Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1128
Tocantinópolis
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n. 4
p. 1128-1155
set./dez.
2018
ISSN: 2525-4863
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Epistemologias de Nosotras, Feminismos e Teoria da Selva
na construção do conhecimento: aportes das mulheres
Zapatistas
i
Lia Pinheiro Barbosa
1
1
Universidade Estadual do Ceará - UECE. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Mestrado Acadêmico Intercampi em
Educação e Ensino. Rua Silas Munguba, 1700, Campus do Itapery. Fortaleza - CE. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: lia.barbosa@uece.br
RESUMO. O presente artigo visa apresentar alguns elementos
da epistemologia de nosotras que articula a concepção de luta
das mulheres erigida pelas indígenas Zapatistas, em Chiapas,
México. Para tanto, apresento o contexto de inserção política das
mulheres Zapatistas com o grito de “Já Basta”, a Lei
Revolucionária das Mulheres e a Insurgência Armada do
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), com
destaque para os elementos teórico-epistêmicos e políticos que
articulam o que denomino um feminismo insurgente,
revolucionário, rebelde e autônomo das Zapatistas.
Palavras-chave: Zapatistas, Lei Revolucionária de Mulheres,
Epistemologia de Nosotras.
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Epistemologies of Women Ourselves, Feminisms and
Theory from La Selve in the construction of knowledge
contributions by the Zapatist Women
ABSTRACT. The article aims to present some elements of our
epistemology (epistemologia de nosotras) that articulates the
conception of women's struggle erected by the indigenous
Zapatista in Chiapas, Mexico. For this, I present the context of
political insertion of Zapatista women with the cry of "Já Basta"
the Revolutionary Women's Law and the Armed Insurgency of
the Zapatista Army of National Liberation (EZLN), highlighting
the theoretical-epistemic and political elements that articulate
what I call an insurgent, revolutionary, rebellious and
autonomous feminism of the Zapatistas.
Keywords: Zapatism, Revolucionary Law of Woman, Our
Epistemology.
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Epistemologías de Nosotras, Feminismos y Teoría de la
Selva en la construcción del conocimiento: aportes de las
mujeres Zapatistas
RESUMEN. El presente artículo tiene el objetivo de presentar
algunos elementos de la epistemología de nosotras que articula
la concepción de lucha de mujeres erigida por las Zapatistas, en
Chiapas, México. Para tanto, presento el contexto de inserción
política de las mujeres Zapatistas con el grito de “Ya Basta”, la
Ley Revolucionaria de Mujeres y la Insurgencia Armada del
Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), con destaque
para los elementos teórico-epistémicos y políticos que articulan
lo que denomino un feminismo insurgente, revolucionaria,
rebelde y autónomo de las Zapatistas.
Palabras clave: Zapatistas, Lei Revolucionaria de Mujeres,
Epistemología de Nosotras.
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Introdução
O presente artigo tem por objetivo
apresentar alguns elementos da
epistemologia de nosotras que articula a
concepção de luta das mulheres erigida
pelas indígenas Zapatistas, em Chiapas,
México. O levantamento armado do
Exército Zapatista de Libertação Nacional
(EZLN), em 01 de janeiro de 1994,
constitui um marco na reconfiguração da
luta agrária contemporânea dos
movimentos indígenas e camponeses na
América Latina. O EZLN assume uma
identidade política baseada nos seguintes
elementos: 1. Descendência direta dos
povos maias; 2. Formação política de dupla
matriz: das organizações indígenas
existentes na região, e a segunda vinculada
à guerrilha maoísta-guevarista; 3.
Inspirados na Teologia da Libertação e 4.
Memória histórica da luta política
mexicana, a exemplo da Revolução
Mexicana (Barbosa, 2016b).
Por se tratar de um movimento
originado no campo latino-americano, a
insurgência armada do EZLN teve por
objetivo explicitar a histórica
subalternização dos povos indígenas
mexicanos, ademais de reivindicar a
revisão do artigo 27 da Constituição
Mexicana, referente aos fundamentos
básicos do Pacto Agrário, uma das mais
expressivas conquistas da Revolução
Mexicana de 1910 (EZLN, 1994). Desde
então, o Movimento Zapatista consolidou o
projeto político autonômico em seus
territórios, organizado por Caracóis e
Juntas de Bom Governo, instâncias
vinculadas ao Governo Autônomo
Zapatista (Barbosa, 2016b; 2015).
As mulheres Zapatistas
reivindicaram sua inserção política nas
instâncias militares e civis do Movimento.
Nessa trajetória foram as precursoras da
Lei Revolucionária de Mulheres, primeira
lei vigente em território Zapatista, além de
se posicionarem na assunção de uma
concepção teórica própria acerca de sua
luta como mulheres, que se fundamenta em
uma dimensão epistêmica, a partir do que
denomino como uma epistemologia de
nosotras.
Para apresentar os fundamentos da
epistemologia de nosotras, apresento o
contexto de articulação histórica da
resistência indígena no enfrentamento da
condição colonial e social de serem
nomeados como um povo sem alma. Nesse
contexto, situo o papel político das
mulheres na assunção de uma posição de
sujeitos, ponto de partida para contar a
própria visão do processo histórico
vivenciado milenarmente, e suas interfaces
no processo de construção de uma teoria
social erigida no marco da práxis
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revolucionária como mulheres e inseridas
na luta política do Movimento Zapatista.
De povos sem alma a povos com Razão
Quem entre nós, povos latino-
americanos e caribenhos, não aprendemos
na escola, em particular nos livros de
História, que a América foi “descoberta”
por homens desbravadores do além-mar?
ii
Quem nunca leu, durante o ciclo escolar,
que nessas terras “descobertas” habitavam
“índios”, com formas de vida
rudimentares, por não dizer, primitivas e,
como se não bastara, povos sem alma, que
deveriam ser catequizados com fins de
domesticação, uma vez que a catequese
constituía, sob a ótica do conquistador, a
primeira aurora civilizatória?
A data de 12 de outubro de 1492 se
tornou o marco histórico desse discurso da
descoberta da América. No Brasil, o dia 21
de abril de 1500. Em ambas, um elemento
histórico comum: a imposição, pela via da
espada e da cruz, da denominação de
índios àqueles que milenarmente
habitavam esses territórios, civilizações
que possuíam centenas de línguas e uma
organização sociocultural, territorial,
espiritual e política preexistentes à
Conquista. De atribuir-lhes a condição de
outro(s), inferiorizando-os em suas
racionalidades, em seus corpos,
expropriando-os de seus territórios e
submetendo-os a toda sorte de opressões,
necessariamente violentas, um destino que
posteriormente foi compartilhado com os
povos africanos escravizados em toda a
América.
O modelo educativo implantado
pelos Estados nacionais amorteceu, no
âmbito da narrativa histórica, o legado da
violência epistêmica da Conquista, além de
negar a preexistência, na região, de um
pensamento ameríndio de ordem milenar
(Dussel, 2010). Na conformação dos
marcos interpretativos do processo de
formação sociocultural do continente,
predominou a categorização binária
primitivo-civilizado, comum em obras
historiográficas, antropológicas,
sociológicas e literárias até meados do
século XX, uma operação epistemológica
baseada nas categorias raça e cultura e que
legitimaram um dispositivo taxonômico
baseado em identidades opostas (Gómez,
2005). Nessa dicotomia historicamente
constituída, é negado que os continentes do
sul global, Ásia, África, América Latina e
Caribe estejam dotados da razão como
atributo humano, conforme problematiza
Mongobe Ramose (2002), ao apresentar os
fundamentos da Filosofia Africana e a
ética do Ubuntu. Trata-se de uma negação
intrinsecamente relacionada à Conquista e
à determinação dos postulados do
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pensamento ocidental como razão
universal. Impôs-se, portanto, uma
racionalidade unilateral,
predominantemente eurocêntrica, que
determinou quais os sujeitos que devem ser
reconhecidos como dotados da razão e
quais categorias, métodos e lugares são
considerados legítimos na construção do
conhecimento.
