Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.v4e6446
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
e6446
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2019
ISSN: 2525-4863
1
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Chico Bento e as representações sociais da infância
José Douglas Alves dos Santos
1
,
Éverton Vasconcelos de Almeida
2
1
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Centro de Ciências da Educação - Programa de Pós-Graduação em
Educação. Rua Engenheiro Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade. Florianópolis-SC. Brasil.
2
Universidade Federal
de Santa Catarina - UFSC.
Autor para correspondência/Author for correspondence: jdneo@hotmail.com
RESUMO. Os registros visuais, e os discursos que eles
transmitem, ou que deles se emitem, geram leituras sociais e
contribuem para a construção de um imaginário coletivo. Este
artigo propõe realizar uma reflexão sobre o imaginário em
função dos sujeitos que vivem no campo, mais especificamente
às crianças e infâncias rurais, por meio de um dos principais
símbolos de representação da criança camponesa brasileira, o
personagem de Chico Bento, criado pelo cartunista Maurício de
Sousa. Constata-se que essa produção visual, produzida no
contexto urbano e endereçada especialmente aos habitantes da
cidade, muitas vezes (re)produz discursos sobre o campo e seus
sujeitos permeados por estereótipos e preconceitos. Neste caso,
considera-se que a produção cultural imagética tem grande
relevância na construção do olhar e da leitura social que a ela se
direciona.
Palavras-chave: Chico Bento, Crianças e Infâncias do Campo,
Produção Cultural, Representações Sociais.
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Chico Bento and the social representations of childhood
ABSTRACT. The visual records, and the discourses they
transmit, or that emit them, generate social readings and
contribute to the construction of a collective imaginary. This
article proposes to accomplish a reflection about the imaginary
in function of the subjects who live in the countryside, more
specifically children and rural children, through one of the main
symbols of representation of the Brazilian peasant child, the
character of Chico Bento, created by the cartoonist Mauricio de
Sousa. It is observed that this visual production, produced in the
urban context and addressed especially to the inhabitants of the
city, often (re)produces discourses about the peasantry and its
subject and its subjects permeated by stereotypes and prejudices.
In this case, it is considered that the imagistic cultural
production has great relevance in the construction of the look
and the social reading that is directed to it.
Keywords: Chico Bento, Children and Peasantry Childhood,
Cultural Production, Social Representations.
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Chico Bento y las representaciones sociales de la infancia
RESUMEN. Los registros visuales, y los discursos que ellos
transmiten, o que de ellos se emiten, generan lecturas sociales
que contribuyen para la construcción de un imaginario colectivo.
Este artículo se propone a realizar una reflexión sobre el
imaginario en función de los sujetos que viven en el campo, más
específicamente los niños y infancias rurales, por medio de uno
de los principales símbolos de representación de los niños
campesinos brasileños, lo personaje de Chico Bento, creado por
el cartonista Maurício de Sousa. Se constata que esa producción
visual, producida en el contexto urbano y direccionada
especialmente para los habitantes de la ciudad, muchas veces
(re)produce discursos sobre el campo y sus sujetos impregnados
por estereotipos y preconceptos. En este caso, se considera que
la producción cultural de imágenes es de gran relevancia en la
construcción de la mirada y de la lectura social que a ella se
dirige.
Palabras clave: Chico Bento, Niños y Infancia Campesina,
Producción Cultural, Representaciones Sociales.
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Introduzindo: à guisa de
contextualização
O sociólogo e antropólogo francês
Marcel Mauss afirmara que a “educação da
criança é repleta daquilo que chamam
detalhes, mas que são essenciais”. (2003,
p. 41). Entre estes detalhes que fazem parte
do rol de estudos e práticas pedagógicas
que objetivam compreender melhor as
crianças e seus processos de socialização,
de seus processos culturais, está o da sua
representação a partir das produções
visuais e o imaginário que elas produzem,
sobretudo quando se diz respeito às
crianças e infâncias rurais.
“Em uma sociedade imagética, em
que o sujeito é definido por sua aparência”.
(Novaes, 2011, p. 477), cabe-nos perguntar
que tipo de aparência representaria as
crianças camponesas aos olhos dos outros,
sobretudo daqueles outros que se situam na
cidade. Sabemos da pluralidade do
conceito de infância e da condição de
criança quando hoje tratamos da
diversidade sociocultural em relação a essa
fase e esses sujeitos, no entanto ainda é
frequente uma cristalização do olhar
(Arroyo, 2009; Horn, 2010) quando
pensamos nas crianças e infâncias
camponesas.
Não é novidade que “a maneira como
nós vemos o corpo na experiência
cotidiana é afetada, ela mesma, por nossos
hábitos culturais, quer dizer,
particularmente, por nossa cultura visual”.
(Zerner, 2012, p. 101). O corpo da criança
camponesa, representado por ela mesma a
partir de nossas concepções e não
somente dela, bem como dos demais
sujeitos que vivem no campo , é visto e
percebido por meio das lentes midiáticas
que produzem e reproduzem esse perfil de
sujeito.
Seus trajes, sua linguagem, seu
trabalho, sua vida, não diferem entre
um e outro, nem ganham
peculiaridades. É como se todos que
vivem na zona rural se vestissem
com os mesmos trajes, gostassem das
mesmas coisas, falassem e se
divertissem da mesma maneira,
preferissem pés descalços a um
sapato confortável. Essas
representações estão na maioria dos
artefatos visuais e sua repetição nos
leva a crer que as coisas são apenas
dessa forma. Na maioria das vezes,
essas convenções repercutem e
engendram um padrão que é bastante
difundido e aceito, o que dificulta ou
desacelera a possibilidade de
emergirem outras formas de
representações, mais plurais e, por
consequência, modos de olhar mais
amplos. (Horn, 2010, p. 197).
