Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.v4e6230
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
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2019
ISSN: 2525-4863
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O ensino em turmas multisseriadas e suas condições de
trabalho: um olhar para as escolas do campo na região do
Alto Solimões, Amazonas
Jarliane da Silva Ferreira
1
1
Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Instituto de Natureza e Cultura (INC). Rua Primeiro de Maio, s/n, Colônia I.
Benjamin Constant - AM. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: jarlianeferreira@yahoo.com.br
RESUMO. A educação escolar oferecida a populações rurais
esteve historicamente atrelada à concepção de atraso e
precariedade. Nessas experiências rurais, o poder público parece
ter investido em ações tímidas, na tendência de deixar a
educação rural como segundo ou terceiro plano, tomando por
referências educacionais a educação urbana (Batista, 2003). Tal
problemática é evidenciada quando analisamos a situação de
muitas turmas multisseriadas existentes na região do Alto
Solimões, as quais parecem refletir a concepção do fracasso e
precariedade escolar, suscitando a necessidade de reversão do
cenário atual. Este artigo pretende discutir a educação do campo,
da floresta e das águas na região do Alto Solimões, no
Amazonas e, especificamente, tratar das turmas multisseriadas e
as condições de trabalho vivenciadas por professores e alunos
nestes ambientes. Para isso, realizou-se um levantamento das
questões consideradas problemas, por meio da aplicação de
questionários, entrevistas e oficinas com as crianças. O estudo
revelou a existência de muitas turmas multisseriadas na região
que, contrariando a visão predominante, parece ser a única
alternativa de acesso à educação escolar em algumas localidades
distantes. Constatou-se ainda, que a estrutura e infraestrutura
escolar, bem como a valorização de professores e transporte
escolar são demandas imprescindíveis para a melhoria das
condições educacionais. Sobretudo é o que as crianças,
professores e comunitários querem: uma nova escola do campo,
capaz de garantir sucesso e aprendizagem em um espaço
confortável e qualificado.
Palavras-chave: Educação do campo no Alto Solimões, Turma
Multisseriada, Condições de Trabalho.
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The teaching in multi-classes and their conditions of work:
a look at the rural schools in the Alto Solimões Region,
Amazonas
ABSTRACT. School education offered to rural populations has
historically been linked to the concept of backwardness and
precariousness. In these rural experiences, public power seems
to have invested in timid actions, tending to leave rural
education as the second or third plan, taking as educational
references urban education (Batista, 2003). This problem is
evidenced when we analyze the situation of many multisite
groups existing in the Alto Solimões region, which seem to
reflect the conception of school failure and precariousness,
provoking the need to reverse the current scenario. This article
intends to discuss rural education, forest and water education in
the Alto Solimões region of Amazonas and, specifically, to deal
with multi-classes and the working conditions experienced by
teachers and students in these environments. For that, a survey
of the issues considered as problems was carried out, through
the application of questionnaires, interviews and workshops
with the children. The study revealed the existence of many
multi-classes groups in the region that, contrary to the prevailing
view, seems to be the only alternative to access to school
education in some distant localities. It was also verified that the
structure and school infrastructure, as well as the valorization of
teachers and school transportation are essential demands for the
improvement of educational conditions. Above all, this is what
children, teachers and community members want: a new school
in the countryside, capable of guaranteeing success and learning
in a comfortable and qualified space.
Keywords: Rural Education in Alto Solimões Region, Multi-
classes Group, Work Conditions.
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La enseñanza en turmas multiseriales y sus condiciones de
trabajo: una mirada para las escuelas del campo en la
Región del Alto Solimões, Amazonas
RESUMEN. La educación escolar ofrecida a las poblaciones
rurales estuvo históricamente vinculada a la concepción de
retraso y precariedad. En estas experiencias rurales, el poder
público parece haber invertido en acciones tímidas, en la
tendencia de dejar la educación rural como segundo o tercer
plano, tomando por referencias educativas la educación urbana
(Batista, 2003). Tal problemática es evidenciada cuando
analizamos la situación de muchas clases multiserias existentes
en la región del Alto Solimões, que parecen reflejar la
concepción del fracaso y precariedad escolar, suscitando la
necesidad de reversión del escenario actual. Este artículo
pretende discutir la educación del campo, del bosque y de las
aguas en la región del Alto Solimões, en el Amazonas y,
específicamente, tratar de las clases multiseriales y las
condiciones de trabajo vivenciadas por profesores y alumnos en
estos ambientes. Para ello, se realizaron un levantamiento de las
cuestiones consideradas problemas, por medio de la aplicación
de cuestionarios, entrevistas y talleres con los niños. El estudio
reveló la existencia de muchas clases multiseriales en la región
que, contrariando la visión predominante, parece ser la única
alternativa de acceso a la educación escolar en algunas
localidades distantes. Se constató también que la estructura e
infraestructura escolar, así como la valorización de profesores y
transporte escolar son demandas imprescindibles para la mejora
de las condiciones educativas. Sobre todo es lo que los niños,
profesores y comunitarios quieren: una nueva escuela del
campo, capaz de garantizar éxito y aprendizaje en un espacio
cómodo y calificado.
Palabras clave: Educación del Campo en el Alto Solimões,
Clases Multiseriales, Condiciones de Trabajo.
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Introdução
As ações do Estado traduzem poucas
iniciativas reais frente à realidade do
campo, e não atendem ao conjunto das
necessidades que este espaço apresenta.
Nesse contexto, o Estado deixa nas mãos
de professores, muitas vezes com pouca
formação, baixos salários e sem planos de
carreira o sucesso pela qualidade
pedagógica nessas escolas. Dessa forma,
figuram esses professores como os únicos
responsáveis pelo sucesso educacional.
Para além dessas concepções, muitos
movimentos sociais e sindicais do campo,
como o MST, movimento de mulheres e
outras organizações, recolocaram o
problema da educação escolar e
reivindicaram uma educação pautada na
qualidade social para todos, sem a antiga
oposição campo-cidade. O resultado desses
movimentos se materializou nas
Conferências Nacionais Por uma Educação
Básica do Campo
1
. Considera-se
importante destacar a expressão “do
campo”, utilizada pelos movimentos
sociais nos últimos anos, para se referir à
dimensão política da mobilização em favor
do direito à educação básica
(Weschenfelder, 2003).
A expressão “do campo” revela,
portanto uma concepção e intenção política
nela colocada, fazendo referência ao
conteúdo de campesinato, ao sujeito social
camponês, sua situação de classe e suas
lutas sociais (Medaets, 2011).
A educação do campo contrapõe-se,
portanto, à educação rural, no sentido que
representa o esforço na direção de uma
educação própria. Se de um lado o
movimento da Educação do campo trouxe
à luz a contribuição de um amplo
arcabouço teórico, do outro recolocou a
educação na agenda de negociações do
Estado, e ainda mobilizou em nível
nacional, a sociedade para as questões do
ensino no campo, a fim de refletir sobre a
qualidade dessa educação solicitada pelo
movimento.
Isso implicou um envolvimento mais
direto com o Estado na disputa pela
formulação de políticas públicas
específicas para o campo, necessárias
para compensar a histórica
discriminação e exclusão dessa
população do acesso às políticas de
Educação. (Caldart, 2010, p. 118).
