Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9582
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e9582
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2021
ISSN: 2525-4863
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Relações entre saberes na Educação do Campo: a
experiência da UFVJM
Diogo Neves Pereira1
1 Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Faculdade Interdisciplinar em Humanidades - FIH.
Rodovia MGT 367 - km 583, 5000, Alto da Jacuba. Diamantina - MG. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: diogo.pereira@ufvjm.edu.br
RESUMO. A construção de condições para o estabelecimento
de relações entre diferentes saberes é um dos pilares do ideal de
Educação do Campo. Neste trabalho discutiu-se como este
panorama se expressou na experiência do curso de graduação
em Educação do Campo, na modalidade licenciatura, da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
Apresentou-se o resultado de um estudo de caso, construído a
partir de abordagem transversal, de natureza descritiva, com
tratamento qualitativo dos dados. O foco esteve dirigido para a
discussão em torno de quatro dinâmicas presentes no curso:
Encontro de Tempo Comunidade, Noite Cultural, Místicas e
Projetos coordenados por docentes. A partir da apresentação
destas experiências delineou-se reflexões estruturadas em três
eixos argumentativos: o lugar da ciência nas relações entre
saberes; as relações entre saberes enquanto encontros de modos
de vida; o contraponto entre “contextualização” e
“perspectivação” nas relações entre saberes. Concluindo-se que
as relações entre os grupos sociais definem condições para o
estabelecimento de relações entre saberes, os resultados do
trabalho apontaram o imperativo de colaborarmos com a criação
de uma nova economia de saberes mais justa e apropriada para
as populações do campo.
Palavras-chave: educação do campo, relações entre saberes,
interculturalidade.
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Relationships between knowledge in Education for Rural
Areas: the UFVJM experience
ABSTRACT. The construction of conditions for the
establishment of relationships between different knowledge is
one of the pillars of the ideal of Education for Rural Areas. The
work discusses how this panorama was expressed in the
experience of the degree course of Education for Rural Areas
from the Federal University of Jequitinhonha and Mucuri
Valleys. The result of a case study, built from a cross-sectional
approach, of a descriptive nature, with qualitative data
treatment, is presented. The focus is directed to the discussion
around four dynamics present in the course: Community Time
Meeting, Cultural Night, Mystics and Projects coordinated by
teachers. From the presentation of these experiences, reflections
are outlined structured in three argumentative axes: the place of
science in the relations between knowledge; the relationships
between knowledge as encounters of ways of life; the
counterpoint between contextualization” and “perspective” in
the relations between knowledge. Concluding that the relations
between social groups define conditions for the establishment of
relations between knowledge, the results of the work point out
the imperative to collaborate with the creation of a new
knowledge economy more just and appropriate for rural
populations.
Keywords: education for rural areas, relations between
knowledge, interculturality.
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Relaciones entre conocimientos en la Educación para
Áreas Rurales: la experiencia de la UFVJM
RESUMEN. La construcción de condiciones para el
establecimiento de relaciones entre diferentes conocimientos es
uno de los pilares del ideal de la Educación para Áreas Rurales.
El trabajo discute cómo este panorama se expresó en la
experiencia del grado en Educación para Áreas Rurales de la
Universidad Federal de los Valles Jequitinhonha y Mucuri. Se
presenta el resultado de un estudio de caso, construido a partir
de un enfoque transversal, de naturaleza descriptiva, con
tratamiento de datos cualitativo. El enfoque se dirige a la
discusión en torno a cuatro dinámicas presentes en el curso:
Reunión de Tiempo Comunitario, Noche Cultural, Místicas y
Proyectos coordinados por maestros. A partir de la presentación
de estas experiencias, las reflexiones se delinean estructuradas
en tres ejes argumentativos: el lugar de la ciencia en las
relaciones entre conocimientos; las relaciones entre
conocimientos como encuentros de formas de vida; el
contrapunto entre "contextualización" y "perspectivación" en las
relaciones entre conocimientos. Concluyendo que las relaciones
entre los grupos sociales definen las condiciones para el
establecimiento de relaciones entre saberes, los resultados del
trabajo señalan el imperativo de colaborar con la creación de
una nueva economía del conocimiento más justa y adecuada
para las poblaciones rurales.
Palabras clave: educación para áreas rurales, relaciones entre
conocimientos, interculturalidad.
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Introdução
A construção de condições para o
estabelecimento de relações entre saberes
científicos e populares, acadêmicos e
tradicionais, é um dos pilares do ideal de
Educação do Campo. Vinculada aos
objetivos de reversão da desigualdade
educacional existente entre populações
urbanas e rurais, de atenção às
necessidades educacionais específicas dos
povos do campo e de valorização de suas
culturas, a proposta de estímulo ao
relacionamento entre saberes se constitui
uma das características marcantes das
iniciativas balizadas pelos princípios da
Educação do Campo. Neste trabalho
discute-se como esse panorama se
expressou na experiência do curso de
graduação em Educação do Campo, na
modalidade licenciatura, da Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e
Mucuri (UFVJM).
A discussão sobre as relações entre
saberes na Educação do Campo desloca-se
desde as normativas legais e infralegais,
perpassando as reflexões teórico-
bibliográficas e chegando às ações
concretas realizadas por movimentos
sociais e instituições de ensino. Note-se
que a Resolução 1 do Conselho
Nacional de Educação, do ano de 2002,
que institui as Diretrizes Operacionais para
a Educação sica nas Escolas do Campo,
assinalou no parágrafo único do seu artigo
2º que:
A identidade da escola do campo é
definida pela sua vinculação às
questões inerentes à sua realidade,
ancorando-se na temporalidade e
saberes próprios dos estudantes, na
memória coletiva que sinaliza
futuros, na rede de ciência e
tecnologia disponível na sociedade e
nos movimentos sociais em defesa de
projetos que associem as soluções
exigidas por essas questões à
qualidade social da vida coletiva no
país. (Brasil, 2002, grifo meu).
