Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9219
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9219
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2020
ISSN: 2525-4863
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Organização coletiva e sementes crioulas: uma forma de
luta e resistência pela identidade sociocultural quilombola
na comunidade Sítio Veiga em Quixadá-CE
Fernanda Ielpo da Cunha
1
, Luís Tomás Domingos
2
, Ana Maria Eugenio da Silva
3
, José Gerardo Vasconcelos
4
1, 2, 3
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB. Mestrado Acadêmico em
Sociobiodiversidade e Tecnologias Sustentáveis (MASTS). Campos Aurora. Rua José Franco de Oliveira, s/n. Redenção - CE.
Brasil.
4
Universidade Federal do Ceará - UFC.
Autor para correspondência/Author for correspondence: ferielpo@gmail.com
RESUMO. O cultivo de sementes crioulas faz parte da sabedoria
da herança ancestral, que pode ser contada desde o icio da
hisria da agricultura, sendo as comunidades tradicionais as
grandes guardiãs desse patrinio cultural, cujos ensinamentos
transpõem a preservação de suas memórias, uma vez que chamam
a atenção para a preservação da própria vida no planeta e das
próximas gerações, em que a preservação do patrimônio genético
dessas sementes garanti a biodiversidade existente na Terra.
Diante dessa realidade, o presente estudo tem como objetivo
analisar como as formas de organização coletiva em torno do
cultivo de sementes crioulas contribuem para a preservação da
identidade sociocultural quilombola na comunidade de quilombo
Sítio Veiga em Quixadá, no Cea. A presente pesquisa é de
cunho qualitativo, realizada in loco, cuja modalidade norteadora
foi a etnográfica, com observação participante, métodos estes
fundamentais para uma maior aproximação e interação com os
sujeitos sociais da pesquisa e das ações inerentes ao cultivo de
sementes crioulas.
Palavras-chave: Sementes Crioulas, Organização Coletiva,
Quilombo.
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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Collective organization and Creole seeds: a way of struggle
and resistance for the Quilombola socio-cultural identity in
the Sítio Veiga community in Quixada-Ceará
ABSTRACT. The cultivation of Creole seeds is part of the
wisdom of the ancestral legacy, which can be told since the
beginning of the agriculture history, being the traditional
communities the great guardians of this cultural heritage, whose
teachings transpose the preservation of their memories, since
they call attention to the preservation of life itself on the planet
and of the next generations, where the preservation of the
genetic heritage of these seeds will guarantee the biodiversity
existing on Earth. Faced with this reality, this study aims to
analyze how the ways of collective organization based on the
cultivation of Creole seeds contribute to the preservation of the
Quilombola socio-cultural identity in the quilombo community
Sítio Veiga in the city of Quixadá, in Ceará state. This research
has a qualitative nature, carried out in loco, whose guiding mode
was ethnographic, with participant observation, methods that are
fundamental for a greater approximation and interaction with the
social subjects of the research and the actions inherent to the
cultivation of Creole seeds.
Keywords: Creole Seeds, Collective Organization, Quilombo.
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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Organización colectiva y semillas criollas: una forma de
luta y resistencia por la identidad sociocultural
Quilombola en la comunidad Sítio Veiga en Quixadá-CE
RESUMEN. El cultivo de semillas criollas forma parte de la
sabiduría proveniente de la herencia ancestral, que puede ser
contada desde el comienzo de la historia de la agricultura, con
comunidades tradicionales como grandes guardianes de ese
patrimonio, cuyas enseñanzas van más allá de la preservación de
su memoria, pues advierten para la preservación de la propia
vida en el planeta y de las próximas generaciones, en que la
preservación del patrimonio genético de esas semillas garantirá
la biodiversidad existente en la Tierra. Ante esa realidad, este
estudio objetiva analizar cómo las formas de organización
colectiva sobre el cultivo de semillas criollas contribuyen en la
preservación de la identidad sociocultural Quilombola en la
comunidad de quilombo Sítio Veiga en Quixadá, en Ceará. Esta
investigación es de tipo cualitativo, realizada in situ, de
naturaleza etnográfica, con observación participante, métodos
fundamentales para promover la aproximación e interacción con
los sujetos sociales del estudio y de las acciones inherentes al
cultivo de semillas criollas.
Palabras clave: Semillas Criollas, Organización Colectiva,
Quilombo.
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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Introdução
Hoje as populações tradicionais são
as grandes responsáveis por preservar
técnicas e meios de cultivo, como as
sementes crioulas nos espaços rurais.
Todavia, desde o surgimento da agricultura
moderna, do aprimoramento da
mecanização e dos insumos agrícolas nos
processos produtivos, atrelados à expansão
das multinacionais e do agronegócio que
passaram a alterar o ácido
desoxirribonucleico (DNA) natural das
sementes através da engenharia genética,
transformando-as em híbridas, transgênicas
para fins comerciais e à produtividade
em grande escala, a agricultura tradicional
e as sementes crioulas têm perdido cada
vez mais espaço, sendo inclusive
esquecidas pelo poder público.
Os resultados desse cenário se
configuram pela própria realidade de
exclusão social tanto do homem do campo
quanto das comunidades tradicionais, que
passaram a ser os maiores prejudicados,
devido aos conflitos no campo, à
acumulação das terras por parte dos
grandes empresários e latifundiários, às
migrações constantes das regiões Norte e
Nordeste para áreas rurais escravizadas e à
marginalização e preconceito das cnicas
tradicionais, vistas pelo mercado capitalista
como técnicas de menor valor, daí
incompatíveis aos ideais de progresso e
desenvolvimento propagada (Figueiredo et
al., 2013).
Somada a essas questões, destaca-se
ainda a realidade vivenciada pelas
comunidades quilombolas que buscam o
reconhecimento de seus territórios e posse
de suas terras. Esses povos têm uma
história de resistência e luta trazida pelas
raízes africanas, sendo até hoje esse legado
cultural mal interpretado pela sociedade, o
que coloca em risco suas tradições, tais
como o cultivo de sementes crioulas,
constantemente ameaçado pelo mercado do
agronegócio e suas indústrias de veneno.
Assim, com base nas questões acima
suscitadas, surgiram nossos interesses em
querer pesquisar, a partir das atividades do
cultivo de sementes crioulas do quilombo
Sítio Veiga, em Quixadá, Ceará, Brasil,
como estas ações são socializadas, levando
em consideração o lugar de vivência e os
saberes repassados por seus ancestrais,
sendo elaborado o seguinte objetivo a
partir dessas inquietações: analisar como as
formas de organização coletiva em torno
do cultivo de sementes crioulas contribuem
para a preservação da identidade
sociocultural quilombola na comunidade
de quilombo Sítio Veiga em Quixadá-CE.
A presente pesquisa ocorreu em
caráter qualitativo, a qual, segundo Minayo
(2002, p. 21-22), é uma pesquisa que “...
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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trabalha com dados que não podem ou não
têm como serem medidos, como, por
exemplo: crenças, valores, atitudes e
situações”. A referida autora enfatiza que
esse tipo de abordagem é utilizado quando
se busca compreender um determinado
fenômeno na perspectiva dos indivíduos
que o vivenciam. O estudo recorreu ainda à
modalidade e revisão de literatura com
análise bibliográfica, descrição etnográfica
e observação participante in loco.
Os referidos métodos escolhidos se
complementam em nossa pesquisa. Do
todo etnográfico cabe a relevância de
compreender a realidade social das
comunidades tradicionais, condutas,
expressões culturais, modos de ser e viver
singulares/peculiares, cujas descrições dos
eventos e dos lugares por onde transitam
esses sujeitos sociais precisam desse olhar
mais cuidadoso do pesquisador, muitas
vezes silencioso. “... O enfoque etnográfico
intenta descrever a totalidade de um
femeno (grupo social, aulas, festas
populares, etc.) em profundidade e em seu
âmbito natural, compreendê-lo desde o
ponto de vista dos que eso implicados
nele...” (López, 1999, p. 46). Portanto, esse
todo subsidiou a aproximação necessária
com a comunidade Sítio Veiga, ao mesmo
tempo em que nos permitiu descrever e
experimentar suas experiências, pois “Tal
todo permite vivenciar a experiência
deles, aprender deles e de suas experiências,
explorar conceitos” (Bogdan et al., 1975
apud López, 1999, p. 46).
