Justino, E. F., & Sant’Anna, P. A. (2017). Programa Mais Educação: diálogos partindo da percepção de pais de estudantes de uma comunidade rural...





Programa Mais Educação: diálogos partindo da percepção de pais de estudantes de uma comunidade rural



Érica Fernanda Justino1, Paulo Afrânio Sant'Anna2

1Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Programa de Pós-Graduação em Educação. Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627 - Pampulha, Belo Horizonte - MG. Brasil. erica.justino@educacao.mg.gov.br. 2Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM





RESUMO. O artigo tem como objetivo refletir sobre a forma como uma comunidade do campo compreende o Programa Mais Educação (PME) e analisar as possíveis relações entre o projeto de Educação Integral e os princípios da Educação do Campo. Nesse sentido, o presente estudo assume o desafio de articular esses projetos de educação a partir de observações realizadas no contexto de uma escola municipal localizada na comunidade rural de Padre João Afonso, no município de Itamarandiba-MG, onde em 2012 foi implantado o Programa Mais Educação. Foram selecionados 12 pais de estudantes que cancelaram e/ou não efetivaram a matrícula nas turmas de tempo integral entre os anos de 2012 a 2015. A discussão teórica visou refletir sobre a organização, os desafios, potencialidades e fragilidades desse programa na oferta de uma formação integral em escolas localizadas em áreas rurais. Para ampliar a discussão, foram articuladas as propostas de Educação Integral e Educação do Campo, destacando o caráter emancipatório desses projetos. Para contribuir com esse diálogo utilizamos as discussões de Caldart (2009), Fernandes e Molina (2005), Ghedin (2012) Cavaliere (2007), Moll (2009). Os resultados evidenciaram que os pais dessa comunidade percebem que as atividades desenvolvidas no PME não implicam em um movimento de formação que contemple as realidades e necessidades dos sujeitos do campo.


Palavras-chave: Educação Integral, Programa Mais Educação, Educação do Campo, Projetos Educacionais, Práticas Educativas.







More Education Program: dialogues from the perception of parents of students of a rural community




ABSTRACT. The article aims to reflect on how the rural community understands the Mais Educação program and through this survey to analyze the possible relationships between an Integral Education project and the principles of Rural Education. In this sense, the present study assumes the challenge of articulating these education projects based on observations made in the context of a municipal school located in the rural community of Padre João Afonso, in the municipality of Itamarandiba-MG, where in 2012 the Mais Educação program was deployed. Twelve parents of students who canceled and/or did not enroll in full-time classes between the years of 2012 to 2015 were selected. The theoretical discussion aimed to reflect on the organization, challenges, potentialities and fragilities of this program in the provision of a complete education in schools located in rural areas. To broaden the discussion, the proposals of Integral Education and Rural Education were articulated, highlighting the emancipatory character of these projects. To contribute with this dialogue the works of Caldart ( 2009), Fernandes e Molina ( 2005), Ghedin (2012), Cavaliere (2007), Moll (2009) have been used. The results show that the parents see the activities of the program do not help the knowledge about the reality and needs of the rural community.

 

Keywords: Integral Education, More Education Program, Rural Education, Educational Projects, Educational Practices.

















Programa de Educación Más: diálogos partir de percepción de los padres de estudiantes de una comunitaria rural




RESUMEN. El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre cómo una comunidad entiende el curso Programa Más Education (PYME) y analizar la posible relación entre el Proyecto de Educación Integral y los principios de la educación rural. En este sentido, o presente estudio asume el reto de articular estos proyectos de educación a partir de las observaciones realizadas en el contexto de una escuela municipal en la comunidad rural de Padre João Afonso, en el municipio de Itamarandiba-MG, donde en 2012 se implementó el Programa Más Educación . Hemos seleccionado a 12 padres de los estudiantes que cancelaron y/o no se aplican la inscripción en clases de tiempo completo entre los años 2012 a 2015. La discusión teórica destinada a reflexionar sobre la organización, retos programa de potencial y fragilidades desse en proporcionar una formación integral en las escuelas ubicadas en las zonas rurales. Para ampliar la discusión, las propuestas de Educación Rural Integral y Educación fueron articulados, haciendo hincapié en el carácter emancipador de estos proyectos. Para contribuir a este diálogo se usa la discusión Caldart (2009), Fernandes e Molina (2005), Ghedin (2012) Cavaliere (2007), Moll (2009). Los resultados mostraron que los padres de esta comunidad se dan cuenta de que las actividades en las PYME no implican un movimiento de formación que responda a las realidades y necesidades de los sujetos del campo.


Palabras clave: Educación Integral, Programa Mais Educação, Educación Rural, Proyectos Educativos, Las Prácticas Educativas.











Introdução


Este artigo assume o desafio de articular as propostas de Educação Integral e Educação do Campo a partir de observações realizadas no contexto de uma escola municipal localizada na comunidade rural de Padre João Afonso, no município de Itamarandiba MG, onde em 2012 foi implantado o Programa Mais Educação (PME)¹. Quando esta escola iniciou as atividades de Educação Integral via PME, a procura pelos pais que demandavam vagas para seus (as) filhos (as) nas turmas recém-formadas foi ampla. Inicialmente foram oferecidas vagas para compor três turmas que foram rapidamente preenchidas, extrapolando a capacidade máxima de atendimento previsto pela escola. Porém, observou-se que ao longo de três anos (2012 a 2015) o quantitativo de matrículas sofreu decréscimo com o aumento da evasão e da ausência dos pais na efetivação de novas matrículas².

