Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.v4e6225
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
e6225
10.20873/uft.rbec.v4e6225
2019
ISSN: 2525-4863
1
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Reflexões sobre a dimensão do cuidado na busca da justiça
curricular das escolas do campo do município de Humaitá
(AM)
Zilda Gláucia Elias Franco
1
1
Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Instituto de Educação, Agricultura e Ambiente (IEAA). Campus Vale do Rio
Madeira. Rua 29 de Agosto 786, Centro. Humaitá-AM. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: zildaglaucia@hotmail.com
RESUMO. A justiça curricular, com suas três dimensões -
conhecimento, convivência e cuidado -, define que o currículo
atenda a todas as necessidades dos envolvidos e os forme como
pessoas solidárias e corresponsáveis na construção de uma
sociedade mais justa. Assim sendo, o objetivo deste artigo,
recorte de uma pesquisa de doutorado, foi identificar, na
realidade das escolas do campo do município de Humaitá,
Amazonas, os limites e as possibilidades no atendimento às
crianças da região, tendo como parâmetro a dimensão do
cuidado na busca da justiça curricular. A pesquisa participativa,
utilizando-se de pesquisa de campo, análise documental,
entrevistas, momentos de reflexão-ação e de escuta sensível
(Barbier, 2007), com gestores, professores, merendeiras, pais e
alunos, em sua fase exploratória, resultou no levantamento das
dificuldades encontradas pelos participantes quanto ao
atendimento da Educação do Campo: calendário escolar,
transporte e merenda escolar. Os resultados apontam para a
grande distância entre o que está escrito e a prática curricular,
levando à injustiça curricular. Faz-se necessário, assim, refletir
sobre a concepção da justiça curricular, em especial a dimensão
do cuidado, pois um ambiente democrático e acolhedor das
diferenças ajuda a garantir e a consolidar a formação solidária e
modificar o processo de construção do conhecimento.
Palavras-chave: Justiça Curricular, Cuidado, Escolas do
Campo.
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Reflections on the dimension of care in the search for
curricular justice in the field schools of the municipality of
Humaitá (AM)
ABSTRACT. Curricular justice, with its three dimensions -
knowledge, coexistence and care -, defines that the curriculum
meets all the needs of those involved and educates them as
supportive and co-responsible people in the construction of a
more just society. Therefore, the objective of this paper, a cutoff
of a doctoral research, was to identify, in the reality of the field
schools of the municipality of Humaitá, Amazonas, the limits
and the possibilities in the care of the children of the region,
having as parameter the dimension of care in the pursuit of
curricular justice. Participatory research, using field research,
documentary analysis, interviews, moments of reflection-action
and sensitive listening (Barbier, 2007), with managers, teachers,
school cooks, parents and students, in their exploratory phase,
resulted in the survey of the difficulties encountered by the
participants regarding the attendance of Rural Education: school
calendar, transportation and school meals. The results point to
the great distance between what is written and the curricular
practice, leading to curricular injustice. It is therefore necessary
to reflect on the conception of curricular justice, especially the
dimension of care, since a democratic and welcoming
environment of differences helps to guarantee and consolidate
solidarity education and modify the process of knowledge
construction.
Keywords: Curricular Justice, Care, Rural Schools.
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Reflexiones sobre la dimensión del cuidado en la búsqueda
de la justicia curricular de las escuelas unitarias del
municipio de Humaitá (Amazonas, Brasil)
RESUMEN. La justicia curricular, con sus tres dimensiones -
conocimiento, convivencia y cuidado -, define que el currículo
atienda a todas las necesidades de los involucrados y los forme
como personas solidarias y corresponsables en la construcción
de una sociedad más equitativa. El objetivo de este artículo, el
cual es un recorte de una investigación llevada durante el
doctorado, fue identificar, en la realidad de las escuelas unitarias
del municipio de Humaitá, Amazonas, los límites y las
posibilidades en la atención a los niños de la región, teniendo
como parámetro la dimensión del cuidado en la búsqueda de la
igualdad curricular. En este estudio se utilizó una metodología
investigación participativa, llevada a cabo mediante el trabajo de
campo, el análisis documental, las entrevistas, los momentos de
reflexión-acción y de la escucha sensible (Barbier, 2007), con
gestores, profesores, monitores del comedor escolar, padres y
alumnos, en su fase exploratoria, resultó en el levantamiento de
las dificultades encontradas por los participantes en cuanto a la
atención de la Educación del Campo: calendario escolar,
transporte y merienda escolar. Los resultados apuntan a la gran
distancia entre lo que está escrito y la práctica curricular,
obteniendo como resultado lo que se denomina como injusticia
curricular. Este hecho, hace que sea necesario reflexionar sobre
la concepción de dicha justicia curricular, en especial la
dimensión del cuidado, debido a que un ambiente democrático y
acogedor de las diferencias ayuda a garantizar y consolidar la
formación solidaria y modificar el proceso de construcción del
proceso de enseñanza aprendizaje.
Palabras clave: Justicia Curricular, Cuidado, Escuelas Rurales.
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Introdução
Este texto traz um recorte do
resultado da pesquisa de Doutorado
intitulada Um olhar sobre as escolas
localizadas no campo do Município de
Humaitá (Sul do Amazonas): em busca da
justiça curricular (Franco, 2018), que se
insere no âmbito do Grupo de Educação e
Pesquisa em Justiça Curricular
(GEPEJUC), do Programa de Pós-
Graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), que
desenvolve, no momento, uma
investigação sob o título A justiça
curricular no século XXI, as políticas e os
sujeitos do currículo.