A pesquisa in loco ocorreu no
período de junho a agosto de 2019, após a
aprovação, autorização e determinação do
Comitê de Ética em Pesquisa (Plataforma
Brasil, Resolução 466/2012), que trata e
regulamenta as diretrizes e normas que
envolvem seres humanos. As coletas das
informações foram registradas em diário de
campo, áudio e gravação devidamente
autorizados pelos(as) participantes da
pesquisa.
A população entrevistada conta com
um quantitativo de 15 quilombolas maiores
de 18 anos, que residem e moram no
quilombo, que trabalham ou têm
conhecimento no cultivo de sementes
crioulas e que voluntariamente se
dispuseram a responder à entrevista com
perguntas previamente semiestruturadas.
Definimos a amostra de acordo com a
congruência ou a coincidência de opiniões
contidas nas falas dos(as) entrevistados(as),
bem como utilizamos nomes fictícios,
elegendo nomenclatras de sementes
crioulas para nos referir aos sujeitos que
participaram deste estudo, tais como: 1)
Fava Balinha; 2) Fava Espírito Santo; 3)
Feijão Querentin; e 4) Milho Amarelo. Para
garantir total anonimato, não
mencionaremos o sexo e a idade dos(as)
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entrevistados(as), visto a proximidade entre
eles(as) e a possibilidade de identificá-
los(as) dentro do quilombo, o que foi
solicitado entre os sujeitos sociais da
pesquisa.
Portanto, fica patente a relevância do
presente estudo, que ocorreu pela procura
sistemática de narrativas que fossem
capazes de desvelar os sentimentos
internalizados desses sujeitos sociais no
que tange à própria identidade quilombola
ao processo de organização coletiva em
torno das sementes crioulas e aos aspectos
de preservação e sustentabilidade
ambiental, deixando registradas
significativas contribuições aos legados
acadêmico, social e cultural desses sujeitos
sociais, como veremos adiante.
Do coletivo a terra, ao território e às
sementes crioulas: um lugar para se
organizar, pensar, lutar, resistir e
continuar a existir
As bases de organização coletiva de
quilombos no Brasil estabelecem uma forte
influência dos povos africanos,
especificamente os de origem bantu
i
trazidos da África e escravizados no Brasil
(XVI-XVII), cuja relação estabelecida foi
se firmando pelo sentimento de laços
coletivos e de pertencimento étnico, uma
base de formação política que se firmou na
luta contra a escravatura e suas formas de
opressão, consolidando-se mesmo após a
abolição da escravatura como elemento de
formação territorial, somadas à luta pela
posse de seus territórios, um lugar de
refúgio para os homens e mulheres
continuarem lutando, organizando-se
coletivamente (Munanga, 1996).
... a relação do quilombo brasileiro
com o quilombo africano reafirma sua
importância como forma de
resistência ao escravismo. Nessa
perspectiva, mais que um refúgio para
os negros, os quilombos foram
reunião de homens e mulheres que se
negaram a viver sob o regime de
escravidão e que desenvolviam laços
de solidariedade e fraternidade na
reconquista de sua dignidade. Assim,
a ênfase na definição deve, então, ser
posta sobre o binômio resistência e
autonomia, e não sobre o ato da fuga.
(Munanga, 2001 apud Silva &
Nascimento, 2012, p. 27).
Assim, foi na relação com a terra e o
território que foram se consolidando as
bases de organização coletiva nos
quilombos brasileiros, fazendo da terra um
lugar para pensar o grupo, suas expressões
culturais, religiosas, artísticas e
gastronômicas, os ensinamentos dos seus
ancestrais, o cuidado com a agricultura, o
cultivo de suas sementes crioulas, o que
reflete todo o cuidado desses povos em
manterem vivas suas tradições e as
memórias de seus ancestrais, sendo estas
repassadas entre gerações (Cunha et al.,
2019).
Claro que entender o que seja
quilombo e suas formas de organização
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coletiva não é algo tão simples, levando-se
em conta a própria negação nos processos
históricos desses povos e as visões
estereotipadas construídas e perpetuadas
socialmente, cuja percepção distorcida
deixou resquícios que perduram até hoje,
culo XXI, retratando os quilombolas
como sendo fugitivos, isolados, habitantes
das florestas, seres humanos selvagens,
bandidos, dentre outras denominações, o
que faz refletir as palavras de Fava Espírito
Santo (2019):
Primeiro é preciso entender que o
quilombo que se discute hoje é o
quilombo do passado, né, o quilombo
antigo, que não corresponde à nossa
realidade, naquela perspectiva do
negro como escravizado, do negro
apanhando, do negro em
sofrimento... O quilombo não está
dentro de uma bolha, ele está dentro
de um todo, e este todo... fortalece
essa questão do negro... Não
podemos aceitar o negro como se ele
não fosse capaz, do negro como se
não fosse um indivíduo, que vai
ocupar os piores trabalhos; não digo
os piores trabalhos, mas aqueles que
requerem mais força, daquele
estereótipo que foi criado no passado
e que ainda perdura até hoje... Então,
nós carregamos esses estereótipos do
processo escravocrata em todos os
espaços, né? É na escola, na saúde,
no campo, na cidade..., e isso faz
com que muitos não assumam sua
identidade. Quem quer ser negro se
ser negro para a sociedade é ser feio,
é ser vergonhoso?
As palavras elucidadas trazem vários
elementos e reflexões relevantes para
desconstruir a imagem até então imposta
sobre o quilombo, haja vista que não se
pode pensar o(a) quilombola como um ser
humano fora da sociedade, enclausurado(a)
e refém do passado escravocrata. No
quilombo existem formas de organização,
processos de resistências e de lutas. Hoje
os(as) quilombolas transitam por diversos
espaços, não se restringindo unicamente ao
quilombo, tais como universidades,
movimentos sociais, associações
comunitárias, o que faz refletir sobre uma
nova compreensão do que seja quilombo
na atualidade, suas formas de organização,
que se interligam nesses espaços e em suas
ações cotidianas, coadunando-se com as
palavras de Leite (2000, p. 335):
Tudo isto se esclarece quando entra
em cena a noção de quilombo como
forma de organização, de luta, de
espaço conquistado e mantido através
de gerações. O quilombo, então, na
atualidade, significa para esta parcela
da sociedade brasileira, sobretudo um
direito a ser reconhecido e não
propriamente e apenas um passado a
ser rememorado.
Logo, é preciso entender que os(as)
remanescentes de quilombo m raízes
ancestrais, laços de coletividade e formas de
organização coletiva presentes nos espaços
políticos, que se entrelaçam às
especificidades do seu modo de ser e viver,
da ocupação de seus territórios e das lutas
diárias para ocuparem também um lugar na
sociedade; por se manterem livres; por
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lutarem para serem reconhecidos(as) como
cidadãos(ãs) de direitos.
E foi nessa trajetória de luta pela
terra e pelo território que se destacou a
aprovação da Lei das Terras de 1850, um
marco na história da organização coletiva e
política dos quilombos, consolidando o
direito ao território como condição
primordial à sua sobrevivência e
posteriormente os inseriu nos debates sobre
as questões da Reforma Agrária dos
movimentos negros organizados. Uma luta
cotidiana, que se reflete nos espaços
políticos, de conquistas e reivindicações,
trazendo mais uma vitória, que culminou
com a aprovação do artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT) da Constituição Federal de 1988,
que tornou obrigatórios o reconhecimento e
a titulação dos territórios quilombolas
(Monteiro, 2004).
Nos últimos 30 anos os descendentes
de africanos, organizados em
associações quilombolas, reivindicam
o direito à permanência e ao
reconhecimento legal da posse de
suas terras ocupadas e cultivadas para
moradia e sustento, bem como o livre
exercício de suas práticas culturais,
crenças e valores considerados em
sua particularidade. (Leite, 2000
apud Monteiro & Garcia, 2010, p.
154).