Na maioria dos casos, como também
destaca Ticiana Horn, ela é concebida “a
partir de uma ótica que os coloca em
defasagem em relação aos sujeitos
urbanos”. (2010, p. 192), o que em certa
medida serve de parâmetro,
historicamente, para pensar e representar
os habitantes do campo: defasados,
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atrasados, ingênuos, ignorantes, matutos,
brutos, rústicos, até mesmo incivilizados,
entre outras expressões semelhantes.
Tais adjetivações são um modo de
associar a identidade dos camponeses a um
parâmetro construído e produzido pelos
homens letrados e urbanos (Brandão,
1983). Desse modo, costuma-se
representar o homem e a mulher do campo
em comparação ao homem/mulher da
cidade de alguns pontos da cidade, é bom
deixar claro. Assim, o camponês é mais
adjetivado pelo que ele não é (não é
cidadão, sujeito, trabalhador, contribuinte
social, inteligente, culto, letrado, produtor,
etc.) e pelo que não tem (não tem
educação, formação, cultura...).
Ele é ponto por ponto a face negada
do homem burguês e se define pelas
caricaturas que de longe a cidade faz dele,
para estabelecer, através da própria
diferença entre um tipo de pessoa e a outra,
a sua grandeza”. (Brandão, 1983, p. 12).
Essas caricaturas que desses sujeitos foram
feitas têm forte influência no modo como
hoje os mesmos costumam ser vistos e
representados na contemporaneidade pelos
sujeitos urbanos, ainda que o imaginário
tenha passado por algumas transformações
ao longo do século XX, a partir do
crescimento urbano-industrial.
Vale recordar que o menosprezo com
o homem do campo tem uma raiz histórica
proveniente da Antiguidade, e que foi
reforçada pelo cristianismo na alta Idade
dia.
Na Antiguidade, ele é o grosseiro, o
rústico, em oposição ao homem da
cidade. O camponês não tem sorte
com o cristianismo: como ele é quase
que o último a se deixar cristianizar,
ele se torna para os cristãos, que
geralmente moram nas cidades, o
pagão por excelência, e o termo
pagão, paganus, quer dizer também
camponês (paysan). (Le Goff, 1998,
p. 47-48).
Não à toa, muitas cidades serão
construídas com muralhas ao redor. “A
muralha separa a cidade, lugar de
civilização luminosa, e o campo, lugar de
rusticidade tenebrosa”. (Le Goff, 1998, p.
119). Ainda segundo o historiador francês,
nesse período, de organização social
baseada no feudalismo, a pirâmide da
sociedade europeia é constituída pelo rei
no topo, pelos senhores abaixo deste e
pelos camponeses na base.
Se remontamos à Antiguidade, é em
Roma, sobretudo, que se cria, do
ponto de vista cultural, do ponto de
vista dos costumes, uma oposição
muito forte entre a cidade e o campo.
E é que começa a aparecer um
vocabulário que vai ser reforçado
precisamente na Idade Média. Os
homens relacionados à cidade
denotam a educação, a cultura, os
bons costumes, a elegância:
urbanidade vem do latim urbs,
polidez, da polis grega. A Idade
Média herda da Antiguidade latina, e
reforça, esse menosprezo pelo
campo, sede do bárbaro, do rústico.
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Os camponeses são rudes. (Le Goff,
1998, p. 124).
Raymond Williams (1989) também
remonta esse contraste entre campo e
cidade à Antiguidade clássica. O campo
retratado a uma forma natural de vida,
enquanto a cidade associada “a ideia de
centro de realizações de saber,
comunicações, luz. Também se
constelaram poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho,
mundanidade e ambição; o campo como
lugar de atraso, ignorância e limitação”.
(Williams, 1989, p. 127).
Podemos constatar como essa
representação do camponês europeu
apresenta paralelos com a representação do
camponês no Brasil, em uma parte do
Brasil de determinado período histórico,
quando da ocasião em que o botânico
francês Auguste de Saint-Hilaire realiza
sua Viagem à Província de São Paulo.
Carlos Rodrigues Brandão relata uma
descrição feita pelo referido visitante:
“Têm toda a simplicidade e os modos
grosseiros dos nossos camponeses,
mas não possuem, seja sua alegria,
seja sua atividade. Se quinze
camponeses de França se reúnem
num domingo, cantam, riem,
discutem, os de que trato apenas
falam, não cantam e não riem e
mantêm-se tão tristes depois de ter
bebido cachaça, como estavam antes
da ingestão dessa bebida alcoólica.”
(Viagem à Província de São Paulo)
Eis uma síntese da identidade que
não Saint-Hilaire, mas outros
emissários letrados do país ou de fora
criaram para o caipira dos sertões de
São Paulo. Eis um mundo ao mesmo
tempo privado de produção de
cultura sobre a natureza (a
agricultura) e de criação de uma
cultura na sociedade. (1983, p. 22).
Eis o retrato do homem que Saint-
Hilaire (1972) viu e posteriormente
Monteiro Lobato (1969) retratou tendo
como parâmetro seu famoso personagem
Jeca Tatu o sujeito ignorante por
natureza, que “coexiste com o atraso, de
quem não é vítima, mas produtor, com a
coivara, a doença e a absoluta ignorância”.
(Brandão, 1983, p. 27) e que contribuiu na
disseminação de um imaginário carregado
por preconceitos, “na qual permaneceu a
imagem do caipira como parasita,
preguiçoso, apático, inerte, dado a
crendices, covarde, ingênuo, de atitude
predatória e, no máximo, doente”. (Parrilla,
2006, p. 116-117).