A pesquisa apresentada aqui pretende
identificar, na realidade das escolas do
campo do município de Humaitá, os seus
limites e as suas possibilidades no
atendimento às crianças da região, tendo
como parâmetro a dimensão do cuidado na
busca da justiça curricular. A justiça
curricular define que o currículo exercido
atenda a todas as necessidades dos
envolvidos e os forme como pessoas
humanizadas (Freire, 1983). Se o processo
educativo não contempla as necessidades
dos seus sujeitos, o currículo não cumpre a
sua função social. Um currículo escolar em
busca da justiça amplamente compreendida
não poderá prescindir de políticas públicas
pautadas por direitos e da articulação
dessas políticas com práticas curriculares.
Além disso, a concepção de justiça
curricular entende a escola como uma
instituição cujos objetivos vão além da
instrução. O seu compromisso com a
construção da dignidade humana, com o
cuidado, com a proteção dos sujeitos de
forma coletiva é, portanto, fundamental.
O cuidado é compreendido como o
zelo que se tem para garantir as condições
para que cada educando e educador
disponha de possibilidades para construir a
sua formação. Para Severino (2012, p. 81),
“a educação se expressa como cuidado do
sujeito em sua subjetividade”. Sem ele não
como obter/construir/proporcionar a
formação dos alunos e dos professores que
a escola pode e deve oferecer. Do cuidado
da escola com todos os sujeitos
participantes da comunidade, entendida
como ausência de esquecimento, de
reconhecimento, a preocupação e a
solicitude pelos outros, ética em benefício
de quem está em desvantagem (Estêvão,
2004).
Este estudo optou pela abordagem
metodológica qualitativa. A investigação
qualitativa “é rica em dados descritos, é
aberta e flexível e foca a realidade de
forma complexa e contextualizada”.
(Lüdke & André, 1986, p. 18). Para a
construção de dados, utilizou-se a pesquisa
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participativa e a pesquisa exploratória com
o objetivo de “descobrir o campo de
pesquisa, os interessados e suas
expectativas e estabelecer um primeiro
levantamento (ou diagnóstico) da situação,
dos problemas prioritários e de eventuais
ações”. (Thiollent, 2011, p. 56). As
atividades foram desenvolvidas com a
coordenação da Educação do Campo da
Secretaria Municipal de Educação do
município de Humaitá (AM), com
gestores, professores, merendeiras, pais,
alunos, além de observações, de escutas
realizadas em campo e de momentos de
reflexão-ação (11 encontros na área
urbana) que caracterizaram a investigação,
juntamente à fundamentação teórica.
Assim, este texto visa trazer algumas
reflexões acerca da dimensão do cuidado,
um dos elementos da justiça curricular,
com as escolas localizadas no campo no
município de Humaitá. Para tanto, ele está
dividido em quatro tópicos. No primeiro,
“A justiça curricular”, são abordadas as
definições da justiça curricular e suas
dimensões. No segundo, O cenário da
educação nas escolas do campo no
Município de Humaitá (AM)”, apresentam-
se alguns dados recolhidos. O terceiro
item, o “Atendimento às necessidades da
região”, destaca os dados levantados pela
pesquisa com base na investigação; e, por
fim, as “Considerações finais” referentes à
temática.
A justiça curricular
No decorrer do século XX, ocorreu a
Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Nações Unidas (1948), e a
tese positivista passou a sofrer críticas.
Nesse contexto, no Brasil, destacam-se as
ideias de Miguel Reale, o qual acredita que
a liberdade e a solidariedade são valores
essenciais que precisam existir para que se
desfrute da justiça.
Assim, a humanidade, em sua
história recente, escolheu a escolarização
como forma coletiva institucional de
preparar as suas gerações futuras. Cada
dia, com mais complexidade, os sistemas
escolares de todo o mundo demandam
reflexões e ações que busquem a formação
de uma população constantemente em
crescimento e em movimento. Nesse
sentido, sem desconsiderar os avanços
democráticos em relação à educação
escolar do início do século XXI, expressos
pela busca da universalização, pelas
políticas afirmativas e de promoção de
igualdades, constata-se que ainda se tem
muito o que fazer na direção da construção
de um currículo que contemple a justiça
social e a igualdade de direitos e de
deveres.
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“Preparar as gerações futuras” não é
uma expressão sem intencionalidade.
Valores diversos norteiam essa ação da
formação a depender dos interesses em
jogo, o que quer dizer que essa discussão
não se faz sem debates explicitadores
dessas intencionalidades, pois “a educação
é processo social, atuando através das
relações sociais, nas quais o ‘quanto’ não
pode ser separado do ‘quê’”. (Connell,
1995, p. 13). De acordo com o
pesquisador, é preciso encontrar diferentes
respostas educativas à diversidade intensa
da sociedade e das escolas, de modo a
entender que há um vínculo inevitável
entre distribuição e conteúdo e que a
justiça distributiva precisa do conceito da
justiça curricular, a fim de afirmar a
equidade esperada. O currículo, portanto,
deve ser modificado, como propósito de
refletir as formas pelas quais a diferença é
produzida por relações sociais.
Para os partidários de uma educação
escolar democrática e solidária, que vise a
formação de gerações futuras cidadãs,
trata-se de buscar formas de garantir uma
educação escolar de qualidade social por
meio de um currículo pautado no conceito
e na prática da justiça curricular. Esta, para
ser efetivada, carece de avançar na seleção
e na organização do conhecimento do
currículo por meio de uma construção nas
bases sociais e práticas com os quais esteja
envolvida. Nesse processo, três princípios
devem ser observados: 1 interesses dos
grupos com menor vantagem; 2 -
participação e escolarização comum; e 3 -
produção de igualdade (Connell, 1995). “O
critério da justiça curricular significa a
tendência de uma estratégia educacional
para produzir mais igualdade no conjunto
global das relações sociais às quais o
sistema educacional está vinculado”.