O atributo da resistência nos espaços
de organização coletiva estabelece,
portanto, as formas de luta na busca pela
preservação do espaço conquistado e
preservado por gerações, ao mesmo tempo
em que envolve a relação com o território,
sendo este o espaço de referência para a
construção da própria identidade
quilombola, mais precisamente um espaço
sico-material, mas também político,
econômico, social e simbólico (Silva &
Nascimento, 2012). Se hoje existem
territórios quilombolas é porque em um
momento histórico dado um grupo se
posicionou, aproveitando uma correlação de
forças políticas favoráveis, e instituiu um
direito que fez multiplicar os sujeitos
sociais e as disputas territoriais” (Silva &
Nascimento, 2012, p. 35).
Vale destacar ainda que a
constituição da identidade quilombola
envolve a própria necessidade de luta,
posto que, quando uma comunidade
quilombola se organiza coletivamente e
reivindica seus direitos, por manter viva a
reminiscência de seus ancestrais, quando
ela também luta para se territorializar, está
exercendo um novo olhar sobre a
sociedade, ou seja, sobre aquele indivíduo
que lhe foi negado transitar como
cidadão(ã) de direito, de ser incluído(a)
socialmente, estabelecendo, assim, uma
nova territorialidade (Silva & Nascimento,
2012).
Dito isso, territorializar significa
poder, autonomia, possibilidade de
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ascensão, superação das vulnerabilidades
sociais, uma forma de se colocar no
mundo, estabelecendo a conexão com seus
ancestrais, com seus rituais sagrados, com
o exercício de cidadania, com os aspectos
materiais e simbólicos da vida.
Partindo dessas premissas, é preciso
dar vez e voz aos povos quilombolas,
situá-los como sujeitos de suas próprias
histórias, deixar que possam falar por si,
pois suas representações coletivas estão
fincadas no chão, na terra, nos seus
processos organizativos, haja vista que no
quilombo existem associações que também
os representam e que estão dentro dos
processos de tomadas de decisão dentro de
seus territórios, repercutindo
significativamente nos aspectos de
organização política, socioeconômica e
cultural das conquistas almejadas, como
veremos nas palavras de Feijão Balinha
(2019):
Nosso quilombo se reúne para tomar
decisões. Chamamos a comunidade
para participar, alguns vão, outros
não gostam de participar, mas o
convite é feito... Olha, conseguimos
muitas coisas pela associação, como
nossas cisternas, água nas casas, a
própria casa de sementes foi decisão
nossa, os vários cursos, a própria
entrada dos jovens na Unilab
[Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira], o próprio reconhecimento
do nosso território, que ninguém tira,
mas conseguimos com nossa luta,
com o apoio de todos da associação;
em 2009, fomos reconhecidos como
comunidade quilombola, agora
está faltando o presidente assinar
sobre nossa posse... Acho que até
mesmo o respeito da sociedade
ganhamos mais, pois todos
perguntam como conseguimos tanta
coisa; querem até se juntar a nós...
Todos deveriam participar,
compreender a importância da gente
se reunir para melhorar nossa
situação. Com união é mais fácil
conseguirmos as coisas.
Assim, percebe-se que da relação
com a terra foi sendo estabelecida a
organização política em torno do território,
da posse da terra, do direito de continuar
cultivando suas sementes e celebrando seus
rituais em seu solo sagrado, cujo palco
dessas disputas pela legitimação de seus
direitos se revela como suas bandeiras de
lutas, palco de reivindicação e resistência.
Nessa óptica, é mister considerar a
forte representação do autorreconhecimento
e a certificação para a comunidade
quilombola Sítio Veiga, no ano de 2009,
concedidos pela Fundação Palmares
ii
,
conquistas capazes de legitimar seu
reconhecimento como remanescente de
quilombos, mas que também abrem os
caminhos a inclusão social, ao direito às
políticas públicas afirmativas e aos
programas sociais, passando também a dar
visibilidade à identidade quilombola desses
sujeitos sociais. Uma visibilidade que, para
os sujeitos sociais da pesquisa, passou a
ressignificar sua imagem na sociedade
como sujeitos sociais de direitos, o que traz
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à tona a própria singularidade dessa
comunidade elemento este essencial ao
pertencimento e recorte étnico-racial do que
é ser quilombola, cujas raízes estão fincadas
na terra, nas sementes crioulas, nas suas
formas de organização e nas reminiscências
dos saberes repassados por seus ancestrais.
Os(As) que residem vivem da
agricultura de subsistência, sendo a
principal renda advinda da terra, em que a
atividade ocorre pela socialização dos
saberes repassados por seus ancestrais em
seus roçados, como o plantio de sementes
crioulas, tais como: milho, feijão, fava,
melancia, maxixe, jerimum, pepino, etc.
Portanto, além da produção oriunda dos
roçados, também uma pequena parte da
produção advinda dos quintais produtivos,
por exemplo: frutas, verduras, plantas
medicinais e criações de animais de
pequeno porte. Quase toda a produção é
destinada ao consumo das famílias, e o
pouco excedente, quando sobra, as famílias
comercializam para outras comunidades ou
o vendem na própria comunidade ou no
entorno.
Desse modo, temos ainda as fortes
representações das diversas variedades de
sementes crioulas para a manutenção e a
preservação dos(as) quilombolas e dos
ensinamentos perpetuados entre as
gerações. Pensando nesse fortalecimento
das sementes crioulas e depois de muitos
debates sobre a importância delas, os(as)
quilombolas do Sítio Veiga construíram,
de forma organizativa e coletiva, uma casa
de sementes mantida pelas famílias que ali
residem, cujo nome foi atribuído em
homenagem ao fundador da comunidade,
Francisco Ribeiro Bessa, conhecido
carinhosamente como Pai Xigano
iii
, sendo
o referido nome repleto de significados
sócio-históricos.
Embora havendo casas de sementes
nas unidades familiares quilombolas,
havia uma necessidade de um espaço
coletivo, objetivando as discussões
sobre a importância, assim como
sobre as diversidades e variedades de
sementes. Trazer de volta as
sementes perdidas era uma das metas
da casa de sementes Pai Xigano. A
partir daí, foi feito um encontro com
as famílias para realizar um
levantamento das sementes plantadas
em nossos territórios pelos nossos
ancestrais e pelos protagonistas de
hoje, crianças, mulheres e homens
quilombolas do Veiga. E foi de
intensas discussões dentro e fora do
quilombo que brota e nasce a casa de
sementes. Na ocasião foi escolhido o
nome da primeira semente oriunda de
Pau dos Ferros, Rio Grande do
Norte: esta semente, conhecida como
Pai Xigano, foi plantada, brotando e
vingando umas variedades de outras
sementes, cuja resistência vem de
longe, muito longe; as marcas de
resistência estão impregnadas no
sangue, na alma das famílias e das
sementes de Pai Xigano. Ao falar da
casa de sementes Pai Xigano,
automaticamente se está falando da
luta, da resistência, da cultura dos
que antecederam e também das
famílias quilombolas que continuam
a resistir para existir... (Fava Espírito
Santo, 2019).
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Portanto, a casa de sementes é
história, memória, compromisso,
resistência, ensinamento, aprendizado,
cultura, enfim, uma vasta possibilidade de
deslocamentos através do tempo e do
espaço. Nessa caminhada, houve a parceria
com o Centro de Pesquisa e Assessoria
Esplar
iv
, cujo apoio e assessoria foram de
grande relevância, por meio do projeto
Sementes do Semiárido, que fez aflorar
ainda mais as discussões sobre o espaço
coletivo de sementes. A construção da casa
de sementes ocorreu de maneira coletiva,
em que a consciência ambiental proposta
nessa parceria contribuiu para despertar o
valor das sementes e da biodiversidade
embutido no próprio cultivo, de sua
importância para a qualidade de vida e
saúde humana, bem como para a
preservação ambiental e o futuro das
próximas gerações.
O papel da assessoria do Esplar
também foi essencial no resgate de algumas
sementes até então perdidas, fomentando o
intercâmbio entre as diversas comunidades
tradicionais a fim de aproximá-las nesse
resgate e troca de experiências. A
comunidade, a partir desse projeto, pôde
identificar suas sementes tradicionais, dando
um significado ao resgate de suas memórias,
dentre as quais se destacam: feijão pingo de
ouro, feio amarelo, feijão do Everardo,
fava espírito santo, feijão roxo, milho ibra,
milho cateta, milho vermelho, sendo essas
algumas das espécies cultivadas no Sítio
Veiga desde sua origem, ficando agora
guardadas na casa de sementes Pai Xigano.