Na contemporaneidade, os povos
indígenas
iii
interpelam o paradigma da
modernidade ocidental capitalista,
contrapondo a ele um projeto societário
alterno alicerçado em outro paradigma, que
nasce do vínculo com a dimensão
epistêmica, ontológica e política de seus
territórios com o Abya Yala.
iv
Esse
paradigma, fundamentado em uma
cosmovisão, em um ethos, em uma matriz
linguística e em uma práxis política que
sustenta outras concepções das relações
intersubjetivas e com a natureza, portanto,
outras práticas de vida erigidas no tecido
sócio-comunitário do sumak kawsay,
sumak qamaña bem viver ou do lekil
kuxlejal vida plena, digna e justa, no
horizonte de construção de outros mundos,
outros pensamentos.
Nesse marco, ao final do século XX
vemos emergir uma significativa
articulação regional em torno da
Campanha Continental 500 Anos de
Resistência Indígena, Negra e Popular
(1989-1992), que expressava a crítica dos
movimentos populares da região frente às
celebrações oficiais dos 500 anos da
Conquista. Esse período é caracterizado
pela emergência de lutas emblemáticas,
como o surgimento do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
no Brasil, do levantamento armado do
EZLN, no México, da Via Campesina e da
Coordenadora Latino-Americana de
Organizações do Campo (CLOC), entre
outros movimentos sociais do campo em
escala regional e nacional. Nutridos pela
memória histórica das lutas travadas na
região e das rebeliões de caráter
revolucionário, esse novo ciclo da luta
popular articula uma problemática
histórica comum, relacionada ao
permanente despojo territorial, à violência
epistêmica (Spivak, 2010) e institucional
do Estado, que reproduz a ruptura histórica
com a racionalidade epistêmica
preexistente à Conquista. Portanto, são
movimentos que, no processo de defesa de
seus territórios, empreendem uma
resistência política para que sejam
reconhecidos como povos dotados de
Razão.
As mulheres têm assumido, no
contexto histórico das lutas, um papel vital
na defesa da terra, dos seus territórios e,
sobretudo, de suas comunidades,
amplamente ameaçadas pelo novo padrão
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de acumulação (Federici, 2014). É válido
destacar que, para o caso das mulheres
indígenas, essa luta incorpora o desafio de
forjar-se como sujeito político, a começar
em seu próprio caminhar como mulheres,
em um movimento reflexivo crítico
endógeno-exógeno, em que se
problematizam as dimensões históricas do
patriarcado e das opressões dele derivadas,
seja na esfera institucional do Estado ou no
terreno público e privado das relações
intersubjetivas do tecido social
comunitário. Por conseguinte, pressupõe
forjar a própria consciência histórica em
coletivo (em suas comunidades e
organizações) e em pares (mulheres e
homens) no desafio de descolonizar-se, ou
seja, “pensarse desde el centro de nuestro
ser, hacer la reflexión teórico-epistémica
de la forma como hemos asumido nuestro
lugar en el mundo (Torres, 2013, p. 33).
Nesse percurso histórico, as mulheres
indígenas tomam a palavra ou, como
dizem as mulheres Garífunas de Honduras
e Belize, a palavra como via para
recuperar a dignidade, um processo em
que se revisita a narrativa histórica da
colonização e do Estado-nação ocidental
moderno para contar e escrever a outra
história a partir de suas epistemologias
como povos e, em particular, como
mulheres que sentem o peso, sobre seus
corpos e pensamentos, desse processo
civilizatório.
Encontram no caminho outras vozes
femininas que também se posicionam
como sujeito político, que elaboram um
pensamento crítico e teorizam com o
compromisso de elaborar abordagens
teórico-metodológicas que anseiam por
tornarem-se ferramentas interpretativas e
de luta em favor da emancipação das
mulheres. Certamente se trata de um
encontro de vozes com vistas ao diálogo,
porém também atravessado por tensões,
por justaposições, por imposições,
descontinuidades e incompreensões.
v
O
feminismo, e logo, os feminismos em
plural, constitui uma das categorias que
emergem desse exercício conceitual
resultante de um processo histórico e
político, e que abarca consensos, dissensos
e tensões. Para as mulheres indígenas,
pensarem-se a partir de si mesmas, de seu
caminhar como mulheres que são frutos da
longa noite dos 500 anos
vi
incorpora a
reflexão permanente sobre três aspectos
centrais: quem tem ocupado o lugar
material da reflexão tardia sobre o sujeito e
os corpos do feminismo (Vigoya, 2009;
Chirix, 2013; Miñoso, 2014); a
colonização discursiva e o privilégio
epistêmico da prática acadêmica do
feminismo ocidental (Mohanty, 2008) e as
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aprendizagens na descolonização do
feminismo (Torres, 2013; Castillo, 2014).
No momento histórico de crítica ao
feminismo ocidental, é fundamental
colocar em perspectiva esses três aspectos,
sobretudo para problematizar, conforme
nos aponta Chirix (2013), onde subjaz o
exercício de poder na escrita das mulheres
mestiças e ocidentais sobre as outras
mulheres. Do mesmo modo, para delimitar
outros parâmetros conceituais e de
posicionamento político para as lutas das
mulheres que não se autodenominam nos
marcos da categoria feminismo, e que
reivindicam suas lutas enraizadas às lutas
políticas de suas organizações, construídas
em coletivo e em pares.
Há, portanto, um debate teórico-
epistêmico e político erigido pelas
mulheres indígenas de diferentes
organizações populares e movimentos
sociais, relacionado à premência por criar
espaços de formação política e educativa,
com o intuito de recuperar e reafirmar suas
racionalidades, ao mesmo tempo em que
tecem uma concepção teórica própria para
suas lutas como mulheres, em um debate
contínuo com suas comunidades e no
âmbito dos movimentos e organizações nos
quais participam. Em toda a América
Latina é possível identificar experiências
educativas e de formação política dessa
natureza, a exemplo daquelas erigidas
pelas mulheres maias do México e da
Guatemala, das quéchuas da Bolívia e
Equador, das mulheres vinculadas à
CLOC/LVC, das mulheres Sem Terra, das
mulheres do Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) e suas Arpilleras, do
Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC), das mulheres mapuches no Chile
e Argentina, entre outras mulheres do
campo, das águas, dos quilombos e dos
bosques.
No contexto de uma teoria escrita na
perspectiva dos movimentos sociais
(Barbosa, 2016b), dos feminismos
populares, de uma reflexão em torno à
justiça de gênero, de transnacionalização
do feminismo e num diálogo mediado por
outras genealogias, entrelaçadas em
matrizes históricas que, por vezes, são
enriquecidas por categorias criadas por
teóricas feministas, emergem outras
composições próprias, que expressam o
exercício legítimo de autonomia
epistêmica. Para fins da presente reflexão,
farei uma aproximação às epistemologias
de nosotras a partir da concepção de luta
das mulheres Zapatistas, reconhecendo-a
como uma teoria social genuína em torno à
luta das mulheres e sua apreensão do
feminismo, teoria que nomeio
metaforicamente de Teoria da Selva. Ao
tomar por base os fundamentos
epistêmicos dessa teoria, busco outras
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genealogias que aportam, aos feminismos
populares, chaves interpretativas próprias,
ademais de lançar luzes às tensões e
dilemas contemporâneos em torno aos
feminismos e à luta das mulheres.
O renascer da longa noite como
Mulheres Indígenas, Zapatistas
Insurretas
No poema “GUERRILHA:
Substantivo feminino”, a poetisa Idylla
Ferreira (2016) nos recorda que as
guerrilhas, as revoluções, as insurreições,
entre outras expressões de resistências e
lutas históricas também foram
impulsionadas pelos pensamentos, corpos e
corações de mulheres. Tal é o caso da
conformação das fileiras do EZLN e do
levantamento armado, em 1994, em
Chiapas, México, que contou com um
terço de mulheres indígenas, entre elas,
doze em posições de mando, à frente da
ocupação militar de seis municípios
chiapanecos. Essas mulheres traziam em
sua memória ancestral a carga histórica da
colonização que condenou a mulher
indígena à violência sexual, física e
epistêmica, à negação de uma existência
digna como ser humano. No processo
histórico de subalternização feminina e
invisibilidade social, cultural e política das
indígenas, não só se negou uma identidade,
uma história, uma cultura, como também
silenciaram suas línguas maternas e suas
vozes, violaram seus corpos, suas
virgindades, roubaram seu leite materno, o
direito ao território, ao amor, à liberdade, à
dignidade.
