se registraram na região da
Colônia Velha alemã a partir da década de
1970 (Schneider, 2004).
Com relação à divisão dos trabalhos
que compõem a pluriatividade da
agricultura familiar hervalense, é
importante marcar que essa se orienta por
princípios de hierarquia e de gênero. Nessa
divisão, em geral, o marido/pai fica na
propriedade desenvolvendo as atividades
agrícolas e a mulher e/ou filhos e filhas
jovens saem para trabalhar nas empresas
de calçados. Nesse esquema, o trabalho do
marido/pai é compreendido como a
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atividade principal para o sustento da
família e o trabalho feminino e dos
filhos(as) funciona como uma “ajuda em
casa” (Machado & Menasche, 2012).
Na tentativa de traçar os possíveis
entrelaçamentos que se tecem entre
sucessão geracional, educação, trabalho e
qualidade de vida focalizando
especificamente no aspecto da saúde
mental nas trajetórias de vida de
mulheres deste município, vinculadas à
agricultura familiar local, mesclamos os
dois trabalhos e construímos as discussões
e análises que constituem este artigo.
Metodologia
Além de estabelecer relações a partir
dos trabalhos realizados com a mesma
comunidade em um mesmo território,
ambas as pesquisas apresentam caminhos
metodológicos semelhantes, com o uso de
ferramentas etnográficas de pesquisa, tais
como entrevistas abertas e semi
estruturadas e a observação participante
registrada na forma de diário de campo,
analisadas de maneira combinada.
A primeira tem se realizado a partir
da observação participante nas reuniões
dos seis Grupos de Mulheres organizados
pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Santa Maria do Herval em parceria com o
escritório municipal da Empresa de
Assistência Técnica e Extensão Rural
(EMATER/RS), aliada às entrevistas
abertas com representantes da Secretaria de
Agricultura, da Secretaria de Educação e
da presidência do mencionado Sindicato.
A segunda acontece em uma Equipe
de Estratégia de Saúde da Família (ESF)
do município, tendo como amostra
usuárias da unidade, autodeclaradas
mulheres, maiores de 18 anos, com
diagnóstico de depressão, a partir da
observação participante em ações de
promoção da saúde e 18 entrevistas semi
estruturadas.
Destacamos que ambos os projetos
de pesquisa foram aprovados pelo Comitê
de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (CAAE
77833517.9.0000.5347 e CAAE
69593617.6.0000.5347) e que os nomes
apresentados ao longo do texto são
fictícios a fim de preservar o sigilo das
participantes.
A atualidade deste contexto: sucessão
geracional e questões de gênero
Quase 30 anos após os estudos de
Schneider (2004) sobre a pluriatividade da
agricultura familiar na Colônia Velha
alemã, buscamos revisitar um pedaço do
campo de sua pesquisa, a fim de investigar
dois elementos específicos, quais sejam, a
sucessão geracional das famílias
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agricultoras e as questões de gênero
iii
implicadas na divisão de tarefas
produtivas, visto que na maioria dos casos
são as mulheres que diariamente deixam a
propriedade e vão trabalhar nas empresas
de calçados.
Ao longo das entrevistas abertas
realizadas com o representante da
Secretaria de Agricultura e da presidência
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
assim como nas observações conduzidas
nas reuniões dos Grupos de Mulheres, a
questão da sucessão geracional no campo é
narrada como a principal preocupação em
termos de reprodução social do modo de
vida dos agricultores familiares de Santa
Maria do Herval, assim como se observa
em estudos realizados junto a agricultores
familiares em municípios de colonização
alemã no Vale do Taquari (Gaviria &
Menasche, 2006; Gaviria & Pezzi, 2007;
Wedig & Menasche, 2009).
Entendemos a sucessão geracional
como a “transferência de poder e do
patrimônio entre gerações no âmbito da
produção agrícola familiar, a retirada
paulatina das gerações mais idosas da
gestão do estabelecimento e a formação
profissional de um novo agricultor(a)”
(Stropasolas, 2011). Além da transferência
material da propriedade, a sucessão
geracional na agricultura familiar envolve
um processo de transferência de saberes e
fazeres, de manutenção de um patrimônio
histórico e sociocultural particular,
processo o qual parece estar sofrendo uma
forte tendência de ruptura, o que corrobora
a preocupação manifesta nas entrevistas.