Estabelece-se, com isso, maior visibilidade
ao quilombo, além de lhe propiciar maior
autonomia, pois seus membros passam a
o mais depender unicamente das sementes
do governo para plantar. Com relação às
sementes distribuídas pelo governo, as
famílias do quilombo as consideram
inadequadas, por serem contaminadas por
agrotóxicos, trazendo sérios prejuízos à
saúde e contaminando o solo. Desse modo,
suas sementes são guardadas
individualmente em cada casa, bem como
armazenadas e estocadas na casa de
sementes Pai Xigano, como veremos
adiante:
... quando construímos a casa de
sementes Pai Xigano, estávamos
preocupados, porque tem um projeto
do agronegócio desde o golpe
v
de
proibir as sementes crioulas e a
circulação das sementes. A própria
Bayer é responsável por produzir o
veneno, mas a casa de semente já vem
com uma discussão bem antes disso
para não usar em nossas plantações, ...
exatamente para não perder as
sementes como a gente perdeu a
semente do quiabo e de tantas outras
sementes. Isso foi muito difícil a gente
implantar dentro da comunidade.
(Feijão Balinha, 2019).
Desse modo, a memória ancestral de
Pai Xigano se articula a diversos aspectos
das atividades do cultivo de sementes
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
forma de luta e resistência pela identidade sociocultural quilombola na comunidade Sítio Veiga em Quixadá-CE...
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crioulas que se complementam, por
exemplo: a agricultura familiar; a
valorização e a luta pelo território e pela
forma de organização das famílias que ali
residem; o cuidado com a indústria do
veneno em suas plantações; e a forte
relação com a terra e com o meio
ambiente.
Como pudemos verificar, a
construção da organização coletiva em
torno do cultivo de sementes crioulas
perpassa por diversos aspectos
socioculturais, políticos e econômicos
capazes de ressignificar suas relações
coletivas, os laços de pertencimentos
étnico-raciais e a identidade quilombola.
Uma organização coletiva que luta pela
vida e pela existência e que também marca
a resistência impregnada na alma dessas
famílias e de suas sementes para
continuarem a ter o direito de viver e
existir, de preservar suas memórias
ancestrais, ensinamentos, aprendizados,
culturas e cada conquista em torno de seus
territórios, das terras, sendo esta uma luta
constante pela construção do
território/terra almejado(a) por eles(as).
A herança ancestral e o cultivo de
sementes crioulas: um conhecimento
necessário à preservação das futuras
gerações
Segundo Trindade (2006), a
denominação de sementes crioulas se
caracteriza por aquelas que não sofreram
modificações genéticas em sua forma
natural ou original. Geralmente são
sementes nativas e peculiares de
determinada região, repassadas de uma
geração a outra, sendo cultivadas por
comunidades tradicionais, especialmente
as de características quilombolas, as
indígenas, as ribeirinhas, as caboclas, etc.
Na comunidade Sítio Veiga, a
denominação de sementes crioulas
estabelece uma conexão muito forte entre
os saberes ancestrais e a própria
preservação das espécies naturais das
sementes, haja vista o fato de que as
sementes crioulas aparecem nas
comunidades tradicionais como uma forma
de manter a tradição de repasse de
conhecimento entre gerações, o que faz
garantir a própria subsistência local.
Estabelece uma relação de interação com a
natureza sem tantos impactos ambientais,
baseada no próprio alimento e na
comercialização sem excessos, opondo-se
aos princípios de lucratividade e de
consumo exacerbado do modelo
capitalista, como afirma o(a)
entrevistado(a) adiante:
As sementes serão para plantar,
produzir e sustentar as futuras
gerações, e esses grãos vão ser
também para sustentar naquele
momento. Esses grãos nesse
momento vão servir de alimentação
humana e animal, porque no
quilombo nós trabalhamos com
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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agricultura de subsistência. O que é
isso? Nós trabalhamos para o
consumo. Essas sementes não são
vendidas, escoadas. Raramente o
excedente é escoado; geralmente fica
no próprio quilombo, pois todo
mundo no quilombo cria galinhas,
porcos; jumentos também servem
para eles se alimentarem... E, como
nós também não temos o território
ainda em nossas mãos, então nossos
espaços são muito pequenos para
produzir. (Fava Espírito Santo,
2019).
A sabedoria ancestral envolve o
conhecimento oralmente perpassado pelas
práticas agrícolas das comunidades
tradicionais, cujo conhecimento das
plantas, da terra e de todas suas
propriedades estabelece a conexão entre o
passado e o presente para garantir a
existência da vida e o futuro das próximas
gerações.
... um velho conhecerá não apenas a
ciência das plantas (as propriedades
boas ou más de cada planta), mas
também a ‘ciência das terras’ (as
propriedades agrícolas ou medicinais
dos diferentes tipos de solo), a
‘ciência das águas’, astronomia,
cosmogonia, psicologia, etc. Trata-se
de uma ciência da vida, cujos
conhecimentos sempre podem
favorecer uma utilização prática. (Bâ
Hampâté, 2010, p. 167).
Esse legado deixado pela herança
ancestral permanece vivo como forma de
resistência das famílias quilombolas do
Sítio Veiga, ressignificando as relações
com a terra e os aspectos de organização,
cuja forte influência dos ensinamentos
ancestrais ocorre basicamente na
agricultura de subsistência, ou seja, essas
famílias dependem praticamente da terra
para a sua sobrevivência, visto que é a
partir dela que se reúnem e se organizam
econômica, política, social e culturalmente,
retirando da terra sua alimentação e a de
seus animais, bem como os remédios
usados por muitos; até mesmo o próprio
ritual religioso praticado depende da terra,
tal como a dança de São Gonçalo
vi
e as 12
sementes crioulas utilizadas no ritual,
fortalecendo os laços culturais de caráter
ancestral, repassados entre gerações em
torno das sementes crioulas e da
espiritualidade, o que faz lembrar ainda as
próprias palavras de Fava Espírito Santo
(2019):
Não tem como você falar de
quilombo sem falar das sementes
crioulas. Não tem como você falar de
quilombo sem você falar da
importância do território, sobre a
importância da dança de São
Gonçalo... as jornadas da dança de
São Gonçalo, que são 12 jornadas
contadas por sementes, e são 12
sementes que são colocadas. O
mestre de cultura é o tio Joaquim; ele
pega 12 sementes contam essas
sementes antes da dança e passa
para o bolso do Oswaldo, que é um
dos membros do grupo, e a cada
jornada uma semente é devolvida
para o mestre e colocada no bolso,
então, de vez em quando, ele vai e
diz: ‘Olha, nós tiramos cinco
jornadas’... A dança é uma forma de
celebrar, é um momento muito
místico, de memória, de
compromisso, de fortalecimento da
identidade e de construção de novas
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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amizades... A dança ela é de extrema
importância para as relações sociais,
porque ali não estão somente os
quilombolas, mas vêm pessoas de
diversos lugares, e a gente vai se
fortalecendo, se conhecendo. Cada
estrofe que é cantada fala um pouco
do nosso cotidiano... das nossas
dificuldades.
Cabe ressaltar que há uma casa de
sementes individual dentro das moradias de
todos(as) os(as) que vivem, ou seja, uma
unidade individual familiar, cujo cuidado
nesse espaço é manter os costumes antigos
de preservação das espécies próximas de
seus guardiões, de seu cotidiano e dinâmica
familiar. Esse costume vem atravessando
gerações como modo de garantia de
manutenção de suas sementes, de suas vidas
e das futuras gerações, ao mesmo tempo
também se estende coletivamente a outros
espaços, garantindo a troca de
conhecimento e de experiência entre
eles(as), fortalecendo, assim, os laços de
coletividade e de solidariedade, tão
importantes à essência de ser e de viver em
comunhão.