Nos contextos de colonização,
marcados por um profundo racismo, a
violência sexual representa uma
recolonização do corpo da mulher
indígena, no sentido de atribuir-lhe o
caráter de extensão territorial circunscrito
ao domínio do conquistador, na
reafirmação da posse irrestrita como um
direito inerente à conquista. Recai sobre os
corpos das mulheres indígenas a sentença
de tornar-se um corpo Sem Alma, Sem
Rosto e Sem Voz.
Além da carga histórica da
colonização, outros três fatores
impulsionaram a participação política das
Zapatistas: 1. O alto índice de mortalidade
infantil de crianças indígenas e suas
implicações para a perpetuação da história
e da memória dos povos indígenas; 2. O
processo interno de mobilização e
organização das mulheres, nas
comunidades Bases de Apoio Zapatistas,
para reivindicar o direito de participação
política como mulheres e 3. A modificação
do artigo 4º da Constituição Mexicana, que
determina a supremacia dos homens no
acesso do dispositivo legal relacionado aos
direitos garantidos pela lei de usos e
costumes indígenas. Conforme essa lei, é
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vetada às mulheres o direito de
propriedade sobre a terra, seja por compra
ou herança. Portanto, uma invisibilidade
jurídica com relação às mulheres
indígenas, um mecanismo de reprodução
da negação histórica de direitos, estratégia
jurídica intrínseca à lógica estrutural de
apropriação dos territórios e que tem, como
um dos principais pilares, o processo de
erosão dos direitos “tradicionais” das
mulheres com respeito a sua participação
nos sistemas de terras comunais (Federici,
2014).
Ao processo de organização da
autonomia Zapatista em seus territórios
(Barbosa, 2015), o governo mexicano
respondeu com o incremento da Guerra de
Baixa Intensidade (GBI), uma resposta
imediata à luta autonômica zapatista. A
contrainsurgência torna-se um instrumento
da política etnocida do Estado,
caracterizada pela ação violenta do
exército federal e de paramilitares nos
territórios indígenas. Na GBI, as mulheres
se tornam um objetivo estratégico,
recaindo mais uma vez sobre seus corpos
as atrocidades que atravessam os contextos
de guerra: privações, execuções e violência
sexual. O Massacre de Acteal
vii
é exemplo
de uma ação contrainsurgente brutalmente
violenta, com o intuito de provocar uma
resposta militar do EZLN e, dessa maneira,
ter o álibi para atacar militarmente as
comunidades Zapatistas.
Na ocasião do massacre, as mulheres
indígenas participantes do Congresso
Nacional Indígena (CNI)
viii
conclamaram à
solidariedade com Acteal e emitiram um
comunicado de denúncia da violação de
direitos humanos e da prática da violência
sexual contra as mulheres indígenas como
uma estratégia da guerra contrainsurgente.
Atualmente denominado “Acteal Sítio de
la Conciencia y Casa de la Memoria y de la
Esperanza”, o local celebra, anualmente, a
memória dos seus rtires. A memória de
Acteal incorpora os sentidos da insurgência
das mulheres Zapatistas. No relato das
sobreviventes do massacre se destaca o
depoimento de Micaela, com 11 anos de
idade à época, que escutou os paramilitares
ordenarem “há que matar as sementes”,
referindo-se às mulheres grávidas e ao
fruto de seu ventre fecundo.
O ritual misógino sobre os corpos
das mulheres indígenas se cumpria: as
grávidas tinham seus ventres abertos por
facões e seus filhos arrancados e lançados
de um facão a outro, em um pingue-
pongue macabro; com as outras mulheres
indígenas assassinadas, desnudavam-nas,
abriam suas pernas e metiam um pau pela
vagina!
ix
Na GBI, matar a semente
significa matar o embrião da resistência
indígena, insurgente, rebelde e autônoma.
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A dialética da guerra nos corpos das
mulheres torna-se o cerne do debate
político das mulheres Zapatistas. Durante o
I Encontro Intercontinental pela
Humanidade e Contra o Neoliberalismo, na
Mesa “Mulheres e sociedade civil
excluída”, reconheceu-se o patriarcado
como fundamento do neoliberalismo e que
imprime suas marcas na expropriação
territorial impulsada pelo capital
transnacional na ofensiva contra seus
territórios. As Zapatistas enfatizavam a
urgência histórica na compreensão das
raízes históricas do patriarcado e em situar
o gênero como uma categoria central a ser
incorporada à crítica do neoliberalismo
como projeto político (EZLN, 1996).
Pese a ofensiva da GBI em seus
territórios, a autonomia Zapatista avança e
permanece em desenvolvimento, contando
com a inserção das mulheres que,
paulatinamente, galgam espaços de
participação política. À exceção daquelas
que estão no EZLN e as milicianas, as
demais Zapatistas desempenham cargos no
Governo Autônomo, nas Juntas de Bom
Governo (JBG), em outras áreas de
trabalho nos Municípios Rebeldes
Autônomos Zapatistas, como parteiras e
curandeiras (com medicina fitoterápica ou
com quiroprática), como Promotoras de
Saúde, Promotoras de Educação,
Promotoras de Agroecologia,
Coordenadoras Gerais de Zona e como
Tercio Compas
x
(EZLN, 2013).
O primeiro documento produzido
pelas Zapatistas foi a Lei Revolucionária
de Mulheres, primeira lei vigente em seus
territórios e do código legal da Justiça
Autônoma Zapatista.
xi
Essa lei é
considerada um marco normativo dos
direitos e aspirações das mulheres
indígenas, como também de posições de
sujeito (Miñoso, 2014) no despertar de
uma subjetividade feminista zapatista, que
é tecida no transcurso da rearticulação
comunitária prévia à Insurgência Armada,
condição imprescindível na conformação
do sujeito histórico-político Zapatista
(Barbosa, 2015). Assim, no âmbito das
demandas gerais da comunidade, as
Zapatistas começam a inserir as demandas
específicas das mulheres, em um
movimento dialético de permanência
câmbio (Millán, 1996), ou seja, superar o
patriarcado próprio do costume, da
tradição. A Lei Revolucionária de
Mulheres preconiza:
xii
En su justa lucha por la liberación de
nuestro pueblo, el EZLN incorpora a
las mujeres en la lucha revolucionaria
sin importar su raza, credo, color o
filiación política, con el único
requisito de hacer suyas las
demandas del pueblo explotado y su
compromiso a cumplir y hacer
cumplir las leyes y reglamentos de la
revolución. Además, tomando en
cuenta la situación de la mujer
trabajadora en México, se incorporan
sus justas demandas de igualdad y
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justicia en la siguiente LEY
REVOLUCIONARIA DE
MUJERES: Primero.- Las mujeres,
sin importar su raza, credo, color o
filiación política, tienen derecho a
participar en la lucha revolucionaria
en el lugar y grado que su voluntad y
capacidad determinen. Segundo.- Las
mujeres tienen derecho a trabajar y
recibir un salario justo. Tercero.- Las
mujeres tienen derecho a decidir el
número de hijos que pueden tener y
cuidar. Cuarto.- Las mujeres tienen
derecho a participar en los asuntos de
la comunidad y tener cargo si son
elegidas libre y democráticamente.
Quinto.- Las mujeres y sus hijos
tienen derecho a ATENCION
PRIMARIA en su salud y
alimentación. Sexto.- Las mujeres
tienen derecho a la educación.
Séptimo.- Las mujeres tienen derecho
a elegir su pareja y a no ser obligadas
por la fuerza a contraer matrimonio.
Octavo.- Ninguna mujer podrá ser
golpeada o maltratada físicamente ni
por familiares ni por extraños. Los
delitos de intento de violación o
violación serán castigados
severamente. Noveno.- Las mujeres
podrán ocupar cargos de dirección en
la organización y tener grados
militares en las fuerzas armadas
revolucionarias. Décimo.- Las
mujeres tendrán todos los derechos y
obligaciones que señala las leyes y
reglamentos revolucionarios.