Ao detalharmos, durante as
conversas, a problemática da sucessão
geracional no município, os entrevistados
afirmam perceber que aos jovens faltam
incentivos dos pais, dos professores e da
comunidade escolar como um todo para a
escolha de uma atuação profissional ligada
ao campo e à agricultura familiar.
Mobilizadas por tais afirmações,
buscamos conversar com representantes da
Secretaria Municipal de Educação, assim
como com representantes das Escolas
Estaduais do município, a fim de levantar
dados sobre a existência e a historicidade
de práticas de Educação do Campo
vinculadas às escolas do município, o que
vimos detalhar na seguinte seção.
Antes no entanto, é importante
delimitar que neste trabalho entendemos
que Educação do Campo é toda ação
educativa desenvolvida junto às
populações do campo e fundamenta-se nas
práticas sociais constitutivas destas
populações, quais sejam os seus
conhecimentos, habilidades, sentimentos,
valores, modos de ser, de viver, de
perceber, de produzir e compartilhar a vida
(CNE/CEB, 2002). Entendemos ainda que
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estas ões educativas podem tanto
desenvolver-se em escolas do campo como
em outros espaços educativos, como as
práticas relacionadas à assistência técnica e
extensão rural, os encontros de formação
sindical, assim os grupos de mulheres e
atividades de promoção da saúde nos quais
se desenvolveu esta pesquisa e que serão
trazidos mais adiante no texto.
Escola no Campo? Escola do Campo?
Com relação à educação escolar,
atualmente o município é atendido por uma
rede que conta com quatro escolas
municipais que oferecem o Ensino
Fundamental completo, uma escola
municipal de Educação Infantil dividida
em três sedes, uma escola estadual que
oferece o Ensino Fundamental completo e
uma escola estadual que oferece o Ensino
Fundamental completo e o Ensino Médio.
Com relação às matrículas realizadas no
ano de 2017, o município contabiliza um
total de 1049 estudantes, sendo 284 na
Educação Infantil, 593 no Ensino
Fundamental e 172 no Ensino Médio.
Em consulta realizada junto ao
Setor Pedagógico da Secretaria Municipal
de Educação, foi constatado que as duas
escolas municipais de Ensino Fundamental
são consideradas como Escolas do Campo,
contando com turmas multisseriadas. No
entanto, conforme o relato dos
responsáveis pelo setor, não são
desenvolvidas atividades específicas que
pudessem ser classificadas como
iniciativas em Educação do Campo. Com
relação à Educação Infantil, as três sedes
se localizam nas áreas urbanizadas do
município, nas quais se localizam as
maiores sedes das empresas de calçados.
Ainda relacionada à Educação Infantil,
constatou-se que não há espera para se
conseguir uma vaga neste nível de ensino.
Compreendemos por escolas do
campo as instituições que têm sua sede no
espaço geográfico classificado como rural
pelo IBGE, assim como as identificadas
com o campo, mesmo tendo sua sede em
áreas consideradas urbanas, sendo neste
caso assim consideradas pois atendem
populações de comunidades cujo produção
econômica, social e cultural está,
majoritariamente, vinculada ao campo,
como é o caso de Santa Maria do Herval
(MEC/CNE, 2001; CNE/CEB, 2002,
2007).
Segundo entrevista aberta, realizada
com a Supervisora Pedagógica das escolas
municipais, não existem iniciativas
alinhadas com a Educação no Campo no
município. Ela relata ter participado de um
Curso de Extensão em Porto Alegre,
relativo ao Programa Nacional de
Educação no Campo (PRONACAMPO) e
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também de um Curso de Especialização
com 340 horas de aula relativo ao
programa Escola Ativa, do Ministério da
Educação. Após estas experiências, ela
relata ter organizado reuniões mensais de
formação com os professores da rede
municipal, durante um ano. No entanto,
segundo a Supervisora, os professores não
concordaram muito com essas “ideias de
Educação no Campo”:
Eles acreditam que a Educação no
Campo está muito aquém da
educação urbana, muito defasada
com relação ao que era trabalhado
por eles nas escolas … Sabe, você ter
um trabalho para que as pessoas
continuem no campo, isso não ocorre
nas nossas escolas, o nosso aluno não
quer trabalhar no campo Se você
for ver, as nossas escolas são bem
urbanas, não preparam para o
trabalho rural, não que elas preparem
para o trabalho na fábrica também,
mas... (Fala registrada durante
entrevista aberta com a Supervisora
Pedagógica das escolas municipais).