Na contramão das legislações
vigentes e solicitação dos movimentos
sociais por melhores condições de ensino
nas próprias comunidades, estão as turmas
multisseriadas, com pouco investimento e
atuação de professores desvalorizados. A
quantidade de turmas multisseriadas na
região do Alto Solimões é uma realidade
frequente. Estas turmas possuem
peculiaridades, tais como: funcionam em
um mesmo espaço e ao mesmo tempo;
oferecem diferentes séries e/ou etapas de
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ensino; e, são ministradas por um único
professor. Em face a isto, é possível
observar que a turma multisseriada possui
uma organização de ensino e aprendizagem
distinta da qual estamos acostumados.
Apesar da garantia de seu
funcionamento na Lei de Diretrizes e
Bases e Educação Nacional (LDBEN, Lei
n. 9.394/96, no artigo 23), há um
predomínio da visão negativa quanto à
garantia do sucesso de turmas
multisseriadas. Corroborando neste
sentido, é comum professores, pais e
alunos que não concordam com a formação
das turmas multisseriadas e, tratam esta
organização como sinônimo de fracasso
escolar.
Segundo Hage e Rocha (2010, apud
Druzian & Meurer, 2013) os professores
demonstram uma certa angústia ao
trabalhar com o multisseriado. Arroyo
(2006) contribui afirmando que é
necessário superar a reação tão frequente
contra as escolas multisseriadas, sendo
necessário proporcionar aos educandos;
com múltiplas idades, temporalidades,
processos cognitivos e culturais, diferentes
identidades; oportunidades formacionais
que contemplassem a interação e novas
possibilidades de aprendizado.
Este artigo pretende trazer uma
discussão acerca do funcionamento de
turmas multisseriadas no município de
Benjamin Constant, pertencente à região
do Alto Solimões, bem como as condições
de trabalho dos professores que atuam na
localidade. Objetiva ainda, este estudo,
abordar a concepção dos sujeitos da
pesquisa acerca da escola desejada,
demonstrando que parece estar bem
distante do que preconiza a legislação
vigente.
No decorrer deste artigo
verificaremos que os números de turmas
multisseriadas são bastante expressivos na
região do Alto Solimões, estado do
Amazonas. É possível, em vista disso,
considerá-las como verdadeiras escolas no
meio da floresta, quer sejam localizadas
em terra firme ou na várzea, possuem
especificidades que devem ser
consideradas. São escolas que apesar de
suas condições de funcionamento
representam para a população do campo a
única oportunidade de acesso à
escolarização. Portanto, Retirá-las do
anonimato e considerá-las como
fenômenos de pesquisas é oferecer lupas
para outras pesquisas e novas políticas
públicas a serem implantadas na região.
Marco teórico e metodológico
A pesquisa foi desenvolvida no
contexto do doutorado no Programa de
Pós-graduação em Sociedade e Cultura na
Amazônia da Universidade Federal do
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Amazonas PPGSCA/UFAM e,
concentrou-se em escolas rurais da região
que oferecem turmas multisseriadas. O
foco deste estudo origina-se a partir de
observações em algumas turmas
multisseriadas no município de Benjamin
Constant, realizadas após um levantamento
de escolas rurais e o multisseriado. Com as
idas e vindas nessas escolas selecionou-se
alguns professores que forneceram
informações, por meio de depoimentos,
sobre suas condições de trabalho neste
cenário.
Os estudantes também puderam
contribuir com a pesquisa no sentido que a
partir de seus mapas mentais puderam
“pintar” a escola que sonham: em meio a
tantas problemáticas e desafios, querem
uma escola com qualidade social, para
continuidade de vida nessas localidades. O
foco da pesquisa fundamenta-se na coleta
de depoimentos dos professores e
estudantes do multisseriado. Os
depoimentos foram coletados no município
de Benjamin Constant, pertencente à
região do Alto Solimões
2
.
No município de Benjamin Constant
um total de 62 comunidades rurais. De
acordo com o levantamento na Secretaria
Municipal de Educação (SEMED, 2017),
são 50 escolas que funcionam ao longo das
comunidades, com a presença de 70 turmas
multisseriadas. As crianças, adolescentes e
jovens cujas comunidades onde residem
não têm escolas devem efetivar matrículas
em outras comunidades, que possuem
escolas polos
3
, ou na sede da cidade, a fim
de tentar garantir o acesso à educação
escolar. Assim, muitos alunos da
educação infantil, ensino fundamental e
médio que se deslocam de suas
comunidades para ter acesso à educação
formal.
Na região do Alto Solimões, como
dito anteriormente, os números de turmas
multisseriadas são bastante expressivas.
Em Atalaia do Norte eram 58 escolas na
zona rural e 26 turmas multisseriadas
(dados da SEMED, 2014); em Tonantins
haviam 44 escolas na área rural, com 53
turmas multisseriadas (SEMED, 2016); no
município de São Paulo de Olivença eram
69 escolas na zona rural, com 47 turmas
multisseriadas (SEMED, 2016); Fonte Boa
eram 48 escolas também na área rural, com
202 turmas multisseriadas (SEMED,
2016). Esses dados apontam para uma
realidade significativa na região,
demonstrando a relevância e a necessidade
de efetivação de estudos desta natureza.
Escola Multisseriada, uma realidade em
comunidades amazônicas
A inserção em comunidades rurais
computou vinte anos. Primeiramente na
profissão docente (1998 a 2004); na
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coordenação de programa de formação de
professores do campo indígenas e não
indígenas, o PROFORMAÇÃO (2004 a
2006); com a inserção no magistério
superior (2006 aos dias atuais), a qual
culminou na dissertação de mestrado em
educação (2008 a 2010), no
desenvolvimento de atividades de pesquisa
e extensão do Observatório da Educação
do Campo OBECAS (2014 aos dias
atuais); e na tese de doutorado (2014 a
2018).
Nos diferentes contatos com as
escolas e turmas multisseriadas, percebe-se
que geralmente estas apresentam
infraestrutura precária, prédios extenuados,
materiais didáticos escassos, faltam
carteiras, especificamente aquelas
padronizadas para as crianças da educação
infantil. Muitas escolas são unidocentes,
com poucas crianças. Os livros além de
insuficientes quase sempre não retratam a
realidade do campo. Nas paredes há um
quadro e alguns cartazes. Para a professora
uma mesa e uma cadeira na qual
dificilmente pode sentar-se. Existe ainda
uma salinha onde deposita-se a merenda
escolar e, que muitas vezes, é feita pelos
próprios professores. Na parte externa, tem
uma casinha que funciona como banheiro,
para os alunos e professores.
Na sala de aula um grupo de
alunos em séries diferentes. Olhares
atentos, curiosos de alunos observadores.
Uma sala silenciosa, de mistura em quatro
paredes. Aliás, mesmo com a
multisseriação a divisão das séries é
presente, parece haver paredes invisíveis
que separam os alunos. Hage (2014)
discute que as turmas multisseriadas por
mais que tenham séries diferentes acabam
sendo conduzidas e orientadas pelo
paradigma da seriação, pois os professores
aglomeram os alunos por séries e níveis de
aprendizagem em quase todas as atividades
desenvolvidas na sala de aula. A seriação
acaba sendo a única forma de pensar e
atuar na realidade das escolas do campo,
mesmo ao se deparar com a multissérie.
Ainda para Hage (2014, p. 1175), o
paradigma da seriação se faz presente na
escola ou turma multisseriada por meio do
modelo seriado urbano de ensino, esse
modelo “impede que os professores
compreendam sua turma como um único
coletivo, com suas diferenças e
peculiaridades próprias, pressionando-os
para organizarem o trabalho pedagógico de
forma fragmentada, levando a desenvolver
atividades de planejamento curricular e de
avaliação isolados para cada uma das
séries”.
