Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.v4e6406
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
e6406
10.20873/uft.rbec.v4e6406
2019
ISSN: 2525-4863
1
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Legislação sobre posse de terras e Educação do Campo no
Brasil
Elizabeth Moreira Gomes
1
,
Alexandre Fraga de Araújo
2
,
Maria Isabel Antunes-Rocha
3
1
Instituto Federal do Norte de Minas Gerais - IFNMG. Campus Araçuaí. Fazenda do Meio da Serra, s/n, BR 367, km 278.
Araçuaí-MG. Brasil.
2
Instituto Federal do Espírito Santo - IFES.
3
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
Autor para correspondência/Author for correspondence: emg_bethgomes@yahoo.com.br
RESUMO. Este artigo objetiva refletir acerca de duas grandes
questões que envolvem os campesinos e que se constituem como
“bandeiras” fundamentais: a primeira é a questão da terra, a
segunda é a educação do campo. Toma-se, inicialmente, como
objeto de análise as Constituições Federais Brasileiras por
entender que tais compõem as visões historicamente construídas
acerca do campesino brasileiro, para em seguida iniciar
reflexões acerca das propostas da Educação do Campo. Tais
reflexões evidenciam as relações entre a construção do que,
neste artigo, se denomina como “invisibilidade” das populações
campesinas e a constituição de um movimento em prol de uma
educação que considere suas especificidades. Tais lutas em
relação à constituição de uma educação de qualidade para os
sujeitos campesinos vêm garantindo algumas conquistas de
modo a torná-los visíveis, em detrimento de uma visão
hegemônica que tende a torná-los uma massa amorfa,
desconsiderando suas especificidades e saberes.
Palavras-chave: Constituições Federais, Movimentos Sociais,
Luta, Educação do Campo.
Gomes, E. M., Araújo, A. F., & Antunes-Rocha, M. I. (2019). Legislação sobre posse de terras e Educação do Campo no
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Land tenure legislation and countryside education in
Brazil
ABSTRACT. This paper aims at reflecting about two great
questions concerning rural population; such questions constitute
themselves as fundamental fighting pillars: land, and
countryside education. Firstly, Brazil’s Federal Constitution is
taken under analyses, since it represents the official view
towards rural population, secondly, reflections are drawn
regarding what is suggested concerning Countryside Education.
These reflections highlight the relationship between, what is
here denominated as “invisibility” regarding rural population,
and a movement towards an education that takes under
consideration its specificities. The battles for better education
for rural communities has guaranteed some achievements, thus
making them visible, in detriment of a hegemonic view, which
tends to take rural populations as part of a whole, disregarding
their specificities and traditional knowledge.
Keywords: Federal Constitutions, Social Movements, Fighting,
Countryside Education.
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Legislación sobre tenencia de tierras y Educación del
Campo en Brasil
RESUMEN. Este trabajo tiene el objetivo de reflexionar acerca
de dos grandes cuestiones que involucran a los campesinos y
que se constituyen como banderas fundamentales: la primera es
la cuestión de la tierra, la segunda es la educación del campo. Se
toma inicialmente como objeto de análisis las Constituciones
Federales Brasileñas por entender que tales componen las
visiones históricamente construidas acerca del campesino
brasileño, para luego iniciar reflexiones acerca de las propuestas
de la Educación del Campo. Tales reflexiones evidencian las
relaciones entre la construcción de lo que en este artículo se
denomina invisibilidad de las poblaciones campesinas y la
constitución de un movimiento en favor de una educación que
considere sus especificidades. Tales luchas con relación a la
constitución de una educación de calidad para los sujetos
campesinos vienen garantizando algunas conquistas para
hacerlos visibles, en detrimento de una visión hegemónica que
tiende a hacerlos como parte del todo, desconsiderando sus
especificidades y saberes.
Palabras clave: Constituciones Federales, Movimientos
Sociales, Lucha, Educación del Campo.
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Introdução
A sociedade brasileira construiu e se
acostumou a uma invisibilidade das
populações do campo. Caso se considere
que o “olhar” do outro ajuda o sujeito a se
constituir como tal, e que as ideias de
movimentos sociais normalmente
demandam um tempo para alcançarem a
adesão da sociedade em geral, os sujeitos
de movimentos campesinos têm
desempenhado um duplo esforço.
O primeiro esforço se encaminha no
sentido de desconstruir uma representação
de campo e de campesino caracterizados
pela falta, pelo atraso, pela ignorância. O
segundo se amplia no sentido de alcançar a
empatia da sociedade para com essas
populações, esses lugares e para com o
próprio movimento de modo a legitimar os
posicionamentos desenvolvidos em seu
interior.
Desse modo, tais grupamentos
sociais têm buscado “virar o jogo”, a partir
de formas de organização que alcançam
mobilização significativa, demonstrando a
capacidade de lutas e reflexões em busca
de conquistas no campo social e
educacional. Neste artigo, objetiva-se
refletir acerca de duas grandes questões
que envolvem os campesinos e que se
constituem como “bandeiras”
fundamentais: a primeira é a questão da
terra, a segunda é a educação do campo.
Em relação a questões de terra,
desenvolvem-se discussões acerca de
discursos legais, tendo como foco as
Constituições Federais Brasileiras, no
sentido de entender como o Estado tem-se
colocado juridicamente em relação à
questão da propriedade no país. Essa é uma
questão importante, visto que
posicionamentos jurídicos que
regulamentam a posse de terras implicam
visões de sujeitos possuidores de bens,
especificando o “lugar” tanto de
possuidores, como do Estado no que tange
à regulação de direitos a propriedades.
Entender como o Estado brasileiro
institui(u) posicionamentos com vistas à
garantia de construção de políticas de bem-
estar social, torna-se fundamental, pois
esses definem econômica e socialmente o
destino das populações.
Entre os direitos fundamentais do
homem (a partir da idade moderna),
encontram-se àqueles relativos à moradia,
à educação, ao lazer, enfim, direitos que
emprestam ao homem dignidade e
qualidade de vida. Dentre tais, destacou-se
o direito à educação. Por isso, a segunda
parte deste artigo encaminha-se para
discussões relativas à educação do campo,
uma vez que além de se constituir como
direito fundamental, constitui-se também
como uma das maiores reivindicações das
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populações campesinas, conforme se
afirmou anteriormente.
As Constituições Federais Brasileiras e a
posse de terras
Ao se pensar o texto das
Constituições Federais Brasileiras não se
pode negar dois fatos que tiveram
influência significativa na produção dessas.
São eles a independência da América
(1776) e a Declaração dos Direitos
Humanos (1789). Esses fatos históricos
evidenciam uma perspectiva libertária,
calcada no tripé: liberdade, igualdade e
fraternidade, reafirmando as ideias
iluministas vigentes em todo o mundo.
A Assembleia Nacional Constituinte
da França aprovou e votou a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão,
definidora dos direitos individuais e
coletivos dos homens (tomada a palavra na
acepção de “seres humanos”) como
universais. Naquele documento,
influenciado pela doutrina dos “direitos
naturais”, os direitos dos homens passaram
a universais: válidos e exigíveis a qualquer
tempo e em qualquer lugar, pois se
amalgamam à própria natureza humana, e a
esta se mostram e se incorporam: Art.1.º
Os homens nascem e são livres e iguais em
direitos. As distinções sociais podem
fundamentar-se na utilidade comum”.
(Humanos, 2013).