Com a criação da Lei Revolucionária
de Mulheres, as Zapatistas começaram a
assumir cargos civis e militares. O inciso
sexto da Lei Revolucionária as mulheres
têm direito à educação foi fundamental
no fortalecimento da formação educativa e
política das Zapatistas. Reivindicar o
direito de estudar vai muito além do acesso
à escola, uma vez que anseia a ruptura
histórica com o racismo epistêmico, uma
construção social que assentou as bases de
uma hierarquia social erigida por matrizes
raciais e étnicas (Vigoya, 2008; Chirix,
2013), e que consolidou, no plano
simbólico-ideológico, a supremacia branca.
Sob a base desta supremacia, se ergueram
as posições de dominação e subordinação,
as opressões, os atributos de estigma e o
controle sobre os corpos das mulheres
indígenas. Assim, reivindicar o direito à
educação é um ato político de subversão da
dialética colonial e de autoridade
epistêmica por meio da Pedagogia da
Palavra (Barbosa, 2018), ou seja, tomar a
palavra como mulheres indígenas, o
direito de fala e de uma fala posicionada
em 500 anos de luta.
Na perspectiva da reivindicação dos
direitos, a aprendizagem do espanhol
(castilla) possibilita enlaçar-se com o
mundo “kaxlan” (mestiço), para evitar
marginações, abusos e “poder se
defender”. Por outro lado, a demanda
coletiva por essa aprendizagem é suscitada
em virtude da intensificação da GBI em
suas comunidades, o que requer um
domínio da linguagem imperante nos
organismos jurídicos para fins de denúncia
e de exigência de justiça (Barbosa, 2015).
Está claro, portanto, que a castilla é a
ngua que media o discurso institucional
do Estado, sob o julgo do patriarcado, e
que define hegemonicamente a concepção
Barbosa, L. P. (2018). Epistemologias de Nosotras, Feminismos e Teoria da Selva na construção do conhecimento: aportes das
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de justiça e de direitos na perspectiva do
privilégio branco, uma construção histórica
inerente ao projeto colonial na América
Latina e que o transcende, ao reproduzir-se
na normativa do direito constitucional do
Estado-nação moderno e sua capacidade de
veto aos direitos às populações indígenas e,
em particular, às mulheres indígenas.
Nessa direção, educar-se possibilita o
entendimento dos códigos jurídicos, suas
ambiguidades, ao mesmo tempo em que se
questiona a autoridade epistemológica do
Estado e da racionalidade ocidental
moderna. Aliás, com o aprendizado da
castilla, as mulheres Zapatistas disputam a
linguagem jurídica, ao fundar as bases da
Justiça Autônoma Zapatista, com a outorga
da primeira lei vigente em seus territórios
a Lei Revolucionária de Mulheres
construída coletivamente por elas, em suas
línguas maternas, porém escrita em
espanhol, para demarcar sua posição de
sujeito e sua autonomia epistêmica, como
pioneiras na elaboração de um marco
jurídico para o enfrentamento do entronque
patriarcal (Galindo, 2013); uma lei que,
paulatinamente, se tornou um documento
de referência para a luta das mulheres no
México e no mundo.
Outro fator de extrema importância
na aprendizagem da castilla estava
relacionado com a formação política e
militar no EZLN: algumas insurgentas
relatam que, por se tratar de um exército
clandestino conformado por indígenas de
diferentes etnias, portanto, de diferentes
línguas, o espanhol se tornou a ngua
comum, tanto para o estudo dos manuais
de estratégia militar, como também para
receber as instruções de mando.
xiii
No I
Encontro das Mulheres Zapatistas com as
Mulheres do Mundo,
xiv
outra insurgenta
relata:
Estando en la montaña aprendimos
muchas cosas. Si no sabíamos leer y
escribir, hablar la castilla, nos
enseñaba a nosotras los compañeros.
Todo lo que no aprendimos en
nuestra casa, ahí aprendimos todo en
la montaña. Estando como insurgenta
es nuestra obligacn aprender todo
tipo de trabajo ... Aprendimos lo
político, lo militar y lo cultural.
A Lei Revolucionária de Mulheres
torna público um processo de elaboração
conceitual próprio das Zapatistas e que
fundamenta as bases epistêmicas de sua
teoria social em torno da luta das mulheres,
uma Teoria da Selva, locus de sua
insurgência como mulheres e de uma
práxis revolucionária.
Epistemologia de nosotras e a Teoria da
Selva na práxis política das Zapatistas
A consolidação do Sistema
Educativo Rebelde Autônomo Zapatista de
Libertação Nacional (SERAZ-LN)
constituiu um processo político central na
defesa da dimensão epistêmica do projeto
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autonômico Zapatista e no posicionamento
político de sua palavra, de sua voz como
movimento indígena anticapitalista e anti-
sistêmico (Barbosa, 2015). Desde a
Primeira Declaração da Selva Lacandona e
no conjunto das seis declarações emitidas
pelo EZLN, os documentos, comunicados,
consignas políticas, canções, poemas,
contos, entre outros escritos, as e os
Zapatistas fortaleceram uma narrativa
política enraizada em um sentido
metafórico e metateórico que expressa a
profundidade epistêmica da cosmovisão e
das línguas maias articulada à construção e
consolidação de um projeto político de
caráter emancipatório.
Não é à toa que na trajetória política
do Movimento Zapatista o
posicionamento pela recuperação,
valorização e fortalecimento da ngua
enquanto expressão do seu pensamento, da
sua racionalidade e de seu posicionamento
sociocultural e político como movimento
indígena. Há, portanto, uma transição da
guerra das armas pela guerra desde a
palavra, compreendendo a palavra
construída em uma perspectiva histórica,
intrinsecamente vinculada à memória de
mais de 500 anos em resistência (Barbosa,
2015). Nas palavras do EZLN (1996):
xv
Nuestra palabra, nuestro canto y
nuestro grito, es para que ya no
mueran más los muertos. Para que
vivan luchamos, para que vivan
cantamos ... La flor de la palabra no
muere, aunque en silencio caminen
nuestros pasos. En silencio se
siembra la palabra. Para que florezca
a gritos se calla. La palabra se hace
soldado para no morirse en el olvido.
Para vivir se muere la palabra,
sembrada para siempre en el vientre
del mundo. Naciendo y viviendo nos
morimos. Siempre viviremos. Al
olvido sólo regresarán quienes rinden
su historia. Aquí estamos. No nos
rendimos. Zapata vive y, a pesar de
todo, la lucha sigue. Desde las
montañas del Sureste Mexicano.
As mulheres indígenas da América
Latina constroem sua teoria a partir de
marcos epistêmicos próprios, e em sintonia
com o desejo de que seja uma flor da
palavra que não morre, mas que se semeia
e renasce na memória histórica de suas
lutas. Para o caso das Zapatistas,
destacam-se três matrizes epistêmicas
fundamentais para a compreensão da
Teoria da Selva que fundamenta a
concepção de sua própria luta como
mulheres, elaborada em sua práxis
educativo-política: 1. Dimensão epistêmica
da cosmovisão e da língua maia; 2.
Dimensão epistêmica do território; 3.
Dimensão epistêmica da
complementaridade.
Dimensão Epistêmica da Cosmovisão e
Língua Maia
A racionalidade Zapatista se
fundamenta na dimensão epistêmica da
matriz linguística e da cosmovisão maia,
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que se tornam o fio condutor dos saberes
compartilhados na vida comunitária e no
contexto de sua luta política. Assim, no
processo de consolidação do pensamento
teórico-epistêmico e político Zapatista,
alguns conceitos das línguas maias
xvi
são
recuperados como pilares da construção de
conhecimento e de uma teorização que
problematiza concepções de mundo
legitimadas historicamente pela ciência
ocidental moderna. Vejamos alguns
exemplos a seguir.
O o’tan coração; stael e o ch’ulel
alma-espírito-consciência: conforme o
antropólogo Intzín (2013) estes são
conceitos da língua maia tseltal que
traduzem a base da cosmovisão maia e os
processos de sociabilidade comunitária e
com a natureza. O o’tan, enquanto núcleo
da cosmovisão maia-tseltal, dimensiona a
apreensão da vida e do posicionamento
individual e coletivo no mundo,
orientando-se a partir de uma gica
racional de sentir-pensar e sentir-saber.