Posteriormente, mas ainda nesta
mesma linha, o Decreto Presidencial
7.352, do ano de 2010, que dispôs sobre a
política de Educação do Campo e o
Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (PRONERA), estipulou
em seu artigo 6°:
Os recursos didáticos, pedagógicos,
tecnológicos, culturais e literários
destinados à educação do campo
deverão atender às especificidades e
apresentar conteúdos relacionados
aos conhecimentos das populações
do campo, considerando os saberes
próprios das comunidades, em
diálogo com os saberes acadêmicos e
a construção de propostas de
educação no campo
contextualizadas. (Brasil, 2010, grifo
meu).
Em sintonia com este decreto, a
portaria do Ministério da Educação 86,
do ano de 2013, que institui o Programa
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Nacional de Educação do Campo
(PRONACAMPO) estipulou em seu artigo
3º:
São princípios da educação do campo
e quilombola:
I - respeito à diversidade do campo
em seus aspectos sociais, culturais,
ambientais, políticos, econômicos, de
gênero, geracional e de raça e etnia;
II - incentivo à formulação de
projetos político-pedagógicos
específicos para as escolas do
campo, estimulando o
desenvolvimento das unidades
escolares como espaços públicos de
investigação e articulação de
experiências e estudos direcionados
para o desenvolvimento social,
economicamente justo e
ambientalmente sustentável, em
articulação com o mundo do
trabalho. (Brasil, 2013, grifo meu).
Esses delineamentos da política
nacional de Educação do Campo
dialogavam com as propostas que vinham
sendo debatidas e construídas nas
universidades e em diversos outros
contextos da sociedade civil. Para que
tenhamos um panorama desta sinergia com
as produções intelectuais, observemos que
a noção de articulação de conhecimentos é
explorada por Caldart (2010) ao discutir os
aspectos que caracterizariam a Educação
do Campo. Ela assenta o que chama de
“diálogo de saberes” no horizonte da
democratização do conhecimento acionada
pela Educação do Campo como artifício
para a emancipação dos trabalhadores. Em
suas palavras, “o que precisa ser
aprofundado é a compreensão da teia de
tensões envolvida na produção de
diferentes saberes, nos paradigmas de
produção do conhecimento” (p. 112). Para
a autora, estaria em questão a adoção de
outras lógicas de pensamento e de
produção do conhecimento, com superação
da perspectiva dominante na modernidade
que hierarquiza e desqualifica saberes.
Por seu turno, Arroyo (2012)
também coloca a questão da multiplicidade
de saberes na ordem dos movimentos de
resistência dos sujeitos do campo surgidos
ao longo da história. O autor apresenta as
seguintes indagações:
Como avançar para que a escola do
campo, indígena, quilombola, das
florestas ou do cerrado garanta o
direito dos seus povos ao
conhecimento, aos valores, à cultura?
Reconhecendo e garantindo os
saberes desses povos. Se, para a
diversidade de povos dos campos,
terra e trabalho são mais do que terra
e trabalho, e se escola é mais do que
escola, como pesquisar, teorizar,
traduzir em currículos, em teorias
pedagógicas essas tensas vivências
coletivas dos povos do campo?
Privilegiar esses processos e esses
coletivos como produtores de
conhecimentos, de valores, de
culturas, de modos de pensar o
mundo e de pensar-se. (p. 91).
Enfrentá-las, do seu ponto de vista,
significaria situar a Educação do Campo
numa posição de fortalecimento dos povos
do campo nos confrontos que travam em
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defesa de seus valores, identidades e
culturas.
Em rota semelhante, Molina e
(2012), ao discutirem a especificidade da
escola do campo, afirmam que ela está
inserida na luta mais ampla das classes
trabalhadoras pela superação do sistema do
capital. Sendo assim, de acordo com as
autoras, para que possa contribuir no
fortalecimento das lutas de resistência dos
camponeses, a escola do campo teria como
desafio:
articular os conhecimentos que os
educandos têm o direito de acessar, a
partir do trabalho com a realidade, da
religação entre educação, cultura e os
conhecimentos científicos a serem
apreendidos em cada ciclo da vida e
de diferentes áreas do conhecimento
(p. 331).
As reflexões e ações em torno das
questões que envolvem as relações entre
saberes derivaram rastros em inúmeros
trabalhos e experiências locais associados à
Educação do Campo. Como seria de se
esperar, também adquiriram centralidade
nas propostas dos cursos de formação de
professores em nível superior. Foi nesse
sentido que se sedimentaram argumentos
tais como o de Neto (2011), para quem “os
cursos de licenciatura do campo devem
incrementar o diálogo entre os vários
saberes, incentivando, sempre com
respeito, os saberes presentes em todas as
culturas, seja a tradicional ou a técnico-
científica” (p. 35). Ou então, mais
recentemente, a ponderação de Molina,
Antunes-Rocha e Martins (2019), de
acordo com quem:
as práticas da educação do campo
avançam na direção de mostrar os
caminhos pelos quais tem sido
possível a defesa de uma produção de
conhecimento baseada na relação
direta entre o conhecimento
científico e a sabedoria dos povos do
campo mediante o diálogo de saberes
(p. 6).