(Connell, 1995, p. 31).
Dessa forma, a justiça curricular é
um conceito e uma prática cotidiana
urgente e necessária a ser buscada. Torres
Santomé afirma que:
A justiça curricular é o resultado da
análise do currículo que é elaborado,
colocado em ação, avaliado e
investigado levando em consideração
o grau em que tudo aquilo que é
decidido e feito em sala de aula
respeita e atende às necessidades e
urgências de todos os grupos sociais;
lhes ajuda a ver, analisar,
compreender e julgar a si próprios
como pessoas éticas, solidárias,
colaborativas e corresponsáveis por
um projeto de intervenção
sociopolítica mais amplo destinado a
construir um mundo mais humano,
justo e democrático. (Torres
Santomé, 2013, p. 9).
O currículo escolar é comprometido
com a sociedade que se deseja e se busca, e
nunca é neutro. A história do currículo
mostra que ele sempre esteve vinculado a
interesses e a formas de organização da
sociedade (Goodson, 1997; Apple, 1989).
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Ações pautadas pelo conceito justiça
curricular são intencionadas pelas várias
formas de superação de desigualdades; em
outras palavras, são ações que buscam a
justiça e a igualdade - amplamente
consideradas - por meio do currículo
escolar. Nesse sentido, toma-se o currículo
escolar como elemento importante a ser
considerado na promoção social de alunos
e de suas famílias.
A população brasileira vive sob um
estado que considera legalmente que
crianças e adolescentes são seres
portadores de direitos. Esse patamar o
dos direitos legais é o ponto de partida
para a busca de ações e de condições que
garantam a efetividade da igualdade. Trata-
se, portanto, de considerar a necessidade
de construir um currículo sempre revisto e
pensado, inserido criticamente na moldura
das determinações sociais, e que esteja
sempre pronto a repensar o sentido das
ações desenvolvidas na e pela escola. A
sua direção é a formação de gerações
futuras “éticas, solidárias, colaborativas e
corresponsáveis” na construção de um
mundo mais humano e democrático. Para
isso, na qualidade de seres em formação, as
crianças e os adolescentes devem ter suas
necessidades amplamente supridas e uma
formação que paute esses valores.
Por meio dos estudos realizados pelo
GEPEJUC, compreende-se que o caminho
da construção do currículo para os sujeitos
do campo deve buscar as indagações da
justiça nas três dimensões da justiça
curricular: 1) A dimensão do conhecimento
- que conhecimento interessa? A quem
interessa? Interessa o conhecimento que
vai fazer diferença para o aluno, para o
professor, um conhecimento que construa a
vida digna em todas as dimensões. É
preciso questionar sempre como ele será
construído para que proporcione
aprendizagem para o educando. 2) A
dimensão do cuidado - o cuidado na
educação e na justiça curricular é
fundamental, os seres humanos precisam
ser cuidados. 3) A dimensão da
convivência - uma escola tem de zelar para
uma convivência democrática, por uma
convivência não violenta, que não imprima
a competitividade, que valorize a
construção coletiva. Desse modo, busca-se
o currículo que almeje a igualdade das
dimensões apresentadas para que os
sujeitos possam adquirir o conhecimento
para compreensão do mundo e de si
mesmos, do cuidado em todas as esferas do
processo pedagógico. O intuito é
possibilitar bem-estar nas suas áreas
afetivas, cognitivas e físicas e de
convivência com seus pares,
proporcionada, de forma respeitosa, na
escola (Ponce & Neri, 2015).
O currículo escolar implica também
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a participação democrática e dos direitos
humanos existentes dentro da comunidade
escolar. Esse olhar expande-se quando
efetivado com ações de cuidado, entendida
como ausência de esquecimento, de
reconhecimento, pela preocupação e o
desvelo pelos outros, pela ética em
benfeitoria de quem está em desvantagem
(Estevão, 2004).
A legislação brasileira, assim como a
concepção da justiça curricular, entende a
escola como uma instituição cujos
objetivos vão além da instrução. O seu
compromisso com a construção da
dignidade humana, com o cuidado, com a
proteção dos sujeitos, é, portanto,
fundamental. A justiça curricular propõe a
reflexão cuidadosa sobre os desafios, de
modo que possam ser superados,
sugerindo, inclusive, que alunos e
professores possam interagir, sentir-se
bem, relacionar-se e aprender com essas
interações. Significa proporcionar o
intercâmbio de ideias, envolver os
educandos em aprendizados
argumentativos em relação aos seus
direitos e aos seus deveres, além de “...
desenvolver atitudes e padrões de
pensamento construtivos; fazer escolhas,
realizar projetos, comunicar suas ações,
participar, dentro das possibilidades, das
decisões que afetam sua vida .... (Haddad,
2006, p. 532).
De acordo com os estudos realizados
sobre o histórico da Educação do Campo,
identifica-se que, desde seu início, as
escolas do campo menosprezavam as
especificidades sociais, culturais,
econômicas, políticas e ambientais do
mundo camponês. Atualmente, a
organização do currículo das escolas do
campo muitas vezes ainda nega o campo
como espaço de produção cultural,
econômica e política, entusiasmado pelo
capitalismo que percebe os territórios
rurais como espaço de atraso, de
subdesenvolvimento e de improdutividade,
desrespeitando as Diretrizes Operacionais
para a Educação Básica nas Escolas do
Campo (Resolução CNE/CEB 1, de 3
de abril de 2002). Essas Diretrizes visam
um currículo que atenda às suas demandas,
as quais se harmonizam com o conceito de
justiça curricular e suas dimensões
(Franco, 2018).