As motivações para a realização dessa pesquisa derivam principalmente de nossa escuta como supervisora pedagógica em escolas localizadas em área rural dos pais que demonstravam pouco interesse em garantir a permanência dos (as) seus (as) filhos (as), estudantes matriculados nas turmas de Tempo Integral³. Várias foram as justificativas que apresentavam quando interrogados sobre a infrequência dos estudantes, o que deu origem à hipótese de que os pais não entendem o Programa Mais Educação como uma experiência que acrescente e contribua para a formação dos seus filhos.

A concepção de Educação de Tempo Integral difundida nas primeiras décadas do século 20 no Brasil foi atravessada pelas demandas postas pelo capitalismo emergente afastando-se, portanto, das premissas de orientar as ações da escola com vistas ao desenvolvimento integral do educando. A proposta de Educação Integral difundida nessa época continha os preceitos de desenvolvimento integral do educando, mas foi desvirtuada para atender as necessidades da produção industrial.

A modernização do país na segunda metade do século XX impôs novas aspirações educacionais que foram incorporadas ao discurso do estado. Ao mesmo tempo, que reforçava o espaço urbano como lugar da modernidade atribuía ao campo o lugar do atraso.

O processo de industrialização fortalecido entre as décadas de 1970 a 1990 desencadeou, principalmente nas cidades, transformações de ordens variadas. O mesmo processo colocou às populações campesinas desafios políticos, econômicos e sociais refletindo também, nos processos educacionais4 que agora passam a acolher essa nova dinâmica. A Educação Integral surge nesse contexto, como uma alternativa para atender essa nova realidade e receber as crianças/estudantes, uma vez que nesse momento a imersão das mulheres no mercado de trabalho especialmente nas fábricas se intensifica.

Para a melhor compreensão das possíveis articulações entre a perspectiva de Educação Integral e a Educação do Campo, faremos inicialmente um recorte das concepções de Educação Integral que influenciaram as políticas educacionais no Brasil dialogando com os princípios defendidos na Educação do Campo.


Recortes da Educação Integral no cenário brasileiro


A ampliação da jornada escolar ocupou ao longo das últimas décadas um cenário de destaque dentro dos debates das políticas públicas no país. As tentativas de conceituar Educação Integral são remotas e variadas. Para o estudo em questão, partiremos do século XIX quando a discussão ganha maior centralidade no auge da modernidade, mais especificamente no movimento operário na Europa, apresentando-se como elemento importante com vistas à emancipação humana. Cavaliere (1996) diz que “... a generalização da escolarização no mundo ocidental liga-se intimamente aos pressupostos básicos da modernidade”.

Marx e Engels (1978) denominava a educação como “omnilateral4, ou seja, uma educação que, segundo ele, fornece condições para que o homem mude as situações de desigualdades que são próprias da sociedade capitalista. Frigotto (2012, p. 265) pontua que Educação omnilateral significa, “... a concepção de educação ou de formação humana que busca levar em conta todas as dimensões que constituem a especificidade do ser humano e as condições objetivas e subjetivas real para seu pleno desenvolvimento histórico”.

No Brasil, no século XX a Educação Integral entendida como a ampliação das tarefas sociais e culturais da escola tem suas raízes ligadas aos pensamentos anarquistas, integralistas, à Educação Popular5, à concepção das Cidades Educadoras onde “... a cidade deverá promover uma educação que deverá combater toda forma de discriminação, favorecendo a liberdade de expressão, a diversidade cultural e o diálogo em condições de igualdade e entre as gerações”. (Congresso Internacional das Cidades Educadoras, 2004), e especialmente a pensadores como Anísio Teixeira que alertava para a formação integral necessária ao contexto histórico:

Nas condições novas da sociedade dos nossos dias, educação escolar de certo modo completa faz-se, em todos os campos e por especializações de tipos diferentes, absolutamente essenciais para cada indivíduo, que, sem ela, não poderá sequer compreender o novo contexto social. ... mas, passou a exigir, de cada um, aparelhar-se intelectualmente para poder compreender a complexidade da organização social, toda ela racional e substancialmente impessoal. (Teixeira, 1976, p. 323-324).


Este deixou um legado importante de experiências que, por meio da Educação Integral, propunha a ampliação das tarefas sociais e culturais da escola capazes de provocar transformações e mentalidades dos sujeitos.

Como objeto de estudo a Educação Integral se fortalece entre os intelectuais reformistas, tendo como auge o ano de 1932, com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova6.

Segundo Cavaliere (2007, p. 1028), “podemos identificar outras quatro concepções de escola de tempo integral que perpassaram as últimas décadas”. A primeira delas é a ideia assistencialista. De acordo com a autora, “entende-se a escola de tempo integral enquanto espaço para os “desprivilegiados”, que deve suprir deficiências gerais da formação dos alunos, uma escola que substitui a família e onde o mais relevante não é o conhecimento e sim a ocupação do tempo e a socialização primária”. (Cavaliere, 2007, p. 1031).

A segunda concepção vincula-se a uma visão autoritária, na qual a escola teria o papel de formar o estudante para o trabalho, como uma espécie de instituição de prevenção ao crime. Por sua vez, a terceira visão é pautada na escola como um instrumento democrático, pois, a partir do tempo integral, o educando pode ter uma formação emancipatória.

Por fim, a quarta concepção baseia-se na ideia de que o ensino pode ocorrer dentro ou fora do espaço escolar e que o horário integral independe do ambiente escolar, caracterizando uma visão multissetorial. (Cavaliere, 2007).