Hage (2014), afirma que a
multissérie foi o meio possível e viável da
seriação se materializar no espaço das
escolas rurais, de forma bastante precária.
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“Apesar de ser necessidade no meio rural,
a multissérie ainda é uma extensão do
paradigma da escola seriada
urbanocêntrica, pois não possui um
tratamento diferenciado”. (Druzian &
Meurer, 2013, p. 133).
A heterogeneidade; constituída por
diferentes etapas de ensino (Educação
infantil e ensino fundamental), distintas
faixas etárias entre os estudantes (nas
turmas multisseriadas geralmente
alunos com 4 e 5 anos até adolescentes e
jovens entre 12 a 16 anos), níveis
diferenciados de aprendizagem, presença
de alunos com sotaque em espanhol (já que
a escola está localizada em uma área de
fronteira), diferentes habilidades de grupos
ribeirinhos; faz da sala de aula
multisseriada um lugar de encontro de
diferentes culturas, logo um espaço
intercultural (Ferreira, 2010; Ferreira,
2018).
Ainda que possamos reconhecer os
avanços da educação do campo, no que
tange à aprovação das legislações e
diretrizes vigentes principalmente no
tocante ao atendimento escolar no campo,
ainda estamos distantes de alcançar um
patamar satisfatório em relação à educação
escolar oferecida em escolas e/ou turmas
multisseriadas principalmente quando se
fala de muitas localidades da região
amazônica. um leque de insatisfações
que imperam nos discursos dos professores
e alunos das classes multisseriadas, que
vão desde a precária infraestrutura escolar
até às condições de deslocamento do
professor.
Ramalho (2008) afirma que a
multissérie não detém o primeiro lugar
nesta lista de insatisfações, a primeira é a
condição de infraestrutura, dificuldades no
transporte, obstáculos para lidar com
comportamentos sociais e culturais
diferentes. Outros índices nos permitem
refletir sobre essa realidade no sentido que
muito se avançou no que tange à
legislação vigente, mas que pouco mudou
nesta realidade.
Os dados apresentados em
assentamentos rurais e áreas indígenas do
país nos permitem fazer algumas análises.
Em 2013 (INEP), estavam matriculados
361.361 alunos em escolas de
assentamento em todo o país. Destes
alunos 165 mil estavam nos anos iniciais
do ensino fundamental, porém apenas 46
mil frequentavam a educação infantil.
Nessa comparação poucas crianças
acessam a educação infantil, a maioria é
matriculada diretamente no ensino
fundamental. Entre os indígenas esses
números são preocupantes também. Dos
53.800 alunos que concluíram os anos
finais do ensino fundamental em 2012,
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foram matriculados no ano seguinte pouco
mais de 15.800 alunos.
São nessas escolas que os índices de
precariedade têm persistido. Nos dados do
INEP uma comparação com os números
das escolas por região demonstra as
situações de desigualdades presentes na
educação escolar. Sabemos que as
distâncias entre as regiões norte e sul não
são apenas geográficas, são principalmente
educacionais. No norte 19.568 escolas,
no sul 13.959. Dessas escolas da região
norte apenas 24,5% tem acesso à biblioteca
ou sala de leitura; já no sul, são 76,3%.
Quanto ao acesso à internet é muito mais
complexo, no norte apenas 22,1%
conseguem acessar a internet, e no sul são
82,2%. O acesso às quadras de esportes
também é preocupante. Na região norte
apenas 14% das escolas possuem quadras,
no sul são 66,1%.
Esses números demonstram os níveis
de desigualdades educacionais por
localidade, se compararmos esses números
levando em consideração os dados da zona
rural e turmas multisseriadas será bem
mais discrepante, pois são em escolas
multisseriadas que, na maioria das vezes,
não é possível o acesso à biblioteca, a
materiais didáticos, quase não se percebe
quadra de esportes e laboratórios.
Nessa direção, Hage (2014) analisa
que por mais que o acesso à etapa
obrigatória (Ensino Fundamental) seja de
91,96%, grande parte desse universo está
matriculada nos anos iniciais do ensino
fundamental, “em escolas multisseriadas,
unidocentes, que enfrentam problemas
muito sérios relacionados às precárias
condições de infraestrutura e
funcionamento e quanto a aprendizagem
dos alunos”. (p. 1.171).
Na região do Alto Solimões o retrato
das escolas rurais não é um dos melhores.
muitas discrepâncias. Assim como
existem municípios com escolas bem
estruturadas e conservadas na zona rural,
também escolas que nunca passaram
por uma reforma, não têm acesso à água
potável, tão pouco, banheiros.
No geral, as escolas multisseriadas
são as que, diante dos dados apresentados,
demonstram o abandono pelo poder
público. Na região amazônica e mais
especificamente no local da pesquisa, essa
realidade é perceptível quando se observa a
infraestrutura. Muitas vezes, no primeiro
momento, nem parecem escolas. Sem placa
de identificação. Mais parecendo um
barracão, o que demonstra um verdadeiro
descaso. Contudo, essa situação não é
unânime. escolas multisseriadas muito
organizadas na área rural; escolas
recém-inauguradas, em alvenaria, com
mobílias novas, banheiros e acesso à água
potável.
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Além do número de turmas
multisseriadas no município de Benjamin
Constant encontra-se ainda as turmas
multietapas, que são as turmas organizadas
da educação infantil ao ano do ensino
fundamental. Por mais que a legislação
educacional não permita a junção de duas
etapas de ensino diferentes na mesma
turma, é comum estas serem formadas pelo
Pré I e II e anos iniciais: “Em nenhuma
hipótese serão agrupadas em uma mesma
turma crianças de educação infantil com
crianças do ensino fundamental”
(Resolução n. 02/ 2008, Art. 3º, §
Diretrizes Complementares da Educação
do Campo).
Todavia, o problema mais grave
reside na formação de turmas compostas
por alunos que vão desde o Pré I ao ano.
No total 22 formadas com duas etapas
(multietapas); são 22 professores que
atuam nessas condições, contrariando a
legislação. As turmas variam de 9 a 27
crianças, totalizando 364 crianças que são
submetidas cotidianamente à condição de
desvantagem material e de atenção do
professor. São turmas em que os aspectos
relacionados ao educar e cuidar de crianças
da educação infantil de 4 e 5 anos são
violados.
Diante de tal realidade, parece não
haver um parâmetro que oriente a
formação das turmas multisseriadas e
multietapas. E, em face disso, surgem
questionamentos, tais como: Por que é
permitido formar uma turma com 9 alunos
e a outra com 27? Quais os critérios
utilizados para essa divisão?
Como possíveis respostas, supõe-se
que em se tratando da turma de 27 alunos,
talvez seja por conta do número
insuficiente de salas de aula disponíveis.
Urge a necessidade imediata da construção
ou ampliação de escolas. outras
implicações também que envolve a
contratação de mais professores, alterando
os gastos dos recursos disponíveis. Enfim,
as justificativas variam, suscitando mais
pesquisas sobre essa temática.
De acordo com a lei aprovada no
Conselho Municipal de Educação (CME,
2015) a formação de turmas no ensino
fundamental será a de 25 alunos,
incluindo as matrículas de duas crianças
com necessidades educacionais especiais.