Para as autoras, o relacionamento
entre conhecimentos científicos e não-
científicos seria uma forma de produção de
conhecimento apropriada pelas
modalidades de formação docente para a
Educação do Campo.
Não dúvidas de que essas classes
de reflexões, perspectivas ou propostas não
são exclusivas da Educação do Campo,
tampouco nela se originaram. Com maior
ou menor proximidade, elas podem ser
percebidas em intelectuais de variadas
linhagens teóricas e políticas. Apenas para
nos restringirmos a um autor consagrado
no âmbito da sociologia, poderíamos citar
os trabalhos de Boaventura de Souza
Santos. na cada de 1980 o autor
apresentava, de maneira vigorosa, sua
crítica à exclusividade e à soberania da
racionalidade científica pretensamente
universal, afirmando não haver
racionalidade imanente a nenhuma forma
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de conhecimento, a racionalidade residindo
na configuração de todas elas (1988, p.
70). Anos mais tarde, ele mesmo
defenderia a ideia de “ecologia de saberes”
como alternativa para o alcance de certa
justiça, social e cognitiva, a partir da qual
os "outros" adquiririam condição de
existência na contemporaneidade (2007).
É possível assentir que resta como
substrato a tais dispositivos legais e
ideológicos; internos e externos à
Educação do Campo certa tese: o
estabelecimento de relações entre
diferentes saberes está vinculado à
conformação de configurações sociais
entre os grupos que os produzem e
exercitam. Sob este prisma, as condições
de possibilidade de reprodução dos saberes
estão vinculadas às condições sociais,
políticas, históricas etc. de coexistência
entre os grupos.
Metodologia
Será apresentado aqui o resultado de
um estudo de caso, construído a partir de
abordagem transversal, de natureza
descritiva, com tratamento qualitativo dos
dados. Foram analisadas experiências
geradas na esfera do curso de graduação
em Educação do Campo da UFVJM ao
longo dos últimos sete anos. A observação
e o registro de tais experiências, possíveis
pela participação enquanto sujeito nelas
envolvido, constituíram a base das
interpretações que, por sua vez, definiram
seus fundamentos em procedimentos
indutivos, buscando derivações a partir das
vivências promovidas no curso.
Relações entre saberes na Licenciatura
em Educação do Campo da UFVJM
Quanto à problemática da relação
entre saberes, a Licenciatura em Educação
do Campo (LEC) da UFVJM adotou uma
postura expressiva: valorizar tanto os
saberes científicos quanto os populares,
tradicionais, comunitários. no curso
uma vigorosa preocupação com a formação
científica. Essa preocupação se traduz em
uma matriz curricular que busca oferecer
aos discentes o contato com todo o
conteúdo científico necessário ao exercício
da docência nas suas áreas de habilitação.
Não obstante, também no curso uma
veemente busca de valorização e
reconhecimento dos saberes não-científicos
associados às populações de sua região de
abrangência. Fundamenta esta busca o
entendimento de que estes saberes podem
dialogar e que a existência deste diálogo é
salutar para os povos do campo. O Projeto
Pedagógico do curso assevera que:
o presente projeto de Graduação em
Educação do Campo - Licenciatura
destaca a importância da interação
entre o saber produzido nas
universidades (em termos da ciência,
de criticidade e de acesso ao
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conhecimento sistematizado e em
construção) com os saberes e
vivências elaborados pelo sujeito do
campo. Crê-se que, a partir da prática
reflexiva e do diálogo entre os
saberes podem ser (re)construídos
novos instrumentos de ação.
(UFVJM, 2018, p. 20).
Destaca-se ainda que, em outra parte
deste Projeto encontramos descrito que,
dentre os Objetivos Específicos do curso,
está o seguinte: “Proporcionar o diálogo
entre os saberes da universidade,
favorecendo a sua apropriação, e os dos
sujeitos do campo, favorecendo a sua
legitimação” (UFVJM, 2018, p. 26).
A Educação do Campo na UFVJM
começou fomentada pelo Programa de
Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo
(PROCAMPO), do Ministério da
Educação. Em 2010 teve início curso com
duração de 4 anos e carga horária total de
5.075 horas. Era composto por turma
única, constituída de 60 vagas. Todos os
ingressantes em uma primeira parte do
curso obteriam habilitação em Ciências
Humanas e Sociais e, em uma segunda
parte, se dividiriam nas habilitações em
Ciências da Natureza e Matemática ou em
Linguagens e Códigos.
A partir desta experiência a
Educação do Campo foi transformada em
curso regular da Universidade, com
entradas anuais de discentes, tendo a
primeira turma ingressada em 2014. Após
pequenos ajustes em sua proposta ao longo
dos anos, atualmente a LEC é ofertada na
modalidade presencial em regime de
alternância, com habilitações em
Linguagens e Códigos e em Ciências da
Natureza. O tempo mínimo de
integralização do curso é de 4 anos, sua
carga horária total é de 3.630 horas e são
ofertadas 30 vagas anuais para cada uma
das habilitações. Está direcionado para a
formação de docentes para atuar na
Educação Básica para as populações do
campo com ênfase nos anos finais do
Ensino Fundamental e no Ensino Médio. A
depender de sua habilitação, os licenciados
podem atuar como professores dos
componentes curriculares de língua
portuguesa, de língua inglesa e de
literaturas de língua portuguesa, ou de
ciências, de biologia, de física e de
química.
Com base na gica da alternância, o
curso se organiza a partir de “tempos-
espaços formativos” denominados Tempo
Universidade e Tempo Comunidade
(UFVJM, 2018, p. 11). A cada semestre
são realizadas 6 semanas de atividades de
Tempo Universidade no Campus da cidade
de Diamantina da UFVJM, nos meses de
janeiro e fevereiro ou de julho e agosto.