Para os povos indígenas maias significa
construir um pensamento em estreito
vínculo com o coração.
Com base nesses conceitos, o
atributo da razão, de uma filosofia própria,
não exclui as emoções, os sentimentos, as
espiritualidades que também são elementos
constituintes dos seres humanos e de seu
convívio entre si e com os outros seres,
com o plano material e imaterial da vida.
Em outras palavras, antes de converter-se
em uma operação abstrata da razão, os
pensamentos e os saberes passam,
primeiramente, pela mente e pelo coração,
ou seja, a palavra se coraçona na
perspectiva Zapatista, uma expressão da
racionalidade que pode ser interpretada
como uma dimensão do ser-estar-pensar-
sentir com e no mundo (Barbosa, 2014).
tik nosotros, nós: o conceito
tojolabal tik ou nosotros é considerado o
cerne da racionalidade Zapatista na
consolidação de uma identidade e
subjetividade política. Constitui o conceito
que estrutura a definição de participação
política, de democracia à luz da autonomia
Zapatista. Conforme Lenkdersdorf (2002,
p. 31), o tik:
... enfatiza una identidade grupal y no
individual ... En el intercambio
grupal de ideas, cada uno de los
participantes habla del NOSOTROS
y no del yo cada uno de los
participantes habla y respecta esa
relación que llamamos
‘NOSÓTRICA’ y que orienta todos
hacia un acuerdo, en lugar que cada
uno hable por mismo, convencido
de sus ideas para jalar a los demás en
dirección suya.
A ação nosótrica delimita os
princípios da sociabilidade comunitária e a
posição de sujeito ocupada por cada
membro da comunidade. Conforme o
Subcomandante Insurgente Marcos
(EZLN, 1996, p. 67):
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La única forma en que la gente podía
asegurarse seguir adelante era
juntándose con el otro. Por eso la
palabra junto, la palabra nosotros, la
palabra unidos, la palabra colectivo,
marca la palabra de los compañeros.
Es una parte fundamental, diría yo, la
columna vertebral del discurso
zapatista.
‘ab’i escutar: conforme
Lenkersdorf (2008) este conceito
representa a escuta, entretanto, uma escuta
que incorpora as formas de sentir, de
pensar desde a perspectiva do outro, ou
seja, em uma relação de reciprocidade do
nosotros. A escuta do outro pressupõe a
capacidade de colocar-se no lugar do outro,
ao mesmo tempo em que se concebe uma
escuta para compreender os argumentos
que estruturam o posicionamento daquele a
quem se escuta. Portanto, o processo da
escuta preconiza uma capacidade de
apreensão das palavras e dos sentimentos
expressos pelo outro ou outros. O ‘ab’i
constitui um conceito central para a
compreensão dos sete princípios
Zapatistas: 1. Baixar e não subir; 2.
Convencer e não vencer; 3. Construir e não
destruir; 4. Representar e não suplantar; 5.
Propor e não impor; 6. Obedecer e não
mandar e 7. Servir e não servir-se.
ja ‘altsili tudo vive: na cosmovisão
maia tudo tem vida, tudo vive e essa
perspectiva apresenta, em si mesma, uma
ruptura epistêmica com a racionalidade
ocidental que define a natureza entre a viva
e a morta. Assim, a dimensão da vida
incorpora aos seres humanos, mas também
a fauna, a flora, as águas, as montanhas, as
cavernas, os astros, etc. (Lenkersdorf,
2008). Do ponto de vista epistêmico,
considerar que tudo vive é reconhecer que
não há uma cisão entre vida e morte.
p’ij yo’tan é único o teu coração:
pressupõe uma autonomia pessoal, do ser
como único em sua singularidade; também
pode ser interpretado como um processo de
integração coletiva, da capacidade de
alcançar consensos e de integrar-se no
âmbito da comunidade (Paoli, 2003).
De igual maneira é fundamental
recuperar o Popol Wuj livro sagrado dos
povos K’ich’e Maia da Guatemala,
xvii
uma
referência central na recuperação da
memória ancestral no processo de
construção do conhecimento no âmbito das
experiências educativas e políticas dos
movimentos indígenas da América Central.
Nesse livro sagrado encontramos as ideias
cosmogônicas sobre a origem da vida e dos
seres humanos, o calendário maia e a
organização do tempo, as concepções
sobre os territórios, as posições de sujeito
(anciãos, mulheres, homens e crianças) e
as relações intersubjetivas no âmbito da
vida comunitária, com a natureza e com o
Abya Yala (Asturias & González, 1965;
Odile, 1999; DeLaVega, 2016). Do ponto
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de vista da conformação de um ethos
identitário e político, recupera-se do Popol
Wuj o mito originário da criação do ser
humano, de serem homens e mulheres do
milho (hombres y mujeres del maíz), ou
seja, aqueles que foram feitos do milho
(Asturias & González, 1965).
Os Zapatistas estão entre aqueles que
recuperam a dimensão epistêmica do Popol
Wuj na elaboração de seus documentos
políticos, em suas consignas políticas, na
sua literatura, na sua expressão estética e
nos materiais didáticos utilizados na
Educação Autônoma. A identidade
sociocultural afirmada no Popol Wuj
possui uma dimensão epistêmica que
permite ao Movimento Zapatista reafirmar-
se como homens e mulheres do milho,
apreendendo em sua narrativa política a
defesa dos seus territórios e de todos os
bens naturais nele existentes,
compreendidos como uma herança milenar
dos povos maias (Barbosa, 2014; 2015).
Nesse caso, o milho é reconhecido para
além de um alimento, pois incorpora uma
apropriação epistêmica da cosmovisão e
estabelece outra relação intersubjetiva
entre os seres humanos e seus territórios no
Abya Yala. Essa apreensão epistêmica do
Popol Wuj é trabalhada pedagogicamente
no SERAZ-LN, sobretudo na área da
História e das Línguas, na Educação
Primária Rebelde Autônoma Zapatista.
Particularmente no livro didático Arte en
Rebeldía (2006), um trecho explícito do
Popol Wuj que faz referência ao mito
originário dos homens e mulheres do
milho, seguido da imagem de uma espiga
de milho e do seu nome em tseltal ixim
(EZLN, 2006, p. 88):
He, aquí, pues, el principio de cuando
se dispuso a hacer al hombre, y
cuando se buscó lo que debía entrar
en la carne del hombre. Y dijeron los
Progenitores, los Creadores y los
Formadores “... que aparezca el
hombre, la humanidad, sobre la
superficie de la tierra”. Así dijeron. Y
así encontraron la comida y ésta fue
la que entró en la carne del hombre
creado del hombre creado, del
hombre formado; ésta fue su sangre,
de ésta se hizo la sangre del hombre.
Así entró el maíz [en la formación
del hombre] por obra de los
Progenitores.
Além do material didático utilizado
nas escolas autônomas, vemos as
referências diretas do mito originário do
Popol Wuj nos diversos murais existentes
nos Caracóis e nas Comunidades Bases de
Apoio Zapatista, ademais dos bordados
feitos pelas Zapatistas. Aliás, é importante
destacar a dimensão pedagógica dos
bordados elaborados pelas mulheres na
construção e transmissão dos saberes e do
conhecimento entre as gerações. Os
bordados retratam a história da luta política
Zapatista e, em particular, das mulheres
Zapatistas, a construção da autonomia em
seus territórios, entre outros conteúdos
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formativos, a propósito da etnomatemática,
da agroecologia e da cosmovisão maia, o
que evidencia a estética política da
autonomia Zapatista (Barbosa, 2014;
2015).
Dimensão Epistêmica do Território
Historicamente, o território é
compreendido como locus de resistência e
de conformação de um ethos identitário e é
parte constitutiva da narrativa política dos
movimentos indígenas e camponeses
latino-americanos em defesa da terra, da
natureza, dos bens comuns e no
reconhecimento do território como espaço
de reprodução social da vida, lugar de
criação e ressignificação das relações
socioculturais e de poder. É válido destacar
que essa compreensão do território
interpela diretamente àquela vinculada à
ótica do europeu colonizador à época da
conquista, isto é, de uma terra nullius,
terra de ninguém, de um território
inabitado, portanto, propenso à
colonização, à expropriação e exploração
irrestritas, à instauração da propriedade
privada por meio de direitos adquirido
pelos países colonizadores, e que
infringiam a soberania das civilizações e
nações que habitavam os diferentes
territórios do Abya Yala.