Com relação às duas escolas
estaduais, fomos informadas que ambas
são consideradas “escolas urbanas”, por se
localizarem nas áreas mais urbanizadas da
cidade, apesar de uma grande parcela dos
alunos atendidos serem oriundos de
localidades rurais, filhas e filhos de
agricultores familiares. De acordo com os
responsáveis pelo setor, somente para o
Ensino Médio, a estimativa é de que cerca
de 70% dos alunos, em sua maioria
mulheres jovens, venham das localidades
rurais para estudar no Centro do município
(120 dos 172 do total de alunos). Quando
motivados a compartilhar sobre suas
experiências e expectativas com a
Educação do Campo, um dos diretores
comentou:
Nós somos considerados uma escola
urbana, o que financeiramente nem é
vantajoso, pois em termos de valores
da merenda escolar, por exemplo, as
escolas do campo ganham dez
centavos a mais por aluno… Mas eu
não sei, acho que essa é uma
tendência talvez sem volta, essa
centralização das escolas, sabe. Por
que se tu anda pelas localidades,
para ver os prédios das escolas
fechadas. Eu acredito que tenha umas
dez escolas fechadas. Me lembro da
situação da escola da Vila Saeger,
teve épocas que tinha cinco alunos, aí
eles fecharam, sabe, por uma questão
de economia, e preferem trazer todos
de ônibus para o Centro. Mas se a
gente vai pensar, eles poderiam
manter algumas dessas escolas e
economizar em transporte escolar,
né? Como eu disse, é uma situação
complicada e não sei até que ponto
isso tem volta (Fala registrada
durante entrevista aberta com
Diretores e Coordenadores
Pedagógicos das escolas estaduais).
As falas apresentadas reforçam a
narrativa dos entrevistados vinculados à
Secretaria de Agricultura e ao Sindicato
dos Trabalhadores Rurais no sentido de
mostrar que as escolas do município
podem até estar no campo, mais ainda não
são do campo e nem para o campo e, desta
forma, carecem de uma trabalho que
valorize o modo de vida da agricultura
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familiar e que, ao se pautar territorialidade
local
iv
, possa construir conhecimentos que
potencializem o desenvolvimento local e
talvez apontem possibilidades de
enfrentamento da questão da sucessão
geracional.
Mulheres e o trabalho na empresa de
calçados
Se o modo de vida do colono como
um todo foi narrado pelos entrevistados
como em franca situação de
vulnerabilidade, em termos de reprodução
material e social, devido ao pequeno
número de jovens que escolhem
permanecer no campo, as mulheres jovens
foram coletivamente identificadas
como um elemento-chave a ser investigado
e considerado. Isto porque, dentre a parcela
de jovens que voluntariamente optam por
uma atuação profissional ligada à produção
no campo, as mulheres são minoria
absoluta.
Buscando aproximar-se das
atividades educativas direcionadas ao
público feminino, passamos a acompanhar
a reuniões dos Grupos de Mulheres
Agricultoras, realizado desde 2001 pelo
escritório municipal da EMATER/RS, em
parceria com o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, em seis diferentes
localidades (Canto Becker, Padre Eterno
Alto, Alto Morro dos Bugres, Morro dos
Bugres Baixo, Vila Seger e Vila Kunst).
Os grupos são formado por uma média de
15 mulheres cada um, a maioria delas com
idades acima de 50 anos de idade. Nos
encontros mensais desses grupos é
trabalhado o resgate de receitas
tradicionais e a confecção do artesanato
como uma possibilidade de renda extra
para essas mulheres participantes,
juntamente com discussões relevantes para
as mulheres trabalhadoras rurais, como
temas ligados às propostas de Reforma da
Previdência e seus impactos para a
aposentadoria rural, por exemplo.