Se observarmos que as
representações sociais afirmam uma
relação entre quem realiza a representação
e quem é retratado (Burke, 2004), e que o
conceito de civilização foi cunhado em
países hegemônicos do Ocidente como
Inglaterra e França (Elias, 1990), tomando
como contrário à sua definição aquilo que
não se enquadrava aos padrões normativos
de uma suposta civilidade, notamos
resquícios que se mantêm particularmente
fortes quando associamos determinados
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sujeitos e grupos sociais em relação ao que
se propõe como uma imagem
representativa e ao que se quer dizer por
civilização como costuma acontecer, por
exemplo, aos povos tradicionais quando
aparecem em diferentes discursos.
Convém destacar ainda que as
representações do mundo são construídas
pelos sujeitos humanos, não são
determinadas de modo natural, dadas e
imutáveis; e embora tenham por tendência
uma suposta universalidade fundada em
um discurso racional, como salienta Roger
Chartier (1990), elas são determinadas
pelos interesses dos grupos que as forjam e
que buscam formatar o olhar da sociedade.
Dessa maneira,
As percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas
(sociais, escolares e políticas) que
tendem a impor uma autoridade à
custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um
projeto reformador ou justificar, para
os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas… As lutas de
representações têm tanta importância
como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos
quais um grupo impõe, ou tenta
impor, a sua concepção de mundo
social, os valores que são seus, e o
seu domínio. (Chartier, 1990, p. 17).
Esse histórico processo de
formatação do olhar sobre o mundo, nós
mesmos e os outros, pode ser percebida
por meio da produção cultural imagética;
neste caso, as imagens são consideradas
como potencialmente formativas, como
artefatos culturais que longe de serem
neutras (Simon, 1995; Burke, 2004) têm
grande relevância na construção do olhar e
da leitura social que se tem a partir delas.
Muitos teóricos da cultura visual têm
apontado o quanto as imagens não
são apenas ilustrações para uma cena,
um ambiente, um fato, e sim, o quão
são importantes ao agregarem
informações sobre todo um contexto,
aos vários dizeres que a elas se
adicionam e à capacidade de serem
interpretadas, pela grande maioria
das pessoas, no processo de
formatação do olhar sobre o mundo,
sobre nós mesmos e sobre os outros.
(Horn, 2010, p. 193).
Segundo Nicholas Mirzoeff (2003),
as imagens têm um forte poder de
representação, de estatuto da verdade, que
interfere na sociedade de modo a criar
“realidades” que condicionam o modo de
pensar de muitas pessoas. Considerando
que o ver, o modo como vemos e
interpretamos aquilo que vemos, é
histórica e culturalmente produzido, pensar
sobre o imaginário social que se tem em
relação às infâncias do campo, presente em
muitas instituições formativas como a
escola e a mídia (Fantin, 2006; Belloni,
2007), por exemplo, contribui para termos
uma outra compreensão e relação com
essas imagens.
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Ressignificando o olhar: Chico Bento e
as infâncias no campo
Muitas vezes associa-se o contexto
rural, camponês, a uma condição de vida,
que estabelece normas e modos de se
pensar esse lugar e os sujeitos que nele
vivem. Emilia Godoi (2009), inspirada em
Elias e Scotson (2000), prefere pensar essa
condição mais como uma configuração
camponesa, retomando a ideia de processo
em relação a uma suposta unicidade
histórica e temporal.
De modo geral, o que distingue o
camponês de outros sujeitos é a sua relação
com a terra, com o ambiente que ocupa,
além das adjetivações comumente
relacionadas quando comparados com os
habitantes da cidade. Assim, a oposição
campo/cidade ganha destaque quando se
pretende distinguir e definir o camponês
(Brandão, 1983; Moura, 1988; Le Goff,
1998; Parrilla, 2006; Souza, 2017).
Apesar das mudanças ocorridas ao
longo do século XX, é possível
contemplar, em inúmeros discursos, a
permanência da concepção de um
país dual, pois parece ter persistido a
idéia da cidade como local
“moderno”, de “progresso” e
“velocidade”, de “civilização”, em
oposição ao campo “atrasado”,
“arcaico”, “incivilizado”. (Parrilla,
2006, p. 146).
Essa concepção, ressignificada,
sobretudo a partir da segunda metade do
século XX quando as cidades são agora
consideradas lugares de inúmeros
problemas, com o aumento populacional,
de veículos automotivos, da poluição e dos
perigos iminentes, com a falta de
empregos, o alto índice de violência nas
ruas, a perda gradativa de qualidade de
vida, etc. é com frequência encontrada e
divide espaço com o discurso, no nimo
ambíguo, proveniente dessas
transformações: o campo seria uma espécie
de retiro contra os problemas urbanos.
não se busca mais, ou não se
pretende, desqualificar o campo, mesmo
que este continue como lugar de atraso em
relação à modernidade urbana; ele agora é
também um lugar de sossego, de paz, de
tranquilidade, identificado com o cuidado à
natureza, com sua fauna e flora que o
diferencia da cidade e de todos os seus
problemas, cada vez maiores, que se
introduzem à sua rotineira e pouco
apreciada pressa, velocidade e sua ideia de
progresso.
Todavia, essa ressignificação torna-
se pontual e setorizada, estando mais
vinculada a determinados lugares do que
aos grupos que neles vivem. Cria-se um
discurso na produção cultural que exalta o
campo como lugar bucólico (Parrilla,
2006), que não contempla, por sua vez, as
pessoas que vivem e permanecem para
além de um período de férias.