Nas turmas de educação infantil Pré I e II,
incluindo duas crianças com
necessidades educacionais especiais,
podem ter até 20 alunos. A lei não trata das
turmas multisseriadas, sendo de extrema
necessidade a discussão deste item.
Percebe-se que o poder público tem nas
mãos o controle das decisões e a consulta à
comunidade continua sendo vedada.
Em meio a desafios e contrariedades,
a voz dos professores enfatiza as
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dificuldades existentes em desenvolver
suas aulas neste cenário. Durante a
pesquisa foram coletados depoimentos de
19 professores, que serão trazidos em todo
o artigo, a fim de entender suas condições
de trabalho em turmas multisseriadas.
Analisando alguns relatos foi possível
entender que não existem receitas prontas
para desenvolver o trabalho pedagógico,
sobretudo em turmas multisseriadas. Ficou
evidente que para além das problemáticas
vivenciadas os professores acumulam
saberes da experiência que impulsionam
suas práticas nestes contextos. Exemplo
disso é abordado no documentário francês
Ser e ter (2002), que trata a prática
pedagógica de um professor em uma turma
multisseriada e as diferentes possibilidades
que vai sendo construída cotidianamente.
Por outro lado, alguns relatos
coletados dão conta da complexidade do
ensino multisseriado:
A maior dificuldade que encontrei na
sala multisseriada é que os alunos
que já são bem avançados e têm
alunos que não acompanham o
professor isso dificulta muito o
trabalho. No caso a educação infantil
está junto aos anos iniciais (C. P., 29
anos, entrevista com Professor,
2017).
A visão que eu tenho é que nenhum
professor gostaria de trabalhar com
turmas multisseriadas, porque a
dificuldade é maior do que as demais
turmas ..., por mim se fosse para
erradicar seria melhor (E. N., 38
anos, entrevista com professor,
2017).
No meu caso a sala de aula é muito
pequena, falta espaço, além disso, a
mesma sala de aula serve de cozinha
para servir merenda (J. N., 33 anos,
entrevista com professor, 2017).
Vale ressaltar que o problema parece
não ser pelo tipo de organização
multissérie, pois sua qualidade não pode
ser inferior à nenhuma escola, inclusive
das escolas da cidade. O fato é que ainda
persiste a implantação de modelos de
currículos urbanos dentro do rural e,
sobretudo com atuação de professores sem
formação específica para atuação neste
contexto escolar, gerando verdadeira
atribuição unicamente ao multisseriado
como responsável pelo insucesso escolar.
As turmas multisseriadas e as condições
de trabalho
A legislação educacional brasileira
(LDBEN n. 9394/1996) traz um item
dedicado às condições de trabalho docente.
Na trajetória das legislações educacionais
este texto traz um avanço no item da
valorização dos professores, ao citar
diversas dimensões a serem consideradas
neste âmbito, preconizando no artigo 67 do
referido instrumento que:
Os sistemas de ensino promoverão a
valorização desses profissionais da
educação, assegurando-lhes,
inclusive nos termos dos estatutos e
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dos planos de carreira do magistério
público:
I- Ingresso exclusivamente por
concurso público por provas e títulos;
II- Aperfeiçoamento profissional
continuado, inclusive com
licenciamento periódico remunerado
para este fim;
III- Piso salarial profissional;
IV- Progressão funcional baseada
na titulação ou habilitação, e na
avaliação do desempenho;
V- Período reservado a estudos,
planejamento e avaliação, incluído na
carga de trabalho;
VI- Condições adequadas de
trabalho.
Dentre os princípios da valorização
docente são garantidos as condições
adequadas de trabalho, mas o que é
observado na escola rural multisseriada é a
negação desse direito, causando um
verdadeiro mal-estar docente, evidenciado
em seus baixos salários, desqualificação,
estigmas e desvalorização profissional.
As condições de trabalho docente,
seus baixos salários chamam atenção nos
noticiários e a mídia assume um espaço
privilegiado para a propagação do estigma
de não optar por ser professor no país. Em
cursos de licenciaturas é comum ouvir
falas de acadêmicos que dizem não querer
“dar” aulas, refletindo a desqualificação
em ser professor. No Brasil, ser professor,
pelo histórico processo de desvalorização,
não é uma profissão muito almejada,
“sendo alvo de críticas e piadinhas devido
ao baixo status social”. (Rodrigues, 2009,
p. 140).
Por tudo que foi verificado sobre
as condições de trabalho do professor da
escola multisseriada, no contexto
observado, é possível concluir que os
princípios da valorização presentes na
legislação são pouco considerados na
realidade dessas escolas.
Existe um conjunto de elementos
legais que estabelecem a garantia da
valorização docente. Dessa forma, não
basta apenas ter formação em nível
superior, que considerar bons salários,
formação profissional e condições de
trabalho favoráveis. No caso particular do
professor da sala multisseriada da região,
tratar sobre condições de trabalho é um
aspecto mais complexo, pois além desses
princípios constitucionais ainda existem
questões relacionadas ao transporte, à
moradia e às diferentes funções na tarefa
de ensinar.
Nessas escolas multisseriadas o
desafio é maior. Em muitas destas, os
professores são os únicos funcionários, não
tendo apoio de nenhum profissional para o
acompanhamento e orientação do trabalho
pedagógico. Não tem merendeiro, nem
serviços gerais, Eles figuram como
responsáveis para desempenhar as
diferentes funções. Vale ressaltar, que
geralmente esses professores são iniciantes
no magistério.
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Além disto, nessas escolas, ter
laboratórios de ciências, quadra de esporte,
refeitórios, transporte adequado para
professores e alunos, é “sonhar muito
alto”. Soma-se ainda como problemática, a
falta de água potável e merenda escolar.
Muitas vezes, nem banheiro existe. Um
cenário que marca a existência de muitas
escolas multisseriadas que encontramos
nas comunidades rurais da região.
Trindade e Werle (2012) esclarecem
que as questões que vão desde o
deslocamento, o transporte, moradia na
comunidade, salários, até a multiplicidade
de suas funções para atender o dia-a-dia
escolar estão ligadas às dimensões
objetivas de suas condições de trabalho.
Neste contexto, os professores são
considerados “guerreiros”, “heróis”, por
deixarem sua família na cidade, por
percorrerem horas em um transporte
inadequado até à comunidade. Também
são considerados assim por serem capazes
de trabalhar com todas as séries em uma
mesma turma com poucas condições,
desempenhando ainda as outras funções
para além do trabalho docente. Estes
profissionais lidam com os estereótipos de
serem professores rurais, muitos com
pouca formação, às vezes, até mesmo
somente o magistério, sem acesso à
internet, ou outras fontes de informação.
Quanto pior, quando falta energia elétrica
e, todos acabam sendo isolados nessas
comunidades, onde a leitura é quase
inexistente.
Esses professores sofrem com a
contratação temporária, por representarem
peso político para grupos que têm o poder
de manobrar as lotações na área rural,
tornando a comunidade e a escola como
“currais eleitorais”. Além disso, são
vítimas de um sistema de interesses
políticos entre grupos que quase eternizam
o poder em municípios da região. Então,
muitos destes, chegam às comunidades
sem muitos prestígios, aproveitando a
chance de trabalharem como contratados,
por fazerem parte do grupo político que
naquele momento está no poder.