Entre os meses de março a maio e de
setembro a novembro ocorrem as
atividades de Tempo Comunidade nas
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localidades de origem dos discentes, com
ou sem a presença de docentes.
No momento de finalização deste
texto, em maio de 2020, a LEC havia
acumulado a oferta de 360 vagas, tendo
concluído a formação de 72 estudantes,
sendo 46 na habilitação em Ciências da
Natureza e 26 na habilitação em
Linguagens e Códigos. Considerando que
sua primeira turma encerrou o curso no
final de 2017, temos uma média de 24
formandos ao ano. Também em maio de
2020, a LEC possuía 181 discentes
matriculados, sendo 85 em Ciências da
Natureza e 96 em Linguagens e Códigos
(UFVJM, 2020).
A bagagem de práticas, ensaios e
vivências reunida no decorrer destes anos
sugere que a LEC possui quatro contextos
principais para o exercício das relações
entre saberes, a saber: Encontro de Tempo
Comunidade, Noite Cultural, Místicas e
Projetos coordenados por docentes. Na
sequência serão apresentados detalhes
sobre cada um deles.
Encontro de Tempo Comunidade
O período de Tempo Comunidade é
aquele no qual os estudantes da LEC
realizam atividades nas suas comunidades
de origem: pesquisas, leituras,
intervenções, visitas etc. Após a etapa de
intensas atividades junto aos professores e
colegas durante o Tempo Universidade, os
discentes retornam para suas casas e dão
continuidade aos seus estudos,
relacionando-os com suas realidades
locais. Para melhor organização das ações
os discentes são agrupados pelo curso em
cerca de 10 “núcleos de alternância”. A
definição desses núcleos varia conforme o
quantitativo de alunos oriundos das
diversas regiões do norte, nordeste e leste
do estado de Minas Gerais matriculados no
curso a cada semestre.
Duas vezes a cada semestre os
docentes se deslocam para tais núcleos de
alternância e se reúnem com os
estudantes que residem próximo a estes
locais. Nestas ocasiões ocorrem o que o
curso denomina como Encontros de Tempo
Comunidade. Em certo sentido, esses
Encontros consistiriam em peças de um
“dispositivo pedagógico” que
congregariam, no lugar mesmo da
experiência sócio-profissional, o
alternante, os formadores e os parceiros co-
formadores efetivando um projeto
educativo (Gimonet, 1998). São, neste
prisma, circunstâncias por excelência de
execução da proposta pedagógica do curso.
Nestes Encontros são realizadas,
principalmente, as Práticas de Ensino, que
buscam desenvolver competências
docentes entre os estudantes. Ocorre que,
pautadas pela proposta da LEC, essas
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Práticas de Ensino passam,
programaticamente, pela valorização do
diálogo entre saberes, acionando múltiplas
estratégias didáticas e de intercâmbio com
as comunidades locais. Para delas
participar são convidados professores de
escolas locais, representantes de sindicatos,
agricultores da região, líderes comunitários
etc. O que se destaca é o intercâmbio entre
discentes, docentes e sujeitos locais, tendo
como horizonte a realidade local que,
inevitavelmente, acaba por se impor como
ordenadora das experiências e dos
trabalhos em torno dos conhecimentos
ligados à formação dos estudantes.
Noite Cultural
A Noite Cultural consiste em uma
iniciativa liderada pelos estudantes LEC e
que vem ocorrendo a cada Tempo
Universidade. Surgiu por volta do ano de
2015 enquanto ação motivada por unidades
curriculares da área de Literatura.
Paulatinamente se consolidou internamente
ao curso, envolvendo cada vez mais
discentes e docentes, de ambas as
habilitações. Em suas primeiras
ocorrências era realizada de modo e em
ambiente fechados, com participação
apenas de sujeitos diretamente ligados ao
curso. Entre 2018 e 2019 passou a ser
realizada de modo e em ambiente abertos,
buscando atrair a participação de toda a
comunidade acadêmica, sobretudo
discentes de outros cursos de graduação.
Em uma noite do Tempo
Universidade os estudantes organizam um
espaço e uma diversificada programação
de apresentações artístico-culturais.
Acontecem pequenas peças teatrais,
leituras de poemas, cantos, danças etc. A
maioria destas apresentações é elaborada
por eles mesmos, tendo como fundamento
práticas culturais de seus grupos sociais e
versando sobre temas (políticos, científicos
etc.) candentes no semestre. O que os
estudantes buscam é, por um lado,
promover um intercâmbio entre eles
mesmos e, por outro, dar à Universidade de
um modo geral a oportunidade de conhecer
suas culturas, suas tradições, seus saberes.
Trata-se, assim, de um evento que estimula
a sociabilidade, as trocas artístico-culturais
e o cotejamento entre visões de mundo.
Místicas
No contexto da Educação do Campo,
a mística constitui uma forma particular de
construção, preservação e transmissão de
saberes. Consiste em prática proveniente
de tradições religiosas milenares,
posteriormente apreendida pelos
movimentos sociais ligados à questão
agrária (com destaque para o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MST) e, finalmente, tomada pelas
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iniciativas na esfera da Educação do
Campo. Possui características tanto
pedagógicas quanto culturais e políticas.