Para os responsáveis pelas entidades
que atuam junto aos agricultores
familiares, as mulheres jovens não têm
muito interesse em procurar os cursos por
eles oferecidos
v
, e raramente participam
dos Grupos de Mulheres, como evidencia a
fala de um extensionista entrevistado:
As moças, tu vê, elas não pensam em
uma formação que ajude na
propriedade. Como a nossa antiga
estagiária, que saiu daqui da
EMATER e foi para a fábrica porque
ia ganhar mais. Ela não via seu
trabalho aqui como uma
possibilidade de aprender. É como a
maior parte das jovens, o que elas
querem mesmo é trabalhar na fábrica,
casar, comprar terreno, construir,
deixar ela bonita… Elas querem uma
casa bonita, com coisas dentro e por
isso elas vão pra fábrica (Fala
registrada durante entrevista com
extensionistas da EMATER/RS).
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Assim, as atividades profissionais
para as quais as mulheres jovens são
prioritariamente atraídas são aquelas
desenvolvidas nas empresas de calçados.
Cabe salientar que o dualismo que os
entrevistados constroem entre agricultura-
fábrica, em correspondência com rural-
urbano, vai de encontro ao caráter de
pluriatividade que estudos do campo do
Desenvolvimento Rural apontam como
uma singularidade da região na qual se
encontra Santa Maria do Herval, e que
seria um dos fatores para a manutenção da
agricultura familiar na região (Schneider,
2004).
Nesse sentido, o trabalho feminino
na empresa de calçados talvez não deva ser
compreendido como um elemento externo
ao funcionamento da família agricultora,
mas como uma maneira de complementar
o orçamento familiar, condizente com os
princípios de hierarquia e gênero que
tradicionalmente definem o processo de
trabalho de cada membro, dentro das
famílias agricultoras do município de Santa
Maria do Herval (Maia, 2004; Schneider,
2004).
Dentre as mulheres mais velhas
participantes dos Grupos, algumas relatam
ter trabalhado nas fábricas de calçado em
algum momento de sua vida, e trazem
experiências bastante variadas. Para
algumas representou a possibilidade de ter
uma renda própria e a oportunidade de sair
de casa e se relacionar mais com outras
mulheres, mesmo que esse rendimento
tivesse que ser entregue para o pai ou
marido administrar, ele era clara e
indubitavelmente produção sua, de seu
esforço. Para outras foi um acontecimento
mais doloroso, de rompimento com sua
cultura de trabalho na roça:
Eu me lembro de estar na fábrica, e
daí fazer um dia bonito, eu podia ver
as pessoas passando e ficava
pensando, ah, agora é época de
colher batata, e eu ficava triste, eu
chorava ... eu queria estar na roça,
fazer o serviço com o pai e a mãe
(Fala de participante de um Grupo de
Mulheres, registrada no Diário de
Campo).
Seja como for a natureza das
memórias, as mulheres dos Grupos
concordam em um ponto muito importante:
a fábrica de calçados atual não é mais a
que elas trabalhavam. O ambiente, os
processos e as relações mudaram muito.
Há trinta anos atrás as empresas tinham
mais a feição de um ateliê, com muitas
etapas do processo de produção do calçado
sendo realizadas de forma artesanal.
Muitas se localizavam nas áreas rurais,
instaladas em antigos salões de baile, e
junto com as marteladas e as máquinas de
costura se ouvia música e conversava.
Com a crise enfrentada em meados
da década de 1990 pelo do setor calçadista
da região, em constante disputa de
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mercado com as empresas da China, a
produção de calçados se modificou muito.
Os processos se tornaram mais
mecanizados, controlados, cronometrados.
As cadeiras foram retiradas, o trabalho na
fábrica hoje se organiza ao longo de
esteiras, com funções definidas para cada
trabalhador.
No que tange ao trabalho juvenil e
feminino nas empresas de calçados,
narrado como uma atividade disciplinante,
repetitiva e desempenhada sob grande
pressão, cabe destacar a sensação
partilhada pelos moradores/trabalhadores
hervalenses da decadência do setor,
reforçada por recorrentes manchetes dos
jornais locais, que anunciam o fechamento
de filiais de empresas calçadistas
resultando na realocação e demissão de
funcionários, o que lhes causa insegurança
e ansiedade ao comprometer sua qualidade
de vida.