Desta condição de “seres humanos” a
lei não excluiu os índios, os negros e os
mamelucos que viviam sob a dominação
portuguesa, no caso do Brasil: “Art. 2.º A
finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Esses direitos
são a liberdade, a propriedade, a segurança
e a resistência à opressão”. (Humanos,
2013).
A partir desses fatos e leis inicia-se,
em todo o mundo, especialmente na
América, movimentos ligados quer à
independência das colônias, quer à
libertação de negros e povos escravizados,
sendo que em relação a estes a luta se
desenvolveu também no sentido de
reconhecê-los como “humanos”
i
. Na
contramão dessa história popular, os
colonizadores portugueses no Brasil
passaram a adotar punições severas,
condenando à morte aqueles que se
atreviam a promulgar a igualdade,
liberdade e fraternidade. Paradoxalmente,
entretanto, estabelecem-se as legislações
de caráter liberal, o que, para a época,
significará grandes avanços.
As Constituições Brasileiras
abordam diferentemente a questão da
propriedade, cada uma, via de regra,
obedecendo a preceitos colocados para os
diferentes tempos que as produziram. De
acordo com Ferreira (2007), observa-se:
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Na evolução histórica do
constitucionalismo brasileiro, é
possível distinguir três fases
distintas, cada uma das quais
marcada por influência de valores
políticos, jurídicos e ideológicos
diversos na formalização das
instituições em geral e da
propriedade em particular embora
seja inegável a existência de uma
incorporação cumulativa dos
diferentes influxos. A primeira fase
está ligada aos padrões
constitucionais inglês e francês do
século XIX; a segunda, ao modelo
norte-americano; a terceira, ao
constitucionalismo de origem alemã
vigente no século XX. (Bonavides,
1993, apud Ferreira, 2007, p. 184).
Em 1822, o país se torna
independente de Portugal, porém, mantém
a grande maioria da população nas
correntes do analfabetismo e outra parte na
escravidão, provendo a alguns poucos,
depois de dois anos, uma Constituição
Federal (CF) promulgada e capaz de
refletir os ideais liberais vigentes.
A Constituição Federal de 1824,
assim como ocorrera na Lei de Terras de
1850, mantém o direito à propriedade,
independentemente de seu uso ou não pelo
possuidor. Em seu Artigo 179, Inciso XXII
determina que:
Art. 179. A inviolabilidade dos
Direitos Civis, e Politicos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por
base a liberdade, a segurança
individual, e a propriedade, é
garantida pela Constituição do
Imperio, pela maneira seguinte.
XXII. É garantido o Direito de
Propriedade em toda a sua plenitude.
Se o bem público legalmente
verificado exigir o uso, e emprego da
Propriedade do Cidadão, será elle
préviamente indemnizado do valor
della. A Lei marcará os casos, em
que terá logar esta única excepção, e
dará as regras para se determinar a
indemnização. (Brasil, 1824).
Como se pode perceber, a
Constituição garante o direito à
propriedade em sua plenitude, o que
implica a continuidade do direito de
compra e venda, independentemente do
uso da terra ou não. A terra continuava a
ser uma propriedade individual da qual seu
possuidor poderia dispor livremente,
podendo ser requerida pelo Estado, desde
que comprovada a necessidade e acertada a
indenização ao proprietário.
Essa mesma ideia é mantida na CF
de 1891, cujo Artigo 72, Parágrafo 17
(Seção II Declaração de Direitos) dispõe:
Artigo 72: “O direito de propriedade
mantém-se em toda a sua plenitude,
salvo a desapropriação por
necessidade ou utilidade publica,
mediante indenização previa. As
minas pertencem aos proprietários do
solo, salvas as limitações que forem
estabelecidas por lei a bem da
exploração deste ramo de indústria”.
(Brasil, 1891).
Como houve resistência ao tripé
humanitário (liberdade, igualdade e
fraternidade), os intelectuais e
revolucionários buscaram outros direitos o
que teria provocado ao longo do século
XIX revoluções e problemas sociais, que
assolaram os Estados, ao ponto de lhes
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impor modificações profundas, tornando-
os irreconhecíveis e porque não dizer,
extintos da forma que anteriormente se
afirmaram. Surge o estado social ou do
bem-estar social, cuja influência foi
identificada, pela primeira vez, no Texto
Político Mexicano de 1917, e,
posteriormente, na Constituição Alemã,
em 1919. À Carta Política Mexicana é
atribuída, a primeira dentre todas, a
inserção e elevação dos direitos
trabalhistas à qualidade de direitos
fundamentais, juntamente com as
liberdades individuais e os direitos
políticos (arts. 5º e 123º).
A importância desse precedente
histórico deve ser salientada, pois na
Europa a consciência de que os direitos
humanos teriam também uma dimensão
social veio a se firmar após a grande
guerra de 1914/1918. A Constituição de
Weimar (Alemanha), em 1919, trilhou a
mesma via da Carta Mexicana, e todas as
convenções aprovadas pela recém-criada
Organização Internacional do Trabalho, na
Conferência de Washington daquele
mesmo ano, pautaram-se por princípios e
regulamentações de matérias que já
constavam da Constituição Mexicana, tais
como: a limitação da jornada de trabalho, o
desemprego, a proteção da maternidade, a
idade mínima de admissão nos trabalhos
industriais e o trabalho noturno dos
menores na indústria.
Entre a Constituição Mexicana e a de
Weimar Verfassung, eclode a Revolução
Russa, um acontecimento decisivo na
evolução da humanidade do século XX. O
III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de
Deputados Operários, Soldados e
Camponeses, reunido em Moscou adotou
em janeiro de 1918, antes do término da
Guerra Mundial, a Declaração dos Direitos
do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse
documento, são afirmadas e levadas às
suas consequências, agora com apoio da
doutrina marxista, várias medidas
constantes da Constituição Mexicana, tanto
no campo socioeconômico quanto no
político.
Todos esses novos referenciais
alteraram a concepção do direito de
propriedade, passando a reconhecer a
existência de deveres do proprietário em
relação à sociedade. E ainda por temor ao
alastramento dos ideais marxistas
agregou-se à propriedade o princípio da
função social, que alguns estudiosos
sustentam e atribuem sua formulação a
Augusto Comte e sua postulação a León
Duguit.
Foi o mesmo León Duguit, quem
afirmou de forma mais veemente que a
propriedade teria de deixar de ser somente
um direito subjetivo do indivíduo para se
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converter em função social, restando ao
seu detentor a obrigação de empre-la
para o crescimento da riqueza social e
para a interdependência social
ii
.
No Brasil, a Constituição de 1934
seguindo os ideais mexicanos e europeus,
trouxe importante inovação, ao afirmar,
ainda que de modo indireto, a função
social da propriedade. Conforme dispõe
em seu artigo 113: “Art. 113: É garantido o
direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou
coletivo, na forma que a lei determinar. A
desapropriação por necessidade ou
utilidade pública far-se-á mediante previa e
justa indenização”. (Brasil, 1934).
Porém, em 1937, no Texto
Constitucional, a noção de que a
propriedade deveria atender sua função
social, logo se retraiu e na lição de
Ferreira (2007, p. 186) a Constituição de
1937 “marcou um retrocesso” em relação
ao texto anterior, pois no Art. 122, Inc. 14,
apenas assegurou o direito à propriedade e
fez vaga referência que seu conteúdo e
limites seriam definidos nas leis que
regulassem o seu exercício, nada
explicitando em relação à função social da
terra.
Na Constituição de 1946, apesar da
diversidade de correntes de pensamento
representadas na Constituinte de 1946,
predominavam as ideias conservadoras às
progressistas ou socialistas (Motta, 1997).