Carrega forte ritualidade, valendo-se de
expressões artísticas diversas (poesia,
dança, música, pintura etc.) e enfatizando a
dimensão sentimental do manejo de
conhecimentos. Tem, sob determinado
ponto de vista, como elementos centrais:
tempo e espaço, comunidade, linguagem e
símbolos, memória (Marschner, 2010). Por
meio do manejo, esteticamente concebido,
de representações, gestos e objetos, busca
promover comunhão entre os participantes
na direção de uma disposição para a ação
fundamentada em certa visão de mundo.
Os estudantes da LEC assumiram a
mística como um componente central de
suas conexões com o curso. Durante o
período do Tempo Universidade se
organizam para a realização de pelo menos
uma mística a cada semana, em dia e
horário predefinidos. Para tanto,
coordenam-se de modo que a cada semana
uma turma tendo em vista o ano de
ingresso no curso e a habilitação seja
responsável pela realização da mística. Os
conteúdos explorados nestas sticas em
geral são escolhidos com antecedência
pelos discentes e dialogam com questões
mais amplas que os interessem naquele
momento. Além destas místicas semanais,
eles também costumam realizá-las em
eventos nos quais assumem algum tipo de
participação, tais como nas aulas
inaugurais do semestre, nas “colocações
em comum”, nas recepções de calouros,
em seminários etc. Estas, por sua vez,
tendem a ser tanto mais detalhadamente
elaboradas quanto mais importantes as
circunstâncias que as motivaram.
As místicas são, portanto, um
instrumento próprio dos estudantes para,
de uma vez, operar a construção de
laços entre si, para explicitar suas
identidades a outrem e para fazer circular
suas perspectivas em torno de assuntos
relevantes. Eles concebem que, enquanto
educadores do campo em formação, teriam
nas místicas seus instrumentos por
excelência para trabalhar seus saberes. É
por meio delas que se sentem mais
confortáveis em explicitar seus
entendimentos. Além disso, as místicas
colaborariam para frisar suas origens e
traços sociais, sobretudo porque não seria
próprio de seus interlocutores externos
também realizá-las.
Projetos
Como é próprio nas universidades
federais, os docentes da LEC desenvolvem,
para além das unidades curriculares do
curso, projetos diversos, sobretudo nas
esferas do ensino, da pesquisa e da
extensão. O curso possui um corpo docente
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relativamente novo, uma vez que sua quase
totalidade foi paulatinamente contratada a
partir de 2014. Não obstante, ao longo
destes anos eles lograram forjar variadas
iniciativas interessantes e sintonizadas com
os princípios da Educação do Campo. A
seguir serão apresentadas três que se
destacaram no que tange à problemática
das relações entre saberes.
A primeira dessas iniciativas é o
projeto “Vídeo-Cartas entre estudantes da
Licenciatura em Educação do Campo”,
coordenado pela professora Ofelia Ortega
Fraile. Forjado no âmbito do Programa de
Bolsas de Apoio à Cultura e à Arte da
UFVJM, trata-se de um projeto dedicado
especialmente à produção de vídeos por
discentes da LEC. Estes registros
audiovisuais apresentam aspectos das
realidades de seus produtores e versam
sobre múltiplas temáticas. Configuram,
assim, instrumentos de trocas de
experiências e saberes alicerçados nas
formas como seus autores percebem seus
mundos. São destinados, principalmente,
aos próprios estudantes que, em geral,
residem muito distantes uns dos outros.
Contudo, alcançam públicos muito
maiores, que os vídeos circulam com o
apoio de plataformas digitais diversas, tais
como o YouTube, o Facebook e o
WhatsApp.
Outra iniciativa a ser destacada é o
projeto “Olhares do Campo laboratório
de comunicação comunitária”, inicialmente
coordenado pelo professor Luiz Henrique
Magnani e mais recentemente pelo
professor Carlos Henrique de Castro.
Forjado no âmbito do Programa de Apoio
ao Ensino de Graduação da UFVJM, o
projeto está dedicado especialmente ao
estímulo à produção escrita pelos
estudantes da LEC. Mais além, o projeto
busca impulsionar e ampliar as redes de
comunicação entre comunidades do
campo, articulando-as do ponto de vista da
circulação de informações e publicizando
suas leituras de mundo. Os discentes
produzem notícias e reportagens variadas
envolvendo assuntos de interesse das
comunidades. Esses textos são veiculados
por meio de uma página eletrônica própria
do projeto e de boletim divulgado de
maneira impressa e digital em escolas
rurais.
Por fim, destaca-se o projeto
“Comunidades do Campo: conhecendo
seus sujeitos, saberes e realidades”,
coordenado pelo professor Diogo Neves
Pereira. Forjado no âmbito do Programa
Institucional de Bolsas de Extensão da
UFVJM, o projeto está dedicado à
construção de contextos político-
institucionais de legitimação da produção e
divulgação de saberes próprios às
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comunidades do campo. Para tanto, faz uso
de duas estratégias principais. A primeira
delas consiste na produção de um
programa de rádio veiculado pela Rádio
Universitária da UFVJM e em seguida
divulgado em plataformas variadas da
internet. A segunda estratégia consiste no
estabelecimento de parcerias com escolas e
organizações comunitárias para a produção
de ações e registros sobre as realidades
locais. Todos estes materiais são
divulgados na página eletrônica do projeto.
Tais atuações são dirigidas pelos próprios
sujeitos do campo, através de articulações
e diálogos promovidos por alunos da LEC.
Elas apresentam conteúdos e temáticas
variadas, mas sempre voltados para as
realidades das comunidades campesinas,
envolvendo seus saberes, histórias,
desafios, conquistas e perspectivas.