Em nossas pesquisas utilizamos o
conceito de qualidade de vida tal como
esse é definido por Sen (2001), isto é,
como sendo a representação de
combinações entre as capacitações, coisas
que uma pessoa/grupo é capaz de fazer ou
ser, e funcionalidades, as várias coisas que
uma pessoa/grupo faz ou é, de uma pessoa
ou coletivo. Isto significa dizer que a
qualidade de vida pode ser avaliada em
termos da capacitação para alcançar as
funcionalidades (desde nutrir-se, ter saúde,
educação até autorrespeito e integração
social), sustentando que o desenvolvimento
humano em seu pleno sentido é alcançado
à medida que as pessoas/grupos passam a
ter maiores possibilidades de opção e
disposição de capacidades e meios para tal
feito ficando em um plano secundário a
importância de recursos como renda,
capital e posse de recursos físicos, ao
destacar o papel das capacidades e
habilidades que os indivíduos precisam ter
para poder fazer as escolhas e alcançar
uma vida plena de bem-estar. Vale
ressaltar ainda que, considerando tal
compreensão, a ampliação da qualidade de
vida de uma pessoa/coletivo
social/sociedade não pode ser um processo
que assevere a vulnerabilidade e a
precariedade da vida daqueles que não são
contemplados (Sen, 2001; Schneider &
Freitas, 2013).
Neste sentido, consideramos que a
escassez de opções de trabalho e a falta de
atividades educativas direcionadas
especificamente a promover o diálogo das
mulheres jovens com outras possibilidades
de atividades produtivas, inclusive ligadas
à agricultura familiar, parecem
comprometer a sua qualidade de vida - e
em decorrência de suas famílias e da
comunidade - o que ao longo dos anos
pode ir se traduzindo tanto em
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esvaziamento da agricultura familiar no
município quanto em adoecimento da
população.
Um dado que parece reforçar tal
consideração é o alto índice o número de
consultas em saúde mental realizadas no
município. Segundo dados obtidos para o
ano de 2016 na Secretaria Municipal de
Saúde, através do Sistema Único de Saúde
(SUS) foram realizados 1.059
atendimentos de psiquiatria, sendo 710 de
mulheres e 349 de homens, e 667
atendimentos de psicologia, 503 de
mulheres e 164 de homens
vi
.
Instigadas por esses números,
passamos a desenvolver a segunda
pesquisa a ser discutida neste texto, a qual
trata especificamente da temática da
depressão em mulheres, buscando
compreender as experiências individuais e
coletivas com essa condição, seus
significados no dia-a-dia e buscar
possibilidades de enfrentamento da
questão, o que trazemos a seguir.
Mulheres, trajetórias de vida e saúde
mental
No segundo movimento de pesquisa
buscamos discutir como determinados
modos de viver, sentir e interpretar as
condições de saúde mental, tanto por
pacientes quanto por profissionais, pode
estabelecer relação com a construção do
diagnóstico de depressão nesta
comunidade, englobando a articulação do
marcador social gênero com a organização
do trabalho, com a posição ocupada pelas
mulheres e com a organização da cultura
teuto-brasileira no local.
Concordamos com Helman (2009),
que ao considerar a influência do gênero
ou da cultura sobre determinada
experiência de adoecimento, afirma ser
fundamental situar o contexto de onde se
fala. Ou seja, seria um engano pensar que
em uma cultura de hegemonia
masculina/feminina, branca, com grupo
social economicamente favorecido, no
continente europeu, as vivências e
internalizações sobre o significado de uma
doença poderiam ser as mesmas que em
um contexto de hegemonia
masculina/feminina, negra, em um grupo
social economicamente desfavorecido, no
continente sul americano, ou vice-versa,
pois cada grupo, dentro de suas
singularidades, reconhece ou não
determinados sintomas, sinais ou
alterações de comportamento como reflexo
de saúde ou doença.
Sabe-se que “cada cultura oferece
aos seus membros os modos de tornar-se
“doente”, de moldar seu sofrimento em
uma entidade nosológica reconhecível, de
explicar sua causa e obter algum
tratamento para ela” (Helman, 2009, p.
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233, grifos do autor). Dessa maneira, se o
gênero é fator constituinte da identidade
dos sujeitos sendo construído a partir de
aspectos relacionais e sociais, os quais
transitam nos mais diferentes contextos
políticos, econômicos e culturais, poderia
se pensar que a forma como uma mulher
ou um homem hoje, no século XXI, vive
sua experiência do adoecimento pode estar
sendo influenciada pelas relações de
gênero e pelo contexto cultural onde está
inserida(o).
As falas trazidas para a análise a
seguir foram obtidas a partir das
entrevistas realizadas com as mulheres que
se dispuseram a participar do estudo, sendo
estas gravadas e depois transcritas.