Vale ressaltar que a ampliação da jornada escolar não deve se resumir ao prolongamento do tempo na escola, mas sim, qualificar e aperfeiçoar seu potencial educativo com atividades que maximizem a formação humana em todas as dimensões. O Tempo Integral “... é o reconhecimento da necessidade de ampliar e qualificar o tempo escolar, superando o caráter parcial e limitado que as poucas horas diárias proporcionam, em estreita associação com o reconhecimento das múltiplas dimensões que caracterizam os seres humanos”. (Moll, 2009, p. 13).

Além disso, é preciso que as propostas de Educação Integral das escolas do campo ou da cidade sejam elaboradas com a participação coletiva, de forma a reconhecer a comunidade como em um espaço educador. Partindo desse pressuposto, Coelho afirma que:


...um tempo ampliado, ou seja, integral, [que] possibilita uma abordagem mais qualitativa e interdisciplinar, na medida em que se podem fundir conhecimentos/conceitos educacionais, artísticos e culturais, de saúde, do mundo do trabalho, que levem a uma visão mais abrangente do próprio ato de aprender: os professores e demais agentes educacionais, juntamente com a comunidade, encontram tempo para o debate sobre essas possíveis teias. (Coelho, 2000, p. 54).


Entretanto, sabe-se que muitas escolas da rede pública de ensino, por diversas razões, não conseguem se organizar na perspectiva da formação em múltiplas dimensões. Isto ocorre por motivos diversos, desde a visão hegemônica que cria uma redoma em torno da escola a não compreensão da concepção de Educação Integral como instrumento de libertação. Quanto a essa afirmação Pistrak (2011, p. 23) corrobora:


A escola sempre foi uma arma nas mãos das classes dirigentes. Mas, essas não tinham nenhum interesse em revelar o caráter de classe da escola..., e é por isso que se esforçavam para mascarar a natureza de classes da escola, evitando colaborar na destruição de sua própria dominação.

Recriar a escola numa perspectiva de formação para a emancipação requer mais que arranjos de tempos e espaços, demandam intencionalidade, e isso nenhuma política pública vai garantir. É preciso romper com a ideologia urbanista/capitalista que ainda resiste nas escolas. E esse é um processo em movimento que transita entre a educação enquanto prática e enquanto condicionante de liberdade. Nesse sentido, Ghedin afirma:


É necessário fazer uma passagem da epistemologia da práxis à autonomia emancipadora que se dá pela crítica. O professor só se emancipa pela crítica, ele só é autônomo à medida que é capaz de elaborar uma crítica para poder saber do que? De como? E do por quê? As coisas são e estão sendo do modo como nós às percebemos. A crítica é necessária para que possamos interpretar o modo como às coisas são no confronto de como elas deveriam ser construídas por nós num permanente processo de interpretação e intervenção do mundo. (Ghedin, 2009, p. 49).


Educação para liberdade é aquela que em seu fazer pedagógico oportuniza aos sujeitos se reconhecerem como seres sociais, integrados e inseridos em seu contexto histórico e nos contextos de produção da sua existência. É a partir desse pressuposto que se articula a proposta de Educação Integral defendida pela Educação do Campo.

Princípios articulados: Educação Integral e Educação do Campo


Vivenciamos no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, um movimento pedagógico Por uma Educação do e no7 Campo como um novo paradigma que aponta um modelo de campo e sociedade diferente daquele presente no modelo educacional hegemônico. Para Gramsci (2002), hegemonia em termos ideológicos é o domínio de uma classe social sobre outra, em especial da burguesia sob as classes de trabalhadores.

A pesquisa a que este artigo se reporta foi construída tendo como base a Educação Integral prevista na concepção da Educação Popular, que emerge a partir de 1970 e se apresenta como movimento de classe dos trabalhadores e trabalhadoras, contra o modelo reprodutivista8 da ideologia do Estado que se baseia em privilégios dos ricos sobre os pobres. Para Bourdieu e Passeron (1975):


Toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por uma poder arbitrário cultural. ... A ação pedagógica que reproduz a cultura dominante, contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relações de força, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima. (Bourdieu & Passeron, 1975, p. 20).


Ademais, a escola reproduz uma aprendizagem carregada dos velhos modos de fazer, primando pela repetição, reproduzindo saberes impregnados da ideologia dominante que são estabelecidos como legítimos numa dinâmica afastada do mundo real, num descompasso entre o ritmo da escola e o ritmo da vida no campo.

Com vistas a romper com essa lógica, começa a emergir na década de 1940 e se fortalecer na década de 1950 o Movimento de Educação Popular, defendendo a concepção que associa os processos educativos às ações sociais e políticas da classe trabalhadora com vistas à intervenção e transformação social.


A Educação popular acompanha, apoia e inspira ações de transformação social. Nela, o processo educativo se dá na ação de mudar padrões de conduta, modos de vida, atitudes e reações sociais. Portanto, se a realidade social é ponto de partida do processo educativo, este volta a ela para transformá-la. (Werthein, 1985, p. 22).


Nesse movimento de luta destacam-se, na década de 1960, os projetos de Educação de Jovens e Adultos de Paulo Freire que propunham participação popular no processo de construção da aprendizagem, conforme destaca o educador:


... Sempre confiávamos no povo. Sempre rejeitávamos fórmulas doadas. Sempre acreditávamos que tínhamos algo a permutar com ele, nunca exclusivamente a oferecer-lhe. Experimentamos métodos, técnicas, processos de comunicação. Superamos procedimentos. Nunca, porém, abandonamos a convicção que sempre tivemos de que só nas bases populares, e com elas, poderemos realizar algo sério e autêntico para elas. (Freire, 1982, p. 102).