Inclusive, no atual contexto de
desenvolvimento do capitalismo neoliberal
em sua modalidade extrativista, a dialética
da territorialização e da desterritorialização
se configura como a nova modalidade da
luta de classes (Veltmeyer, 2018).
Portanto, recuperar o prisma histórico da
terra nullius nos permite analisar a ânsia
do capital transnacional por territórios sem
gente, à plena disposição dos
megaempreendimentos que caracterizam o
(neo)extrativismo, sobretudo na América
Latina.
Nessa perspectiva, recupero a
concepção de etnoterritorialidade
simbólica (Barabás, 2003), categoria que
expressa a apropriação indígena dos
territórios e que se contrapõe às
denominações atribuídas pelo Estado, a
exemplo de “agrário”, “municípios”, entre
outras, que atribuem um sentido de
ocupação e divisão territorial distinto e, por
vezes, até antagônico à concepção
milenária do território. Ao se definir
autarquias com jurisprudência própria, há
um maior controle institucional do Estado
sobre os territórios e se instauram
mecanismos de regulação territorial
favoráveis à sua expropriação pelo setor
privado vinculado aos
megaempreendimentos.
O estudo desenvolvido por Barabás
apresenta exemplos pré-coloniais e
coloniais, decorrentes de fontes etno-
historiográficas, que demonstram as
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relações estabelecidas pelas comunidades
indígenas com seus territórios a partir de
sua cosmovisão, portanto, uma abordagem
histórica milenária da territorialidade
indígena. Dela, emergem conceitos
fundamentais relacionados à configuração
dos territórios em períodos pré-hispânicos
e que foram reproduzidos milenarmente na
inter-relação intersubjetiva estabelecida
com a natureza.
Nessa linha, os territórios podem ser
reduto de lugares sagrados, por exemplo,
serras, montanhas, grutas ou outras formas
naturais dotadas de sacralidade, espaços
ritualísticos vinculados à fertilidade, à
natalidade, à vida e à morte (Odile, 1999;
Barabás, 2003). Ou ainda, de um atributo
político aos territórios defendidos por
comunidades em luta contra o capital
transnacional (Veltmeyer, 2018). É
fundamental destacar que são as mulheres
do campo, das águas e das florestas, as
principais defensoras da concepção do
território como espaço de vida.
As mulheres indígenas e camponesas
guardiãs das sementes, as curandeiras, as
xamãs, entre outras, guardam consigo a
memória biocultural das sabedorias
tradicionais (Toledo & Barrera-Bassols,
2008), o que tem garantido a preservação
de sementes nativas, a fertilidade dos solos
vinculados aos quintais produtivos, entre
outros saberes diretamente relacionados à
agricultura tradicional camponesa. Por
outro lado, essas mesmas mulheres
incidem politicamente, ao tecerem a crítica
ao modelo de desenvolvimento
hegemônico vinculado ao capital
transnacional e, em contraposição a esse
modelo, impulsionarem a agroecologia
como matriz produtiva e projeto político.
Dimensão da Complementaridade
Outra matriz epistêmica do
pensamento Zapatista está representada
pelo conceito de lajan lajan ‘aytik, que
significa estar em de igualdade, ou
ainda, formamos juntos comunidade de
iguais(Lenkersdorf, 2008). Argumenta
Marcos (2011) que no mundo indígena não
existem categorias mutuamente
excludentes, uma vez que os fundamentos
cosmológicos mesoamericanos se baseiam
no princípio do equilíbrio. Assim, a
dualidade é o que caracteriza a natureza
dos seres, entre eles, o gênero feminino e
masculino. A fluidez do gênero se faz
presente na filosofia mesoamericana, e o
processo de construção do pensamento
evita promover uma divisão por meio da
exclusão. A dualidade masculino-feminino
é básica na cosmologia maia e seu vínculo
se por meio do conceito de
complementaridade entre
homem/mulher, entre ser humano/natureza
isto é, uma forma de interpretação do ser
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(mulher e homem) em inter-relação com o
universo em perspectiva complementaria.
Dessa maneira, na construção do
pensamento mesoamericano a fusão do
feminino e do masculino em um princípio
singular, porém polarizado, no qual as
divindades se concebiam em pares, a partir
do princípio da complementariedade, com
o intuito de manter as duas forças em
equilíbrio. Se retomarmos a Lei
Revolucionária de Mulheres, vemos
claramente o princípio da dualidade
complementária, ao se exigir o direito de
participação política igualitária como
mulheres, “sin importar su raza, credo,
color o filiación política, tienen derecho a
participar en la lucha revolucionaria en el
lugar y grado que su voluntad y capacidad
determinen”. Em diferentes relatos das
mulheres Zapatistas
xviii
encontramos a
reivindicação de ser reconhecidas como
iguais, em construir a autonomia para as
mulheres e os homens no caminhar lado a
lado, caminhar em pares (caminar parejo).
Assim, o princípio do caminhar em pares,
em de igualdade é o fundamento da
proposta feminista das mulheres Zapatistas
e o acordo é a mediação pedagógica e
política para seu alcance.
As dimensões apresentadas da
epistemologia de nosotras cosmovisão,
língua, territorialidade e
complementariedade constituem
elementos nodais do posicionamento
político e de elaboração teórica das
Zapatistas, intimamente relacionados a
uma dimensão epistêmica da cosmovisão,
da língua maia e da práxis política em
defesa de seus territórios. Na realidade, as
Zapatistas exercem sua autonomia
epistêmica ao explicitar a forma como
constroem sua subjetividade política e sua
luta como mulheres: Nosotras no usamos
la palabra feminismo, porque de por si
siempre hablamos lucha de las mujeres. Y
hay diferentes palabras para decir lo
mismo, porque entendemos que es lo
mismo, pero lo decimos de nuestra manera,
que es diferente.”
xix
A autonomia epistêmica das
Zapatistas, em dizer sua palabra, que está
em consonância com outros delineamentos
teórico-políticos das feministas, mas dito
de forma diferente, tem suscitado
articulações ao afirmar, por exemplo, “que
el zapatismo coincide con algunos
elementos de las tesis del feminismo, pues
propone una nueva ética del poder, que no
sea patriarcal” (EZLN, 1996: 158).
Entretanto, as aproximações entre
Zapatistas e teóricas feministas também
estão atravessadas por campos de tensão,
descontinuidades, ou mesmo rupturas e
silenciamentos. Para compreender esse
terreno, é fundamental retomar os três
aspectos que apresentei ao início do artigo,
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por ser fruto de reflexões construídas
nesses interstícios e que embasam o
posicionamento das Zapatistas: o sujeito e
os corpos do feminismo; a colonização
discursiva e o privilégio epistêmico do
feminismo ocidental e a descolonização do
feminismo.
O privilégio e a autoridade
epistêmicos têm se apresentado como
elementos nodais nas tensões estabelecidas
entre as Zapatistas e as teóricas feministas.
No Primeiro Encontro Internacional,
Político, Artístico, Esportivo e Cultural de
Mulheres que Lutam, realizado em março
de 2018, no Caracol IV Morelia, as
Zapatistas explicitaram essa tensão, ao
afirmarem, “porque no solo los hombres,
también hay mujeres de las ciudades que
nos desprecian, que porque no sabemos de
la lucha de mujeres, porque no hemos leído
libros donde las feministas explican cómo
debe ser y tantas cosas que dicen y critican
sin saber cómo es nuestra lucha.” A
palavra coletiva das Zapatistas evidencia a
carga simbólica e material do racismo
epistêmico, muitas vezes presente no labor
teórico de “emancipar as mulheres” e que,
em realidade, está suscetível de reproduzir
um colonialismo, expresso em um
etnocentrismo intelectual, de imposição de
uma teoria que se pretende universal e que
demarca, sob critérios categoriais do
ocidente, por vezes a-históricos, quais os
elementos que definem uma luta que,
necessariamente, deve ser denominada
feminista, quem de fato é feminista ou
quais lutas podem ser consideradas
realmente como feministas.