Outros contextos
No que tange ao exercício das
relações entre saberes, os quatro contextos
descritos anteriormente são aqueles que se
destacaram ao longo dos anos de existência
da LEC. Isso não significa, contudo, que
essas relações não ocorram em outras
dinâmicas. Ocorre apenas que, nestas
outras dinâmicas, as formas de encontro
entre distintos saberes não são tão
constantes ou relevantes quando levamos
em conta o quadro geral. A seguir
descreveremos três destes outros contextos
que, embora não sejam os mais
importantes, merecem registro.
Primeiro, os processos de ensino-
aprendizagem que acontecem no interior
das unidades curriculares “tradicionais” do
curso. Refiro-me às usualmente
denominadas “disciplinas” ou “matérias”
dos cursos de graduação em nível superior:
certos conjuntos de conteúdos
programáticos trabalhados dentro de cargas
horárias predefinidas sob a condução de
professores especializados. Guiadas por
um corpo docente altamente qualificado, as
atividades realizadas nestas unidades
seguramente se notabilizam pela
interdisciplinaridade, pela
transdisciplinaridade, pela atenção à
realidade do discente e pela relevância para
a formação do futuro educador do campo.
Saliente-se que, tendo em vista a estratégia
da alternância adotada pelo curso, a
maioria das unidades curriculares tem 20%
de suas cargas horárias efetuadas pelos
estudantes durante o período de Tempo
Comunidade, ou seja, em suas
comunidades de origem e sem a presença
física dos professores responsáveis. Além
disso, às atividades previstas para o
cumprimento destas cargas horárias é
destinado 30% da nota do aluno. Esta
parcela importante das unidades
curriculares estimula fortemente o
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enraizamento social e cultural dos
processos de ensino-aprendizagem. Não
obstante, o conjunto das iniciativas
realizadas neste contexto não deixa de
estar concentrado no cumprimento de
ementas nas quais sobressaem o
aprendizado de saberes de ordem
científica, não a construção de relações
entre diferentes saberes. Relações nas
quais se poderia observar, por exemplo, o
contato entre diferentes gramáticas, entre
diferentes categorizações fonéticas, entre
diferentes formas de compreender o mundo
físico ou de ordenar os organismos vivos.
O segundo contexto a ser descrito
trata-se do “Trabalho Interdisciplinar do
Tempo Comunidade”, um expediente que
encontra paralelo com instrumentos
consagrados pelas escolas que adotam a
pedagogia da alternância sobretudo o
“plano de estudo” e o “caderno da
realidade”. A cada semestre o discente
deve efetuar uma sistematização textual de
estudo promovido em torno de certa
temática articuladora que congrega tanto os
conteúdos abordados pelas demais
unidades curriculares cursadas quanto
aspectos de sua realidade. O Projeto
Pedagógico do curso preestabelece as
temáticas articuladoras a serem exploradas
em cada um dos oito semestres de
formação e, com efeito, aquela prevista
para o quarto período é justamente
“relações entre saberes”. Ressalte-se,
ainda, que o Trabalho Interdisciplinar do
Tempo Comunidade impacta em 30% da
nota final a ser obtida pelo discente em
todas as unidades curriculares cursadas no
semestre, o que demonstra a relevância
concedida pelo Projeto Pedagógico do
curso a esse recurso. Todavia, novamente o
que se tem é um terreno fértil para a
interdisciplinaridade, para a
transdisciplinaridade e para a
contextualização dos processos de
formação. Embora seguramente ocorram,
as relações entre saberes, tais como aqui
entendidas, não se dão de modo
sistemático no Trabalho Interdisciplinar do
Tempo Comunidade.
O último contexto a merecer registro
são os Estágios Supervisionados. Seguindo
parâmetros legais e infralegais, consistem
em atividades obrigatórias que ocorrem na
segunda metade do curso. Na LEC,
envolvem um total de 480 horas, centradas
na observação e na regência desenvolvidas
em escolas que atendem populações do
campo nos anos finais do Ensino
Fundamental e no Ensino Médio. Trata-se
de etapa fundamental na preparação para o
exercício do ofício docente. Nela
sobressaem as vivências no ambiente
escolar que, de maneira inescapável,
estabelecem conexões entre teoria e
prática, entre os aprendizados construídos
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no curso e as experiências peculiares às
rotinas escolares. Sem dúvida, os Estágios
proporcionam que os estudantes da LEC
tenham contato com diversos saberes
escolares, bem como com diversos saberes
docentes e, nesse sentido, estimulam
relações entre eles e os advindos de outras
fontes. Entretanto, muito em função da
rigidez própria às dinâmicas escolares,
percebe-se que os Estágios
Supervisionados incitam que as relações
entre saberes sejam mais intensas no plano
interiorizado da experiência pessoal do
discente da LEC, sendo menos acentuadas
no plano exteriorizado das práticas de
intercâmbio, observação e regência que
ocorrem nas escolas.
Discussão
É seguro afirmar que a concepção de
Educação do Campo aponta para a
elaboração de programas educacionais que
estimulem a autonomia e que respeitem as
identidades e culturas dos povos do campo.
Sendo assim, não podemos pensar os
processos educacionais descolados dos
demais domínios da vida. Conforme
assinalou Frigotto (2011),
a luta contra-hegemônica por uma
educação emancipadora é parte da
mesma luta de emancipação no
conjunto das relações sociais no
interior das sociedades capitalistas.
Trata-se de uma luta que atinge todas
as esferas da vida e que abrange o
plano econômico-social, político,
cultural, científico, educacional e
artístico (p. 20).