Desta forma, percebemos que os princípios da Educação do Campo já estavam sendo gestados a partir da perspectiva da Educação Popular, uma vez que ambas concorrem para a emancipação dos sujeitos e redução das desigualdades sociais via processos educacionais.

A educação destinada aos povos do campo foi, durante décadas, negligenciada e seus sujeitos invisibilizados, condenados a conviver com uma prática escolar atravessada por um sistema de esteriotipação da dinâmica de vida e dos sujeitos do campo.

As Diretrizes Operacionais para Educação do Campo define no Art. 2º que educação na perspectiva da Educação do Campo é:


Toda ação educativa desenvolvida junto às populações do campo e fundamenta-se nas práticas sociais constitutivas dessas populações: os seus conhecimentos, habilidades, sentimentos, valores, modo de ser, de ver, de viver e de produzir e formas de compartilhar a vida. (Brasil, 2002).


A Educação do Campo nasce do tensionamento da classe trabalhadora rural em contraposição à hegemonia capitalista, da luta pelo direito à terra, e da resistência desses sujeitos em permanecer no campo na condição de camponeses. Para Caldart (2009, p. 42) “... a educação do campo retoma a discussão e a prática de dimensões ou matrizes de formação humana que historicamente constituíram as bases, os pilares da pedagogia moderna mais radicalmente emancipatória”. A autora acrescenta:


Defendemos um projeto de educação integral, preocupado também com as questões de gênero, de raça, de respeito às diferentes culturas e às diferentes gerações de soberania alimentar de uma agricultura e de um desenvolvimento sustentável, de uma política energética e de proteção ao meio ambiente. (Caldart, 2002, p. 14).



Nesse sentido, o princípio da escola do campo enquanto formadora de sujeitos articulado a um projeto de emancipação humana dialoga com o princípio da Educação Integral que estimula a promoção do desenvolvimento pleno dos sujeitos em todas as suas dimensões, física, intelectual, social, emocional e simbólica.

Evidencia-se que a Educação Integral em diálogo com a identidade campesina compõe um dos fios condutores para materialização da Educação do Campo como um novo paradigma.


Metodologia


A presente pesquisa de natureza qualitativa exploratória foi realizada com delineamento de estudo de caso conforme destaca Yin (2005, p. 32) “o estudo de caso é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real”.

A escola estudada localiza-se na Comunidade de Padre João Afonso, no município de Itamarandiba, vale Jequitinhonha no estado de Minas Gerais. É integrante da rede municipal de ensino e atende à Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Para empreender o estudo, foram selecionados 12 pais de estudantes que residiam nas comunidades rurais adjacentes à escola estudada e que cancelaram e/ou não efetivaram a matrícula de seus filhos nas turmas de Tempo Integral na escola do campo entre os anos de 2012 a 2015. Desse total, cinco eram mães e sete eram pais, oito deles cancelaram a matrícula dos (as) filhos (as) e quatro não a efetivaram.

Desses pais, verifica-se que 22,2% concluíram os anos iniciais do ensino fundamental e 33,3% não concluíram essa etapa de formação educacional. Quanto aos anos finais do ensino fundamental, vimos que 11,1% dos pais concluíram e 22,2% não concluíram essa etapa.

Em relação ao ensino médio, somente 11,1% concluíram esta etapa da formação escolar. Quando cruzamos essa informação com a idade dos pais, verificamos que quanto mais velhos, menos acesso ao ensino escolar esses pais tiveram, o que indica negligência histórica em relação ao direito à educação da população rural. A faixa etária dos pais encontra-se entre 34 e 47 anos.

A coleta de dados ocorreu por intermédio de levantamento documental e entrevistas abertas partindo de um roteiro semiestruturado, que oportuniza melhor interação entre entrevistado e entrevistador. Para Gil (1999, p. 118) a entrevista semiestruturada “oferece flexibilidade muito maior, posto que o entrevistador pode esclarecer o significado das perguntas e adaptar-se mais facilmente às pessoas e às circunstâncias em que se desenvolve a entrevista”. A entrevista realizada foi registrada por meio audiográfico e transcrita para a análise9.

O tratamento dos dados foi realizado por meio da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin que a define como:


... um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (Bardin, 2011, p. 47).


Após a leitura exploratória do material, foram identificadas categorias que serviram para um primeiro processo de codificação do material. Na sequência, algumas categorias foram reagrupadas e organizadas em três eixos temáticos, a saber:

  1. Programa Mais Educação: incluindo críticas e informações sobre o programa;

  2. Programa Mais Educação e Comunidade: incluindo informações e percepções sobre a relação entre o programa e a comunidade/família;

  3. Expectativas em relação ao programa: incluindo sugestões e expectativas que os pais têm em relação ao programa.

Uma vez finalizado esse processo, construiu-se um quadro de definições das categorias que serviram para compor o instrumento de validação por juízes. Os juízes foram selecionados, tendo como critério a experiência acadêmica e a prática em Educação do Campo. As categorias foram submetidas à avaliação de dois juízes para verificação do grau de concordância com a categorização dos excertos realizada pelo pesquisador. O resultado desse processo indicou um grau de 83% de concordância. Esse procedimento objetivou-se garantir maior confiabilidade ao processo de análise do material.

Apresentação dos resultados


As entrevistas realizadas com os pais dialogaram com as ideias de estudiosos/pesquisadores como Cavaliere (2007) e Moll (2009) que discorrem sobre a implantação da Educação Integral, Caldart (2002) e Fernandes e Molina (2005) que referenciam a Educação do Campo. Os resultados serão apresentados por eixos classificados como centrais na discussão/reflexão.