A manutenção de todos os rituais
repassados pelos(as) ancestrais que
incidem sobre as sementes crioulas ocorre
ao entrarem e ao saírem de suas casas,
sendo realizada pelos membros da própria
família, dos mais jovens aos mais velhos,
podendo também ter a contribuição de
outras famílias quilombolas como extensão
familiar comunitária. Desse modo, foi dos
ensinamentos de seus ancestrais que
trabalhavam e viviam da agricultura que
foram sendo fomentados no Sítio Veiga o
respeito e o cuidado com a terra e as
sementes crioulas, perpertuados de uma
geração à outra, mantendo-se o hábito não
de plantar as sementes, mas de respeitar
cada ciclo da terra e da semente, ou seja, o
tempo de plantar, o tempo de colher, o que
colher para comer e o que guardar para as
próximas plantações, pensando-se nas
gerações subsequentes. Isso se reflete nas
palavras de Domingos (2011, p. 9):
O Ancestral fundador de uma
comunidade, aldeia, é considerado
como aquele que estabeleceu a
primeira aliança com as entidades
divinas e tutelares da Terra. Esse
Antepassado nascido da Terra pela
mitologia é considerado o seu
fundador. Ele transmite sua função
de uma maneira hereditária aos
possíveis ‘chefes da terra’, que
usufruem de certos poderes sobre os
outros homens em função da
autoridade que detêm sobre o solo.
Assim, durante todo o ano, a colheita
segue o ritmo de abastecer o consumo
próprio, separando-se e estocando-se as
melhores sementes em garrafas PETs e
tambores metálicos ou plásticos, que
podem ser armazenadas por até cinco anos,
dependendo da espécie e da forma de
armazenamento. se guardam as
sementes, separando-se cuidadosamente e
socializando suas formas de cultivo e
plantio de forma minuciosa, respeitosa e
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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cuidadosa, como veremos na fala de Milho
Amarelo (2019):
Até hoje nosso pai tem o hábito de
plantar. Por exemplo, o milho ele vai
selecionando aquelas espigas de
milho, ele vai debulhando até a
metade da espiga e deixa a ponta, e
aquele milho ali é o milho de planta,
que ele guarda; o feijão, do mesmo
jeito, vai colhendo as vagens, aquelas
mais formosas, mais bonitas, e vai
guardando dentro de uma garrafa de
plástico ou qualquer outra vasilha de
plástico, e assim vai passando de
geração a geração. Mesmo hoje tendo
a casa de sementes, que é o local onde
guardamos muitas espécies, a gente
também não perde o hábito de guardar
em casa, em nossas garrafas e
tambores, igual no nosso passado; a
gente não consegue arrancar essas
raízes e nunca vamos conseguir,
porque é um hábito que aprendemos,
e a gente começa desde cedo a
guardar as garrafas para na época da
colheita guardar nossas sementes.
As sementes crioulas surgem como
uma possibilidade de as comunidades
tradicionais produzirem o seu próprio
alimento sem tantos impactos negativos ao
meio ambiente. Essa técnica tem a
compreensão de que, ao respeitar cada fase
e ciclo da terra e das sementes, é preciso
conhecer as particularidades do próprio
clima, da vegetação em seu entorno, da
própria geografia do local, bem como o
preparo correto e natural da terra, uma vez
que o tempo de plantar e o tempo de
colher, o que não podejamais alterar ou
estimular forçadamente sua produtividade,
principalmente com agrotóxicos e
fertilizantes.
Um aspecto relevante na definição
dessas culturas tradicionais é a
existência de sistema de manejo dos
recursos naturais marcados pelo
respeito aos ciclos naturais e pela sua
exploração dentro da capacidade de
recuperação das espécies de animais
e plantas utilizadas. Esses sistemas
tradicionais de manejo não são
somente formas de exploração
econômica dos recursos naturais, mas
revelam a existência de um complexo
de conhecimentos adquiridos pela
tradição herdada dos mais velhos, por
intermédio de mitos e símbolos que
levam à manutenção e ao uso
sustentado dos ecossistemas naturais.
(Diegues et al., 1999, p. 30).
Por serem originais, as sementes
crioulas não têm nenhum tipo de alteração
no seu DNA, o que as torna únicas, 100%
naturais, ao contrário das transgênicas e
das híbridas, que sofreram modificações
genéticas pela biotecnologia para fins
comerciais, com produtividade exacerbada,
em grande escala. O respeito e a
preservação das sementes crioulas
constituem um dos elementos principais
realizados pelas comunidades tradicionais,
o que garantirá a originalidade de suas
espécies e sua perpetuação às futuras
gerações. O processo aqui também é
coletivo, organizativo, com um viés
comunitário, com trocas de experiências,
no sentido de resgatar e perpetuar suas
espécies, tanto no âmbito local como
também no âmbito das mais diversas e
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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variadas comunidades tradicionais, como
pontua Fava Espírito Santo (2019):
É uma semente que é cuidada, que é
selecionada, essa semente ela passa
nas mãos de todo mundo. Olha como
isso é bacana: essa semente, ao ser
plantada, ela passa nas mãos de muita
gente nesse processo de cuidado, de
limpar; mais uma vez vai um monte
de pessoas para fazer parte desse
processo, é um processo coletivo... O
que eu chamo de coletivo, porque
os trabalhadores, os agricultores, eles
não têm como pagar diária, então eles
trocam os dias. Então, essas sementes
são construídas em um processo
organizativo e, quando a galera está
ali limpando o mato ou plantando,
está falando do seu dia a dia, está
planejando, está falando do passado.
Então, falar de sementes crioulas é
ancestralidade, é manter vivas nossas
memórias. Se você olha e começa a
analisar a história da semente crioula,
não olha para sementes como uma
semente, mas como uma vida.
Assim, temos no quilombo Sítio
Veiga uma atividade agrícola que, segundo
os(as) entrevistados(as), respeita o meio
ambiente e todas as etapas de plantio das
sementes crioulas, sendo livres de
agrotóxicos, fertilizantes, adubos, algo
semelhante, consoante as palavras de Fava
Espírito Santo (2019), a um “parto
natural”, ao contrário das sementes do
governo, que o(a) entrevistado(a) acima
mencionado(a) avalia como sendo algo
forçado, pior do que um “parto cesariano”,
como veremos em suas palavras à frente:
... para produzir mais rápido, eles
jogam um monte de nutrientes, para
que essa planta cresça... Então, eu
pego todas essas sementes que
sofreram todas essas agressões... é
bem mais bruto do que um parto
cesáreo, porque o parto cesáreo é
quando a mulher não tem passagem,
não tem como a criança nascer. Mas,
diferentemente do parto forçado,
você tem como produzir sem precisar
fazer forçação de barra, sem usar
veneno, fertilizante, essas coisas que
considero uma forçação
desnecessária. Então, eu pego essa
semente que está altamente sofrida e
trago para para o quilombo; essa
semente vai nascer, ela vai produzir,
mas ela não vai nascer nem vai
produzir na mesma proporção
daquelas sementes que estão conosco
e que são totalmente naturais. (Fava
Espírito Santo, 2019).
Diante do exposto, os conhecimentos
ancestrais no cultivo de sementes crioulas
m uma preocupação em manter vivas a
tradão e a própria memória de seus
ancestrais, repercutindo em uma
alimentação mais sauvel e livre de
venenos, contribuindo para a preservação da
vida no planeta, especialmente das próximas
gerações, bem como dos conhecimentos que
poderão ser herdados por esses sujeitos
sociais.
A negação das terras quilombolas: uma
ameaça aos conhecimentos ancestrais e
ao cultivo das sementes crioulas
Com o advento do processo de
desenvolvimento e modernização da
década de 1970, o modelo tecnológico da
Revolução Verde, após a Segunda Guerra
Mundial, trouxe diversas mudanças às
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técnicas rudimentares que predominavam
no campo, devido à implementação das
novas tecnologias, alterando a relação
capital/trabalho e consequentemente
mudando as estruturas social e econômica
dessas famílias, caracterizadas pelo êxodo
rural, a substituição das sementes nativas
(crioulas) pelas de espécie híbrida,
transgênica e orgânica, o uso desenfreado
de agrotóxicos e pesticidas artificiais nas
plantações, levando os vários
conhecimentos e técnicas das comunidades
tradicionais e rurais a se perderem, a se
tornarem excluídos ou dependentes dos
novos pacotes tecnológicos (Carvalho,
2003), o que faz consubstanciar as palavras
de Feijão Balinha (2019):
O governo não nenhum apoio para
nossas sementes, apenas faz esses
empréstimos das sementes
envenenadas... Tenho medo que esse
hábito acabe, pois a nova geração com
certeza está desmotivada, porque o
retorno é muito pouco e deixa
qualquer pessoa desmotivada, até
mesmo nós, que somos mais
velhos; por exemplo, no caso do meu
pai, que já nasceu e se criou na
agricultura, ele mesmo está muito
desmotivado com a agricultura, os
nossos filhos ficam muito
desmotivados mesmo. Não temos
apoio do governo de jeito nenhum; até
o seguro-safra estamos perdendo; no
ano passado não tivemos o seguro e
esse ano ninguém fala, nós
ficamos no prejuízo o tempo todo,
temos perdas. Neste ano tivemos
pouquíssimos legumes e imagine isso
para uma família grande, não dá; o
legume não vai dar; uma saca de
feijão também não ; onde tem
pessoas aqui que são dez pessoas em
uma casa não dá.