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Direcionando nosso enfoque para as
crianças, sujeitos que carecem de uma
representação mais fidedigna de seus
modos de ser e de viver, na “variada gama
de produções visuais sobre as infâncias,
vamos percebendo os modos como elas são
vistas, pensadas, narradas”. (Horn, 2010, p.
195). Nas últimas três décadas muitos
foram os trabalhos que ressaltaram o
caráter heterogêneo da infância, mudando
o enfoque de uma concepção outrora
apenas designada no singular, infância,
passando a ser considerada e utilizada no
plural: infâncias assim como também
aconteceu com juventude.
Esta pluralidade, quando nos
referimos à infância e à juventude, é
concernente porque tais referências devem
ser estudadas e discutidas como
construções humanas, que por serem
“construções históricas, sociais e culturais,
diferenciam-se nos tempos e nos espaços”.
(Zucchetti & Bergamaschi, 2007, p. 214).
Quando nos referimos à ideia de infâncias,
assim o fazemos porque “podemos tomar a
existência não de uma única infância, mas
de infâncias, dada a pluralidade de
situações, especificidades e características
culturais disseminadas da vivência
quotidiana deste grupo social e
geracional”. (Tomás, 2007, p. 121).
Portanto,
... faz-se necessário ter consciência
de que ao se estudar a infância e a
criança, não estamos desenvolvendo
um trabalho universal,
esquematizando e homogeneizando
suas peculiaridades e especificidades.
infâncias e crianças, que
merecem ser vistas particularmente e
de maneira diferenciada no estudo
social. (Santos, 2013, p. 28).
Poderíamos supor que diante das
múltiplas realidades e contextos onde as
crianças se situam, sua imagem poderia
estar hoje menos centralizada em um
determinado ponto de vista que tende mais
a padronizá-la do que a problematizá-la
como “objeto”/sujeito investigativo. No
entanto, o que notamos é que no
imaginário social esses sujeitos ainda são
considerados a partir de velhos e
conhecidos estigmas convencionais: seres
fracos, inaptos, limpos, puros, que
comem, dormem e brincam quando se trata
do contexto urbano de classe média-alta;
ou seres perigosos, suspeitos, sujos,
mundanos, que roubam, se drogam e até
matam quando se trata de um contexto
periférico, negro, de classe média-baixa.
Guardadas as devidas diferenças, em
ambos os casos algo que coincide nesse
imaginário quando tratamos da criança,
independentemente de sua origem, classe
social, cor ou etnia: são sujeitos que, para
muitos, não têm história, não têm
experiência, não produzem cultura e pouco
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conhecem sobre o mundo o mundo dos
adultos em que vivem.
Esses românticos ou tenebrosos
imaginários (Arroyo, 2009) em nada
contribuem para termos uma concepção
mais aprofundada e próxima da realidade
em relação à infância e suas
peculiaridades. “No que tange ao rural”,
como afirma Horn, “as infâncias rurais
estão sendo abordadas majoritariamente no
singular, impedindo que sejam visualizadas
de outras formas”. (2010, p. 195). Essas
representações, baseadas em diferentes
produções culturais/visuais, não apenas
dizem sobre as crianças em seus diferentes
contextos ou impõem uma imagem
centralizada delas, como pode ser mais
comum de acontecer , mas também sobre
nosso modo de percebê-las, sobre a
sociedade dos adultos, feita pelos adultos e
pensada para eles.
De acordo com Susana Cunha,
As imagens acabam constituindo
acervos daquilo que deve ser
admirado, preservado, repassado e
cultivado pelas crianças. As
produções culturais, sejam elas quais
forem, programam nosso olhar sobre
o mundo, definem e hierarquizam o
que é bom, bonito, mal, feio e isto
implica em estabelecer diferenças,
territorialidades, forças de poder,
inclusões e exclusões sociais, de
quem pertence e quem não faz parte
daquela esfera sócio-cultural. (2007,
p. 141).
Se o camponês está longe da cidade,
se “o seu lugar de vida é o contrário do da
cidade e o seu trabalho é invisível, por ser
o oposto ao “da cidade”, o seu modo de ser
e a cultura são o oposto do que a cidade
considera “civilização”, “civilizado”.
(Brandão, 1983, p. 12). Simbolicamente,
essa imagem do oposto ao citadino gera
um imaginário que não está atrelado
apenas aos habitantes urbanos, mas
também aos próprios moradores do campo,
que muitas vezes se veem como
aculturados, inferiores e irrelevantes dentro
da dinâmica social, cultural e política da
qual participam. E o mais grave é perceber
que tal discurso pode ser proveniente de
espaços onde deveria acontecer o oposto,
como a escola:
Apesar da valorização da educação
escolar por parte das famílias
agricultoras ser constante atualmente,
não um movimento no sentido
inverso, ou seja, de valorização das
famílias agricultoras por parte da
escola. Esta parece continuar
reproduzindo estereótipos de atraso e
ignorância associados ao meio rural.
(Tassinari, 2014, p. 129).
A produção cultural feita para as
crianças geralmente apresenta esse perfil
do sujeito do campo oriundo de uma
tradição visual construída em relação aos
habitantes da cidade, da metrópole, do
lugar onde tudo parece acontecer, seguindo
uma tradição cultural que não se
desvencilhou por completo dessa
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caricatura, revelando uma ideia que o
habitante da urbe produz de si e de seu
espaço ao diferenciar-se daquele a quem
denomina caipira”. (Parrilla, 2006, p. 95-
96).