A composição social e profissional de seus
membros, “congregava maciçamente
titulares de propriedades”. Mais de 90%
dos constituintes eram pessoalmente
proprietários, ou vinculados por seus
parentes próximos pais e sogros à
propriedade, sobretudo imobiliária.
Compreende-se que desse “corpo coletivo
jamais poderia brotar texto oposto à
propriedade”. (Baleeiro, 1997). A
constituição de 1946, após a omissão da
Carta de 1937, estabeleceu, de modo
explícito, em seu artigo 147, que: “o uso da
propriedade será condicionado ao bem-
estar social. A Lei poderá, com
observância do disposto no artigo 141,
parágrafo 16, promover a justa distribuição
da propriedade, com igual oportunidade
para todos”. (Brasil, 1946). E por
referência ao art. 141, §16 tem-se que:
Art. 141. A Constituição assegura aos
brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade
dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 16: É garantido o direito de
propriedade, salvo o caso de
desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, ou por interesse
social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro. Em caso de
perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, as autoridades
competentes poderão usar da
propriedade particular, se assim o
exigir o bem público, ficando,
todavia, assegurado o direito a
indenização ulterior. (Brasil, 1946).
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O Artigo citado constitui um marco
jurídico, porque prevê a desapropriação
por interesse social e, sobretudo, porque
busca assegurar a justa distribuição e igual
oportunidade de acesso à propriedade. Pela
primeira vez, passou-se a exigir do
proprietário não somente uma abstenção,
um “não-fazer”, mas uma teia de atos
positivos, concretos, de exploração
econômica do imóvel rural. A propriedade
passou a ser um direito-dever, em nosso
direito positivo (Loureiro, 2003).
As constituições de 1967 e a emenda
Constitucional de 1969, não obstante o
ambiente político repressivo em que foram
geradas, apresentam de modo claro, como
finalidade da ordem social, realizar o
princípio da função social da propriedade
(art. 157, III), regulando inclusive a
desapropriação da propriedade territorial
rural. Essa matéria é tratada também no
artigo 153 como direito inviolável da
pessoa humana, ao lado dos direitos à vida,
à liberdade e à segurança. Pela primeira
vez, efetivamente a propriedade é tratada
tanto no capítulo dos direitos e garantias
individuais quanto no título da ordem
econômica e social, o que representa uma
mudança profunda no conceito do instituto
(Ferreira, 2007).
Entretanto, essa preocupação deve
ser vista em seu contexto de criação.
Datam desse período, pelo menos duas
grandes proposições em relação à
ocupação de terras: a primeira, a ocupação
da Região Norte do país, inclusive a
construção da Rodovia Transamazônica,
cujos preceitos seguiam as ideias colocadas
a partir da “Revolução Verde”. Assim, sob
o pretexto de produção de alimentos em
larga escala, para acabar com a fome
mundial, justifica-se a ocupação (a partir
da comercialização) das terras ao norte.
Novamente, porém, as terras são
“vendidas”, financiadas a longo prazo para
fazendeiros e tinham como propósito a
produção em larga escala: retoma-se a
monocultura com vistas à exportação e a
ocupação de grandes extensões de terras,
ocorrendo a “re-inauguração” de
latifúndios.
Nessa direção, quando se busca
entender a preocupação com a função
social da terra estabelecida na Constituição
Federal de 1967 e no Ato Institucional de
1969, ou seja, em um contexto ditatorial,
faz-se necessário que sejam pensados os
contextos que produziram tais discursos.
Em primeiro lugar, o financiamento dessas
“políticas públicas” teve apoio no “Grupo
Rockfeller”, que, a partir desse
momento expandiu seu mercado
consumidor, fortalecendo a corporação
com vendas de pacotes de insumos
agrícolas, principalmente para países em
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desenvolvimento como Índia, Brasil e
México.
Foram financiadas pesquisas com
vistas à criação de sementes mais
resistentes e próprias para os diferentes
tipos de solos, que, “enriquecidos”
fortemente por adubação química
realmente aumentaram a produção de
alimentos, porém esse aumento não
significou a erradicação da fome, visto que
seu consumo alcançou apenas as
populações de países mais ricos. Aos
países pobres como o Brasil restaram para
grandes proprietários a mecanização da
lavoura, mas para pequenos proprietários
as dívidas, cujo recurso foi entregar a terra
como pagamento pelo não alcance de
metas traçadas. Veja-se o texto da Lei:
Art. 157 A ordem econômica tem
por fim realizar a justiça social, com
base nos seguintes princípios:
II valorização do trabalho como
condição da dignidade humana;
III função social da propriedade;
IV harmonia e solidariedade entre
os fatores de produção;
V desenvolvimento econômico;
§ 3º A desapropriação de que trata o
§ é da competência exclusiva da
União e limitar-se às áreas
incluídas nas zonas prioritárias,
fixadas em decreto do Poder
Executivo, recaindo sobre
propriedades rurais cuja forma de
exploração contrarie o disposto neste
artigo, conforme for definido em lei.
§ A indenização em títulos
somente se fará quando se tratar de
latifúndio, como tal conceituado em
lei, excetuadas as benfeitorias
necessárias e úteis, que serão sempre
pagas em dinheiro.
§ Os planos que envolvem
desapropriação para fins de reforma
agrária serão aprovados por decreto
do Poder Executivo, e sua execução
será da competência de órgãos
colegiados, constituídos por
brasileiros, de notável saber e
Idoneidade, nomeados pelo
Presidente da República, depois de
aprovada a escolha pelo Senado
Federal.
§ O Presidente da República
poderá delegar as atribuições para
desapropriação de imóveis rurais, por
interesse social, sendo-lhe privativa a
declaração de zonas prioritárias.
§ Nos casos de desapropriação,
na forma do § do presente artigo,
os proprietários ficarão isentos dos
impostos federais, estaduais e
municipais que incidam sobre a
transferência da propriedade
desapropriada. (Brasil, 1967).
Ato institucional 9 de 25 de abril
de 1969:
CONSIDERANDO, ainda, que a
Reforma Agrária, para a sua
execução, reclama instrumentos
hábeis que implicam alterações de
ordem constitucional, resolve editar o
seguinte Ato Institucional:
Art. 1 O § do art. 157 da
Constituição Federal passa a vigorar
com a seguinte redação:
Art. 157 (omissis)
§ 1º - Para os fins previstos neste
artigo a União poderá promover a
desapropriação da propriedade
territorial rural, mediante pagamento
de justa indenização, fixada segundo
os critérios que a lei estabelecer, em
títulos especiais da dívida pública,
com cláusula de exata, correção
monetária, resgatáveis no prazo
máximo de vinte anos, em parcelas
anuais sucessivas, assegurada a sua
aceitação, a qualquer tempo, como
meio de pagamento de até cinquenta
por cento do imposto territorial rural
e como pagamento do preço de terras
públicas.
Art. É substituído o § do art.
157 da Constituição federal pelo
seguinte:
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§ O Presidente da República
poderá delegar as atribuições para
desapropriação de imóveis rurais, por
interesse social, sendo-lhe privativa a
declaração de zonas prioritárias.
(Brasil, 1969).
Deve-se ressaltar ainda que foram os
militares, em 30 de novembro de 1964, no
governo do presidente Marechal Humberto
Castelo Branco, que instituíram a primeira
Lei de Reforma Agrária no Brasil, a Lei de
4504, também conhecida como
“Estatuto da Terra”.