Assim, é notório afirmar que para se
falar em qualidade na educação em
qualquer contexto, é necessário considerar
as condições de trabalho com que os
profissionais são submetidos no espaço de
atuação. Hypólito (2012) contribui dizendo
que não se pode falar de qualidade de
ensino se as condições de produção de
trabalho de ensinar persistem precárias.
Oliveira e Vieira dizem que:
A divisão das tarefas e
responsabilidades, a jornada de
trabalho, os recursos materiais
disponíveis para o desempenho das
atividades, os tempos e espaços para
a realização de trabalho, até as
formas de avaliação de desempenho,
horários de trabalho, procedimentos
didáticos-pedagógicos, admissão e
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administração das carreiras docentes,
condições de remuneração. (Oliveira
& Vieira, 2012, p. 157).
Na mesma direção Contreras (2012)
pondera que o trabalho docente sofreu
tamanha subtração progressiva de
qualidades a ponto de tornam esses
professores vítimas de um sistema
organizacional em que eles perderam o
controle e o sentido do próprio trabalho.
Dessa forma, a questão das
condições de trabalho envolve o tipo de
contratação que este professor adquire. O
tipo de vínculo com o sistema de ensino
vai dizer muito quanto à sua valorização
profissional. Na história da educação do
país os processos de desvalorização
docente perpassaram muito pelo
entendimento do seu tipo de vínculo,
tornando o trabalho docente na área rural
um mecanismo de controle por parte de
políticos ou fazendeiros, que aliciavam e
dominavam a lotação nessas localidades.
Mantendo formas de controle e número de
votos a partir das manobras entre a
comunidade e o ensino. Nesse viés o cargo
de professores era tido como moeda de
troca. Dessa maneira, era quase impossível
se falar em valorização docente pela
dimensão contratual de trabalho. Após a
aprovação na legislação atual referente ao
vínculo mediante concurso público houve
alterações na forma de pensar a
valorização docente.
Mesmo com a legislação vigente
tem-se desenvolvido formas de contratação
temporária de professores na área rural,
desqualificando o trabalho docente nestes
espaços. Em levantamento realizado em
cinco municípios do Alto Solimões obteve-
se o número de professores que atuam em
regime de contratação temporária na área
rural. Na área rural, geralmente são lotados
professores com menor titulação e aqueles
contratados de forma temporária.
Esses dados são referentes aos
números de professores que atuam na área
rural, conforme levantamento realizado nas
secretarias de educação municipais (2016)
e nos registros do Observatório da
Educação do Campo no Alto Solimões
(OBECAS, 2014). Nos municípios de
Benjamin Constant e Atalaia do Norte os
dados foram coletados em 2014, não sendo
possível ainda a atualização. em São
Paulo de Olivença, Tonantins e Fonte Boa
os dados foram coletados em 2016.
Em Benjamin Constant dos 294
professores, 203 trabalhavam em regime
temporário e 91 eram efetivos mediante
concurso público. No município de Atalaia
do Norte foi informado apenas a situação
dos professores não indígenas. Dos 37
professores não indígenas 24 trabalhavam
em situação de regime de contratação e 13
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efetivos. No município de São Paulo de
Olivença eram 487 professores. Desse
universo, 112 eram contratados
temporariamente e 375 efetivos. Em
Tonantins dos 151 professores, 88 atuavam
em regime de contratação e 63 eram
efetivos. Em Fonte Boa não foi informado
quanto à situação de vínculo, apenas
informaram que no município atuavam 182
professores na área rural.
Os números nos dizem muito da
situação da valorização e das condições de
trabalho da escola do campo, bem como do
multisseriado. Verifica-se que apenas um
município citado possui o número de
professores efetivos superior aos
contratados, os outros todos têm
preponderância na contratação temporária,
apesar da legislação estabelecer o
contrário. Um dos problemas em
decorrência do tipo de vínculo é a alta
rotatividade apontada pelos professores.
Em entrevista, os professores apontaram
este problema. Sem ter muito o que fazer
ou reclamar, acabam aceitando e se
submetendo a situação visto à necessidade
de emprego. Hage (2006) considera que:
Nessas escolas, o trabalho docente,
tem pouca autonomia em face das
questões políticas que envolvem o
poder local e interferem nas
dinâmicas das secretarias de
educação, submetendo os professores
a uma grande rotatividade (mudança
constante de escola), em função da
sua instabilidade de emprego. (p.
308).
Devido a tantos entraves e
complexidades do trabalho docente na área
rural são comuns os constantes pedidos de
transferência para a zona urbana,
contribuindo também para o aumentando
da rotatividade. Assim, a escola rural fica
como um teste para muitos professores
iniciantes, que tudo fazem para que a
lotação na cidade ocorra. Por outro lado a
análise necessita ir para outros prismas,
primeiramente, conforme todos os desafios
apontados na escola do campo, poucos
profissionais se sentem motivados a
trabalhar nesses locais. Depois, sem muito
ou nenhum investimento em políticas de
fixação de professores na zona rural é
muito difícil atrair profissionais para essas
escolas.
Neste cenário, o salário do professor
diz muito de sua satisfação em ser
professor do campo. As pesquisas
demonstram que os professores do campo
historicamente e, ainda atualmente,
possuem os menores salários, isso em
detrimento de sua menor titulação. Pois
ainda é bastante comum o número
significativo de professores leigos atuando
principalmente em turmas multisseriadas.
Quanto menor a titulação, menor seus
vencimentos. Em questionário aplicado aos
professores sujeitos da pesquisa, todos
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afirmaram que estão insatisfeitos com seus
salários. Assim, os professores se
submetem a um sistema em que se
desdobram em mais de uma escola para
atender às suas condições razoáveis de
sustento. Os professores da zona rural
geralmente possuem um segundo turno na
zona urbana. Assim, enfrentam horas de
trabalho superior a outros professores.
Saem ainda de madrugada de suas casas e
chegam na escola rural de manhã para
enfrentar o primeiro turno. Depois se
deslocam para a cidade. Almoçam
rapidamente e se arrumam para enfrentar o
segundo turno de trabalho.
Apesar de constar na legislação o
tempo de trabalho do professor, ainda na
educação básica não se concretizou a
dedicação exclusiva. A partir dessa
premissa poderia se ter bons salários em
uma única escola com tempo dedicado ao
planejamento, correção de trabalhos, bem
como a inserção em processos de formação
continuada dentro da carga horária. Nessas
condições o professor não teria que
enfrentar duplas jornadas de trabalho, em
diferentes escolas, muitas vezes em escolas
da área rural e urbana, sem tempo para a
família e para o lazer, implicando na sua
qualidade de vida.
Nesse contexto é necessário
considerar os aspectos subjetivos do
trabalho do professor. Hypólito (2012)
pondera o tempo de preparo para as
atividades de ensino, pressão emocional,
valorização prestígio profissional, como
elementos chave para o sucesso e a
qualidade do trabalho desse profissional.
No entanto ser professor rural
perpassa por muitos adjetivos que não são
animadores quando se pensa ou se é
professor do beiradão
4
. Além de serem
desvalorizados em relação aos seus
vencimentos, o seu constante ir e vir em
canoas que muitas vezes são superlotadas e
sem segurança, atuando em escolas
precárias, carregam muitos estigmas, pois
ninguém consegue se orgulhar de uma
profissão com tamanhos desafios.
Hernandez (1998) diz que as condições
materiais das escolas e os salários dos
professores são alicerces para o
reconhecimento social do trabalho docente.