Tudo isso leva muitos desses sujeitos
sociais a migrarem para outras cidades, a
se distanciarem de seus entes queridos, de
sua cultura local, uma vez que precisam
garantir a sua sobrevivência e a de seus
familiares, como aconteceu com Feijão
Querentin (2019):
Eu fui para São Paulo pela
necessidade mesmo, precisava ajudar
minha família. Foi difícil, viu...
Cheguei lá, me bateu uma saudade
tão grande da tranquilidade daqui, do
mato que eu gosto. Quando eu estava
em São Paulo, vivia gripado; uma
vez lá eu peguei sinusite, eu trabalhei
em mara fria, um frigorífico, e eu
trabalhei dentro mesmo da câmara
fria, e tinha que ser com a porta
fechada, dava aquela dor de
cabeça; depois que eu voltei para cá,
graças a Deus não tive mais nada.
As comunidades tradicionais e os
saberes populares são vistos como entraves
ao processo de desenvolvimento capitalista
neoliberal, em que os meios de
comunicação de massa os propagam como
sendo incompatíveis aos ideais do mundo
moderno, como pertencentes a uma cultura
de menor valor e com técnicas sem
comprovação científica, incompatíveis aos
postulados de desenvolvimento e de
progresso, tal como enfatiza Carvalho
(2003, p. 10):
As iniciativas neoliberais
hegemônicas nas sociedades
ocidentais têm conseguido, através
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das tentativas insanas de apagar o
passado desses povos e dessas
populações, rejeitar não apenas as
suas culturas, mas com elas também
os meios de produção utilizados
como os saberes populares, os sítios
ecológicos e as sementes varietais’.
Territórios que foram diferenciados
num convívio harmonioso com a
natureza e vivenciados por inúmeras
gerações, como aqueles dos povos
indígenas e das populações
camponesas, foram e continuam
sendo negados e desconstruídos.
O apelo aos moldes modernos de
desenvolvimento da agricultura tem a
ganância dos países desenvolvidos, cuja
exploração dos territórios
subdesenvolvidos visa à ampliação do
comércio internacional e às suas
multinacionais espalhadas pelo mundo, um
modelo que fomenta o agronegócio, a
exploração das áreas nativas e das espécies
preservadas por territórios tradicionais.
Dito isso, as grandes multinacionais a
serviço do grande capital vêm intervindo
em tecnologia de ponta, utilizando-se da
biotecnologia e da manipulação da
genética das sementes híbridas, das
transgênicas, das orgânicas, na perspectiva
de fins comerciais, como afirma Carvalho
(2003, p. 9): “A partir dos interesses
privados das grandes corporações
capitalistas e do estabelecimento das
normas legais para o patenteamento da
propriedade, as sementes tornam-se um
negócio”.
O modelo acima objetiva, portanto,
não explorar os territórios quilombolas,
disseminando e estimulando a indústria do
veneno nas sementes fornecidas pelo
governo com a liberação dos transgênicos
pelo Brasil, o que compromete o próprio
solo onde são plantadas também as
sementes crioulas, modelo esse que, ao
mesmo tempo, incentiva as queimadas e
faz com que haja mortes e assassinatos das
populações tradicionais em torno da posse
da terra. Um conflito que se atrela à busca
pela apropriação também das sementes
crioulas, ou seja, patenteá-las, colocando
em risco não a manutenção da
biodiversidade local como também
nutricionalmente a qualidade de vida das
pessoas e animais, a existência da vida
quilombola e o próprio legado histórico e
cultural que essas sementes representam.
O controle oligopolista das sementes
não começa pelo patenteamento das
novas variedades, híbridas e ou
transgênicas, produzidas por
instituições privadas e/ou públicas,
sob o controle privado. O eixo central
do controle das sementes pelos
grandes grupos econômicos da
biotecnologia se de maneira sutil,
seja com a substituição gradativa das
sementes crioulas, seja pelo seu
‘esquecimento’ ideológico, ambos
induzidos pela propaganda comercial
e pelas exigências das políticas
públicas, em especial do crédito rural
subsidiado e do seguro agrícola.
(Carvalho, 2006 apud Barbosa et al.,
2013, p. 378).
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Nesse contexto, temos ainda as
formas de sentimentos e atitudes ora
valorizadas pelo modelo neoliberal, cujo
slogan da modernidade é sinônimo de
ciência e tecnologia em prol do lucro, da
individualidade, da competição, do descaso
público, assumidos como valores éticos,
segundo Carvalho (2003). Tal realidade faz
refletir o teor do documentário da Revista
Carta Capital (2019), “Manifesto”, que
avalia as ações do governo e as iniciativas
do agronegócio como sinônimos de
desenvolvimento para o Brasil, slogan no
cenário atual do governo Bolsonaro e seus
discursos antiambientalistas, que visam a
flexibilizar áreas para o desmatamento nas
áreas de preservação ambiental, o que
levou a um aumento considerável de
queimadas no seu primeiro ano de
mandato, somando-se aos seus discursos
contra o aumento de demarcação das terras
indígenas e quilombolas e contra a
ampliação de reservas no Brasil, como
enfatiza Fava Espírito Santo (2019):
O agronegócio é uma desgraça essa
ambição. Por que qual a intenção do
agronegócio? O agronegócio tira as
sementes crioulas de nossas mãos,
porque tirar as sementes crioulas de
nossas mãos é tirar nossa autonomia,
é tirar nossa própria vida, porque,
assim que chove, a gente tem as
sementes e vai e planta; como a
gente vive em uma região de
semiárido, ora chove, ora não chove,
então nós temos que plantar nas
primeiras chuvas. O meu avô dizia
assim: ‘Choveu, plantou; nasceu,
limpou’, e continua o outro
processo. E, com essas sementes do
governo..., elas chegam muito tarde,
então muitos agricultores hoje o que
fazem: eles deixam de produzir
porque eles ficam esperando essas
sementes, porque perderam o próprio
hábito de guardar. As sementes
crioulas você pode guardar por até
dois anos ou mais, as do governo
não, porque você não sabe da
procedência. As sementes que você
guardou você sabe a procedência, o
período que você guardou, de onde
foi que elas saíram, de onde foi que
elas vieram. E uma outra coisa que
eu acho muito bacana nas sementes
crioulas é que, por exemplo, eu tenho
três tipos de milho, o que mais vende
é o amarelinho, mas, como a gente
não planta pensando em venda, então
esse milho se mistura aos outros,
eu tenho aqui os três tipos de milho,
um desses é o mais cobiçado, mas, na
hora de trocar, não importa, entendeu
a troca? As trocas que eram feitas nas
comunidades primitivas de que não
importa se é mais caro ou mais
barato, pois você não precisa me
pagar, entendeu? Eu chego no tio
Antônio, na Nésia: ‘Me arranja
aquela semente para plantar’, ela
me dá. Então, isso é muito bacana.
Então, hoje algumas pessoas utilizam
veneno, que não é o correto.
De acordo com Souza e Chaveiro
(2018), o grande problema que envolve o
agronegócio diz respeito às formas
desiguais com que as terras são
proporcionalmente apropriadas pelos
grandes latifundiários e os grupos que os
apoiam, cujo uso das terras, que deveriam
ser bens comuns, não articula o
desenvolvimento econômico à justiça
social. Isso se torna uma ameaça às formas
de vida existentes, sem se falar nas áreas
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inteiras devastadas pelas queimadas, pelos
agrotóxicos, deixando as terras
improdutivas, comprometendo a
biodiversidade, interferindo na saúde e na
qualidade de vida das pessoas e afetando o
futuro das gerações futuras.