O Estatuto da Terra surgiu da
necessidade de distribuição de terras;
construiu um conceito de campo,
determinou os níveis de produtividade e
caracterizou o uso social da terra. Não
como negar que o Estatuto apresentou
caráter inovador, introduziu novos
conceitos ligados à questão agrária. Foi
através do Estatuto que se mensurou o
minifúndio e o latifúndio. Essa mensuração
se daria através dos módulos fiscais, que
variavam de acordo com a região, sendo a
partir de 15 módulos considerada
latifúndio, logo, passível de desapropriação
para fins de reforma agrária.
Outra caracterização refere-se aos
níveis de produtividade. Para essa, foram
traçadas as unidades mínimas de produção
por módulo rural a fim de caracterizá-las
como produtivas ou improdutivas (Brasil,
1964). Outra inovação deste Diploma
Legal foi a definição de função social da
terra, estatuído no Título I Disposições
Preliminares, Capítulo I Princípios e
Definições, que em seu §1º do artigo 2º
conceitua a função social da seguinte
maneira (Brasil, 1964):
Art. 2º (omissis)
§ A propriedade da terra
desempenha integralmente a sua
função social quando,
simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos
proprietários e dos trabalhadores que
nela labutam, assim como de suas
famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de
produtividade;
c) assegura a conservação dos
recursos naturais;
d) observa as disposições legais que
regulam as justas relações de trabalho
entre os que a possuem e a cultivem.
Apesar de o Estatuto da Terra
parecer, por suas definições, uma
possibilidade de mudança na estrutura
fundiária, ele possui uma dualidade entre a
questão distributiva da terra, representada
pela reforma agrária e a modernização do
campo, sobrepondo o caráter econômico ao
social (Filho & Fontes, 2009). Essa
dicotomia entre o social e o econômico
favoreceu às grandes propriedades, que
contavam com maiores facilidades de
modernização do campo e acesso a crédito.
Apesar do caráter progressista do
Estatuto da Terra e da sinalização de
transformações importantes no âmbito da
questão agrária brasileira, pode-se afirmar
que esse não saiu do papel e a reforma
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agrária segue sem acontecer no país. A
política dos governos militares reduziu-se a
esporádicos projetos de colonização,
principalmente na região amazônica (Silva,
1997).
Daí retomar a “advertência” de
Stédile (1997) da “não” necessidade de
aprovar e legislar para que a reforma
agrária aconteça, bastando para tanto
aplicar o cumprimento das leis que
existem (Stédile, 1997; 2002).
Como resultante do processo de
redemocratização e de lutas dos
movimentos sociais, cada vez mais
organizados, em outubro de 1998, admitido
novo Texto Político, não se deu nenhuma
inovação em relação à Lei 4.504. Pode-se
dizer até que houve retrocessos, pois, a
nova constituição acabou por legitimar o
“latifúndio produtivo”, porém se omitindo
a regulamentar o artigo que prevê a
desapropriação de terras maiores que o
limite máximo de módulos fiscais,
projetando “vida longa” ao latifúndio.
A verdade é que até os dias atuais os
níveis de produtividade por módulo fiscal,
se mantêm intactos aos padrões editados
em 1964 (Stédile, 2002). Também vale
ressaltar que foram implementadas
algumas medidas provisórias e algumas
emendas constitucionais, entretanto nada
de relevante no que diz respeito a
transformações consideráveis na
disposição legislativa fundiária no Brasil.
Do ponto de vista legal e político as
ações voltadas à desconcentração de terras,
durante a década de 1990, não
apresentaram transformações
consideráveis. No plano econômico, a
expansão do agronegócio, fruto da
globalização e reabertura econômica,
muito contribuiu para a intensificação da
concentração de terras e diminuição do
número de estabelecimentos rurais
(Oliveira, et al., 2005).
no plano infraconstitucional,
merece destaque o Inciso XXII do art. ,
que estabelece como direito fundamental à
propriedade privada: “XXII – é garantido o
direito de propriedade. (Brasil, 1988). E
mais garantias tem-se do §4º do art. 60,
que estabelece garantia dupla à
propriedade: “Não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir.” (Brasil, 1988).
Isso significa que, enquanto a atual
Constituição se mantiver em vigência, será
impossível a supressão desse direito.
Nenhum outro direito fora tratado pela
Constituição Federal com tanta segurança e
fundamento. Já para a propriedade rural, o
art. 186 da Constituição Federal (Brasil,
1988) estipula que:
Art. 186. A função social é cumprida
quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e
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graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I aproveitamento racional e
adequado;
II utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III observância das disposições que
regulam as relações de trabalho;
IV exploração que favoreça o bem-
estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
Assim, a propriedade rural cumpre
sua função social se os empregados
estiverem em situação condizente com a
legislação, os recursos naturais da
propriedade não forem utilizados de
maneira abusiva, entendendo o Texto
Político que a propriedade está dentro dos
parâmetros legais constitucionais. Também
se acham estendidos no Texto Político
hipóteses para um melhor aproveitamento
da propriedade, podendo ser objeto de
reforma agrária, se por esta se interessar,
quer pela utilidade que lhes será reservada,
quer por necessidade pública que a
propriedade possa vir a possuir.
Em ambos os casos não se tratará de
compra, mas de expropriação ou
desapropriação, oportunidades em que
serão estipuladas indenizações prévias e
justas, que a atual Constituição Federal
trata em Art. 184:
Art. 184. Compete à União
desapropriar por interesse social, para
fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua
função social, mediante prévia e justa
indenização em títulos da dívida
agrária, com cláusula de preservação
do valor real, resgatáveis no prazo de
até vinte anos, a partir do segundo
ano de sua emissão, e cuja utilização
será definida em lei. (Brasil, 1988).
Nossos legisladores, salvo exceções,
não fazem render suas obras legislativas
em benefício da justiça criando sempre um
hiato entre aquilo que é justiça (bem a ser
distribuído para todos) e aquilo que é lei
(matéria delimitada destinada a
determinado número de pessoas).
A partir da exposição anterior,
espera-se ter minimamente apresentado, a
partir das legislações expressas uma visão
panorâmica de formas de tratamento da
propriedade no Brasil. Do Império à
República, é fato que tal matéria tem sido
tratada a partir de um viés mais propenso
ao Liberalismo, tendo o Estado pouca
preocupação social, o que de certa forma,
“justifica” que ainda no século XXI a
Reforma Agrária não tenha ocorrido de
fato.
Campesinos e a luta pela educação:
Os movimentos sociais ligados ao
campo entendem que o direito e o acesso à
terra necessitam se ancorar em outros
direitos e outras possibilidades de acesso.
Por isso, principalmente a partir das
décadas de 1980/1990, eles vêm
construindo um conjunto de pressupostos e
propostas que consideram os vários
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aspectos de uma vida de qualidade e
dignidade. No interior dessa pauta de
reivindicações, direitos concernentes à
educação ganham vulto, no sentido de
garantir não apenas a posse de terras, mas
de tornar os lugares onde vivem dotados de
qualidade, de modo a garantir a
permanência desses povos no campo.
Uma de suas lutas passa a ser, pois, a
luta pela educação; vista como um direito
de todos e como uma forma de libertação
de si e de outros. E, nesse sentido, os
povos do Campo passam a desenvolver
lutas que os colocam como protagonistas
da própria história. Para tanto, várias são as
conferências, os encontros e as discussões
ocorridas cotidianamente no interior das
várias comunidades campesinas, no
interior de escolas e universidades e no
órgão máximo de Educação, o Ministério
de Educação e Cultura.