Um exemplo dessa produção, feita
prioritariamente pelos e para os citadinos, e
considerado um dos principais símbolos de
representação da criança camponesa nas
escolas e na mídia brasileira, é o
personagem de Chico Bento, “o típico
caipira que anda de pé no chão, usa um
chapéu de palha e toca modas de viola
i
.
Figura 01 Chico Bento.
Fonte: http://pt-br.monica.wikia.com/wiki/Arquivo:Chico_bento.png.
Essa “versão mirim do Jeca Tatu
ii
foi criada pelo Cartunista Mauricio de
Sousa em 1961, inspirado em um tio-avô
que morava no interior de São Paulo e que
ele sequer conheceu, apenas ouviu falar
por meio das narrativas de sua avó, tendo
sua primeira revista exclusiva lançada em
1982. Considerado símbolo de uma
suposta universalidade identitária da
tradição rural brasileira, ou que “parece
traduzir o Brasil mais tradicional”
(Celidonio, 2017, p. 73), Chico Bento é o
caipira ligado a terra, sendo o único dos
principais personagens construídos por
Mauricio de Sousa que vive no contexto
rural, onde por meio dele o autor “busca
demonstrar as diferenças entre a cidade e o
campo, onde o campo é o atrasado e a
cidade o moderno”. (Wrasse, 2013, p. 65).
O contraste talvez hoje esteja
invertido em relação ao lugar, mas se
evidencia sobre os sujeitos, ainda que
Cristina Silva descreva o personagem
criado por Maurício de Sousa “como um
outro modelo de caipira, que não é Jeca, é
um herói para a natureza e os amigos, mas
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ainda um personagem ficcional”. (1997, p.
15), devido a sua relação com a terra onde
vive e sua preocupação com o ambiente.
Comparando dois dos personagens,
podemos constatar essa diferença entre o
modo como são retratados nas músicas
iii
compostas para eles, em que a personagem
da Mônica, que mora e vive na cidade, é
retratada como uma menina inteligente,
destemida e com atitude, enquanto o
personagem de Chico Bento é aquele típico
sujeito ingênuo, preguiçoso e folgado, que
“pelo jeito nasceu cansado”, como
podemos observar em um dos trechos das
canções no quadro 1.
Outro ponto que as canções
relacionadas à Mônica e ao Chico Bento
apresentam é uma clara distinção da
infância em comparação às suas ações
cotidianas, no viver de ambas as
personagens. Enquanto a canção de
Mônica trata de atributos fortes de sua
personalidade (sabichona, teimosa,
mandona, etc.) e da dimensão do
imaginário e do brincar, Chico bento é
apresentado quase sem atributos de
personalidade (apenas a alegria) e os que
aparecem são atributos fracos (como
preguiça e cansaço), que reforçam a ideia
do caipira como um sujeito com menos
qualidades em relação aos citadinos. A
dimensão da imaginação e da brincadeira
não é evidenciada para Chico Bento e o
trabalho é um elemento que aparece quase
como inerente à criança do campo.
Quadro 1 Quadro comparativo das canções.
Mônica
Chico Bento
Sou a Mônica, sou a Mônica
Dentucinha e sabichona
Sou a Mônica, sou a Mônica
Tão teimosa e tão mandona
Quando diz que sim, quando diz que não
Mostra ter opinião
Fico sempre falando e brincando
Na sua imaginação
Ela inventa tudo que é brinquedo
Com a turminha gosta de brincar
Se as meninas têm algum segredo
Logo vem correndo me contar
Se alguém sorrir, se alguém sorrir
Aí nossa turma pode vir
Se alguém chorar, se alguém chorar
Estou sempre eu para ajudar
Mas se algum menino me contrariar
Vou mostrar que eu não sou boba não
Vou lhe dando uma coelhada
E ele vai até cair no chão.
O meu nome é Chico Bento
Alegre i caipirão
Chapéu de palha e pé no chão.
Mar o dia vem raiando
Vô vê o sor sair
E vorta pra durmir.
Quando eu penso im trabaiar
Eu sinto uma cansera
E vorta a cochilar.
Chico Bento, Chico Bento,
Caboclinho, alegre e forgado.
Chico Bento, Chico Bento,
Pelo jeito nasceu já cansado.
Fonte: Transcrição das canções realizada pelos autores (2019).
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Ou seja, a ideia de Chico Bento que
nos vem em mente é mesmo a de um Jeca
Tatu em miniatura como o próprio site
oficial assim o descreve. Um menino que
anda com chapéu de palha, preguiçoso, que
não gosta de trabalhar, folgado e “pelo
jeito nasceu cansado”. Essa imagem
apenas reforça o estereótipo que se tem
sobre os sujeitos do campo, nesse caso
sobre as crianças que vivem neste
contexto, e que não condiz sobre a
realidade que muitos vivenciam.
Outro elemento que podemos trazer
para o enfoque da análise é a variação
linguística presente nas duas canções, que
se diferenciam entre si. Notamos na música
da Mônica uma coesão ortográfica e até
mesmo fonética, que se distingue da
encontrada em relação à canção do Chico
Bento, que parece ter como objetivo
reforçar uma imagem do ambiente
camponês associada à ideia do lugar
atrasado, onde o saber formal,
sistematizado, e os conhecimentos sobre a
norma culta da língua portuguesa fizessem
referência ao que está distante dela, aos
espaços reservados para a civilidade.