Nas trajetórias de vida de mulheres
na faixa etária dos 50 anos, observou-se o
envolvimento em atividades de trabalho
desde a infância, nas quais se destacam,
inicialmente, a responsabilidade pelo
cuidado dos irmãos menores e das tarefas
de casa e, posteriormente, o trabalho na
fábrica com o intuito de auxiliar
financeiramente a família, o que pode ser
visto na fala de Sandra, 51 anos,
aposentada, que trabalhava desde os 11
anos para auxiliar no sustento da família:
- Nós era responsável, a mãe ela me
dava e nós tinha que comprar fralda
de pano, não era fralda que nem
agora descartável, fralda de pano,
roupa pra nenê, era tudo pras outras
crianças, era tudo, era como se nós
tivesse uma família, sabe? Com essa
idade a gente já tinha uma família,
era responsável pela família... As
responsabilidade era nossa, nós era
pai, mãe, irmão, tudo ao mesmo
tempo. Era muito complicado.
(silêncio).
Ainda nesta mesma faixa etária, é
bastante presente o relato da importância
da indústria de calçados como uma
oportunidade de renda estável, propiciando
que a família continuasse a viver no
município. Neste sentido, observaram-se
casos de mulheres agricultoras de origem
alemã que migraram de Santa Catarina,
juntamente com suas famílias, em busca da
qualidade de vida que o trabalho na
indústria calçadista, que se desenvolvia na
Encosta da Serra, poderia lhes oferecer.
Nádia, 53 anos, mudou-se para Santa
Maria do Herval em busca de emprego, e
suas falas trazem relatos desta migração.
Pesquisadora: - E daí Nádia, depois
que vocês vieram de Santa Catarina
tu sempre trabalhou na fábrica?
Nádia: - Sim, daí sempre na fábrica.
Pesquisadora: - Como era?
Nádia: - Ai, era bom, era judiado
também, mas a gente trabalhava e
não perdia uma hora de serão, toda
noite se tinha serão nós fazia, porque
a gente queria né? Pra conseguir se
colocar, pra se ajeitar na vida né? Era
só isso que a gente queria.
Outro elemento surgido no relato de
Nádia foi a inviabilidade da continuidade
da educação escolar, e do impacto que essa
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condição lhe causou frente à possibilidade
de escolha de uma profissão e das
posteriores consequências que isto pode ter
acarretado para sua saúde mental.
Pesquisadora: - Então Nádia, em
relação as profissões, sempre foi na
roça e na fábrica...
Nádia: - Isso, só.
Pesquisadora: - Tu gostaria de ter
escolhido alguma outra profissão, se
tu pudesse escolher?
Nádia: - Iá, o que a gente ia escolher?
Estudo não tinha.
Pesquisadora: - Mas hoje assim,
quando tu pensa, se tu pudesse ter
tido a chance de escolher, o que tu
gostaria de ter feito?
Nádia: - Eu queria muito ter ido
estudar, isso eu sempre queria muito,
mas os velhos não tinham condição.
Imagina, eu saí da aula com 11 anos,
eu tinha passado a quarta série daí eu
fiquei em casa, tinha que trabalhar.
Pesquisadora: - E tu queria estudar
pra ser o quê?
Nádia: - Sabe o que eu queria muito?
Eu vou te falar: eu queria estudar pra
freira, e eles não deixaram. Daí quem
sabe hoje eu tava bem.
Ao narrarem suas histórias de vida,
as mulheres de mais de 40 anos, que em
geral trabalharam em atividades agrícolas
em sua infância/juventude, representam
essa vivência como uma atividade
fisicamente exaustiva.
Pesquisadora: - E esse problema na
coluna tem a ver com trabalho?
Nádia: - Diz o médico que sim.
Pesquisadora: - Sempre trabalhou na
fábrica?
Nádia: - Não, de nova na roça, muito
pesado, serviço muito pesado. s
tinha que trabalhar demais, né? Então
diz o médico que é de serviço pesado
que isso vem e a gente era novo né?
Pesquisadora: - Quantos ano tu tinha
quando tu começou a trabalhar na
roça?
Nádia: - 6, 7 anos. 7 anos tinha
uma enxadinha pra limpar
amendoim, arroz, aipim. Meio dia na
aula com 7 anos e meio dia na roça.