O mesmo ocorre quanto às relações
entre saberes: elas não se dão e, portanto,
não podem ser analisadas alienadas dos
ordenamentos sociais que, a rigor, lhes dão
forma, conteúdo, dinâmica e
temporalidade. É sob tal baliza que a
experiência da LEC é discutida neste
artigo. Para fazê-lo, na sequência serão
utilizados três eixos argumentativos: o
lugar da ciência nas relações entre saberes;
as relações entre saberes enquanto
encontros de modos de vida; o contraponto
entre “contextualização” e
“perspectivação” nas relações entre
saberes.
Assim, em um primeiro eixo, faz-se
necessário refletir sobre o lugar da ciência
nas relações entre saberes, especialmente
quando está em questão a formação de
professores em nível superior. Tomamos,
então, como princípio que o
reconhecimento da importância da ciência
não implica que ela seja a única forma
legítima de saber a ser admitida, devendo
ser indiscriminadamente aceita por todos
sem nenhum tipo de restrição e a qualquer
custo. Em contrapartida, o reconhecimento
do valor possuído por outros saberes não
elimina os ganhos da ciência ou cria uma
situação de “vale tudo” (Cunha, 2007). De
modo que a relação entre saberes
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científicos e saberes outros é um
“problema” (um desafio, uma questão, uma
meta, um exercício), e não uma “solução”
(algo acabado, que basta ser aplicado,
empregado).
Ademais, é imprescindível concordar
que para o estabelecimento de relações
entre saberes científicos e não-científicos é
insuficiente a intenção de instituí-las,
sendo preciso cuidar também de suas
construções. Isso porque existem “graus” e
“tipos” de relações, não se tratando apenas
de relacionar ou de não relacionar. Em
certos cenários pode haver gradação entre
saberes científicos e não-científicos; em
outros pode haver uma distância
epistemológica muito grande ou uma
separação absoluta entre eles. Por isso
relações mais fáceis, mais próximas, mais
rasas. Noutro sentido, relações mais
complexas, mais distantes, mais profundas.
De modo que, independentemente de quais
sejam, as relações entre saberes são sempre
“conjunturais”, fazendo surgir objetos e
dinâmicas específicos em cada situação.
Isso ocorre, sobretudo, porque o saber
científico em regra se pretende universal,
enquanto o saber não-científico geralmente
se pretende local, havendo distinções de
natureza, de propósito e de condições de
produção.
O segundo eixo argumentativo diz
respeito àquilo que pode ser percebido nos
processos de estabelecimento de relações
entre saberes. O que percebemos nas
principais relações entre saberes que
sucedem na LEC são manifestações do que
poderíamos chamar de distintos “modos de
vida”. O que nelas vislumbramos são
expressões de outras formas de viver,
outros problemas, outras lutas, outros
sentidos de verdade, outros prismas
classificatórios, outras concepções de
existência. Modos de vida que, desde um
plano mais geral, estruturam todos os
saberes que circulam dentro deles. A
ênfase se dá, portanto, menos na dimensão
fragmentária da apreciação de um objeto e
mais na dimensão integral da perspectiva
em torno da realidade.
Tendo em vista as condições de
estabelecimento de relações entre saberes
científicos e não-científicos, o que as
experiências de relações entre saberes na
LEC fazem de maneira mais vigorosa é,
por conseguinte, registrar e pluralizar
modos de vida. Não se trata, assim, de
relacionamentos entre diferentes juízos
acerca de objetos específicos tendo o
quadro geral da ciência como parâmetro.
Naquilo que ocorre na LEC, a própria
ciência é colocada como somente um
objeto específico no interior dos quadros
mais amplos conformados pelos modos de
vida eles sim tomados como parâmetros
das relações entre saberes.
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Enquanto terceiro eixo
argumentativo, a reflexão aqui proposta
passa por certa diferenciação entre
procedimentos que poderiam ser
denominados sem deixar de implicar em
algum grau de simplificação de
“contextualização” e de “perspectivação”.
Com ele nos aproximamos mais do terreno
que envolve a apropriação das relações
entre saberes pelos processos de formação
concebidos no horizonte da Educação do
Campo. Basicamente, a noção de
“contextualização” está dirigida, nas
práticas pedagógicas, a uma tentativa de
adequação, de adaptação, de ajustamento
dos conhecimentos científicos a realidades
sociais específicas. Nessa lógica, as
relações entre saberes passariam por certa
acomodação das diferenças de contexto em
prol do trânsito de saberes compreendidos
como consagrados e universalizáveis. Por
seu turno, a noção de “perspectivação” está
dirigida, nas práticas pedagógicas, a uma
tentativa tanto de cotejamento quanto de
multiplicação de conhecimentos distintos
provenientes de realidades sociais
específicas. Nessa lógica, as relações entre
saberes passariam pelo reconhecimento da
indissolubilidade das diferenças em
proveito da admissão do caráter local e
plural dos saberes.
Quando aciona a contextualização, o
docente concilia o conhecimento científico
com a realidade do discente; quando
aciona a perspectivação, o docente faz
emergir diferentes outras formas de
conhecimento, para além da científica. Na
lógica da contextualização o desafio do
professor está centrado em fazer deslocar o
conhecimento para outro contexto,
apartado do acadêmico. Daí as práticas
principais serem as da tradução e da
exemplificação: “como o que vale aqui
pode ser entendido lá?”. na lógica da
perspectivação o desafio do professor está
centrado em fazer perceber os
conhecimentos provenientes de diferentes
realidades. Daí as principais práticas serem
as da comparação e da evidenciação:
“como o que vale aqui pode ser comparado
com o que vale lá?”.