A crítica ao colonialismo das práticas
discursivas do feminismo hegemônico tem
sido amplamente realizada por outras
teóricas feministas, que se posicionam na
defesa de outros feminismos desde o Abya
Yala.
xx
Entretanto, mesmo no
reconhecimento de outras genealogias da
luta das mulheres, ainda perdura uma
estrutura teórico-metodológica que
enquadra a análise e, portanto, delimita o
sujeito e os corpos do feminismo. No
contexto latino-americano, as Zapatistas,
as mulheres da CLOC, as mulheres do
Feminismo Comunitário, entre outras, são
enfáticas, ao afirmar que necessitam um
feminismo útil para a luta dos povos.
Nesse sentido, situo a reflexão
apresentada por uma militante da
CLOC/LVC,
xxi
ao problematizar que o
enquadramento teórico almejado pelas
feministas impede um enriquecimento do
feminismo por uma tendência ao veto a
outras expressões de luta das mulheres.
Para essa mesma militante, a urgência por
definir um marco teórico, em suas
palavras, como um feminismo pós-
colonial, descolonial, decolonial, conduz a
um labirinto conceitual incompreensível
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para as mulheres que constroem sua luta no
campo popular. As Zapatistas corroboram
com esta reflexão, ao mencionarem que
são muitas palavras novas, que nem
sempre conseguem entender,
xxii
mas que
talvez estejam dotadas do mesmo sentido
atribuído por elas em sua luta como
mulheres indígenas. Portanto, um
caminho sinuoso, ou mesmo um fosso no
diálogo entre as Zapatistas e as teóricas
feministas, decorrente de uma suposta
autoridade epistêmica.
Entretanto, é válido destacar que
existe um esforço de autorreflexão crítica
entre as teóricas feministas no intuito de
pensar os desafios para a descolonização
do feminismo, no sentido de superar o
etnocentrismo intelectual e as lógicas de
poder que invisibilizam, ou mesmo
desconhecem, a existência das mulheres
indígenas e camponesas (Castillo, 2014).
Trata-se do reconhecimento de que é
necessário ampliar o entendimento das
lutas, transpondo o campo individual ao
coletivo, para um exercício da escuta, no
aprender a escutar e a olhar, ensinamento
epistêmico das e dos Zapatistas, sem a
pretensão de uma escuta averiguadora ou
orientadora de como ser / tornar-se
feminista. Ao contrário, de uma
aprendizagem, de uma comunhão com as
teorias construídas por outras mulheres em
processos políticos intrinsecamente
articulados com o campo popular.
Nesse exercício da escuta, é
fundamental compreender os elementos
que embasam uma epistemologia de
nosotras, para situar o posicionamento
político das Zapatistas na construção de
sua luta como mulheres, na defesa dos
territórios e na consolidação da autonomia
como princípio e projeto político. Como
expressão desse exercício do aprender a
escutar e a olhar das teóricas feministas,
destaco alguns trechos da “Carta a la
Comandanta Ramona”, escrita por
Mercedes Olivera, reconhecida lutadora
social e intelectual feminista mexicana,
lida durante o “Conversatorio Miradas,
Escuchas, Palabras: ¿Proibido pensar?”,
realizado em abril de 2018, no CIDECI-
Universidad de la Tierra, em San Cristóbal
de las Casas, Chiapas. A carta traz sua
reflexão logo após participar do Primer
Encuentro Internacional, Político,
Artístico, Deportivo y Cultural de Mujeres
que Luchan:
Para nosotras que vivimos afuera fue
maravilloso verlas actuando como
una sola, percibir su ritmo de
tolerancia y harmonia ... y
recibiéndonos con una escucha
ejemplar ... Las jóvenas Zapatistas
nos dieron a las viejas y nuevas
feministas una lección teórica y
práctica del feminismo
revolucionario que pratican en sus
caracoles, sin la necesidad siquiera
de darle el nombre. Desde la
convocatória dirigida a las mujeres
Barbosa, L. P. (2018). Epistemologias de Nosotras, Feminismos e Teoria da Selva na construção do conhecimento: aportes das
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que luchan, ejercieron su sabedoria:
ninguna se sintió excluída y llegamos
todas las que luchamos ... La lucha
de las mujeres es mundial y Morelia
se universalizo con esta convocatoria.
Nuestra fuerza personal se
engrandeció con esta fuerza colectiva
harmonizada por las Zapatista. Y que
impresionante, Ramona, que
estuvimos presentes mujeres con
posiciones diferentes, compartiendo
sin conflicto. Todas pudimos
expresarnos, sentirnos unidas y
fuertes porque todas luchamos,
ciertamente de muy diferentes
maneras, Ellas, nuestras anfitrionas,
siguen tu ejemplo, Ramona, nos
oyeron con gran respeto y sin
reclamos.
Nossa luta é pela vida: reflexões finais
Quando as Zapatistas afirmam “crecí
en la resistencia y rebeldía Zapatistas de
nuestras abuelas, mamás y hermanas
mayores Aquí nacimos. Aquí crecimos.
Aquí luchamos. Aquí vivimos,”
xxiii
colocam em evidência a dimensão da
práxis revolucionária que não se limita às
palavras de um discurso, de um livro, mas
sim tomando as armas e construindo a
autonomia na luta cotidiana em seus
territórios. O grito de “Já Basta!” é o início
do caminho, custe o que custe.
xxiv
Nessa
direção, as Zapatistas nos ensinam que são
mulheres que constroem sua teoria e sua
práxis política enraizadas em uma
epistemologia de nosotras que confere
sentido ao que definem como território,
como sociabilidade comunitária e à
tessitura dos acordos estabelecidos em
coletivo e em pares no âmbito da vida
cotidiana e na construção da autonomia
Zapatista. Essa epistemologia de nosotras
enraíza-se em um feminismo insurgente,
revolucionário, rebelde e autônomo das
Zapatistas e em uma dialética que se traduz
em lutar como se vive e viver como se luta.
A Lei Revolucionária de Mulheres,
de 1993, os documentos, os comunicados,
a assunção de cargos e os trabalhos
coletivos demonstram um processo
contínuo de construção da teoria e da
práxis revolucionária, rebelde e autônoma
das Zapatistas, que muito aporta à
compreensão de que a luta de mulheres
está vinculada a um projeto político amplo,
de caráter antipatriarcal e anticapitalista.
Nesse contexto, é fundamental
descolonizar o feminismo e fortalecer os
feminismos e as lutas das mulheres em
uma perspectiva popular, em que seja útil
para as lutas, como reiteradas vezes nos
ensinam as Zapatistas, mas também outras
mulheres que realizam sua luta no campo
popular.
Ao posicionar sua autonomia
epistêmica, as Zapatistas nos ensinam o
coração epistêmico de uma Teoria da
Selva, que abrange sua concepção política
da luta como mulheres indígenas. Em suas
palavras:
Sabemos que en ese bosque, en ese
monte, hay muchos árboles que son
diferentes. Y lo sabemos que hay, por
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ejemplo, ocote, pino, hay caoba, hay
cedro, hay bayalte y hay muchos
tipos de árboles. Pero también
sabemos que cada pino y cada ocote
no es igual, sino que cada uno es
diferente Bueno, aquí estamos
como un bosque o como un monte.
Todas somos mujeres. Pero lo
sabemos que hay de diferentes
colores, tamaños lenguas, culturas,
profesiones, pensamientos y formas
de lucha. Pero decimos que somos
mujeres y además que somos mujeres
que luchan. Entonces somos
diferentes, pero somos iguales.
Ser bosques de mulheres é romper
com os riscos de uma fragmentação de
nossas lutas; é respeitar-nos em nossas
diferencias, mas também ter unidade
política para combater o inimigo comum
que é o patriarcado e o capitalismo em
nossos territórios, seja no campo ou na
cidade. É evitar um enquadramento teórico
para silenciar ou medir nossa capacidade
de interpretação da realidade. Ao contrário,
é fundamental que se fortaleça um diálogo
de saberes em que aprendamos entre todas
dos legados das teorias e práxis
revolucionárias historicamente erigidas por
mulheres que entretecem cotidianamente
os caminhos da resistência.