O cenário da educação nas escolas do
campo no Município de Humaitá (AM)
O Amazonas, pela peculiaridade e
pela configuração geográfica, suscita
várias questões relacionadas às políticas e
às práticas curriculares. Humaitá é um
típico município ribeirinho do sul do
Estado do Amazonas, conhecido como “A
princesa do Madeira”, por ter se tornado o
centro mais importante do alto do Madeira,
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criado no contexto de colonização e de
interesse econômico pela Amazônia
(período áureo da borracha década de
1890). O município está localizado à
margem esquerda do Rio Madeira
(segunda via de transporte mais importante
da Amazônia, atrás apenas do Rio
Amazonas), ao sul do estado do
Amazonas, aproximadamente 697 km² da
capital Manaus. Sua população é de 53.383
habitantes (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística [IBGE], 2017), sua
área é de 33.071.667 km², um dos maiores
em área territorial do estado.
A condição geográfica de Humaitá
é marcada pela dinâmica social e
econômica de fronteira. A população
residente no interior do município está
distribuída em pequenas comunidades que
podem ser agrupadas em “polos” da área
de terra firme (estradas) e da várzea do Rio
Madeira. São cerca de 15 polos, cada um
agrupando um certo número de
comunidades e famílias. Os fluxos de
pessoas e mercadorias entre a sede
municipal e as comunidades ribeirinhas,
bem como a comunicação, ocorrem quase
sempre por via fluvial. O acesso às
comunidades da terra firme e aquelas mais
próximas da sede municipal geralmente dá-
se por via terrestre.
A Secretaria de Educação do
Município de Humai (SEMED) é
organizada por 3 coordenações
pedagógicas: Coordenação da Área
Urbana, Coordenação do Campo e
Coordenação Indígena, estas agregam
outros setores que dão suporte ao seu
funcionamento. A partir da análise dos
dados disponibilizados pela Coordenação
do Campo (que envolve escolas ribeirinhas
e da estrada) SEMED-Humaitá nos anos de
2015/2016/2017, identificou-se que as 58
escolas localizadas no campo são
distribuídas em polos, organizados de
acordo com a distribuição geográfica das
escolas. São 10 polos que atendem a
diversas comunidades. Segundo Franco
(2018, p. 30):
Essa divisão [envolve escolas
ribeirinhas e da estrada] ocorre em
função da logística de acesso. As
escolas da estrada têm chegada mais
fácil se compararmos às escolas da
área ribeirinha. Entretanto, algumas
escolas da estrada têm grandes
dificuldades na estação chuvosa,
conhecida como ‘inverno
amazônico’, período caracterizado
por grande volume de chuvas, o que
dificulta a entrada às escolas devido
às estradas não serem asfaltadas, e,
assim, educadores e educandos
enfrentam atoleiros. Na época do
período seco (verão amazônico), o
acesso é viável e a SEMED consegue
atender mais facilmente a essas
demandas. As escolas localizadas na
área ribeirinha apresentam
características bem diversas.
Algumas estão localizadas ao longo
do Rio Madeira e em igarapés
próximos, o que possibilita o
ingresso durante todo o ano letivo.
Essas escolas são atendidas com
frequência no abastecimento de
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produtos para a merenda escolar e
material de consumo diversos. Outras
escolas, no entanto, localizam-se
dentro de pequenos rios, lagos e
igarapés dificultando imensamente o
acesso durante o período de vazante
dos rios, pois, para se chegar a
algumas escolas, é necessário viajar
de lancha durante dias. Essa
dificuldade reflete no atendimento
direto das demandas dessas escolas.
Em 2015, eram 68 escolas, com
3.410 alunos matriculados, 139 professores
e 14 gestores organizados em quatro polos.
Em 2016, foram matriculados 3.300 alunos
e havia 116 professores e 14 gestores, os
estudantes encontravam-se divididos em
10 polos e 60 escolas. Em 2017, foram 58
escolas divididas em 10 polos. Cada polo
possuía um supervisor, totalizando 172
professores, 14 gestores, 103 assistentes de
serviços gerais (ASG) e 3.221 estudantes
atendidos. Dos 186 professores/gestores,
121 possuíam contratos temporários,
estabelecidos por meio de processo
seletivo e 65 eram efetivos.
Das 58 escolas, em 2017, 13
funcionavam na modalidade de ensino
seriado, uma em tempo integral e as
demais, 45, eram multisseriadas. Dentre as
escolas, apenas 14 tinham gestores, e, onde
não havia gestor, um professor ficava
responsável pela sua demanda.
A participação da coordenação do
campo nas atividades sempre foi efetiva.
Com relação aos professores e aos
gestores, ocorreu uma oscilação no
envolvimento nas atividades a cada ano.
Em 2015, na pesquisa exploratória, em um
universo de 153 sujeitos, compareceram
aos encontros 43% dos professores e dos
gestores. Em 2016, 70% dos professores e
dos gestores estavam presentes nos estudos
e nas discussões, de um universo de 186
profissionais da educação. No último ano,
2017, dos 172 professores, 90%
participaram das atividades. Foram
visitadas seis escolas dos Polos I, II, III, V,
VI e X para que se efetivasse o contato
direto com os estudantes, merendeiras e
pais.