Reflexões acerca de quem são esses
sujeitos e que educação buscam construir,
constituem-se como objeto de reflexão
neste artigo. A construção de diretrizes
educacionais é resultado de debates
coletivos que oportunizaram a tomada de
consciência, por parte desses grupos
sociais sobre si e sobre os outros.
Entretanto, para que tais debates pudessem
ocorrer de forma crítica e consciente,
tornou-se fundamental uma
explicitação/definição de si mesmos.
Os atos de nomear e definir implicam
uma ação que busca reconhecer a si
mesmo. Sem um nome e sem uma
definição clara do que se é, pode ocorrer
um truncamento de informações,
impedindo a construção de pertencimento,
de reconhecimento de determinado grupo.
Nesse caso, a nomeação/definição visou
esclarecer a diversidade, além de
identificar traços de união entre o grupo. A
definição vem expressa a partir do Decreto
7.352/2010 que afirma:
§ 1º Para os efeitos deste Decreto,
entende-se por:
I populações do campo: os
agricultores familiares, os
extrativistas, os pescadores
artesanais, os ribeirinhos, os
assentados e acampados da reforma
agrária, os trabalhadores assalariados
rurais, os quilombolas, os caiçaras, os
povos da floresta, os caboclos e
outros que produzam suas condições
materiais de existência a partir do
trabalho no meio rural. (Decreto
7.352/2010, citado por Molina e
Freitas, 2011, p. 21).
Paralelamente à definição de si
mesmos, cumpria também organizar as
propostas relativas à educação construídas
e constituídas no interior de lutas dessas
populações. Assim, princípios são
construídos e consolidados, pois não se
quer qualquer educação. Não se quer
principalmente uma educação transposta
da cidade para o campo. Recusa-se a até
então denominada “Educação Rural”, visto
que essa se organizou em uma perspectiva
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excludente e de “conformação” social, que
não dava conta de abarcar a diversidade
dessas populações, mas principalmente não
dava conta de entender os povos do campo
a partir de seu protagonismo.
A recusa ao “nome” (educação rural)
significou a ruptura com uma visão calcada
em uma assimetria social e educacional em
busca de construção de uma educação
baseada na participação coletiva. Passou-se
a denominar “Educação do Campo”, o que
ressalta a apropriação coletiva dos sujeitos
do campo. A Educação passa a se
organizar como necessidade para o
atendimento de demandas (aprendizagens,
valorização de formas de vida, das culturas
desses povos), e principalmente se constrói
como uma educação em que os campesinos
se apropriam dela, com o objetivo de
constituírem a si mesmos e se verem
reconhecidos como sujeitos históricos e
sociais, sem perderem de vista a
universalização dos conhecimentos como
um direito social.
Ainda é importante nomear (se não
todos) alguns desses movimentos que têm
participado dessa construção e organização
política a fim de garantir conquistas para
os povos do campo. De acordo com
Martins (2013, p. 183), várias são as
organizações, movimentos, instituições que
têm contribuído para, sejam pensadas a
Educação do Campo:
Entre os movimentos sociais que
compõem a Educação do Campo, o
MST, indubitavelmente, se destaca.
Redes regionais ou locais, que
assumem características de
movimentos sociais, como a Rede de
Educação do Semiárido Brasileiro
(RESAB). É possível enfatizar
também o Movimento dos Atingidos
pelas Barragens (MAB), o
Movimento das Mulheres
Camponesas (MMC), a
Confederação dos Trabalhadores da
Agricultura (CONTAG), o
Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA), as Associações
Regionais das Casas Familiares
Rurais (ARCAFARs), e sua
expressão nacional, a União Nacional
das Escolas Famílias Agrícolas do
Brasil (UNEFAB), a Federação
Nacional dos Trabalhadores e
Trabalhadoras na Agricultura
Familiar (FETRAF). (Martins, 2013,
p. 183).
Ressalte-se a importância da “I
Conferência Nacional: Por uma Educação
Básica do Campo”, ocorrida em Brasília
(1996), que significou um marco
organizacional, teórico e metodológico
para a construção e implementação de
Políticas Públicas para essas populações.
Foi também, principalmente a partir desse
momento, que as lutas campesinas
ganharam maior visibilidade em nível
nacional em sua luta para a garantia de
direitos desses povos.
A I Conferência Nacional: Por uma
Educação Básica do Campo pode ser
considerada um marco importante.
Trata-se de um processo de reflexão
e mobilização do povo em favor da
educação que considere nos seus
conteúdos e na metodologia, o
específico do campo. Esse processo
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foi iniciado como consta na Coleção
(números 1 a 6) Por uma educação
básica do campo, no final do I
Encontro Nacional de Educadores e
Educadoras da Reforma Agrária (I
ENERA), promovido pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), em julho de 1997,
em Brasília, em parceria com
diversas entidades, como a
Universidade de Brasília (UnB), o
Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef), a Organização das
Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (Unesco) e a
Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). O trabalho coletivo
dessas entidades e instituições partiu
do pressuposto do que seria
específico da educação do campo
levando em conta a cultura, as
características, as necessidades e os
sonhos dos que vivem no e do
campo. (Zen & Foerste, 2006, p. 1).
Parafraseando Caldart (2009),
reafirma-se que o país se encontra em um
momento de crise. Crise que alcança
aspectos estruturais, políticos, sociais,
educacionais, identitários, éticos... enfim,
essa lista poderia ser infinita; porém, o que
se quer aqui reafirmar é que esse termo
(crise) e mais que isso a sua vivência têm
se tornado uma constante na vida de
brasileiros, propalada quer em meios
midiáticos, quer em conversas ordinárias,
quer em meios políticos... mas, destaque-
se, que a educação do campo também tem
se defrontado com “crises”, que se
revelam, dentre outras, no fechamento de
escolas do campo.
Convive-se contemporaneamente
com uma perspectiva que coloca a
educação do campo no “fio da navalha”
(Caldart, 2009), evidenciado por
antagonismos que, por um lado, tornam
propenso o fechamento de escolas
existentes no campo, sob alegação de um
excesso de despesas em relação à
manutenção de tais. Mas por outro lado,
também se registram “ganhos” com
aumentos significativos de oferta de
formação superior e/ou profissional que
deve alcançar os povos do campo.
Nesse interstício entre o fechamento
e a construção de políticas públicas que
propiciam o atendimento aos povos do
campo, que papel exerce o Estado? Como
explicar e entender essa aparente dicotomia
que insiste em “residir” no próprio Estado?
Que aspectos têm determinado tais ações
por parte do Estado? E, de que formas as
populações do campo têm se organizado
para tentar reverter essas ações, de modo a
dar continuidade às políticas de formação e
superação de desigualdades? O fio da
navalha se torna mais afiado.
Refletir sobre tais questões é ponto
fundamental para se pensar os caminhos e
possibilidades relacionados à continuidade
e ampliação da educação do campo. Os
dados do censo escolar do INEP Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, indicam que
o número de escolas que têm sido fechadas
vem crescendo nos últimos anos. Esses
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dados indicam o fechamento de mais de 37
mil escolas do campo nos últimos 15 anos,
sendo as regiões Norte e Nordeste, as
“campeãs” com cerca de 1986 escolas,
seguidas pelas regiões Sul e Sudeste com
588, apenas no ano de 2014
iii
.