De acordo com dados do INEP
(2011), dos 160.317 professores que atuam
no campo, quase metade não possui ensino
superior (46,7%) e ainda 97,4% atuam
apenas com ensino médio e 2,6% atuam
com ensino fundamental (Hage, 2014).
Esses números demonstram os desafios
quanto à formação docente em um período
em que pese às exigências por nível
superior e ainda se pensarmos na meta 15
do Plano Nacional de Educação atual
(2014- 2024) que estabelece formação em
nível superior na área em que atuam e,
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ainda, a meta 16 que estipula um prazo até
2024 para a formação em pós-graduação
dos 50% de docentes que atuam no país.
Os mapas mentais e argumentos dos
professores, alunos e comunitários sobre a
escola que eles querem nos indicam
algumas pistas para pensar as
contrariedades da escola no campo,
apontando para outros olhares que
permitem incidir sobre políticas públicas
que tardam a chegar à região.
A escola do campo que queremos
Durante a coleta de dados em turmas
multisseriadas realizou-se oficinas de
desenho com as crianças na qual elas, por
meio de seus mapas mentais, mostraram a
escola que elas gostariam de ter. As
oficinas foram realizadas nas próprias
comunidades, nas dependências da casa de
reunião e na escola.
Figura 1: O caminho da escola (Darlei, 12 anos).
Fonte: Pesquisa de campo. Ferreira (2016).
São comuns os desenhos das crianças
expressarem o que elas não conseguem ter
no dia-a-dia da escola. Então, muitos dos
desenhos apresentam principalmente o
apelo pela estrutura e infraestrutura
escolar, como escola de alvenaria, com
quadra, a piscina é solicitada. Estes
desenhos transitam pelo caminho das
políticas públicas pouco implementadas na
escola do campo. Demonstram a
contrariedade da implementação do
Programa Luz para todos que possibilitou a
instalação da energia elétrica nas
comunidades, rurais, porém indisponível
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em muitas escolas. Evidencia a falta de
banheiro adequado, até falta de água
potável. Eles solicitam por merenda
escolar todos os dias.
Alguns desenhos dentre muitos
chamaram atenção, umas crianças
colocaram que gostariam de helicóptero, e
outra que queria pelo menos um cavalo,
um carro. Em conversa com as crianças
percebeu-se a necessidade que estas têm de
transporte escolar. Um grupo de cinco
irmãos alunos da escola São José, moram
em uma comunidade vizinha (São
Raimundo), e todos os dias percorrem uma
hora para ir e uma hora para retornar às
suas casas. Na comunidade que elas
moram não tem escola e “elas vão e vêm
brincando professora todos os dias, e é
difícil elas faltarem aula” (M. S., 30 anos,
2016).
Figuras 2: Um helicóptero para minha escola: a escola que queremos (Anderson, 9 anos).
Fonte: Pesquisa de campo. Ferreira (2016).
Por outro lado, outras crianças
expuseram suas vontades em escolas
pintadas com muitas flores, jardim e muita
cor. Desejando uma escola mais próxima
da natureza, com mais verde. Isso
demonstra que não é pelo fato de estudar
em uma escola no meio da floresta que a
faz preocupada com as questões
ambientais. Esses desenhos dizem muito
quando pensamos que estas escolas
precisam implementar nova temáticas.
Pois, estas escolas podem estar
continuando um trabalho “de costas” para
o contexto local e para os anseios e
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intencionalidades da comunidade. Ou seja,
a escola continua a ser um espaço estranho
e com características urbanas, no momento
em que não considera o ambiente ao seu
redor.
Figura 3: A escola e minha comunidade (Lucas, 9 anos).
Fonte: Pesquisa de campo. Ferreira (2016).
Outros desenhos apelam para a
paisagem ligada também com a identidade
da floresta. Nestes, as crianças solicitam
jardim, árvores, querem o verde próximo à
escola, pois é comum derrubarem muitas
árvores para as construções. Outro desenho
chamou atenção, uma criança da educação
infantil colocou em seu desenho uma casa
na árvore, pois gostaria de brincar todos os
dias na escola. Percebe-se assim o apelo ao
brincar, pois estas crianças, geralmente, se
sentem presas em escolas com poucas
condições de funcionamento, sem muitos
atrativos, quentes, superlotadas e sem
materiais didáticos.
A visão dos professores e
comunitários em relação à escola que eles
querem, também se assenta na ideia
daquilo que, frequentemente, estes não
conseguem usufruir nas escolas do campo.
Os professores se queixam
principalmente do deslocamento. Eles
dizem ter que acordar muito cedo para
pegar o barco que sai sempre antes das 6
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da manhã. Eles enfrentam um barco peque-
peque
5
superlotado, inadequado e sem
segurança. Muitos não usam colete salva-
vidas em sua viagem diária. Também se
queixam da escola onde atuam, por não
oferecer condições nimas de higiene,
muitas escolas sem água potável.
Acordo às 5:00 da manhã, saímos do
porto às 5:50. Chegamos na escola às
6:45; a caminhada até a escola varia,
quando o rio está cheio, gastamos
mais 5 minutos, quando o rio está
seco uns 20 minutos, pode ser mais
ou menos. Saímos da escola umas
11:35 e chegamos na cidade por volta
de meio dia e quinze (I. A. T., 26
anos, entrevista com professora,
2017).
Os professores e os comunitários
concentraram-se igualmente, tal como as
crianças nas questões relacionadas à
estrutura e infraestrutura escolar. Querem
uma escola em alvenaria, climatizada, com
secretaria, biblioteca, sala de informática e
banheiros. Essa escola muito pautada no
modelo da escola da cidade, referente à sua
estrutura em alvenaria e climatizada.
Percebe-se que uma escola sendo na
área rural também poderia oferecer
conforto para os professores e crianças que
ali estão. Porém muitos equívocos
referentes à construção da escola do campo
na região. Comumente, as escolas que
estão sendo construídas ultimamente são
em alvenaria, valorizando uma
padronização das escolas da cidade, assim
sendo, consequentemente precisariam,
principalmente, de climatização, ou seja,
com isso, haveria a necessidade de
investimento na energia elétrica e
manutenção dos equipamentos.
Mas na prática não é o que ocorre,
pois muitas escolas recém-construídas não
dispõem de ares condicionados em suas
salas de aula, ou esses equipamentos
acabam apresentando problemas muito
cedo. Nesse contexto, acaba-se criando
outros problemas para a escola do campo,
pois se houvesse a construção de escolas
com identificação com o clima de seu
contexto, outros modelos poderiam ser
implementados.
Outro sonho esboçado pautou-se no
item “valorização e formação de
professores”. Para eles (professores), uma
escola seria “muito boa” se todos fossem
formados na disciplina de sua atuação. Pois
é muito comum professores com desvio de
função. Às vezes, são licenciados em
matemática e completam sua carga horária
com física, química, etc. Os professores,
neste aspecto, ainda solicitam outros
cursos de formação continuada para a
constante qualificação.
Acredito que ser educador do campo,
é o maior desafio, desafios esses
que iniciam desde o momento em
que acordo até a volta para a casa,
uma luta árdua e diária que também
perpassa pelo desenvolvimento de
um ensino multisseriado até questões
internas e externas que influenciam
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no rendimento escolar dos alunos e a
própria desvalorização profissional e
salarial (I. A. T., 26 anos, entrevista
com professor, 2017).