Fazer o tema de noite em casa, luz
elétrica não tinha, tinha um
lampiãozinho. Isso é sofrimento. O
meu irmão mais velho tá na mesma
situação que nem eu, tem dias que
não caminha mais. E ele tinha 11, 12
anos ele ficava atrás do arado,
lavrando.
A organização fortemente
hierarquizada da família e da propriedade,
na qual a figura central coloca-se sobre o
pai, também pode ser percebida na
trajetória de vida narrada por Nádia,
trazendo consequências para ela e para
outros membros da família.
Nádia: - O meu irmão mais velho
casou com 19 anos na marra porque
não aguentou mais em casa. O pai
era, meu Deus do céu, era ruim. E
isso a gente tem dentro da gente né?
Isso é tudo que tá acumulado.
Pesquisadora: - Tu acha que a tua
depressão tem a ver com isso?
Nádia: - Muito! Muito, muito, muito,
muito! E daí quando eu começo a
pensar assim, eu não posso falar
muito, eu tenho, me passa
outras coisas na cabeça. Daí eu
penso: por que eu tinha que sofrer
tanto? (longo silêncio, chora).
Da mesma forma, o controle
patriarcal e seus reflexos nas relações de
gênero foram trazidos:
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Nádia: - Eu tinha, como é que eu vou
te dizer, eu acho que eu tinha uns 13
pra 14 anos. Nós morava no interior, a
mãe tinha muita galinha, tinha vaca de
leite, tinha tudo, fazia queijo. Daí a
mãe dizia pra mim: tu pega, só escuta a
história! Tu leva ovos, manteiga e
queijo pra cidade, tu vende e daí tu vai
no mercado e daí tu traz isso, traz isso
e traz aquilo. Assim, a mãe se virava,
porque o véio botou tudo fora o
dinheiro, dinheiro não tinha, o pai
botava tudo fora. Daí eu já era uma
mocinha né, 13 pra 14 anos. Daí eu
disse pra mãe: eu vou, daí eu compro
as coisas que falta, vou no mercado,
mercado Itaú em Pinhalzinho e daí eu
disse: e se sobrar mãe eu posso
comprar um shampoo pra mim? Na
minha vida até que eu viva, nunca
mais vou esquecer. Era um vidro de
shampoo seda, cor de rosa, e eu
comprei pra mim. E daí ainda sobrou
dinheiro e eu levei tudo pra casa, pra
mãe. Daí quando eu cheguei em casa, e
aquele véio viu aquilo (silêncio). Eu
achei que ele ia me matar, porque eu
comprei aquele shampoo. Maquiagem
na minha vida eu nunca tive, eu não
tive batom, não tinha base, não tinha
esmalte, não podia.
Considerando a faixa etária de
mulheres com menos de 30 anos, as
trajetórias de vida narradas trazem
elementos distintos acerca de suas relações
com o trabalho e com o acesso a educação
escolar, relatando inclusive experiências de
formação no Ensino Superior, como é o
caso de Tina, 26 anos, recentemente
formada em Administração, trabalhando
em uma farmácia e, no momento da
entrevista, em licença maternidade.
- Pois é, como eu trabalhei um ano no
escritório de contabilidade, foi uma
experiência assim que eu gostei
bastante, sabe? Então eu queria ir
mais pra esse lado sabe, tipo um
escritório, alguma coisa assim sabe,
porque eu gosto muito dessa parte
também né. Então na verdade eu
em busca né, pra ver se vai surgir
alguma coisa. Mas aqui em Santa
Maria do Herval é meio complicado,
não tem muito opção assim de
emprego, então eu vou esperar,
vamos ver quando surgir alguma
coisa... Eu acho que em qualquer
emprego que eu vou eu quero
feliz. Independente do emprego, acho
que a gente tem que se adaptar a
qualquer emprego assim.
No entanto, o maior acesso à
escolaridade, inclusive ao Ensino Superior,
nos parece que ainda não foi acompanhado
pela possibilidade de se inserir em postos
de trabalho no município condizentes com
a formação escolhida, possibilitando a
permanência na comunidade.
Considerações Finais
Ao estudarmos as trajetórias de vida,
cabe destacar que não as compreendemos
como relatos objetivos, lógicos,
cronológicos e lineares que as mulheres
apresentaram de suas experiências.