Entretanto, outros dados evidenciam
a existência de um crescimento em termos
de cumprimento de políticas públicas em
relação a processos de formação das
populações campesinas. Essas populações
vêm pressionando de diferentes formas a
União de modo a verem cumpridos direitos
constitucionais conquistados. Isso implica
o crescimento de oferta educacional para
as populações campesinas, embora não
deem conta de suprir as demandas,
principalmente em relação à formação de
professores, conforme demonstrado em
Hage, Silva e Brito (2016, p. 155-156):
A partir do Decreto 7.352/2010
(Brasil, 2010), que instituiu a Política
Nacional de Educação do Campo e
definiu metas específicas para a
formação de educadores, o MEC
lançou o Edital 02 de 31/08/2012
(Brasil, 2012), vinculado à
SESu/Setec/Secadi/MEC, que
aprovou 42 projetos do Procampo
apresentados pelas universidades e os
institutos federais, para ofertar, cada
um deles, 300 vagas regulares na
modalidade presencial durante três
anos no Curso de Licenciatura em
Educação do Campo, totalizando
15.120 vagas para a formação inicial
de professores dos territórios rurais.
Nesse edital, foram incluídas 15
vagas de concurso para docentes e
três para servidores em cada um dos
projetos, totalizando 630 vagas de
docentes permanentes e 126 de
servidores efetivos para atuação
específica nos Cursos de Licenciatura
em Educação do Campo. (Grifos
meus)
Afiando ainda um pouco mais o fio
da navalha em que se encontram as
populações do campo em suas lutas pela
conquista de processos educacionais,
temos que:
os dados revelam que, das
29.830.007 pessoas que vivem no
campo no Brasil (IBGE, 2010),
somente 21% acessam a escola, pois
existem apenas 6,3 milhões de
matrículas nas escolas rurais,
segundo o Censo Escolar do INEP
(2011). No âmbito da formação de
educadores, os dados
disponibilizados Censo Escolar de
2011 indicam que, dos 342.845
professores que atuam no campo no
Brasil, quase a metade 160.317
não possui educação superior
(46,7%), e, destes, 156.190 possuem
o Ensino Médio (97,4%) e 4.127
possuem apenas o Ensino
Fundamental (2,6%). (Hage, Silva &
Brito, 2016, p. 160).
De um lado, a diminuição de um
público cujas idades requerem sua
presença em escolas de educação básica; as
quais estão sendo fechadas, sob alegação
de ausência de público; de outro o aumento
de oferta no que tange à formação de
professores; como justificar a existência de
uma política pública (do ponto de vista
quantitativo) que garanta o acesso e a
continuidade de tal? Não existiriam nesse
contexto, pelo menos duas perspectivas
que se antagonizam? É um pouco nessa
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direção que se encaminham as reflexões a
serem apresentadas no âmbito deste
trabalho.
Nessa profusão de informações que
parecem contraditórias e nos fazem pender
ora para o consentimento, a adesão de
continuidade da Educação do Campo, ora
justificam as ações governamentais, com o
fechamento de escolas em espaços
campesinos, reasseveram o “fio da
navalha” referenciado por Caldart. Faz-se,
então, necessário refletir um pouco mais
sobre essas situações. Uma das
possibilidades para se entender essa
aparente dicotomia pode ser evidenciada a
partir de diferentes concepções de campo,
considerando as diferentes formas de
produção, de trabalho e variadas relações
entre homens e mulheres reais com o
espaço campesino. Isso implica ainda que
não como pensar uma escola do campo
sem que seja pensado o próprio campo.
Que modelos de sociedade se encontram
implícitos em cada um dos
posicionamentos?
Não se quer, nos limites deste
trabalho, dicotomizar as relações, visto que
as opções teóricas adotadas partem não do
antagonismo, mas, sobretudo, optou-se por
um pensamento que se encaminha em
perspectiva dialética, pois, acredita-se que
tal pode possibilitar a ampliação de olhares
sobre um determinado fenômeno.
Entretanto, algumas
considerações/reflexões podem ser
apontadas no intuito de ampliar o
entendimento acerca de questão tida como
controversa e complexa que é a educação
do campo. Uma primeira reflexão que
ser apontada. Não como pensar a
educação do campo sem que sejam
pensadas concepções e paradigmas de
sociedade, de Estado e de projetos de
sociedade que se querem/devem construir.
De posse desse argumento inicial, é
permitido que sejam pensados,
primeiramente, que os discursos
produzidos para as questões educacionais
campesinas apresentam diversidade,
construindo interpretações para tais, de
acordo com concepções de campo e de
educação do campo. Caso se pense em
uma perspectiva hegemônica, o
quantitativo de pessoas não justifica
investimentos de vulto na educação dessas
populações. Na perspectiva do agronegócio
e da agroindústria, o campo pode ficar
“sem sujeitos”, porque se torna o lugar de
uso de técnicas para grandes produções. As
pessoas iriam apenas trabalhar (de forma
assalariada) nesse espaço rural.
Nessa perspectiva, considera-se
campo como um território espacial
destinado à produção com vistas
principalmente à exportação, que, no dizer
de Aquino (2013, p. 31) caracteriza-se
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como as grandes propriedades, grilos,
grileiros, exploração do trabalho, grandes
empresas capitalistas, crimes ambientais,
mecanização intensa, superprodução,
improdutividade, especulação fundiária,
violência contra pessoa e concentração do
poder econômico e político”.
Entretanto, pode-se pensar o campo
e, por conseguinte, o trabalho no campo
como uma maneira de construção de
territorialidades, no sentido que Raffestin
(1993) empresta ao termo. Afirma esse
autor:
de acordo com nossa perspectiva, a
territorialidade assume um valor bem
particular, pois reflete o
multidimensionamento do “vivido”
territorial pelos membros de uma
coletividade, pela sociedade em
geral. Os homens “vivem” ao mesmo
tempo, o processo territorial por
intermédio de um sistema de relações
existenciais e/ou produtivistas.
(Raffestin, 1993, p. 158).
Nesse sentido, o termo ganha
amplitude a partir da consideração de
relações tridimensionais
espaço/tempo/sujeitos e o próprio território
ganha uma identidade não em si mesmo,
mas a partir dos sujeitos coletivos que nele
vivem e o fazem produzir. Considera-se,
pois, nessa perspectiva, um conjunto de
relações de trabalho, de não trabalho, de
culturas, de relações sociais e simbólicas
produzidas e vividas pelo homem consigo,
com o outro e com os espaços que ele vai
construindo. Essa é a concepção que se
adota no presente trabalho, que se
configura como um espaço de
existência/resistência para determinados
grupos sociais.
Esses dois modelos existentes
pressupõem uma diferença nas relações de
trabalho e com a terra, pois conforme
demonstra Aquino (2013): “... as grandes
propriedades dedicam-se à exportação, as
médias e pequenas são responsáveis por
cerca de 70% da produção de alimentos
consumidos ... Entretanto, recebem apenas
25% do financiamento destinado à
agricultura, e empregam 77% do pessoal...
(IBGE, 2009).” (Aquino, 2013, p. 30).
Esses dois modelos existentes
permitem que seja entendida a polaridade
das ações impetradas. De um lado uma
concepção de campo calcada em valores
do agronegócio, sem maiores preocupações
com o meio ambiente cujo objetivo é uma
produção em larga escala, com vistas à
lucratividade e exportação. De outro, uma
concepção ligada à agricultura familiar e
um estilo de vida camponesa,
agroecológica, cujo objetivo é viver da e
na terra, fazendo-a produzir de forma
sustentável.