Em relação ao agronegócio e ao
sistema produtivo habitualmente
empregado, as injustiças podem
referir-se à concentração de terra e ao
uso de bens comuns como a água e o
solo, bem como também ao efeito
dispersivo de insumos e resíduos. As
diferentes reações a essas injustiças,
ainda que de forma desproporcional
(dadas as diferenças de poder
econômico e político entre os grupos
envolvidos), é o que poderá
caracterizar uma situação de conflito,
ressaltando o aspecto dialético do
tema. Pode-se dizer que a aliaa
entre Estado, latifundiários e demais
agentes vinculados ao agronegócio, ao
dispor da terra pela via da estratégia
economicista e gerar problemas
ambientais face ao modo pelo qual a
terra é usada desdobra-se na
injustiça ambiental consoante a
injustiça social. (Souza & Chaveiro,
2018, p. 2-3).
Assim, é notório que os problemas
que decorrem das relações ambientais e
delas associados, tais como o agronegócio
e a regularização da demarcação das terras
quilombolas e indígenas, estão
intrinsecamente ligados às questões de
relação de poder, de ordem política e
econômica de um país e seus
representantes, o que nos leva a refletir
sobre a grande dívida social que o Estado
brasileiro tem com as comunidades
tradicionais, o que influencia na sua
própria sobrevivência, no direito ao
consumo material, na justiça social, no uso
dos bens comuns, na igualdade de
oportunidades, dentre outros (Souza &
Chaveiro, 2018), o que faz refletir sobre as
palavras de Feijão Querentin (2019):
Aqui não tem ganho: por exemplo,
uma época dessa, se você não
trabalhar na roça, você não faz nada,
fica zanzando feito louco,
preocupado com o nosso ganha-pão.
E outra: nosso trabalho, às vezes, não
recompensa financeiramente; você
não consegue vender nem o milho.
Não compensa, pois você passa
quase um ano todo: primeiro na
broca, depois limpa, depois planta,
apanha feijão, quebra de milho...
Ave, Maria! Todo um processo
demorado demais, aí, quando é no
final, como agora, os caras querem
pagar R$ 25,00 no saco de milho;
não compensa, na minha opinião. Um
saco de feijão, que é R$ 150,00, não
compensa também, muito melhor
você guardar e comer... com a
semente do governo a produção é
mais rápida, porque tem muito
veneno, mas, se você for comprar, ela
é cara para caramba... e o milho do
governo o quilo é R$ 4.00, mas, se
você for vender o nosso, o cabra não
quer pagar nem R$ 1,00... e o milho
do governo vem até com o corante
que eles colocam e dizem que é para
conservar o milho... o nosso não tem
nada disso, a nossa semente é natural.
Percebe-se, assim, que as iniciativas
do governo seriam mais para alimentar a
indústria de agrotóxico, a exploração
territorial, o aumento da lucratividade das
grandes empresas, ficando as ações
inerentes ao cultivo de sementes crioulas e
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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seu potencial sustentável sem o apoio
necessário do governo, fazendo refletir
que, quando ocorre alguma ação, é de
maneira fragmentada, assistencialista e
muito pontual.
A ausência do apoio necessário às
comunidades quilombolas por parte do
governo tem impactado direta e/ou
indiretamente nas atividades naturais do
campo, ou seja, o uso de agrotóxicos por
algumas pessoas que acabam por
contaminar os solos e a originalidade das
sementes crioulas com essa prática, seja
pela terra contaminada, seja pelo ar que
circula na atmosfera pode contaminar as
plantações, como afirma Milho Amarelo
(2019):
Eu não uso veneno, nunca fiz essa
experiência, mas tem gente usando
escondido... O pessoal fala que
parece que cresce mais pido a
plantação, faz com que o feijão e
principalmente o milho cresçam
mais ligeiro e tenham mais
produção, a vantagem para muitos
usarem o veneno, a porque,
quando não se planta no veneno,
você de duas a três limpas no
roçado, e no veneno o mato já está
grande, e vobota o veneno e mata
todo o mato, e, quando você vai dar
uma limpa, o legume está quase
todo pronto, no ponto de produção,
só com uma limpa a pessoa tira...
tem gente que planta o milho no
veneno e o limpa de jeito nenhum,
plantou ali, colocou o veneno e
vai mesmo para colher, por isso
tem gente que não aceita botar
veneno na propriedade, porque
contamina a água; escorre e
contamina os açudes... Quando
coloca veneno, geralmente você só
planta e coloca o veneno ali; pronto,
você só vai mesmo para colher o
legume, não tem aquele trabalho de
plantar e, com vinte ou trinta dias
depois, vo tem que entrar para
dentro para limpar todo o mato. Se
não botar o veneno, é mais
demorado e mais trabalho,
porque temos que capinar todo o
mato, são mais homens para fazer
esse serviço para limpar o mato,
enquanto com veneno uma única
pessoa faz o serviço... Com o natural
se torna mais demorado e caro para
a gente. Mas dizem que o veneno
causa mal à saúde, causa até o
ncer. Onde você bota veneno
demora a nascer o mato; para quem
tem criação de animal, gado, por
exemplo, demora muito a sair a
forragem dos bichos e, em muitas
terras aqui, o interesse é mais nas
forragens para os animais, , se
você coloca veneno, demora mais
ainda a forragem, demora a sair
outro mato para se tornar forragem
para os bichos; quando nasce, se
torna mais fraca a forragem, por isso
que tem dono de terra que o aceita
colocar veneno de jeito nenhum por
causa disso, por causa dos alimentos
dos bichos, que ficam
comprometidos.
A população quilombola do tio
Veiga enfrenta ainda outro grande
desafio: a luta pela posse de suas terras,
isto é, a desapropriação. Tal situação vem
ocasionando enormes perdas ao longo dos
anos, tanto para as famílias como para as
variedades de sementes crioulas, posto
que, como ainda o têm a posse legal das
terras, continuam plantando sob o sistema
opressor de renda, ou seja, parte do que
produzem fica para o dono do terreno,
embora estas terras estejam dentro do
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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próprio território que foi demarcado e
legitimado como quilombola pela
Fundação Palmares, todavia, como ainda
não foi feita a desapropriação dessas
terras, ficam sujeitos a deixar parte de
seus produtos inclusive a forragem, que
poderia alimentar seus animais para os
“donos das terras usufruírem desses
recursos, tirando proveito deles para
alimentarem os seus animais sem que
tenham contribuído nesse processo.
É de cortar o coração das famílias
quilombolas ver seu suor, seu sangue
sendo esmagado, pisoteado,
alimentando os animais de quem não
moveu sequer uma palha, para ver
sua fartura ter outro fim. Quando os
animais são colocados dentro dos
roçados para comer, junto com a
forragem devoram também sementes,
que em breve alimentariam pessoas,
vidas, seriam também a continuidade
de seu ciclo natural, de um ritual
(colher, desbulhar, catar, guardar e
plantar). Processo lindo, de
construção coletiva, do fazer, do
produzir coletivo, contribuindo cada
vez mais para o fortalecimento da
organização social dentro e fora do
quilombo. (Fava Espírito Santo,
2019).
A desocupação das terras fora do
período adequado traz muitos prejuízos
aos(às) quilombolas, pois perdem quase
toda a produção de favas, motivo por que
muitos(as) estão deixando de plantar as
favas balinha, espírito santo e manteiga;
estas são as que ainda existem, resistindo à
opressão de mais de um século. Estas
poderiam alimentar as famílias atuais e as
futuras gerações se seu ciclo de vida fosse
respeitado.
A colheita antecipada traz impacto
negativo na alimentação dos(as)
quilombolas, danos psicológicos e perda de
muitas sementes crioulas. Todos esses
mecanismos são utilizados como forma de
desanimar e afastar essas famílias da
produção de seus próprios alimentos e de
suas formas de organicidade.
O rompimento desse ritual acarreta
danos aos âmbitos social, cultural, político
e econômico, pois mexe com a estrutura
não somente dos(as) quilombolas do
Veiga, mas de toda a sociedade,
interferindo na cadeia alimentar e
sucessivamente na alimentação e nutrição
das pessoas. Cabe destacar que os animais
dos donos dos terrenos, quando são
colocados nos roçados dos(as)
quilombolas, devoram mais de 30% da
produção de fava que ainda está em pleno
processo de florada e amadurecimento das
sementes, visto que demoram mais tempo
para produzirem e também para serem
colhidas.