O “Já Basta!” das Zapatistas foi um
grito em defesa da vida, da vida dos seus
filhos, de outros filhos, em defesa da vida
de ventres permanentemente ameaçados
pela GBI e a brutal violência sobre os
corpos das mulheres indígenas, na
permanente denúncia do feminicídio e do
desaparecimento cotidiano das mulheres,
uma chaga aberta para muitas famílias
mexicanas. Também uma reafirmação dos
corpos das mulheres como territórios de
resistência; na defesa de seus territórios
como espaços de vida, e na luta incessante
contra a desterritorialização, característica
da disputa territorial com o capital
transnacional. Nesse sentido, a
Comandanta Miriam me relata:
xxv
Entonces decidimos hacer el
encuentro para hacer florecer
semillas, para fortalecer a nosotras,
para mostrar a nosotras, las mujeres,
que tenemos el valor y sabemos
solitas, así como los hombres
también pueden solitos. Las más
jóvenes, pues, están mejor porque ya
saben leer, escribir. Nosotras no
sabíamos leer, escribir, hablamos
poco la cartilla, pero hoy ellas ya
saben y tienen otras tareas porque
ahora tienen que saber de la lucha de
las mujeres más alde Chiapas, de
México, en otros lados.
Nesse processo de fazer florescer
sementes vemos a transcendência teórica,
política e epistêmica de LUTAR PELA
VIDA, tarefa revolucionária das
Zapatistas. Finalizo este escrito com a
estética da resistência Zapatista (Barbosa,
2015) que, na noite do dia 08 de março de
2018, no marco do Encontro Internacional
Mulheres que Lutam, ascenderam uma luz
e nos deixaram a seguinte mensagem:
Esta pequeña luz es para ti. Llévala,
hermana y compañera. Cuando te
sientas sola. Cuando tengas miedo.
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Cuando sientas que es muy dura la
lucha, o sea, la vida. Préndela de
nuevo en tu corazón, en tu
pensamiento, en tus tripas. Y no la
quedes, compañera y hermana.
Llévala a las desaparecidas. Llévala a
las asesinadas. Llévala a las presas.
Llévala a las violadas. Llévala a las
golpeadas. Llévala a las acosadas.
Llévala a las violentadas de todas las
formas. Llévala a las migrantes.
Llévala a las explotadas. Llévala a las
muertas. Llévala y dile a todas y a
cada una de ellas que no está sola,
que vas a luchar por ella. Que vas a
luchar por la verdad y la justicia que
merece su dolor. Que vas a luchar
porque el dolor que carga no se
vuelva a repetir en otra mujer en
cualquier mundo. Llévala y
conviértela en rabia, en coraje, en
decisión. Llévala y júntala con otras
luces. Llévala y, tal vez, luego llegue
en tu pensamiento que no habrá ni
verdad, ni justicia, ni libertad en el
sistema capitalista patriarcal.
Entonces, tal vez, nos volvamos a ver
para prender fuego al sistema. Y
entonces, hermana y compañera, ese
día que será noche, tal vez podremos
decir contigo: bueno, pues, ahora
vamos a empezar a construir el
mundo que merecemos y
necesitamos.
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de-la-raza-y-la-racializacion-de-la-
sexualidad.pdf
i
O presente artigo apresenta dados de pesquisa
desenvolvida junto ao Grupo de Trabalho “Cuerpos
Territorios y Resistencias”, vinculado ao Conselho
Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).
ii
À exceção do México, Bolívia, Equador e Peru
que inserem, no currículo escolar, a história das
civilizações anteriores à Conquista.
iii
Em realidade, esse debate é aberto por todo o sul
global. Entretanto, delimitarei, para fins do presente
escrito, o posicionamento dos povos indígenas da
América Latina.
iv
Abya Yala é o nome pelo qual hoje se conhece a
extensão territorial do continente denominado
América e que literalmente significa terra em pleno
amadurecimento ou terra de sangue vital. Esse
nome foi dado pelos povos Kuna no Panamá e
Colômbia, e a nação Guna Yala do atual Panamá
antes da chegada de Cristóvão Colombo e dos
europeus (Hernández, 2004).
v
Algumas delas serão apresentadas ao longo do
escrito.
vi
Metáfora utilizada pelos Zapatistas em alusão à
Conquista.
vii
No dia 22 de dezembro de 1997, paramilitares
atacaram a comunidade de Acteal, no município de
San Pedro Chenalhó, Chiapas, e assassinaram 44
indígenas, entre eles, 04 mulheres grávidas, além de
crianças, que se encontravam em jejum e oração
pela paz na capela da comunidade.
viii
Principal instância de representação das
organizações e movimentos indígenas no México.
ix
Este depoimento, entre outros, foi registrado em
diário de campo em 2010 e 2011, quando participei
das atividades em memória do massacre, em
Acteal.
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x
Tercio compas são todas aquelas que se
especializam nas técnicas audiovisuais e que se
responsabilizam pela documentação e
sistematização de todas as atividades desenvolvidas
nos territórios Zapatistas ou outros espaços públicos
em que o Movimento Zapatista desempenhe alguma
participação.
xi
O estudo de Christlieb (2014) reúne o conjunto de
instruções, leis, acordos, medidas e regulamentos
Zapatistas.
xii
Publicado em 1993 no “El Despertador
Mexicano”, órgão informativo do EZLN (1994).
xiii
Os relatos podem ser vistos no documentário
“Las compañeras tienen grado”, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=inCcx2sbToo&
t=31s
xiv
Documentário “El derecho de ser feliz”.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=aWkKwdGKtx
E
xv
IV Declaração da Selva Lacadona.
xvi
Nem todos serão apresentados devido à extensão
do escrito.
xvii
O Popol Wuj é uma coletânea das antigas
tradições dos povos K’ich’e da Guatemala. Escrito
após a conquista espanhola, o Popol Wuj é parte
constitutiva da chamada historiografia colonial da
tradição maia e é considerado um legado do
pensamento indígena da América Central,
sobretudo pela transcrição da história oral que
preservou a memória dos fatos passados das
comunidades indígenas dessa região (Santos &
Valverde, 2003).
xviii
Recomendo o documentário acerca do Encontro
das Mulheres Zapatistas com as Mulheres do
Mundo e o documento EZLN (2013).
xix
Relato de uma Zapatista, membro da Junta de
Bom Governo, em diálogo realizado durante
Primeiro Encontro Internacional, Político, Artístico,
Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam.
xx
Vide Torres et. al. (2013); Espinosa-Miñoso et.
al. (2014).
xxi
Em diálogo realizado durante o Primeiro
Encontro Internacional, Político, Artístico,
Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam.
xxii
Em diálogo realizado com mulheres Zapatistas
durante o Primeiro Encontro Internacional, Político,
Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que
Lutam.
xxiii
Primeiro Encontro Internacional, Político,
Artístico, Esportivo e Cultural de Mulheres que
Lutam.
xxiv
Expressão muito utilizada nos pronunciamentos
das e dos Zapatistas.
xxv
Em diálogo realizado durante o Primeiro
Encontro Internacional, Político, Artístico,
Esportivo e Cultural de Mulheres que Lutam.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 30/05/2018
Aprovado em: 28/08/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 30th, 2018
Accepted on August 28th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: A autora foi responsável pela
elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e
revisão do conteúdo do artigo, e aprovação da versão final
publicada.
Author Contributions: The author was responsible for the
designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content
and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: A autora declarou não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Lia Pinheiro Barbosa
http://orcid.org/0000-0003-0727-9027
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Barbosa, L. P. (2018). Epistemologias de Nosotras,
Feminismos e Teoria da Selva na construção do
conhecimento: aportes das mulheres Zapatistas. Rev.
Bras. Educ. Camp., 3(4), 1128-1155. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1128
ABNT
BARBOSA, L. P. Epistemologias de Nosotras, Feminismos
e Teoria da Selva na construção do conhecimento:
aportes das mulheres Zapatistas. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 4, set./dez., p. 1128-1155,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1128