Relação escola, realidade da comunidade e tempos educativos


Essa categoria de análise nos possibilita compreender que no paradigma de Educação do Campo a construção do conhecimento acontece em espaços e tempos variados, sendo a realidade local e suas singularidades o ponto de partida conforme destacam Fernandes e Molina (2005):


Esta visão do campo como um espaço que tem suas particularidades e que é ao mesmo tempo um campo de possibilidades de relação dos seres humanos com a produção das condições de existência social confere à Educação do Campo o papel de fomentar reflexões que acumulem força e espaço no sentido de contribuir na desconstrução do imaginário coletivo sobre a visão hierárquica que há entre campo e cidade; sobre a visão tradicional do jeca tatu, do campo como lugar do atraso. A Educação do Campo, indissocia-se da reflexão sobre um novo modelo de desenvolvimento e o papel para o campo nele. (Fernandes & Molina, 2005, p. 68).



No que tange as análises das atividades de Educação Integral, desenvolvidas por meio do PME na escola estudada, a comunidade parece indicar por meio da não efetivação ou do cancelamento das matrículas que essas atividades não atendem as suas expectativas. Esse fato se insere num contexto fragilizado historicamente e, portanto, não pode ser ignorado.

Quanto às percepções da comunidade sobre o Programa, percebe-se que se direcionam, sobretudo, à ampliação da jornada escolar e que essa ampliação do tempo na unidade de ensino está condicionada à necessidade de manter o estudante por mais tempo na escola em conformidade com a fala da mãe G que ressalta:


Eu tirei ela do integral porque ela reclamava que a cabeça “duía” de tanto “assisti” televisão, e eu precisava dela. Ela me ajudava na lida de dentro de casa e já sabia “fazê” um monte de coisa sozinha. “i” pra escola é importante, tem que “aprendê” as coisas de lá, mas a escola ta “esqueceno” das “coisa” daqui, isso ela num “insina”. (Mãe G).


O PME foi pensado para ser desenvolvido nas escolas urbanas, onde as condições de produção da vida se diferem das do campo. A proposta desse programa se pauta especialmente na ampliação da jornada escolar “com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo”. (Brasil, 2009). Esta é uma questão delicada, pois a escola pode cair no equívoco de ofertar a Educação Integral somente considerando a ampliação do tempo na escola, sem qualificar a oferta das atividades, situação que pode estar contribuindo para que os pais as reconheçam como não significativas.


Mas assim é porque igual “tô” te”falano” com a senhora do jeito que “ta” não adianta eu”manda” eles pra escola pra “fica” o dia todo pra “brinca” de bola. (Pai A).


No excerto acima se percebe que o pai não reconhece a atividade lúdica como atividade educativa. Por outro lado, há uma crítica à escola que “só brinca”. Estaria esse pai pensando que o Tempo Integral se resume a ficar brincando na escola? Ou essa crítica viria de uma visão utilitária do ensino?


Relação pais/escola e os processos participativos


Destacamos o princípio da Educação Integral que versa sobre a escola como articuladora de todo o processo educativo, em uma construção participativa que dialoga com o princípio pedagógico proposto pela Educação do Campo que estimula a autonomia e a colaboração entre os sujeitos do campo e o sistema de ensino. As diretrizes da Educação do Campo no estado de Minas Gerais destacam em seu artigo 3º no inciso IV o princípio que prevê:

implementação de gestão democrática das instituições escolares, por meio do controle social, sobretudo da qualidade da educação oferecida, mediante a efetiva participação das comunidades e dos movimentos sociais e sindicais do campo na definição do modelo de organização pedagógica e de gestão. (Minas Gerais, 2015, p. 09).



A gestão participativa favorece o desenvolvimento das atividades de forma transparente, descentralizando as decisões. É importante pensar que a relação família/escola tem sido historicamente marcada por tensões e pelo estabelecimento de parcerias frágeis. Fica evidente que os pais, ao mesmo tempo em que reconhecem as fragilidades da participação das famílias na escola, percebem os benefícios que essa interação família-escola poderia proporcionar para a melhoria da qualidade da educação ofertada na comunidade. Os trechos abaixo se referem à fala de pais que percebem como a consulta à comunidade na tomada de decisões por parte da escola pode contribuir para o alcance de resultados mais significativos.


... num sei, as “veiz”sefizesse uma reunião assim com os pais, eu penso de um jeito e outra pessoa pensa de outro jeito, num sei. [...] É igual eu“tô” “falano” com a senhora eu acho que assim né se chamasse os “ pai” dos “minino” tudo, fizesse uma reunião, a gente pudesse “falá” assim,” falá” o que a gente acha, podia “melhorá”, né, “miorou” bastante, né?(Pai L).


A gente foi na “runião”, quando o “progama” “chegô”, mas já “tava” tudo “pruntim” a diretora “falô” que ia sê bom “prus” “minino”. Eu “prercupei”, mas num deu pra “falá”. (Pai C).


Nas falas dos pais percebe-se a falta de diálogo da escola com a comunidade na implementação do programa, que ao invés de ser uma construção coletiva e contextualizada, passa a ser um projeto imposto de cima para baixo. No caso do PME, o modelo prioriza a realidade urbana, não contemplando as dinâmicas sociais dos povos do campo, a relação trabalho-família, os tempos e espaços de formação, os valores que perpassam as relações interpessoais e grupais, enfim, não cria nenhuma possibilidade de adesão das comunidades campesinas.

Ao não dialogar com a realidade da comunidade escolar, o programa se fragiliza e se enfraquece, diminuindo suas possibilidades e as potencialidades de atuação e intervenção na realidade local. Os trechos em destaque evidenciam como as atividades desenvolvidas por meio do PME interferem na dinâmica do cotidiano das famílias, uma vez que no contexto do campo todos os seus membros participam das atividades de produção de vida.