Gostaria que tivesse mais apoio da
SEMED com materiais didáticos e
outras vezes formação continuada (R.
C., 33 anos, entrevista com professor,
2017).
Acredito que a luta o seja
minha, a escola se encontra em
condições humanas precárias. A
infraestrutura inadequada, na sala
onde trabalho é cozinha ao mesmo
tempo é uma espécie de biblioteca. O
espaço é pequeno que compromete o
desenvolvimento das atividades. O
ideal seria a escola possuir suas
dependências específicas (I. A. T., 26
anos, entrevista com professor,
2017).
Estes relatos demonstram que muitos
professores do multisseriado, apesar de
todas as precariedades, continuam firmes e
resilientes, dando seu melhor a cada etapa,
reconstruindo seu fazer pedagógico a cada
experiência e desafio enfrentado. Souza
(2011) diz que as vozes e as experiências
formativas desses sujeitos do espaço rural
devem ser consideradas nos estudos das
diversas ruralidades.
Outro item apontado referiu-se as
novas tecnologias na escola, tais como:
acesso à internet, sala de informática, sala
de mídias, laboratório de ciências. Como
sabemos o Brasil sofre com a infraestrutura
tecnológica. Lugares muito distantes dos
grandes centros, especialmente na região
Norte pouca cobertura de sinal de
internet, principalmente em muitas
comunidades rurais amazônicas isso tem
sido um desafio. Por exemplo, nas escolas
em que realizamos a pesquisa nenhuma
tinha acesso à internet, nem computadores
e, muitas com energia elétrica apenas na
secretaria.
Uma sala de emergência também foi
apontado pelos professores. Isso porque,
como é comum não ter nem um posto de
saúde nas comunidades, então os próprios
professores temem situações emergenciais,
como acidentes que venham a sofrer em
localidades de difícil acesso.
Os comunitários argumentam mais
com base na participação e proposta de
ensino da escola. Para eles da forma como
eles vivenciam o trabalho na comunidade,
a escola também deveria seguir esse rumo:
Eu sempre mostro pra ela (se
referindo a sua filha), você sozinha
não vai realizar, mas se tu se ajuntar
com tuas outras irmãs esse sonho
será realizado, não com as irmãs,
mas com teus pais, teus avós, com os
comunitários e se chegar a conversar
com os primos, com a sociedade,
esse sonho será realizado. Então eu
acho que nós pais aqui nós todos não
queremos com os professores, nós
queremos professor e comunitário,
tudo junto é isso que nós queremos.
Se tiver algum projeto na escola a
comunidade puder participar, a
comunidade vai tá junto, que isso que
eu acho que os pais da comunidade
sonham com isso, sempre nós vinha
trazendo essa tradição de muito
tempo, não é de agora não, nós temos
professor já antigão, já tão velhinhos,
então essa tradição a comunidade
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vinha trazendo, junto com os
professores, no caso o dia 7 de
setembro, era a escola com os
comunitários, então é isso que os
pais querem (K. U., 39 anos,
entrevista com comunitário, 2016).
Por último os professores falam de
um tipo diferenciado de organização do
currículo, apontando a proposta
pedagógica baseada na pedagogia da
alternância, com tempo escola e tempo
comunidade. Nota-se, diante disso, a
preocupação dos professores com o tipo de
vínculo que a escola deve ter com a
comunidade. E, analisando a preocupação
dos comunitários, acredita-se ser viável
esse tipo de ensino pautado em novas
formas de gestão democrática e
participativa e outras formas de aprender e
ensinar.
Considerações finais
O contexto do multisseriado nos
obriga a pensar sobre a qualidade dos
processos de ensino-aprendizagem. O
quadro atual demanda o apontamento de
novas possibilidades, outras formas de
intervenção. Pois, o multisseriado quando
tratado na literatura, expressivas são as
colocações que levam a pensar em sua
superação e menos como possibilidades.
Hage (2014) diz que, sobretudo essas
propostas, necessitam ser viáveis,
contextualizadas e que atendam às
exigências e interesses das classes a que
serve, ao poder público, aos movimentos
sociais
Como vimos a seriação é a forma de
organização escolar muito reivindicada
como solução dos graves problemas que
estão presentes na escola rural. Mas, por
outro lado, segundo Hage (2014), a
seriação se faz presente nessas escolas.
De que forma? A multissérie foi a maneira
possível e viável da seriação se
materializar no espaço das escolas rurais,
de forma bastante precarizada.
Ainda nos estudos de Hage (2014), o
paradigma da seriação se faz presente na
escola ou turma multisseriada por meio do
modelo seriado urbano de ensino. Esse
modelo “impede que os professores
compreendam sua turma como um único
coletivo”, ao contrário, que possam
perceber as respectivas diferenças e
peculiaridades de cada uma destas,
pressionando-os para organizarem o
trabalho pedagógico de forma
fragmentada, sobretudo incitando-os “a
desenvolver atividades de planejamento
curricular e de avaliação isolados para cada
uma das séries”. (p. 1.175).
Nesse sentido, as turmas são
organizadas de modo a nos moldes da
seriação, ou seja, pautada em uma
concepção de ensino que fragmenta o
conhecimento, aposta na padronização do
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tempo e espaço no interior das escolas,
pré-defenindo o ano letivo de duração
anual, com calendário único (Idem, 2014).
De forma tal, a escola, com seus conteúdos
fragmentados em disciplinas isoladas, se
tornam o único espaço possível para o
aprendizado ocorrer, nesse caminho, como
vimos o conhecimento dos sujeitos do
campo são negados e inviabilizados pela
escola.
As aproximações que temos
realizado com a realidade educacional do
campo no decorrer de todo o trabalho e em
outras experiências apontaram algumas
pistas para referenciar propostas de
intervenção nesse contexto diferenciado. O
eixo central dessas pistas se assenta
primeiramente na ideia de transgressão do
modelo precarizado de seriação, pensada
por Hage (2014). Em outras palavras, para
a efetivação de propostas positivas nas
escolas é necessário romper com o
instituído, tensionar as estruturas a fim de
tentar apontar outras pedagogias
alternativas, rompendo com a histórica e
naturalizada concepção de que na educação
escolar multisseriada um único
caminho possível.
A primeira pista que ousamos
apontar se situa na participação de todos os
segmentos na construção do projeto
pedagógico, na proposta curricular, em
seus calendários. Ou seja, quando a gestão
participativa é ativada em uma escola,
todos se responsabilizam pelos
compromissos do sucesso escolar. Pois é
comum estar presente a concepção
dominante de que os camponeses não
conhecem do mundo da escola, logo
qualquer escola serve. Nesse pensamento,
jamais se considera ou pelo menos não se
cogita a ideia de participação desses
sujeitos nos rumos da escola, nas tomadas
de decisão.
Essa participação efetiva dos sujeitos
do campo vai resultar em um amplo
processo de troca de aprendizado: e, esse
processo possibilitará ouvir o mundo
desses sujeitos, “aprender com suas
experiências de vida, de trabalho, de
convivência e de educação ..., sem
hierarquizar os conhecimentos, valores,
ritmos de aprendizagem”. (Hage, 2014, p.
1.177).
Outra pista que apontamos, assenta-
se na velha separação entre os que pensam
o ensino e entre os que estão nos campos
de atuação cotidianamente, ou seja, há uma
exclusão nos momentos de discussão
daqueles que estão no chão da escola e da
comunidade diariamente. Nesse caminho, é
comum a ideia de que os especialistas, os
pesquisadores, atores externos à escola,
devem criar os projetos pedagógicos.