A partir do que foi vivenciado por
meio da pesquisa participativa, utilizando-
se de pesquisa de campo, análise
documental, entrevistas, momentos de
reflexão-ação e da escuta sensível (Barbier,
2007), com os envolvidos, destacam-se,
neste texto, evidências que conduzem a
pensar que o currículo das escolas do
campo carece de atendimento específico
relacionado às necessidades da região.
Atendimento às necessidades da região
Os registros que serão apresentados a
seguir estão relacionados às dificuldades
encontradas pelos grupos de professores
juntamente à Coordenação do Campo
(SEMED) do município de Humaitá (AM)
quanto ao atendimento da Educação do
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Campo: calendário escolar, transporte e
merenda escolar.
A pesquisa revelou que o calendário
escolar que conduziu as escolas
localizadas no campo do município até o
ano de 2016 era oriundo da área urbana,
construído com base no modelo da
Secretária Estadual de Educação e apenas
pequenas mudanças aconteciam para
atender ao município (áreas urbana e
rural).
O suporte para que, no âmbito
municipal, sejam realizadas as adaptações
necessárias para a articulação com os
tempos do campo está previsto na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) N
o
9.394, de 20 de dezembro de
1996, no art. 28: “Na oferta de educação
básica para a população rural, os sistemas
de ensino promoverão as adaptações
necessárias à sua adequação às
peculiaridades da vida rural e de cada
região, especialmente”, no inciso II, a
“organização escolar própria, incluindo
adequação do calendário escolar às fases
do ciclo agrícola e às condições
climáticas”. A mesma preocupação está
indicada nas Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do Campo -
Resolução CNE/CEB Nº 1, de 3 de abril de
2002:
Art. É de responsabilidade dos
respectivos sistemas de ensino,
através de seus órgãos normativos,
regulamentar as estratégias
específicas de atendimento escolar do
campo e a flexibilização da
organização do calendário escolar,
salvaguardando, nos diversos
espaços pedagógicos e tempos de
aprendizagem, os princípios da
política de igualdade. (Resolução
1, 2002, p. 32, ênfase dada).
A escola do campo atende estudantes
que vivem da terra, que alternam os
tempos de plantar e colher, e o tempo
escolar, em muitos momentos, choca-se
com o tempo do trabalho. As palavras
utilizadas referem-se à adaptação, à
flexibilização, à adequação do calendário,
porém isso reporta novamente à questão do
“ajuste dos serviços” da área urbana ao
campo. Entende-se que a forma mais justa
seria a criação de um calendário específico
para as escolas do campo, que pondere e
incorpore os diferentes sujeitos do campo e
suas necessidades ao trabalho que realizam
nesses espaços.
As comunidades ribeirinhas e da
estrada, no município de Humaitá, vivem
da caça, da pesca, da extração de minérios,
do plantio. Todas essas atividades são
realizadas pelos camponeses e seus
familiares, envolvendo, na maioria dos
casos, os filhos. Muitos deixam de ir à
escola em determinadas situações para
ajudar os pais. Assim,
... as formas de vinculação da
infância à agricultura familiar exigem
outras formas específicas de
organização da escola. Não podemos
transferir formas de organização da
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escola da cidade que partem de uma
forma de viver a infância e a
adolescência para as formas de viver
a infância e a adolescência no campo.
Precisamos das pesquisas sobre como
se inserem a infância e a
adolescência na organização
camponesa, na agricultura familiar
para articular a organização da
escola, a organização dos seus
tempos, aos tempos da infância, as
formas de viver o tempo na própria
infância. uma lógica temporal na
produção camponesa que não é a
lógica da indústria, nem da cidade. É
a lógica da terra! É a lógica do tempo
da natureza! É saber esperar e
reinventar formas de intervir. A
primeira coisa que o agricultor faz é
olhar para o céu e para a terra. Esse é
seu relógio! Plantar, não plantar;
semear, não semear dependendo do
tempo do céu e do tempo da terra.
Essa lógica do tempo da natureza a
qual ele sabiamente tem que se
adaptar e sobre a qual terá que saber
intervir traz coisas sérias para os
tempos de escola. (Arroyo, 2006, p.
114-115).
Essas questões são perceptíveis na
fala dos sujeitos envolvidos nas escolas: “A
dificuldade também das escolas
ribeirinhas é que, quando chega a época
do garimpo, tem aquela evasão... nessa
época agora (agosto setembro), os
alunos saem e vão embora(Educadora B,
2016). Às vezes eu falto na escola porque
tenho que ajudar a família na roça
(Estudante B, 7º ano, 2016).
Os textos mostram com clareza a
necessidade de articulação entre a
atividade de produção e o calendário
escolar, de forma que o currículo atenda às
necessidades das comunidades ribeirinhas
e às manifestações relevantes de sua
cultura, beneficiando o processo de
construção da identidade do campo e do
conhecimento.
A relação escola/calendário escolar
também é alterada por conta das
características do clima da região, do
transporte e do contrato dos professores.
Os períodos de chuva intensa ou seca
mudam o trajeto escolar e até
impossibilitam o acesso à escola,
resultando em faltas e o não cumprimento
dos dias letivos como prevê a LDB N
o
9.394/1996 (Art. 24), podendo adequar o
calendário às peculiaridades locais,
inclusive climáticas e econômicas, desde
que cumpram a carga horária.