Tais modelos pressupõem propostas
diferenciadas para a educação. No
primeiro, são suficientes as formas de
educação que deem conta de produzir uma
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relativa apropriação de conhecimentos, de
técnicas e de algumas tecnologias pelos
trabalhadores de modo que possam
cumprir a contento suas atividades. O
segundo busca construir uma educação em
que os trabalhadores campesinos se
apropriem de fato de conhecimentos,
saberes, técnicas e tecnologias em função
de garantir uma equidade social para todos
os brasileiros.
Projetos de sociedade diferenciados
exigem a definição do lugar de fala,
exigindo clareza e objetividade de
“posturas”. Define-se, nessa perspectiva,
uma opção teórica que coaduna com os
ideais dos campesinos e não àqueles para
os campesinos. Cabe que se coloquem
discussões acerca de concepções de
educação do campo, de campo e de
trabalho, ou no dizer de Caldart (2009):
Podemos dizer sobre a Educação do
campo, parafraseando Emir Sader
(prefácio a Mészáros, 2005, p. 15)
que sua natureza e seu destino estão
profundamente ligados ao destino do
trabalho no campo e,
consequentemente, ao destino das
lutas sociais dos trabalhadores e da
solução dos embates de projetos que
constituem a dinâmica atual do
campo brasileiro, da sociedade
brasileira, do mundo sob a égide do
capitalismo em que vivemos. E ainda
que ‘muitos não queiram’, esta
realidade exige posição (teórica sim,
mas, sobretudo, prática, política) de
todos os que hoje afirmam trabalhar
em nome da Educação do campo.
(Caldart, 2009, p. 36-37).
Pensa-se também, valendo-se dos
ensinamentos de Caldart (2009) que a
educação do campo surgiu em um
determinado momento e contexto e não
pode ser compreendida em si mesma, ou
apenas no mundo da educação ou a partir
dos parâmetros teóricos da pedagogia. Ela
é um movimento real de combate ao “atual
estado de coisas”. (Caldart, 2009, p. 40).
Assim, trata-se um movimento em que se
consideram as diferentes práticas, saberes e
instrumentos construídos/utilizados por
campesinos, que diante de situações
concretas de existência buscaram construir
processos de resistências diante de um
quadro nada favorável com os quais
conviviam.
Nesse contexto, consideram-se os
movimentos sociais como os sujeitos que
protagonizaram um conjunto de ações
possibilitando a construção de uma
educação do campo. E esse protagonismo é
um dos princípios que direcionam as ações,
os olhares e que determinam o lugar dos
sujeitos individuais e coletivos do campo, e
que busca retirar-lhes a invisibilidade
historicamente construída. Se na
construção inicial desse movimento, optou-
se por outra denominação (educação do
campo X educação rural), tal definição
materializada em uma opção linguística
(“do”) que indica a apropriação de outro
lugar: a educação é “do” campo no sentido
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de garantir a posse, mas, sobretudo, de
protagonismo, de pertencimento, logo de
identidade.
Certamente uma das principais
construções de cunho político dos
movimentos sociais campesinos é a
questão identitária. Se, historicamente, os
campesinos foram confinados a uma
invisibilidade, a busca do protagonismo
deveria resistir a partir também de um
processo de reconhecimento dessas
identidades. Assim, é importante reafirmar
que as lutas sociais desenvolvidas pelos
movimentos cunham como processos
formativos não apenas os processos
escolares formais, mas têm nas lutas
sociais formas de aprendizagem que
reverberam em proposições educativas
escolarizadas. Nesse sentido, inverte-se
uma lógica hegemônica e tradicionalmente
vivenciada pelas escolas.
Tais posicionamentos políticos
adotam perspectivas gramscinianas cujos
pressupostos teóricos tornam cada sujeito
alguém a ser formado no trabalho, na luta,
mas que a partir de reflexões individuais e
coletivas também se torna formador de si e
do outro; os sujeitos se formam
coletivamente (Freire, 1987). E são essas
experiências formadoras da luta coletiva
que os campesinos querem também ver
reconhecidas nas escolas, as quais devem
tomá-las como elemento “provocador” da
construção de conhecimentos.
Ainda, a luta ganha uma essência
dialógica com a pedagogia num
permanente movimento de reflexão das
experiências de resistência camponesa, que
visa garantir sua existência. Entendendo a
palavra resistência em sua acepção
etimológica, relativa à continuidade de
existência, mas que, no contexto, extrapola
o puro existir, referindo-se ao existir com
qualidade de vida. Realce-se, pois, a
etimologia dessas palavras em suas
semelhanças, enfatizando o campo
semântico possibilitado, para formas de ser
e de estar em algum lugar, de modo a
possibilitar a existência, isto é, de modo a
“possibilitar a vida”. Eis uma das
essências construídas pelos movimentos
sociais como sujeitos coletivos em luta
pelo acesso à educação.
As formas de organização social e as
mobilizações dessas populações
permitiram, a partir da I Conferência
Nacional “Por uma Educação do Campo” a
continuidade e a constante ocorrência de
Fóruns, Conferências, Encontros, que se
caracterizam por momentos cuja atuação
política buscou e busca constituir
legislações e programas de formação que
deem conta de se constituírem como
marcos regulatórios (referenciais) para
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organização de escolas campesinas. Dentre
tais, destaquem-se:
Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do
Campo, aprovadas por meio da
Resolução 1/2002 CEB/CNE
(Brasil, 2002). ... Do mesmo modo, o
Decreto nº 7.352/2010 (Brasil, 2010),
que dispõe sobre a política de
educação do campo e o Pronera,
define como um dos princípios “o
desenvolvimento de políticas de
formação de profissionais da
educação para o atendimento da
especificidade das escolas do campo,
considerando-se as condições
concretas da produção e reprodução
social da vida no campo” (Brasil,
2010, art. 2º, III). A partir desses
marcos regulatórios, diversos
programas: ... O Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária; o
Programa Escola Ativa(2012); o
Programa Escola da Terra (2013); O
Programa Projovem Campo Saberes
da Terra; o Programa de Apoio à
Formação Superior em Licenciatura
em Educação no Campo; o Programa
de Iniciação à Docência para a
Diversidade no âmbito do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência. No ano de 2012, como
desdobramento do Decreto
7.352/2010 (Brasil, 2010), a
presidente Dilma Rousseff lançou o
Programa Nacional de Educação do
Campo (Pronacampo). (Brasil, 2012).
(Hage, Silva & Brito, 2016, p. 152-
154).
Ainda se torna importante ressaltar
que os processos formativos têm optado
pela adoção, do ponto de vista
metodológico, pela Pedagogia da
Alternância, ressaltando as características
referentes aos tempos escolares. Nessa
proposta, os tempos e, por conseguinte, os
espaços de formação se constroem entre os
espaços da casa/comunidade e da escola.
Ao se dividir os tempos e espaços
formativos, esses se intercambiam
contínua, dialógica e dialeticamente
perdendo suas dicotomias e garantindo a
unicidade necessária à construção de
conhecimentos, universalizando-se o local.
Tal implica ainda uma constante “re-
construção” de conhecimentos e saberes
que se reconfiguram em interações
dialéticas e dialógicas, intercambiando-se
de modo produtivo para a tomada de
consciência da não neutralidade da ciência,
bem como da necessidade da apropriação
de conhecimentos, técnicas e instrumentos
referendados e construídos pelo universal,
mas ressignificados nos diferentes
contextos locais de existência.