Dessa forma, observa-se ainda muito
latente a costumeira e antiga ideia de
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hierarquizar os saberes dos professores da
educação básica e os professores de ensino
superior. Fundamentando esse
entendimento, Nóvoa (2009) diz que
acredita-se na tendência de legitimar as
“figuras de referência especialistas e
universitários, sem qualquer ligação com a
profissão docente”. (p. 16).
Ainda de acordo com Nóvoa (2009),
acrescentamos que: é necessário construir
alternativas que reforcem os professores,
os seus saberes e seus campos de atuação,
como primeira possibilidade nesse
caminho. Pois como o estudo nos mostrou
professores iniciantes, professores com
mais de dez anos de atuação, significar os
seus amplos processos de experiência neste
contexto é desestabilizar a lógica que
predomina e hierarquiza, que coloca em
“seus lugares” àqueles que podem executar
e àqueles que podem criar. Pois como
vamos falar de multisseriado, de
transgressões sem levar em consideração
seus reais sujeitos.
É possível considerar outro ponto,
também aliada ao pensamento de Hage
(2014) e diz respeito à valorização da
interculturalidade, ou seja, reconhecer a
multiplicidade de culturas e identidades/
subjetividades existentes na sala de aula
multisseriada. Não se pode negar a
heterogeneidade presente; não se pode
tratar igual o que é diferente.
No costume de tudo homogeneizar e
da nossa pouca experiência com processos
interculturais, nossa primeira ação é
reclamar, dizer que está errado, que não
consegue, que na cidade é diferente e
melhor. Então, qual a solução: tornar
possível a seriação, a homogeneização,
mesmo em um espaço heterogêneo, pois
este é a única forma que sabemos fazer?
Nesse caso, faltariam somente as paredes
concretizadas para separar as séries, mas
simbolicamente elas estão ali, quando se
separa todas as crianças da educação
infantil e primeiros anos,
preferencialmente próximas à mesa da
professora e, colocam de frente para o
quadro, as crianças do 4° e 5° ano. Por
outro lado sabemos que é possível utilizar
a heterogeneidade como algo positivo e
não como problema, demonstrando o
quanto pode ser proveitoso a aprendizagem
dos alunos mais velhos com os alunos mais
novos.
O multisseriado interfere em nossa
zona de conforto, somos desafiados e, no
atual sistema de ensino, você só precisa
passar da fase do desespero e se acomodar-
se nas regras do jogo, ou seja, seriar o que
é múltiplo. Passando essa fase a próxima é
naturalizar, dizer que tudo é assim mesmo,
que não tem jeito, que eles são lentos.
se separam os “lentos”, daqueles mais
“adiantados”; àqueles que conseguem
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tirar do quadro, daqueles que ainda é
preciso segurar na mão para fazer o nome
e, assim, vão se passando anos e anos
trabalhando com o multisseriado, se
tornando especialista nesse processo, mas
sem tentar nenhuma forma de modificar as
estruturas de poder que ali são postas, sem
tão pouco tentar romper com forças e
pensamentos instituídos e naturalizados
que permeiam as mentes e as ações
daqueles que se deparam com esse tipo de
ensino.
Faz-se necessário apontar ainda um
outro norte a ser considerado, que é tentar
superar a visão do currículo escolar
centrada nas disciplinas, entendidas como
fragmentos engavetados em
compartimentos fechados, que oferecem ao
aluno algumas formas de conhecimento
que pouco tem a ver com os problemas
reais, dos saberes fora da escola
(Hernandez, 1998). Nesse aspecto,
predominância na fragmentação do saber,
apartando as possibilidades de diálogo
horizontal entre as áreas de conhecimento.
Essa lógica se justifica em uma visão
sequencial, homogênea dos processos
mentais, da aprendizagem e do
desenvolvimento (Arroyo, 2009). Nessa
lógica os conteúdos são na visão
acumulativa e inflexível, nessa sequência,
as etapas não podem ser queimadas.
Nesse sentido, vamos percebendo
aos poucos que apenas o modelo seriado
que tanto insistimos como o único
caminho, talvez não seja o único possível.
Não podemos entrar na ideia de que um
modelo é melhor que o outro, pois
estaríamos trazendo para a discussão algo
que foi superado, o que estamos
tentando refletir são as diferentes
possibilidades do multissérie e entender
que precisamos tentar muito mais do que
dizer da sua ineficiência antes mesmo de
tentar fazer diferente.
Arroyo (2009), com base em Bruner,
afirma que somos a espécie intersubjetiva
por excelência, e essa é nossa condição
humana e ninguém e nenhum contexto
pode nos tirar. Somos uma comunidade de
interação e a escola deve recuperar sua
função a de ser uma instituição de
coletividades e intercâmbios. A multissérie
nos permite pensar em outros tempos e
espaços escolares. Ou seja, em que as
pessoas saiam de seus isolamentos, onde as
pessoas possam se encontrar, dialogar,
trocar vivências, valores, símbolos, saberes
e significados. Isso tudo nos sugere outras
formas de pensar a educação do campo, em
desenvolvimento nas florestas e terras da
Amazônia.
Referências
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Grande do Sul, Porto Alegre.
1
Essas conferências ocorreram nos anos de 1998 e
em 2004, em Luziânia, resultado de uma ampla
mobilização e debate nacional. A intensa
mobilização recolocou na agenda do poder público
a educação no espaço rural do país, trazendo para o
cenário nacional a possibilidade de discussão e
elaboração de um novo projeto educativo nascido
do próprio campo. Também foi criada uma coleção
de cadernos (07 volumes), com a finalidade de
subsidiar os debates e reflexões e intensificar a
mobilização.
2
Nove municípios fazem parte da região do Alto
Solimões, estado do Amazonas: Benjamin
Constant, Atalaia do Norte, Tabatinga, São Paulo
de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá,
Tonantins, Jutaí e Fonte Boa.
3
Escolas que passaram por um processo de
nucleação e que na região a denominam de escolas
polos rurais. Geralmente são essas escolas que
oferecem os anos finais do ensino fundamental e
ensino médio.
4
Professor do beiradão é um termo utilizado pela
população local para se referir ao professor da
cidade que atua na zona rural da região.
5
Tipo de embarcação comum na região. São canoas
com coberturas de lona ou zinco, com motor que
varia de 9 a 13 HP.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 01/12/2018
Aprovado em: 06/03/2019
Publicado em: 28/05/2019
Received on December 01st, 2018
Accepted on March 03rd, 2019
Published on May, 28th, 2019
Contribuições no artigo: A autora foi a responsável por
todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação
da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The author was responsible for the
designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content
and approval of the final version to be published.
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ISSN: 2525-4863
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Conflitos de interesse: A autora declarou não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Jarliane da Silva Ferreira
http://orcid.org/0000-0003-1180-789X
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Ferreira, J. S. (2019). O ensino em turmas multisseriadas
e suas condições de trabalho: um olhar para as escolas do
campo na região do Alto Solimões, Amazonas. Rev. Bras.
Educ. Camp., 4, e6230. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6230
ABNT
FERREIRA, J. S. O ensino em turmas multisseriadas e
suas condições de trabalho: um olhar para as escolas do
campo na região do Alto Solimões, Amazonas. Rev. Bras.
Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 4, e6230, 2019. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6230