Postas as balizas nestas posições, não
dúvida de que a problemática das
relações entre saberes na Educação do
Campo assume qualidades dissonantes em
uma e outra lógica. O objetivo das práticas
levadas a efeito na gica da
contextualização é conformar os conteúdos
dos conhecimentos consagrados
(geralmente científicos) às realidades dos
sujeitos do campo. Noutro sentido, o
objetivo das práticas levadas a efeito na
lógica da perspectivação é fortalecer e
validar os conhecimentos gerados pelos
próprios sujeitos do campo. Assim, no
limite é possível dizer que a
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contextualização impõe desafios didático-
pedagógicos, enquanto a perspectivação
impõe desafios político-filosóficos.
Vale marcar, no entanto, duas
ressalvas. Primeiro, que as ideias
apresentadas na discussão sobre este
último eixo argumentativo constituem,
acima de tudo, um prisma analítico e,
portanto, carregam boa dose de
simplificação. Logo, o se pretende
esgotar todas as circunstâncias de
estabelecimento de relações entre saberes
nas duas gicas apresentadas. Segundo, é
imperativo assinalar que não se pretende
aqui definir uma hierarquia valorativa entre
as lógicas da contextualização e da
perspectivação. Não se está afirmando que
uma lógica é melhor, superior ou mais
correta que a outra. O que se está tentando
é tão somente salientar suas diferenças,
demonstrando que elas se instauram em
condições e com finalidades peculiares.
É oportuno indicar que, em boa
medida, ao falarmos em perspectivação
estamos na margem do confronto com o
que Mignolo (2003) chamou de
"totalitarismo científico". Desde um ponto
de vista mais amplo, a perspectivação seria
uma forma de embate com o horizonte da
colonialidade (do poder, do saber e do ser).
De acordo com o autor,
As ligações inextricáveis e
indissociáveis da
modernidade/colonialidade, o facto
de que o pacote da modernidade
(ciência, democracia, civilização,
liberdade, capitalismo, etc.) não pode
ser removido e separado da
colonialidade (mito, folclore,
despotismo, ignorância, pré-
capitalismo, subdesenvolvimento,
etc.), de que um pressupõe o outro,
define, no fundamental, o palco das
culturas do saber para as próximas
décadas. ... A questão fundamental é
o conhecimento e a compreensão
humanos e não uma das suas práticas
específicas com um determinado
nome: a sua articulação e
conceptualização modernas e
europeias. (p. 704).
Fugimos, nesse caminho, da adoção
da ciência como uma prática e uma
ideologia que excluiu formas de saber
guiadas por outros princípios, outros
métodos e outros objetivos.
Isto posto, as relações entre saberes,
assim construídas, se conformam em
território de enfrentamento da hegemonia
exercida pela ciência. Dada a íntima
ligação entre saberes e configurações
sociais, as formas de dominação
executadas no terreno dos saberes, de uma
vez, reforçam e são reforçadas por
formas de dominação executadas no
terreno das configurações sociais. Por
conseguinte, desde a posição das
populações do campo, sistematicamente
subjugadas nos planos dos saberes e das
lutas sociais, o enfrentamento dessa
situação passa pela elaboração do que Sá
(2011, p. 256) chamou de “conhecimento-
emancipação”. Uma forma de saber que,
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sem recusar a ciência, permite a esses
grupos revigorar seus embates pela
construção de uma sociedade na qual não
estejam em uma condição inferiorizada,
uma sociedade que desconstrua privilégios
e hegemonias excludentes.
Considerações finais
Partindo da tese de que as relações
existentes entre os grupos sociais definem,
de maneira inescapável, condições para o
estabelecimento de relações entre saberes,
o presente estudo buscou discutir como
essa problemática se desenrola nas práticas
levadas a cabo na Licenciatura em
Educação do Campo da UFVJM. Foram
descritos os ambientes principais nos quais
as relações entre saberes se dão no curso e
discutidos aspectos centrais que os
envolvem. Percebeu-se que as matérias em
tela são plenas de complexidade, bem
como ricas em derivações e consequências
políticas, culturais, institucionais e
pedagógicas.
Se assumirmos uma escala temporal
um pouco mais larga para a mensuração da
história da educação, não haverá dúvida de
que as ações no domínio da Educação do
Campo são relativamente recentes. Nesse
sentido, uma característica interessante e
atrativa das iniciativas orientadas pela
Educação do Campo é seu caráter
inacabado, ou seja, o fato de estarem,
ainda, em franco desenvolvimento e
aperfeiçoamento. Conjuntamente, vários
dos princípios da Educação do Campo
incentivam a criação de constantes
intercâmbios entre seus agentes. Espera-se
que este trabalho possa ter contribuído no
fluxo desse movimento: promover, com
potenciais parceiros, o intercâmbio de
aprendizados e objetivos advindos de certa
experiência ainda em construção.
A transposição direta de práticas ou
de interpretações constitui, sem dúvida, um
equívoco. Daí ser mais fecundo nos
pautarmos pela diretriz do
compartilhamento. Sem embargo, parece
estar nas imediações de todos nós o
imperativo de, democraticamente,
colaborarmos com a criação de uma nova
economia de saberes mais justa e
apropriada para as populações do campo.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 08/06/2020
Aprovado em: 13/03/2021
Publicado em: 30/11/2021
Received on June 08th, 2020
Accepted on March 13th, 2021
Published on November, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: O autor foi o responsável por
todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação
da versão final publicada.
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Pereira, D. N. (2021). Relações entre saberes na
Educação do Campo: a experiência da UFVJM. Rev. Bras.
Educ. Camp., 6, e9582.
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Camp., Tocantinópolis, v. 6, e9582, 2021.
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