Associada aos elementos visuais e
seus atributos de personalidade, a
linguagem utilizada para caracterizar
Chico Bento faz emergir um certo
preconceito social para com os sujeitos do
campo. Ao apresentá-lo com erros
gramaticais, ortográficos e fonéticos, ou
seja, como “alguém que não sabe falar a
própria língua materna”, de modo sutil, se
cria o efeito de “discriminação com base
no modo de falar”. (Bagno, 2003, p. 16-
17). No comparativo entre a representação
das crianças do campo e da cidade, se
evidencia que as diferenças também se
encontram no modo de falar e na relação
com a linguagem. Como podemos observar
também nas tirinhas referentes à revista do
personagem (Sousa, 2015; 2016):
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Figura 02 Chico Bento.
Fonte: Chico Bento, n 1, maio de 2015, p. 21.
Figura 03 Chico Bento.
Fonte: Chico Bento, n. 11, março de 2016, p. 33.
“Uma vez que toda linguagem é tida
como uma forma de representar o mundo,
a linguagem em Chico Bento nada mais é
do que uma tentativa de reforçar a
representação do ambiente rural
apresentado nas HQs”. (Liberatti, 2012, p
28). Isso amplia a noção habitual que se
tem do personagem e do ambiente em que
ele está inserido no senso comum
reproduzido histórica, social e
culturalmente.
O aspecto semiótico da
caracterização do personagem (roupas
simples, chapéu de palha e pé no chão),
além do cenário a ele atribuído na maior
parte das vezes (entre os animais, às
margens do lago, deitado sob árvores),
também pode incidir para uma concepção
estereotipada, e em muitos casos
romantizada, em relação às crianças
camponesas
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A descrição das características de
Chico Bento, no site oficial, é um exemplo
do romântico imaginário a que se reporta
Miguel Arroyo (2009) a respeito da
concepção que se tem das crianças, neste
caso das crianças camponesas, onde
encontramos traços do “protótipo” do
homem do campo que constitui uma
permanência ressignificada (Parrilla,
2006). Pureza, simplicidade e simpatia, o
que caracterizaria as pessoas do interior.
Anda descalço, usa chapéu de palha e toca
violão, além de pescar no rio, dormir na
rede e brincar com os amigos; isso sem
contar no fato de que não gosta de estudar
e tem um carinho enorme pelos bichos.
“Quem disse que na zona rural as
crianças são sempre boazinhas, generosas,
que não aprontam, que não cometem
malvadezas, não fazem birra, não
discordam, não são egocêntricas, que não
transgridem, que não gostam de estudar,
tomar banho e se vestir bem?”, questiona
Ticiana Horn (2010, p. 201). E um dos
estigmas mais graves que a população do
campo carrega é o de não gostar de
estudar, muito relacionado também ao fato
de ajudarem seus familiares no trabalho
produtivo de seus respectivos contextos
agrícola, pecuário, etc.
Um exemplo dessa característica
encontra-se em uma tirinha do Chico
Bento, em que ele se depara com seu
amigo Lelé caído no chão este é um
personagem que também vive no contexto
camponês, e que traz outra referência
pejorativa, o “Lelé” que compõe seu nome
costuma ser um indicativo de alguém que é
intelectualmente defasado. Caminhando
pelo campo, Zé Lelé se surpreende com
uma placa presa a uma árvore, escrito nela
a palavra “PENSE!”. Ao ler o que a placa
informa, o personagem aparenta realizar
um grande esforço, levando o leitor a
entender que ao ter que pensar, a criança
camponesa aqui representada não seria
capaz de suportar a ação, a ponto de cair
desmaiada.
Figura 04 Zé Lelé pensando.
Fonte: Depósito de Tirinhas.
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Esse exemplo nos permite refletir
sobre o quanto o estereótipo relativo aos
camponeses pode ser prejudicial para
compreender os aspectos históricos,
políticos e sociais que perpassam uma
questão como essa. Só o fato de sugerir
que a criança, ou os sujeitos camponeses
de modo geral, não pensa(m), é um indício
do pré-conceito estabelecido e enraizado
socialmente. Nesse caso, estudos
etnográficos com e sobre crianças têm
contribuído para revelar novos modos de
retratar e apresentar as crianças em
distintas culturas (Cohn, 2013).
Entre alguns estudos, podemos citar
os trabalhos de Gustavo Couto (2016), que
reconhece as crianças como atores sociais
relevantes e argumenta que a forma de
pensar e conceber a criança tem múltiplos
impactos, que incidem sobre as relações
que estabelecemos com as crianças; de
Emilene de Sousa (2015), que destaca o
quanto os estudos etnográficos têm
contribuído para repensar a criança
camponesa, no intuito de salientar a
diversidade de sujeitos que compõem os
universos infantis; e de Antonio da Silva
(2017), que elabora sua reflexão
etnográfica com crianças tendo como
enfoque a relação tempo/espaço na ação
investigativa com estes sujeitos.
Logo, as pesquisas etnográficas, que
cada vez mais interagem entre diferentes
áreas do saber como Antropologia,
Sociologia, História, Geografia,
Comunicação, Educação, entre outras ,
trazem dados e reflexões que questionam e
ajudam a problematizar ideias e
concepções que estão, histórica e
culturalmente, arraigadas em boa parte da
sociedade, como a que pudemos identificar
na tirinha do Chico Bento (Figura 04), ao
reafirmar a criança e o sujeito do campo
como aquele que é “incapaz”, até mesmo
de pensar.
