v. 12 n. 1 (2020): ENVOLVIMENTOS EM SI E COM AS GENTES
No atual contexto pandêmico em que nos encontramos, faz-se necessário uma práxis, cuja ação-reflexão nos permita questionar como estamos vivendo e o que estamos fazendo com nós mesmos. Nessa busca reflexiva-refletora da dinâmica do tempo moderno, percebemos os resultados da capitalização do mundo e da monetização de vidas. O vírus que nos mata e paralisa, mas que, nesse momento, nos leva a questionar comportamentos sociais da modernidade, é o próprio tempo capitalista, com suas rachaduras a ruir. Propomos, então, como ação inicial, um retorno à nossa natureza humana, buscando nos envolver uns com os outros e visibilizar um pensar da humanidade.
Ao diagnosticar essas afinidades e reconhecer o desenvolvimento associado a sustentar o padrão de civilização consumidora como mais uma estratégia incorporada aos repertórios manifestos na colonialidade, propomos, nessa coletânea, a re-existência (WALSH, 2014), o que resiste e sobra ao projeto de uniformização e agenciamento dos desejos. Esse dossiê nasceu de um debate promovido pelo Programa Interdisciplinar de PósGraduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás, convertido num curso aberto à participação de outros programas de mestrado e doutorado, dentro e fora de Goiás. Conduzido pela professora Dra. María Luisa Eschenhagen e pelo professor Dr. Ricardo Barbosa de Lima, o curso estendeu-se à participação de grupos de pesquisa e iniciativas de investigação no Tocantins, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Moçambique.
A demonstração de que, para cada imposição vertical, emergem convivências criativas e emancipatórias garantirão, às bases que cimentam identidades, a capacidade de se reinventarem, de forma igualmente sofisticada. Convidamos a este exercício de desobediência epistêmica, apropriando-se das brechas nas validações do conhecimento ocidental para que novas narrativas, perspectivas e cosmovisões possam ser conhecidas. Para que possam, afinal, co-inspirar (MATURANA, 2002) caminhos e soluções, intentamos: a criação de uma rede de insurgência contra hegemônica, que, por tantos embates, especializase em reconhecer as efemeridades das tentações, a perenidade do que continua e a estabilidade dos saberes locais atentos às suas conexões, sem grau de apropriação, mas de integração. Pressupomos, portanto, alimentar envolvimentos em detrimento de desenvolvimentos (SILVA CARVALHO; RAMOS JÚNIOR, 2017). O objetivo é de dispor e trocar lugares de afetividades que se manifestam como fés, curiosidades e, fundamentalmente, promover a ação política que pode ensinar o envolvimento integrado, as respostas e alternativas ao Desenvolvimento.
Estruturalmente, as experiências das comunidades protagonistas pelo envolvimento não podem ser silenciadas ou tornadas ininteligíveis, traduzidas somente para o público acadêmico. O esforço dialógico do texto escrito deve garantir que outras narrativas também sejam possíveis, que se convertam em ferramentas de recíproco uso. Que nesse caraa-cara entre o Desenvolvimento e o Envolvimento haja uma reversibilidade (BENITES, 2007; WAGNER, 2010), que ambos se expliquem, se vejam num fórum ecológico de saberes, horizontalizado e respeitoso. Que se possibilite, assim, uma ocupação dos lugares do Direito Epistêmico para tensionar sua indolência e que a conversa caiba numa fogueira ou canto de ideias.
Este dossiê, organizado por Elson Santos Silva Carvalho, Ana Clara Gomes Costa e Maria Luísa Eschenhagen foi separado em blocos de debate e incitações propiciadas pelo curso da professora Eschenhagen em Goiânia. Nesta continuidade complementar ao “Trampas do (Des)envolvimento” (disponível em https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/escritas/issue/view/380), os focos são as sensibilidades, a força das descobertas e indícios das lutas que permitem, hoje, insistir na luta, na recusa, na cautela e e nas contrarreações.
São os ENVOLVIMENTOS COM AS GENTES, narrativas que tratam de como as internalidades, e sua ocupação de lugar colaborativo e contributivo, compreendem afetiva e estrategicamente os caminhos dos povos indígenas, quilombolas, amazônicos, das mulheres negras e a maturidade de sua luta. O seguinte exercício de clusterização deriva das experiências com a observação aprendente com a alteridade, com a re-existência como continuidade histórica e o inteligente dinamismo que reconfigura sua continuidade. É o que une os textos produzidos para explicar as formas de ENVOLVIMENTOS EM SI, tão para dentro, para as descobertas e despertares, que inevitavelmente conectam-se aos planos mais abrangentes.
É uma coletânea de fés e possibilidades, para que sejam vistas as forças emergentes e poderosas em cada agressão estrutural. Para mostrar que é possível seguir, amparados no que se passou e está gravado em nossa história, para insistir em re-existir. Existir de novo, de dentro para fora...
Com a contribuição de olhares diversos, plurais e complementares, este dossiê é um convite ao se envolver com narrativas, povos, realidades, contextos e fluxos de resistências, em uma perspectiva de re-existir ao desenvolvimento. De forma a firmar processos de enfrentamento à colonialidade e ao colonial como eixo de partida das relações sociais e ambientais, aqui, buscamos alternativas ao desenvolvimento. Mais do que isso buscamos o des-envolvimento pelas vias do se envolver. Se em algum momento histórico anterior – antes da Pandemia – os enfrentamentos alternativos ao desenvolvimento pareciam distantes, a exposição dos interesses do Poder ratifica sua urgência, como força emergente e re-existente.