Entendemos que os relatos de tais
trajetórias resultam em narrativas,
construídas por essas mulheres e
reconstruídas analiticamente na pesquisa.
Sendo assim, o trabalho analítico dessas
narrativas foi o de investigar de que
maneira tais trajetórias singulares de
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formação e trabalho incorporam as
experiências e os processos socioculturais
de uma comunidade, uma região e um país
(Kofes, 2007; Mintz, 1984).
Retomando o conceito de qualidade
de vida apresentado anteriormente,
consideramos que os relatos demonstram
que o trabalho das mulheres nas fábricas de
calçado promoveu uma maior estabilidade
financeira para as famílias, resultando na
possibilidade da manutenção de seus
modos de vida na comunidade. Entretanto,
o acesso das mulheres mais jovens a maior
escolarização, e até mesmo ao Ensino
Superior, aumentou as suas capacidades,
mas ainda não teve impacto em termos das
funcionalidades que estas podem
desempenhar na comunidade. Desta forma,
o campo e as atividades a ele relacionadas
são narrados como um local de atraso, da
exaustão física, emocional e do controle
patriarcal; a fábrica de calçados, por sua
vez, não se configura como o espaço da
realização financeira, mas continua sendo a
opção de trabalho acessível na comunidade
se continua nele até que se alcance algo
melhor, o que por vezes pode significar
uma mudança de cidade.
A partir destas análises,
compreendemos os dois movimentos de
pesquisa apresentados trazem preciosas
contribuições para que seja pensada a
organização da comunidade,
principalmente em termos de alternativas
de trabalho e estratégias educativas em
Educação do Campo que sejam capazes de
promover a sucessão geracional da
agricultura familiar no município e de
incorporar a temática de gênero, gerando
assim um real incremento em termos de
qualidade de vida desta população.
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i
O hunsrik é a língua germânica mais
falada no Rio Grande do Sul. Ágrafa até 2004, ela é
cotidianamente usada por quase dois milhões de
pessoas no Brasil, com forte presença em
comunidades de colonização germânica. Utilizamos
o itálico para destacar os termos utilizados na
língua hunsrik, assim como para outros termos em
línguas estrangeiras.
ii
Região na qual chegaram os primeiros
grupos de imigrantes alemães no estado do Rio
Grande do Sul, a partir de 1824.
iii
Identidade de gênero é a experiência subjetiva de
uma pessoa a respeito de si mesma e das suas
relações com outros gêneros. Não depende do sexo
biológico da pessoa, mas de como ela se percebe.
Essa identidade pode ser binária (homem ou
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mulher), mas também pode ir além dessas
representações e rechaçar ambas as possibilidades
de reconhecimento, sendo assim pessoas não-
binárias (todos os outros gêneros). Neste sentido, o
gênero é uma ferramenta para a desnaturalização,
apontando para os muitos significados de
masculinidades e feminilidades que se articulam a
muitas ‘marcas’ sociais, como classe, etnia, entre
outras (Louro et al, 2003).
iv
Consideramos territorialidade no sentido
afirmado por Sposito (2009), como sendo aquilo
que designa a qualidade que o território ganha de
acordo com a sua utilização ou apreensão pelo ser
humano.
v
Como, por exemplo, cursos relacionados à
fabricação de pães, bolos, conservas e compotas.
vi
Vale relembrar que segundo os dados mais
atualizados do IBGE, datados de 2014, a população
do município é de 6.295 habitantes.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 30/05/2018
Aprovado em: 17/09/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 30th, 2018
Accepted on September 17th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: As autoras foram responsáveis
pela elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do artigo, e aprovação
da versão final publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Tatiana Souza de Camargo
http://orcid.org/0000-0001-9179-7470
Muriel Closs Boeff
http://orcid.org/0000-0002-7248-3609
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Camargo, T. S., & Boeff, M. C. (2018). Mulheres, trabalhos
e histórias: uma análise das trajetórias de vida em uma
Comunidade Teuto-Brasileira do RS. Rev. Bras. Educ.
Camp., 3(4), 1202-1220. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1202
ABNT
CAMARGO, T. S.; BOEFF, M. C. Mulheres, trabalhos e
histórias: uma análise das trajetórias de vida em uma
Comunidade Teuto-Brasileira do RS. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 4, set./dez., p. 1202-1220,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1202