Antonella Tassinari, em pesquisa
com profissionais das escolas do município
de Turvo, no estado do Paraná, apresenta
alguns dados referentes ao rendimento
escolar de crianças camponesas que
contribui para contestar o quadro geral que
costuma ser reservado às crianças do
campo, sobretudo devido ao fato de que
muitas delas precisam articular o tempo da
escola com o tempo do trabalho. Sua
pesquisa demonstrou que as crianças “que
realizam atividades produtivas nas
propriedades da família tendem a ser mais
comprometidas com os estudos e
valorizam mais a escola”. (Tassinari, 2014,
p. 128). Ainda segundo a antropóloga
brasileira,
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As entrevistas com professores e
coordenadores das escolas
enfatizaram que os alunos que estão
envolvidos com atividades produtivas
têm um rendimento igual ou superior
à média dos colegas. Isso pôde ser
confirmado com a análise dos
boletins dos alunos. Também
observaram que as crianças que
ajudam os pais na propriedade
familiar têm maior senso de
responsabilidade, respeito aos
professores e valorização da escola.
(Tassinari, 2014, p. 127).
Na verdade, um fundo muito mais
complexo que precisa ser levado em
consideração quando se associa escola,
trabalho e estudantes do campo, pois a
pesquisa de Santos (2014) demonstra que
esse discurso se refere mais a um
preconceito socialmente difundido como
verdade do que a realidade em si. Causas
econômicas, culturais e políticas,
comprovadas sociológica e
antropologicamente (Silva, 1997), se
interconectam em relação a essa suposta
“preguiça” tanto no que diz respeito ao
trabalho quanto aos estudos dos
camponeses.
Assim, a realidade das crianças rurais
se reduz a um formato único, que direciona
nosso olhar e o modo como assimilamos e
(re)produzimos essa imagem. Se é difícil
conceber uma imagem da infância e da
criança no contexto urbano onde as
complexidades são muitas e diversas, o
mesmo ocorre no campo, onde os
problemas não são inferiores e nem
menores do que os da cidade; são apenas
diferentes.
A imagem de Chico Bento descalço,
de camisa xadrez, calças curtas,
chapéu de palha, entre outras coisas,
ensinam um modo de ser rural. Os
significados que culturalmente
construímos em torno de uma
determinada forma procuram
representar o sujeito típico que vive
nesse espaço. É extremamente difícil
encontrarmos outros modos e
modelos de personagens rurais. Essa
não variação, a não disposição de
outras formas de ser rural acaba se
tornando uma espécie de padrão, de
modelo verdadeiro, especialmente
para as crianças, que o tomam como
um modo de ser e ver, definindo
como o as coisas e pessoas a partir
desse “molde” disponível. (Horn,
2010, p. 204).
Esse padrão, ou “modelo
verdadeiro”, atinge a todos, inclusive os
camponeses. Para uma criança do campo
que se vê e se percebe como inferior a
partir dessa produção cultural que lhe
afirma constantemente esse imaginário, o
melhor modo de se ver a partir de outra
perspectiva muitas vezes é aceitar essa
“verdade” e ter o referencial da cidade e de
suas pessoas como modelo formativo. Um
processo que acaba tornando os nativos
estrangeiros em sua própria terra”. (Bosi,
2003, p. 176).
Dessa forma, é necessário rever as
representações visuais sobre esses sujeitos
que vivem no campo e como são
apresentados, pois sabemos que “as
infâncias rurais são múltiplas, variadas e
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têm direito de aparecerem, serem
retratadas e vistas de outros modos e
meios, de uma maneira plural, e não
unicamente formatada por uma imagem
velha e bastante distorcida”, como
ressalta Ticiana Horn (2010, p. 206). Trata-
se de problematizar essa concepção e, se
possível, demonstrar que ela pode não ser
aquilo que afirma.
Algumas considerações para
complementar
“Em verdade, o sociólogo deve ver
as coisas de um modo mais complexo”,
esclarecia Marcel Mauss (2003, p. 417).
Essa afirmação pode ser estendida da
Sociologia para todas as áreas do saber,
uma vez que é tarefa do pesquisador
localizar o discurso para além de suas
aparências, acrescentando a elas questões
que permitam perceber suas raízes
históricas.
Neste texto propomos dialogar com
uma produção visual voltada às crianças, o
personagem de Chico Bento, desenvolvido
pelo cartunista Maurício de Sousa, que é
hoje um dos principais símbolos culturais
que elabora e formata modos de olhar os
sujeitos do campo, bem como o seu lugar,
ainda que baseada numa perspectiva
citadina (Parrilla, 2006).
Pensar as crianças e infâncias
camponesas requer ter em mente realidades
distintas e heterogêneas, por si plural e
diversificada, ao considerarmos que são
vários os “campos” e os sujeitos que
neles vivem que compõem o Brasil. Essa
abordagem possibilita ver o mundo não
como ele muitas vezes nos é mostrado,
mas como de fato é; e também como ele
pode ser, a partir de outra configuração que
não seja a de um pensamento único
(Santos, 2000).
Os modos de ver e retratar os sujeitos
do campo “difundiram-se e penetraram
com grande força no imaginário social,
podendo-se perceber a permanência [nas
histórias do Chico Bento], mesmo que
ressignificada, de elementos que as
constituíram”. (Parrilla, 2006, p. 98). O
campo continua como lugar de atraso em
relação à cidade, mesmo que haja uma
forte narrativa idílica, assim como seu
personagem principal permanece como
rústico e preguiçoso, ainda que bondoso e
ingênuo.
“A representação que a mídia
construiu a respeito do homem do campo
demonstra-se, geralmente,
descontextualizada e permeada por
preconceito”, afirma Franciele Parrilla
(2006, p. 176). Em relação ao personagem
aqui trabalhado e seu local de vida,
podemos perceber que essa
descontextualização pode estar associada
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ao fato de ser a percepção de um sujeito
urbano sobre aqueles que são do interior.
o contraste entre o campo e a cidade
encontra-se presente também nas
HQs do Chico Bento, em que
predomina uma representação
idealizada do campo caracterizado
como local da tranquilidade, da saúde
(física e psíquica), do bem estar, da
harmonia, da paz, dos valores
autênticos, das virtudes simples e da
moral irrepreensível de seus
habitantes. Em oposição, a cidade é
qualificada negativamente como um
lugar de caos, de poluição, de
discórdia, de doença, de
mundanidade e de ambição.