Em muitas escolas do município, os
dias letivos são comprometidos em função
da falta de combustível que abastece os
motores dos transportes fluviais. A
contratação, sem concurso público, de 65%
dos professores (no ano de 2017) também
inviabiliza o cumprimento dos dias letivos
que ficam atrelados aos meses de março a
novembro de cada ano. O calendário
escolar precisa ser cumprido nesse espaço
de tempo do contrato dos professores e
demais funcionários.
Após um ano de atividades com os
participantes da pesquisa, foram
verificadas as possibilidades de criação de
um calendário para as escolas do campo do
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município de Humaitá. Essa motivação
partiu das reflexões realizadas com o
grupo. Identificados os feriados, separados
os dias necessários para o deslocamento
dos professores até a cidade para
receberem o pagamento e “fazerem o
rancho”, reservados o dia para as
atividades de formação e os demais itens
que envolvem a elaboração do calendário.
Todavia, o elemento mais significativo era
o tempo da família, da colheita, da
extração, do plantio e da colheita, do
trabalho do camponês.
O fato de a contratação dos
professores ocorrer sempre em fevereiro ou
março atrasa o início das atividades, porém
os dias registrados no calendário
permaneceram, e o cumprimento do
calendário escolar choca-se com questões
administrativas.
As descrições podem ser ressaltadas
pela leitura dos trechos: se você pega o
calendário, que é uma cópia da SEDUC, já
está aqui o erro, você coloca que as aulas
acabam dia 30 de novembro, mas antes
disso já tem um outro dizendo que as aulas
têm que terminar até o dia ... 14
(Educador F, 2017).
uma visão esclarecida por parte
dos educadores no que diz respeito à
temática. Eles têm consciência de que a
questão dos dias letivos que não são
cumpridos impede o desenvolvimento das
atividades, sofrem em perceber que os
estudantes são prejudicados e fazem
tentativas para superar essa injustiça.
Entretanto, o não cumprimento das
políticas públicas impede que essas
tentativas se efetivem com sucesso.
Outra temática em destaque é a
relacionada ao transporte escolar.
Estudantes, funcionários e educadores
utilizam o transporte escolar, que é
mantido pela Prefeitura do município e
terceirizado por pessoas da região.
A existência de um número muito
extenso de escolas, associada à
dispersão de localização e ao
atendimento reduzido do número de
estudantes por instituição, tem levado
os gestores públicos a adotar, como
estratégia mais frequente, a política
de nucleação dessas escolas
vinculada ao transporte escolar,
resultando no fechamento daquelas
situadas nas pequenas comunidades
rurais e na transferência dos
estudantes para as localizadas em
comunidades rurais mais populosas
(sentido campo-campo) ou para a
sede dos municípios (sentido campo-
cidade). (Hage, 2011, p. 103).
A política de nucleação das escolas,
associada à política de transporte escolar,
gerou, em muitos lugares, estímulo ao
fechamento das pequenas escolas, pois
entende-se que os estudantes poderiam ser
agrupados em escolas maiores (Hage,
2011; Munarim, 2006). No entanto, no que
diz respeito à escola estar o mais próximo
possível da residência do aluno, é um
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direito assegurado na Lei N
o
8.069, de 13
de julho de 1990, inciso V, Art. 53, e
reforçado no Plano Municipal de Educação
(PME) de Humaitá - Lei 688/2015 - na
estratégia 9.2.9:
Reverter o fechamento das escolas do
campo, retomando a ampliação da
oferta educativa de qualidade para
adolescentes, jovens e adultos,
próximas aos locais de moradia, bem
como assegurar a permanência das
escolas do campo com recursos
financeiros, humanos e valorização
da identidade do campo. (Lei 688,
2015, p. 71).
A nucleação das escolas pode ser
identificada pela distribuição em polos.
Um exemplo é o trajeto que as crianças
fazem para chegar até a balsa escola, que
leva em torno de 4 horas de barco,
dependendo da estação. Muitas escolas
foram extintas no decorrer dos anos em
função de enchentes e do número de
alunos. Estudantes deslocam-se da área
rural e percorrem em torno de 45 km até a
cidade para cursar o Ensino Fundamental e
o Ensino Médio. A logística enfrentada
para o deslocamento, a distribuição da
frota e do combustível é bastante
emaranhada, e, em decorrência disso, os
estudantes, muitas vezes, são submetidos a
longas horas de transporte cansativo e,
algumas vezes, impróprio e sem coletes de
proteção. Eles são transportados em
ônibus, micro-ônibus, kombis, barcos,
lanchas, rabetas, canoas, motos ou, até
mesmo, vão de bicicleta, atravessando, por
exemplo, igarapés.
Horários diferenciados de entrada e
saída é uma das maneiras encontradas
pelas escolas (segundo o relato dos
gestores) para ajudar nesse tempo/horário
deslocamento, na tentativa de favorecer a
capacidade física e o aprendizado dos
estudantes. Em algumas escolas, o início
das aulas começa mais tarde para que os
estudantes possam dormir um pouco mais
e diminui-se o tempo do intervalo para que
saiam mais cedo. Essa estratégia não pode
ser utilizada em todas as escolas devido ao
fato de os transportadores terem de buscar
alunos no contraturno e a viagem de volta
pode se estender até a noite, provocando
riscos maiores durante o percurso.
A partir do ano de 2017, identificou-
se que a pontualidade na entrega do
combustível para os transportadores e para
as comunidades melhorou. Os contratos
dos transportadores e o recebimento dos
pagamentos foram regularizados,
coincidindo com o pagamento dos
educadores, evitando-se, dessa forma, que
a escola estivesse pronta para retomar as
atividades e o transportador ainda se
encontrasse na cidade aguardando o
pagamento transportadores e educadores
vão e voltam juntos. As demais demandas
ainda aguardam providências. As empresas
ainda ganham a licitação e os pequenos
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transportadores, que residem nas
comunidades, em muitos casos, ficam
subordinados a elas. Um novo caminho
seria a definição de políticas que
regulassem o transporte escolar a partir de
critérios que priorizassem os serviços da
própria comunidade onde as escolas estão
inseridas.