Eu não deixo meus filhos, pois fica o

dia todo na escola. Eles “precisa” de

alguma coisa da roça, precisa de

aprendê” alguma coisa. (Pai C).


Meu Deus do céu, o que esses “mininos” vai “fazê” se “tivé” que “vivê” da roça? Eles “num”vai “sabê” nem se “mio”

dá na rama ou na “ispiga”. Num pode dona... (Mãe M).


É,”nois” “qué” “ vê” nossos “fi” “cresceno” na “sabiduria” pra “vivê” “melhó” “aprendeno” na “iscola” e aqui “cum” “nois”. (Pai A).


Mas tem muita coisa que a filha precisa é de casa além do que ela aprende na escola ela tem que aprender em casa com a mãe ou com o pai na rotina do dia a dia. (Mãe J).


Percebemos pelas manifestações dos pais que sem participação da comunidade a Educação Integral é impraticável nas escolas do campo. Importante destacar que a maioria das escolas localizadas em áreas rurais não são escolas do campo, ou seja, ainda não se apropriaram dos princípios da Educação do Campo na assunção dessa identidade.

Acreditamos que a proposta de formação integral do PME poderia contribuir significativamente para que as escolas e as comunidades se fortalecessem como espaços de formação humana, contribuindo para a construção de um projeto emancipatório onde, conforme Freire, a “educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação.” (Freire, 2007, p. 44). Dessa feita, a Educação do Campo cumpre sua premissa, formar para a liberdade oferecendo condições de permanências ou resistências.


Relação saberes, tempos e espaços educativos


Propor uma Educação Integral com base nos conceitos de territórios educativos significa considerar que, não raro, a escola representa o único equipamento público que existe na comunidade, revelando sua fragilidade em dar conta sozinha da formação na perspectiva da integralidade, assim cabe o reconhecimento e fortalecimento dos espaços da comunidade como espaços educativos.


A Educação do Campo é um conceito cunhado com a preocupação de se delimitar um território teórico. Nosso pensamento é defender o direito que uma população tem de pensar o mundo a partir do lugar onde vive, ou seja, da terra em que pisa, melhor ainda: desde a sua realidade. Quando pensamos o mundo a partir de um lugar onde não vivemos, idealizamos um mundo, vivemos um não lugar. Isso acontece com a população do campo quando pensa o mundo e, evidentemente, o seu próprio lugar a partir da cidade. Esse modo de pensar idealizado leva ao estranhamento de si mesmo, o que dificulta muito a construção da identidade, condição fundamental da formação cultural. (Fernandes, 2004, p. 67).


Tal afirmação pode ser confirmada com a fala do pai que pensa seu lugar e sua condição como um lugar de atraso.


Eu falei “cum” ele pra “istudá” pra ir pra cidade, sinão vai “ficá” “jacú” que nem eu. (Pai I).


Essa fala vem carregada com o peso histórico da exclusão a que a população rural foi submetida, revelando seu poder nocivo em fazer com que o sujeito negue sua condição. Percebemos que as atividades desenvolvidas por meio do PME poderiam contribuir para que esses sujeitos percebessem sua realidade sob outras dimensões e com possibilidades de transformações.

A Educação do Campo e Educação Integral comungam os princípios que tratam dos espaços e tempos de formação dos sujeitos da aprendizagem e da valorização dos diferentes saberes no processo educativo que podem contribuir para alterar os modos de conceber os sujeitos do campo. A fala abaixo é um exemplo de articulação possível onde fica claro que dinâmica da vida no campo também é educativa.


A comunidade toda é um espaço onde se aprende, quando a gente leva um menino pra reunião da associação, ele vai aprendendo, a saber, a hora de falar, de escutar e vai vendo que tudo que a gente conquista não vem de graça, nas festas da igreja ele aprende a ser solidário, a dividir tarefas e cumprir todas elas, a escola podia no tempo integral ensinar essas coisas também. (Mãe H).


Os resultados aqui apresentados ressaltam, a partir da percepção dos pais da comunidade pesquisada, que a materialização desses princípios deve reconhecer as relações estabelecidas no convívio familiar que se intensificam nas relações do trabalho coletivamente produzido como pode ser percebido na fala do pai D.

Na minha época a gente aprendia um monte de coisa com os nossos pais, agora tá difícil “ensiá”, os “menino” hoje é diferente se “ficá” na escola o dia todo, a semana “interinha” ai que “num” tem jeito mesmo. (Pai D).


Essa fala sinaliza um questionamento ao programa Mais Educação, desenvolvido na escola, pois indica a importância dos outros contextos educativos para as populações campesinas. O questionamento aponta na direção da falta de entendimento da escola em relação ao papel da família enquanto contexto educador. É na lida diária com a lavoura, com a criação e com os afazeres domésticos que os pais passam às crianças saberes que foram construídos ao longo da história por seus antepassados. Saberes que além do “saber fazer” guardam também a identidade de um grupo e sua memória muito evidente na fala do pai E.

E se lá tivesse um tempinho para “aprendê” as coisa daqui a gente garantia que nossa historia não morria. (Pai E).


Para que as perspectivas da Educação Integral e da Educação do Campo se consolidem é importante que um saber não se sobreponha ao outro, mas sim, que se articulem na construção dos processos educativos. Nesse sentido, tanto os saberes acadêmicos, quanto os saberes populares são necessários para a formação integral dos estudantes. Santos (2007) ao tratar da inter-relação de saberes fazem uso da expressão “ecologia dos saberes”, que implica a noção da inesgotável “... diversidade epistemológica do mundo”, e o reconhecimento da existência da pluralidade pela qual o conhecimento pode ser manifesto.