Nesse sentido, é produzido um
conjunto de conhecimentos que, ao
contrário de sociedades hegemônicas em
que esta produção se localiza e se difunde
de forma assimétrica, visto que institui e
determina relações de poder, para a
Educação do Campo o conhecimento se
coloca a serviço da lógica da solidariedade
e do bem-estar social.
Por fim, quer se destacar neste
trabalho o posicionamento do II
Conferência Nacional de Educação do
Campo (CNEC), realizada em Luziânia-
GO, em agosto de 2004, que se constitui
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em um exemplo importante de organização
social na luta campesina. A declaração
final do evento (Hage, Silva & Brito, 2016)
que propôs a construção de um processo de
formação continuada, pública e gratuita
com a participação de movimentos sociais
e universidades públicas e que buscou
valorização e formação específicas de
educadores(as)do campo foi assinada por
aproximadamente 1.100 representantes de
movimentos sociais e das organizações
sindicais de trabalhadores do campo e da
educação, de universidades, de
Organizações Não Governamentais
(ONGs) e de Centros Familiares de
Formação por Alternância, de secretarias
estaduais e municipais de educação e de
outros órgãos de gestão pública.
Assim, a Educação do Campo propõe
a adoção de currículos que ajudem a
ressignificar saberes, espaços,
conhecimentos, crenças, suas vidas. Mas
também evidencia de forma clara que não
se faz educação sem que se considere a
autonomia dos sujeitos nela envolvidos. As
matrizes e práticas curriculares são
determinadas em perspectiva conjunta,
com a intencionalidade precípua de
transformar os sujeitos que dela participam
de modo pleno e livre. Nesse sentido:
A Educação do campo retoma a
discussão e a prática de dimensões ou
matrizes de formação humana que
historicamente constituíram as bases,
os pilares da pedagogia moderna
mais radicalmente emancipatória, de
base socialista e popular e de
referencial teórico marxista, trazendo
de volta o sentido de uma
“modernidade da libertação”
(Wallerstein, 2002, p. 133-50).
Refiro-me como pilares ao vínculo
entre educação e trabalho (não como
“preparação para” da pedagogia
liberal, mas como “formação desde”
da pedagogia socialista), à
centralidade dada à relação entre
educação e produção (“nos mesmos
processos que produzimos nos
produzimos como ser humano”), ao
vínculo entre educação e cultura,
educação e valores éticos; entre
conhecimento e emancipação
intelectual, social, política
(conscientização). Trata-se, afinal, de
recolocar para discussão da
pedagogia a concepção da práxis
como princípio educativo, no sentido
de constituidora fundamental do ser
humano (Marx). E esta retomada
vem exatamente da exigência do
pensar a especificidade: considerar a
realidade do campo na construção de
políticas públicas e de pedagogia
significa considerar os sujeitos da
educação e considerar a prática social
que forma estes sujeitos como seres
humanos e como sujeitos coletivos. E
não pretender que a educação/a
pedagogia valha e se explique por e
em si mesma. (Caldart, 2009, p. 42).
Por fim, como um último ponto a ser
destacado, mas não menos importante,
reafirma-se que a base para as proposições
educacionais dos sujeitos do campo tem na
posse e no uso da terra elementos
constitutivos de suas propostas
emancipatórias. Se essas populações foram
vistas como “fracas” em termos de
aprendizagem, pois, o pensamento de
Aquino (2013, p. 34):
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É preciso ressaltar que os
movimentos sociais do campo
assumem como centralidade, dentre
outras lutas, a luta pela terra.
desafios a serem superados pela
escola, pois historicamente as
populações camponesas foram vistas
como ‘fracas em termos de
aprendizagem’. Nesse sentido, é
preciso que cada educador e
educadora reflita sobre as origens,
permanências e consequências de
suas representações acerca dos povos
do campo e de suas organizações
sociais. Esta tarefa é importante, pois
segundo Arroyo (2001, p. 177), ‘sem
mexer nos valores, crenças,
autoimagens, na cultura profissional,
não mudaremos a cultura política
excludente e seletiva tão arraigada
em nossa sociedade’.
Considerações Finais
Com vistas a alcançar uma educação
que tenha no Protagonismo dos sujeitos do
campo sua centralidade, os movimentos
sociais têm organizado lutas no sentido de
reconhecer esses sujeitos como cidadãos,
logo como sujeitos de direitos. Assim, a
luta por uma educação que possibilite a sua
visibilidade, calcada no seu
reconhecimento como sujeitos de direitos
torna-se inerente à continuidade de sua
existência/resistência.
Entende-se ainda que a educação é
uma das possibilidades para a ascensão dos
sujeitos não apenas do ponto de vista
social, mas principalmente, apresenta-se
como uma forma de combater a
desigualdade impingida a esses sujeitos.
Uma educação que se faça libertadora e
que os “re-conheça” como protagonistas de
suas histórias, calcada em princípios e
diretrizes construídos por esses
grupamentos sociais.
Pensar a posse da terra, ou seja, a
reforma agrária terá sentido caso se
pensem em formas de construção desses
espaços por àqueles a quem essa terra
deveria pertencer. Entretanto, a sociedade
brasileira calcou-se, desde os seus
momentos iniciais de “construção” como
uma sociedade excludente e por isso pouco
afeita às escutas a necessidades de
populações menos favorecidas
economicamente. Os movimentos sociais
do campo têm buscado evidenciar, a partir
de seus processos de “re-construção” de si,
que é possível constituir outros modelos de
sociedade, mesmo que até o século XX,
século XXI o Brasil se mostre renitente em
tomar consciência de suas necessidades.
Certamente, a história deste país
precisa ser revisitada, revista e
reconstruída para que se possa entender
como se organizaram seus “primeiros”
grupos organizacionais (a partir da invasão
portuguesa). Tal “re-interpretação”
histórica pode propiciar releituras dessa
construção social que hoje se coloca.
Buscar o passado para entender o presente?
Talvez sim, mas buscar o passado
principalmente para reorganizar formas de
pensar, agir e sentir de homens e mulheres
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contemporâneos em busca de
entendimentos sobre si mesmos. Revisitar
ainda as histórias dos movimentos sociais
que, embora muito próximas a este tempo,
demonstram uma dinamicidade vigorosa,
conforme se evidenciou neste artigo.
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i
O escravo (negro) era considerado como “coisa”,
um “semovente”, destituído de “alma”, o que
justificava a sua escravidão.
ii
Essa exposição é feita com base em estudos de
Motta: (1997), Baleeiro (1997), Loureiro (2003) e
Ferreira (2007).
iii
Disponível em: http://portal.inep.gov.br/censo-
escolar
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 14/01/2019
Aprovado em: 22/03/2019
Publicado em: 28/05/2019
Received on January 14th, 2019
Accepted on March 22th, 2019
Published on May, 28th, 2019
Contribuições no artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
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Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Elizabeth Moreira Gomes
http://orcid.org/0000-0003-3711-1663
Alexandre Fraga de Araújo
http://orcid.org/0000-0003-0726-9208
Maria Isabel Antunes-Rocha
http://orcid.org/0000-0002-4044-6723
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Gomes, E. M., Araújo, A. F., & Antunes-Rocha, M. I.
(2019). Legislação sobre posse de terras e Educação do
Campo no Brasil. Rev. Bras. Educ. Camp., 4, e6406. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6406
ABNT
GOMES, E. M.; ARAÚJO, A. F.; ANTUNES-ROCHA, M. I.
Legislação sobre posse de terras e Educação do Campo
no Brasil. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 4,
e6406, 2019. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6406