Seria menos exaustivo, física e
psicologicamente, para os alunos
estudarem nas escolas do campo
localizadas próximas às suas residências,
de modo a respeitar suas particularidades,
do que percorrerem longos trechos, pelos
rios e pelas estradas, desde a madrugada,
em diferentes tipos de transportes (muitas
vezes em um mesmo trajeto: barco, a ),
cansados, em veículos que, em muitos
casos, não oferecem a segurança e o
cuidado necessários para seu bem-estar,
fragilizando o processo educativo e o
currículo escolar.
A merenda escolar também é fator
de destaque. A demanda que a envolve se
relaciona à qualidade/quantidade dos
alimentos e ao cardápio oferecidos aos
estudantes das escolas localizadas no
campo. De onde vem os alimentos que
chegam até as escolas do campo? Como
eles são adquiridos?
Em 2016, o setor da merenda escolar
foi composto por um coordenador de
administração escolar, três nutricionistas
(responsáveis técnicas - efetivas), uma
assistente administrativa (efetiva), um
motorista (área urbana) e um assistente de
serviços gerais. A equipe é responsável
pela distribuição da merenda para as
escolas do município. Uma das
nutricionistas explica que o Cardápio
Escolar do Ensino Fundamental Zona
Rural e Indígena depende do orçamento
que provém de recurso enviado pelo
Programa Nacional de Alimentação
Escolar (PNAE)
i
, mais o recurso da
Prefeitura. Justifica-se, no entanto, que o
trabalho é realizado com previsão do
orçamento e que o recurso que chega não é
suficiente para atender a aproximadamente
9 mil alunos.
O setor deve adquirir os alimentos de
acordo com o cardápio do programa de
alimentação escolar, elaborados por
nutricionistas capacitados, com a
participação do Conselho de Alimentação
Escolar (CAE) e respeitando os hábitos
alimentares de cada localidade, sua
capacidade agrícola e a preferência por
produtos básicos e naturais (Oliveira,
Santos, & Oliveira, 2017).
As alocuções dos educadores,
merendeiras e alunos evidenciam alguns
apontamentos: todas as verduras que vão
para a merenda na cidade, a maioria sai
da comunidade. Vem salsicha, conserva, já
veio frango, charque, mas tiraram. Não
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tem fruta, nada (Educadora E, 2016).
Esse excerto refere-se ao fato de que os
alimentos que são produzidos nas próprias
comunidades são vendidos para os
comerciantes na área urbana e não chegam
até a cozinha da escola. A nutricionista
explica sobre os alimentos produzidos pela
comunidade: para que os agricultores
familiares possam entregar direto na
escola, eles precisam estar registrados e
participar da chamada pública”. Ressalta,
ainda, que, em 2017, seria melhor
divulgado o edital de licitação da
alimentação escolar e que havia uma
nutricionista, junto ao Instituto de
Desenvolvimento Agropecuário e Florestal
Sustentável do Estado do Amazonas
(IDAM), fazendo esse trabalho de
divulgação nas comunidades.
O diálogo entre o setor da merenda e
as escolas é conflituoso. Os educadores
vão em busca de uma merenda saudável e
o setor não tem como atender à demanda,
de acordo com a nutricionista.
dificuldade na distribuição: no quantitativo
de pessoas que atendem ao setor e na
distribuição dos recursos para que se
forneçam os alimentos necessários e de
que os estudantes gostam.
Pelas discussões ocorridas durante a
pesquisa e por meio do caminho realizado
na pesquisa exploratória
ii
, avalia-se que os
alimentos podem levar de 7 a 11 dias para
chegar nas comunidades, devido ao trajeto
percorrido ao longo do rio. Entende-se que
a alimentação provoca a redução na
atividade física, diminuição na capacidade
de aprendizagem, baixa resistência às
infecções e maior suscetibilidade a
doenças. Os horários e a alimentação
recebida nas escolas do campo do
município podem promover essas
dificuldades.
Este estudo entende que a articulação
de projetos de educação ambiental e a
produção de hortaliças, pensada em
conjunto pela Secretaria de Educação e as
escolas, além dos grupos de pesquisa das
universidades do município e demais
secretarias e organizações sociais,
poderiam gerar a contribuição alimentar
proveniente da própria comunidade. A Lei
11.947, de 16 de junho de 2009, no Art.
14, institui, no mínimo, 30% dos recursos
repassados pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), no
setor do Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE), os quais
deverão ser utilizados na aquisição de
gêneros alimentícios diretamente da
agricultura familiar. Esse é um recurso que
ainda não foi explorado e pode ser
encaminhado pela SEMED e comunidades,
de forma a contribuir para garantir o direito
das comunidades tradicionais de acesso
regular e permanente a alimentos de
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qualidade, em quantidade suficiente, que
respeitam a diversidade cultural.
O cuidado para que a merenda
escolar adequada seja oferecida nas escolas
pode contribuir expressivamente para uma
vida saudável e um rendimento escolar
satisfatório. As políticas públicas e o
currículo devem corroborar para que os
atores envolvidos merendeiras, alunos,
docentes e todo o processo de
distribuição contribuam para que esse
objetivo seja atendido.