Tal afirmação pode ser confirmada pela fala da mãe A que destaca os diversos saberes e espaços do processo de construção da aprendizagem:


Que nem eu “to” “falano” com “ocê”, o que ele aprende lá “nóis” não ensina aqui, aqui a gente ensina outras coisa. (Mãe A).


O conjunto de experiências e de vivências que o homem e a mulher do campo têm ao longo de sua vida é marcado pela relação com o trabalho, com a produção e a reprodução da vida. O trabalho infantil10i muitas vezes é visto pela sociedade como uma anomalia, um erro social que precisa ser extinto. Porém, na perspectiva da agricultura familiar, diversos fatores motivam a inserção das crianças na divisão social do trabalho. Os labores realizados pelas crianças não se relacionam à remuneração, seja ela justa ou não: o trabalho infantil na agricultura familiar possui caráter de ocupação, onde a criança é aprendiz de um modo de vida. Schneider (2005, p. 23) esclarece quanto a isso que:


A profissão de agricultor (a) familiar continua sendo o aprendizado prático através do saber-fazer transmitido de geração em geração. Nessa forma singular de divisão social do trabalho familiar, a organização do processo de aprendizagem não se realiza separadamente das atividades produtivas, nem ocorre em lugares diferenciados do ambiente cotidiano de trabalho que sejam destinados exclusivamente aos aprendizes, particularmente, às crianças. Aprender e ensinar fazem parte do mesmo contexto social de ação em que ocorrem as atividades da vida cotidiana da comunidade e da unidade produtiva familiar, e no qual os sujeitos se inserem de forma diferenciada em função das suas possibilidades de participação e dos seus objetivos.

A dimensão do trabalho deve se somar às proposições de qualquer projeto/programa de educação para escolas do campo. Para integrar o homem ao mundo e o mundo ao homem, os tempos e espaços de aprendizagem devem favorecer as interações com o universo dos estudantes, contextualizando seus saberes e conhecimentos.


As pessoas se humanizam ou se desumanizam se educam ou se deseducam, através do trabalho e das relações sociais que estabelecem entre si no processo de produção material de sua existência ... Pelo trabalho o educando produz conhecimento cria habilidades e forma sua consciência. Em si mesmo o trabalho tem uma potencialidade pedagógica, e a escola pode torná-lo mais plenamente educativo, à medida que ajuda as pessoas a perceber o seu vínculo com as demais dimensões da vida: a sua cultura, seus valores, suas posições políticas. (Caldart, 2000, p. 55-56).


Verificam-se a partir da análise das entrevistas que o Programa não estimula a valoração dos saberes locais e das muitas identidades que constituem o homem do campo, porque não compreende que o homem do trabalho é, também, o homem da escola. Padilha (2012, p. 361) destaca: “se educarmos sem dialogar com os saberes e experiências que os alunos trazem para a escola, estaremos contribuindo para dificultar as suas aprendizagens e para aumentar os índices de exclusão escolar”. Quanto à articulação de saberes, Morin destaca que:


Somente com uma reforma do pensamento e com ações que coloquem em prática essa conexão será possível reverter a suposta superioridade de um campo sobre o outro e estabelecer relações mais fecundas, capazes de responder aos desafios atuais. Para isso é necessário uma educação capaz de desencastelar e de articular os saberes dispersos e integrá-los na vida. (Morin, 2004, p. 128. grifos nossos).


Nesse contexto, a pedagogia da alternância se apresenta como uma metodologia que visa promover diálogos entre os saberes, entre os tempos e espaços educativos conforme as proposições da Educação do Campo e da Educação Integral. A fala do pai B deixa clara a necessidade de a escola se movimentar na dinâmica da vida que acontece fora dos seus muros:


As aulas podiam ser fora da escola, podia ser nas “coisa”que a gente faz junto com “nóis” eu acho que dava certo. (Pai B).


Já penso os meninos do integral “ajudano” nos “mutirão” da “coiêta” ou “intão” criano nos “computado” jeito mais “fáci” pra gente “trabaiá” (Pai B).


As percepções dos pais evidenciam a necessidade de reelaborar a função do PME na escola estudada, uma vez, que as propostas aparecem desconexas com as necessidades da comunidade, reproduzindo assim, o equívoco histórico de oferecer uma educação descontextualizada e pouco compreendida, corroborando para a manutenção das desigualdades e privilégios sociais.


Considerações finais


No contexto da escola estudada, a redução do número de matrículas nas turmas de Tempo Integral pode ser compreendida como uma forma de resistência da comunidade. É necessário considerar que não basta dilatar o tempo de permanência na escola, sem reelaborar os significados dos espaços e dos saberes, como também do próprio tempo. É necessário construir uma dinâmica de trabalho que oportunize uma formação que considere a realidade de seus sujeitos/atores nesse processo.

É importante ressaltar que o PME é uma ação indutora da política de Educação Integral. Ao evidenciar as fragilidades que o mesmo apresenta no que diz respeito a sua oferta aos sujeitos do campo esse estudo concorre para que os estados e municípios, re/formulem suas propostas e programas a partir da escuta de seus sujeitos.