Diante do exposto, faz-se necessário
colocar as comunidades tradicionais
quilombolas, dentre estas a comunidade
Sítio Veiga, nas ações de incentivo e apoio
ao desenvolvimento agrícola, respeitando-
se a singularidade desses sujeitos sociais e
os conhecimentos tradicionais herdados
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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por seus ancestrais. Essa ação deverá
seguir o reconhecimento e a valorização do
potencial de suas sementes crioulas, de sua
força produtiva no campo e da produção
por eles(as) realizada; ação que deve ser
somada à resolução das demandas
existentes, tal como a legitimação da posse
das terras, o controle das indústrias do
veneno nas plantações e o apoio e
incentivo a esses sujeitos sociais a
permanecerem em seus territórios, dando
continuidade às suas tradições nas
atividades agrícolas e socioculturais
associadas.
Considerações
No território quilombola do Sítio
Veiga, as formas de organização coletiva
em torno do cultivo de sementes crioulas
são de extrema importância para a
preservação da identidade sociocultural
quilombola, da memória de seus ancestrais
e da existência das futuras gerações.
As sementes crioulas não são
plantadas sob o jugo da agricultura
industrial, na perspectiva globalizada do
agronegócio, mas de acordo com o
conhecimento absorvido por seus
ancestrais, passado entre gerações,
garantindo a alimentação e a manutenção
das famílias e de seus animais. As
atividades permitem uma maior
aproximação e solidariedade entre as
pessoas de seu quilombo e de outros
quilombos, o que as leva à troca de
conhecimentos, resgatando a memória de
seus ancestrais e de algumas espécies
perdidas.
Todavia, apesar da relevância da
organização coletiva das sementes crioulas,
a desvalorização e a falta de apoio a essas
ações por parte do poder público
estabelecem diversas lacunas à autonomia
dessas famílias, dado que dependem das
terras de terceiros para plantarem suas
sementes.
As comunidades quilombolas ainda
são colocadas em último plano na agenda
do governo no campo das políticas
públicas, sobretudo quando comparadas ao
agronegócio, que tem apoio prioritário,
ferindo os próprios preceitos
constitucionais de as famílias quilombolas
continuarem cultivando suas sementes
crioulas de forma natural.
A não legitimação das terras a essas
famílias faz com que se tornem vulneráveis
à própria contaminação de suas sementes
nativas. A plantação dessas sementes em
terras de terceiros, sem um rigoroso
controle do veneno, prejudica a
originalidade das sementes crioulas e os
conhecimentos perpassados por seus
ancestrais em preservar essas espécies às
próximas gerações, o que compromete seu
futuro e o direito de essas sementes
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
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continuarem existindo. Isso suscita a
reflexão de que grande parte de suas
demandas seria resolvida com a posse da
terra e do controle da produtividade, o que
atualmente se configura apenas como
atividade de subsistência humana, não
dando para suprir todas as necessidades
das famílias quilombolas do Sítio Veiga.
A implantação da casa de semente se
destacou como uma das maiores conquistas
no processo de organização coletiva, visto
que fortaleceu a cultura das sementes até
então presente nos seus hábitos cotidianos,
da relação com a agricultura e com o
manejo das sementes, despertando uma
consciência maior para a preservação
ambiental, não se deixando influenciar
pelo uso de agrotóxicos nas plantações, em
razão do enorme apelo existente destes na
distribuição das sementes do governo
repassadas anualmente para o agricultor.
Diante do exposto, faz-se necessário
revermos os processos históricos que
situam a população quilombola e suas
formas de organização em torno do cultivo
de suas sementes, pois, ao quebrarmos os
estereótipos sobre esses sujeitos sociais e
suas formas peculiares de ser e viver, de se
organizar coletivamente, poderemos criar
imagens mais positivas e, a partir daí,
traçar caminhos mais dignos e capazes de
lhes assegurar o direito de terem garantidos
seus territórios, suas terras, de plantarem
suas sementes com mais autonomia e
independência.
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Fernanda Ielpo da Cunha. Comunidade
Quilombola de Sítio Veiga, Quixadá-CE,
15 ago. 2019, mp3, 13 min. Disponível no
acervo pessoal dos autores.
1
No Brasil, a palavra “quilombo” tem sua origem
nos povos de língua bantu (Kilombo),
especificamente dos grupos luanda, ovimbundu,
mbundu, kongo, imbangola, dentre outros, cujos
territórios se dividem entre Angola e Zaire. Esse
termo envolve diversas simbologias e expressões
linguísticas (Munanga, 1996).
2
“Órgão com responsabilidade de emitir o
certificado de autorreconhecimento do povo
quilombola. Grupos étnicos com predominância na
população negra rural ou urbana se autodefinem a
partir das relações com a terra, parentesco e práticas
culturais de antepassados africanos” (Diário do
Nordeste, 2012, p. 1).
3
Francisco Ribeiro Bessa, conhecido como
Chiquinho Ribeiro ou Pai Xigano, e Maria
Fernandes da Silva, conhecida como Mãe Veia,
foram o casal fundador da comunidade Sítio Veiga,
onde residem atualmente 39 famílias. Segundo os
registros históricos, em 1906 esse casal e a família
migraram de Pau dos Ferros, município do Rio
Grande do Norte, para a região da Serra do
Evaristo, em Quixadá, no Ceará, onde fixaram
raízes e iniciaram a história da comunidade na
localidade onde hoje está o Sítio Veiga. Ao longo
do tempo, a família Ribeiro se misturou, por meio
de trocas matrimoniais, com a família Eugênio, do
distrito de Dom Maurício, em Quixadá-CE. Em
2010, a comunidade iniciou a construção de uma
casa de sementes, conhecida carinhosamente como
casa de semente Pai Xigano, nome escolhido pelos
moradores, o qual remete à memória e à
ancestralidade de Francisco Ribeiro Bessa, o
primeiro a trazer a semente crioula a fecundar o
então quilombo, juntamente com sua esposa, Maria
Fernandes, e seus filhos (Cunha et al., 2019).
iv
Organização não governamental sem fins
lucrativos fundada em 1974 no município de
Fortaleza-CE. A organização atua diretamente em
municípios do semiárido cearense, desenvolvendo
atividades para a agroecologia e a agricultura
familiar.
v
O golpe mencionado pelo(a) entrevistado(a) faz
referência ao impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016.
6
Dança em homenagem ao santo português Gonçalo.
No quilombo Sítio Veiga, a dança de São Gonçalo é
uma expressão cultural repassada através das
gerações para os(as) descendentes da comunidade.
Atualmente a dança é animada pelo neto de
Chiquinho Ribeiro e Maria Ribeiro, seu Joaquim
Ferreira da Silva (Joaquim Roseno).
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 14/05/2020
Aprovado em: 01/08/2020
Publicado em: 27/11/2020
Received on May 18th, 2020
Accepted on August 01st, 2020
Published on November, 27th, 2020
Contribuições no artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Fernanda Ielpo da Cunha
http://orcid.org/0000-0002-4429-5555
Luís Tomás Domingos
http://orcid.org/0000-0002-0062-6834
Ana Maria Eugenio da Silva
http://orcid.org/0000-0002-6121-7882
José Gerardo Vasconcelos
http://orcid.org/0000-0003-0559-2642
Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., & Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e sementes crioulas: uma
forma de luta e resistência pela identidade sociocultural quilombola na comunidade Sítio Veiga em Quixadá-CE...
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Cunha, F. I., Domingos, L. T., Silva, A. M. E., &
Vasconcelos, J. G. (2020). Organização coletiva e
sementes crioulas: uma forma de luta e resistência pela
identidade sociocultural quilombola na comunidade Sítio
Veiga em Quixadá-CE. Rev. Bras. Educ. Camp., 5, e9219.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9219
ABNT
CUNHA, F. I.; DOMINGOS, L. T.; SILVA, A. M. E.;
VASCONCELOS, J. G. Organização coletiva e sementes
crioulas: uma forma de luta e resistência pela identidade
sociocultural quilombola na comunidade Sítio Veiga em
Quixadá-CE. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v.
5, e9219, 2020. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9219