O calendário, o transporte e a
merenda escolar são quesitos que se
entrelaçam com o trabalho desenvolvido
no “chão da escola” no município de
Humaitá. São condições problematizadas e
experienciadas por aqueles que fazem parte
do currículo escolar do campo. Não se
entende, neste texto, que a qualidade da
escola seja inferiorizada por esse contexto,
mas que esses pontos, se trabalhados,
favorecerão o currículo, os tempos
humanos e sua existência.
Considerações finais
É preciso pensar o currículo como
uma vasta rede de significações, que
envolve a escola e promove um espaço de
construções coletivas. O currículo que não
assegura o cumprimento dos direitos irá
agravar a desigualdade e a injustiça. As
situações apresentadas neste texto, com o
objetivo de identificar, na realidade das
escolas do campo do município de
Humaitá, os seus limites e as suas
possibilidades no atendimento às crianças
da região tendo como parâmetro a
dimensão do cuidado na busca da justiça
curricular, podem produzir reflexões
significativas para olhar o currículo escolar
como um caminho a ser percorrido nas
práticas de todos os atores envolvidos no
processo de aprendizagem escolar, de vida,
na possibilidade de uma escola que
assegure o cuidado com o ser humano
como uma dimensão da escola justa.
Na tentativa de contribuir com a
justiça curricular, urgente, que minimize as
inconsistências e as incoerências das
políticas públicas nas escolas localizadas
no campo do muncípio de Humaitá, faz-se
necessário refletir sobre a concepção da
justiça curricular, em especial a dimensão
do cuidado, pois um ambiente democrático
e acolhedor das diferenças ajuda a garantir
e a consolidar a formação coletiva e
solidária.
O cuidado com a justiça curricular
deve levar em consideração as condições
em que as escolas trabalham, os recursos
materiais recebidos, a formação e os
profissionais envolvidos, as
particularidades das crianças e dos jovens
que são atendidos, o contexto
socioeconômico em que vivem, para que
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lhes seja possibilitado força para lutar por
seus direitos de forma digna, protestando,
se mobilizando para que possam melhorar
sua história.
A dimensão do cuidado é
imprescindível na construção das ações
descritas anteriormente; no entanto, o que
se observa na realidade vivenciada nas
escolas localizadas no interior do Sul do
Amazonas, no município de Humaitá, é
que, entre o que está escrito e a prática
curricular, existe uma distância muito
grande, a injustiça curricular. Existem
fatores problemáticos que impedem a
concretização das práticas e da justiça
curricular por meio desse olhar. Faz-se
necessário refletir e conceber o currículo
que privilegie o trabalho dos professores e
educandos, pelo respeito aos seus “tempos
humanos, mentais, culturais, éticos,
socializadores, identitários, corpóreos ...
especificidades de socialização, de
aprendizagens, de formação: infâncias,
pré-adolescência, adolescência, juventude,
vida adulta”. (Arroyo, 2010, p. 12).
O planejamento do poder público, o
respeito aos direitos das populações do
campo e o debate rigoroso e democrático
sobre a educação no meio rural no
município podem ser reforçados, com o
intuito de perceber como o currículo
escolar vem sendo definido e inserido.
Além disso, é preciso compreender que a
falta do cuidado com os aspectos
levantados pela pesquisa em relação ao
calendário, à merenda e ao transporte
escolar poderiam ser minimizados e até
mesmo resolvidos com o diálogo, a partir
da promoção de um currículo com
objetivos discutidos e almejados, de modo
a modificar e a enriquecer o processo de
construção do conhecimento, orientando e
capacitando sujeitos.
A reprodução das diversas formas de
desigualdades sociais apresentadas pela
pesquisa compromete o devir da educação.
O cuidado torna-se uma forma de
reconhecimento, do olhar para o outro, de
preocupação, de mobilização, que favorece
as práticas cotidianas com os princípios da
justiça social, do reconhecimento da
diferença e da consolidação da justiça
curricular. A base do cuidado humano é
compreender como ajudar o outro a se
desenvolver como ser humano.
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i
O PNAE, conhecido como Merenda Escolar,
consiste na transferência de recursos financeiros do
Governo Federal, em caráter suplementar, aos
estados, Distrito Federal e municípios, para a
aquisição de gêneros alimentícios destinados à
merenda escolar - Lei n
o
11.947/2009 (Oliveira,
Santos, & Oliveira, 2017).
ii
A pesquisa exploratória ocorreu no ano de 2015.
A primeira fase tinha como objetivo identificar a
realidade local. Em primeiro lugar, foi feito o
contato com a SEMED do município, para solicitar
a autorização para conhecer o seu funcionamento,
identificar a organização do trabalho, o calendário
escolar e o público atendido.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 01/12/2018
Aprovado em: 21/04/2019
Publicado em: 28/05/2019
Received on December 1st, 2018
Accepted on April 21th, 2019
Published on May, 28th, 2019
Contribuições no artigo: A autora foi responsável por
todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação
da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The author was responsible for the
designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content
and approval of the final version to be published.
Conflitos de interesse: A autora declarou não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Zilda Gláucia Elias Franco
http://orcid.org/0000-0003-1863-6309
Como citar este artigo / How to cite this article
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Franco, Z. G. E. (2019). Reflexões sobre a dimensão do
cuidado na busca da justiça curricular das escolas do
campo do município de Humaitá (AM). Rev. Bras. Educ.
Camp., 4, e6225. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6225
ABNT
FRANCO, Z. G. E. Reflexões sobre a dimensão do
cuidado na busca da justiça curricular das escolas do
campo do município de Humaitá (AM). Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 4, e6225, 2019. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6225