O Estado, devido a sua abrangência, tem grandes desafios no sentido de dar conta das especificidades locais. Esperar respostas do Estado faz parte de uma lógica paternalista, assistencialista e que exclui o potencial de transformação dos atores sociais postos em cena. É preciso reverter essa lógica para que se instale um processo participativo, de corresponsabilidades, de comprometimento coletivo, buscando a emancipação dos sujeitos, estimulando o exercício da cidadania de maneira consciente e participativa. “A dialética da educação responde a uma dinâmica de contradição que marca politicamente as sociedades de classe. Conscientização e libertação são elementos importantes para se entender a educação como ato político comprometido com as mudanças significativas da sociedade”. (Ghedin, 2012, p. 47).

Mesmo que os resultados indiquem as percepções de um grupo de pais de uma comunidade rural específica, podem revelar, também, tendências e indicar direcionamentos em um contexto mais amplo. Se este programa tivesse sido implementado considerando a realidade dos moradores do campo, ele poderia ter obtido resultados mais significativos para a comunidade estudada.

Compreendemos que a Educação do Campo se fundamenta em princípios também defendidos pelos referenciais epistemológicos da Educação Integral. Já promover Educação Integral à luz da Educação do Campo implica em um deslocamento que contemple as realidades e sujeitos do campo, ou seja, não há fórmulas prontas a serem aplicadas, mas sim intencionalidades que favoreçam a leitura e a inclusão da diversidade na construção de projetos e políticas públicas.

Nesse sentido, se o Programa Mais Educação tivesse sido pensado como um programa de fomento à Educação Integral para as escolas do campo, certamente seria diferente da forma como se apresenta hoje.



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O presente artigo apresenta parte dos resultados da Pesquisa de Mestrado intitulada “Programa Mais Educação: Diálogos a partir da percepção de pais de estudantes de uma comunidade rural” desenvolvido na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG entre 2014/2016.


²Quando a escola iniciou a proposta em 2012 foram abertas três turmas com vinte e cinco estudantes e m cada uma, outros estudantes não puderam concluir sua matrícula por não haver mais vagas disponíveis de acordo com as possibilidades de atendimento pela escola. Porém, nos anos seguintes essa procura por vagas nas turmas de Educação Integral foram diminuindo progressivamente. Em 2013 foram abertas duas turmas uma com vinte estudantes e outra com dezesseis. Em 2014 mantiveram-se as duas turmas uma com quinze estudantes e outra com dezoito, mas em 2015 somente uma turma com vinte estudantes.


³Usaremos ao longo do texto a expressão Tempo Integral sempre que nos referirmos às turmas de Educação Integral desenvolvidas na escola estudada não como uma defesa de conceito, mas nos apropriando da expressão a que a comunidade pesquisada se referência.


4No que tange a Educação ofertada nas áreas rurais, o Movimento Por uma Educação do Campo têm promovido um processo de ocupação social e escolar que vêm contribuindo para o fortalecimento da identidade da escola. Para saber mais pode-se consultar o texto disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_educacaocampo.pdf. Acesso em 10 de fevereiro de 2017.


4O conceito de omnilateralidade é de grande importância para reflexão sobre educação em Marx. Ele trata da formação humana oposta a formação unilateral decorrente do trabalho alienado, da divisão social do trabalho, da reificação e das relações burguesas. Para aprofundar a compreensão sugerimos a leitura do artigo “A produção omnilateral do homem na perspectiva marxista”, disponível em: www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/3581_2062.pdf.


5O movimento anarquista se intensificou no Brasil na década de 1930 e defendem uma sociedade baseada na liberdade total, ou seja na não existência do estado. Já o movimento integralista, foi um movimento conservador que se destacou na década de 1930 (período que se instalou a ditadura) acreditavam que a sociedade só poderia funcionar se tivesse ordem e paz, e que fosse respeitada a hierarquia social. Com o fim da ditadura as comunidades começam a se articular com vistas a combater as contradições econômicas e assim surge o movimento popular. Vale aprofundar a leitura, para compreender melhor as contribuições que cada momento histórico inferiu ao movimento de Educação Integral no Brasil. Compartilhamos o livro “Série Mais Educação: Educação Integral” disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cadfinal_educ_integral.pdf.


6Para compreender melhor o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, pode-se consultar http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf.


7Para compreender melhor a expressão do/no campo pode-se consultar os cadernos de Educação do Campo no site http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/educacaocampo.pdf.

8Para aprofundar as discussões sobre Escola/Estado Reprodutivista sugerimos a leitura do livro Escola e democracia, de Demerval Saviani.


9A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisada UFMG com número de protocolo 50124515.9.0000.5149.

10Não é objetivo desse estudo se debruçar sobre as diversas concepções de trabalho nem de trabalho infantil. Para maiores informações, pode ser consultado o artigo Trabalho infantil no campo: do problema social ao objeto sociológico, de Valmir Luiz Stropasolas, publicado na Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, Ano 17, nº 27, 2012, 249-286.



Recebido em: 25/02/2017

Aprovado em: 06/04/2017

Publicado em: 29/06/2017



Como citar este artigo / How to cite this article / Como citar este artículo:


APA:

Justino, E. F., & Sant’Anna, P. A. (2017). Programa Mais Educação: diálogos partindo da percepção de pais de estudantes de uma comunidade rural. Rev. Bras. Educ. Camp., 2(1), 389-410. doi: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2017v2n1p389


ABNT:

JUSTINO, E. F.; Sant’anna, P. A. Programa Mais Educação: diálogos partindo da percepção de pais de estudantes de uma comunidade rural. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 2, n. 1, p. 389-410, 2017. doi: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2017v2n1p389



Rev. Bras. Educ. Camp.

Tocantinópolis

v. 2

n. 1

p. 389-410

jan./jun.

2017

ISSN: 2525-4863


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