Entretanto, vale lembrar que tais
imagens não se constroem sem
ambiguidades, visto que em diversos
momentos, o caipira aparece
caracterizado como inculto, incapaz,
atrasado, o que colabora para a
difusão de um estereótipo do homem
do campo ... (Parrilla, 2006, p. 240).
Os registros visuais, e os discursos
que eles transmitem, ou que deles se
emitem, geram leituras sociais e
contribuem para a construção de um
imaginário coletivo. Apesar do maior
acesso a diferentes artefatos culturais em
ambientes formativos (Andrade, 2017) e de
uma maior possibilidade de leitura política
(Kellner, 2001) das representações que a
mídia, em diferentes contextos, apresenta
e que permeia desde sua conjuntura
histórica a aspectos técnico-estéticos ,
percebemos uma forte influência de velhas
construções imagéticas, como é o caso de
Chico Bento, no que diz respeito à
produção e difusão de repertórios culturais
sobre determinados grupos e/ou sujeitos
culturais.
Richard Sennett, reportando-se a
Roland Barthes, problematiza os
repertórios culturais que as pessoas
costumam usar quando estão diante de
contextos diferentes daqueles a que está
habituado, e o poder de julgamento desses
repertórios. Segundo o sociólogo e
historiador estadunidense, nestes cenários
“complexos ou não familiares, o indivíduo
tende a classificar o que de acordo com
categorias simples e genéricas, baseadas
em estereótipos sociais”. (Sennett, 2008, p.
367).
Diante da imagem que Maurício de
Sousa e seus colaboradores fazem do
campo e dos sujeitos que nele habitam, é
comum que se construam categorias
simples e genéricas para se pensar as
crianças e infâncias a ela associadas.
Stuart Hall (1997) constatava que os
meios de produção, circulação e troca
cultural estavam se expandindo por meio
das tecnologias e da revolução da
informação, o que levaria à construção de
novas representações sociais, baseadas não
somente no discurso hegemônico. A
descentralização do poder de produção e
difusão cultural promoveria assim a
constituição de outras subjetividades,
ressignificando o imaginário social
relacionado às representações
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convencionais que buscam homogeneizar
lugares e sujeitos.
Percebemos que esse trabalho,
quando relacionado aos sujeitos do campo,
ou mais especificamente às crianças e
infâncias camponesas, que continuam
sendo representadas, de modo mais
abrangente, a partir de referenciais
citadinos que detêm o poder de construir
e instituir suas narrativas , precisa de
maior cuidado para não se (re)produzir
discursos cristalizados que negam a
pluralidade dos seus contextos.
Destacamos ainda que análises
futuras, trazendo mais elementos para
problematizar e refletir a respeito das
crianças no e do campo, de acordo com a
perspectiva que aqui compartilhamos,
poderão contribuir no aprofundando da
temática, orientando nosso olhar contra as
caricaturas que disseminam um imaginário
social pautado em ideias preconcebidas
sobre os sujeitos camponeses e o seu
espaço de vida e atuação.
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1
i
Descrição encontrada no site oficial:
http://turmadamonica.uol.com.br/personagem/chico
-bento/
ii
Conforme descrição do site: “Chico Bento nasceu
das observações do Mauricio junto ao homem do
campo... Na época, ele era uma versão mirim do
Jeca Tatu, personagem clássico das histórias de
Monteiro Lobato.” (grifo nosso).
iii
As músicas podem ser conferidas nos seguintes
links:
https://www.youtube.com/watch?v=qk7coRh6gC8
e https://www.youtube.com/watch?v=BHo-
zgE6GXU
iv
No site oficial da Turma da Mônica podemos
encontrar a seguinte descrição: “Chico Bento é uma
criança que representa a pureza, a simplicidade e a
simpatia que caracterizam as pessoas do interior
paulista. É o típico caipira que anda de no
chão, usa um chapéu de palha e toca modas de
viola. Mora na Vila Abobrinha, onde adora gastar
seu tempo nadando no rio, pescando, dormindo
na rede e brincando com os seus amigos. Não é
muito chegado aos estudos e tem um carinho
enorme pelos animais do seu sítio, como a galinha
Santos, J. D. A., & Almeida, E. V. (2019). Chico Bento e as representações sociais da infância...
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
e6446
10.20873/uft.rbec.v4e6446
2019
ISSN: 2525-4863
23
Giselda, o porquinho Torresmo e a vaca Malhada”.
(grifos nosso)
v
A tirinha esdisponível em https://deposito-de-
tirinhas.tumblr.com/image/23924801902
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 23/01/2019
Aprovado em: 10/03/2019
Publicado em: 28/05/2019
Received on January 23th, 2019
Accepted on March 10th, 2019
Published on May, 28th, 2019
Contribuições no artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final a ser publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version to be published.
Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
José Douglas Alves dos Santos
http://orcid.org/0000-0002-7263-4657
Éverton Vasconcelos de Almeida
http://orcid.org/0000-0002-8404-2026
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Santos, J. D. A., & Almeida, E. V. (2019). Chico Bento e as
representações sociais da infância. Rev. Bras. Educ.
Camp., 4, e6446. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6446
ABNT
SANTOS, J. D. A.; ALMEIDA, E. V. Chico Bento e as
representações sociais da infância. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 4, e6446, 2019. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e6446